Movimentos indígenas protestam em frente à Câmara dos Deputados contra a aprovação do PL 490 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) – Tiago Rodrigues
O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a adiar o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, um pedido de reintegração de posse do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, reconhecida como pertencente a esse povo, pelo Ministério da Justiça em 2003. O julgamento ficou marcado para o próximo 25 de agosto. Como o Supremo reconheceu a repercussão geral desse caso em 2019, a decisão neste caso terá repercussão jurídica para todos os povos indígenas do país.
O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a adiar o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, um pedido de reintegração de posse do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, reconhecida como pertencente a esse povo, pelo Ministério da Justiça em 2003. O julgamento ficou marcado para o próximo 25 de agosto. Como o Supremo reconheceu a repercussão geral desse caso em 2019, a decisão neste caso terá repercussão jurídica para todos os povos indígenas do país.
O pedido do IMA se baseia na ideia de “marco temporal” da ocupação de terras indígenas, inaugurada pelo ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Carlos Ayres Britto, no julgamento da Corte da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (TIRSS), em Roraima (RR), em 2009. Em favor da demarcação da TIRSS, o ministro do STF considerou a data de promulgação da Constituição de 1988 (5 de outubro desse mesmo ano) como “insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, ‘dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam’”.
Indígenas Laklanõ-Xoklem durante ato em Brasília contra Bolsonaro no último 19 de junho. Foto: Mauro Ramos
A interpretação criada nesse julgamento foi manipulada e aproveitada nos anos seguintes por ruralistas e outros atores interessados no avanço sobre terras indígenas, com o objetivo, não apenas de restringir as futuras demarcações de terras indígenas, como de anular os processos de demarcação em andamento, tal como argumentou o agora senador gaúcho Luis Carlos Heinze (PP), conhecido atualmente por ser um dos principais defensores de remédios com ineficácia comprovada contra a COVID-19 e, à época, deputado federal. Em 2017, Heinze, integrante da Bancada Ruralista, explicitou esses objetivos, ao afirmar que a bancada havia combinado com o governo de Michel Temer a publicação do Parecer Normativo 001/2017, pela Advocacia-Geral da União (AGU). Heinze é um dos parlamentares que não esconde seu caráter anti-indígena. Em 2014, afirmou que os povos indígenas, quilombolas e população LGBT são “tudo o que não presta” e ainda reafirmou o dito ao ser questionado pela imprensa.
O parecer 001/2017, batizado de Parecer Antidemarcação, foi uma de várias tentativas de estender a interpretação como critério geral para demarcações de terras indígenas. A primeira tentativa nasceu também na AGU, com a Portaria nº 303, de 16 de julho de 2012. O próprio ex-ministro do STF, Carlos Ayres Britto, é contrário à interpretação que ruralistas fizeram da decisão. Em 2018, ao ISA (Instituto Socioambiental), ele lembrou que em seu voto fez uma ressalva “para aquelas situações em que os índios à época da [promulgação da] Constituição não estavam em suas terras, [porque] estavam escorraçados, vítimas de violência física. Não deixaram de permanecer nas redondezas, no entorno de suas terras. E não recuperaram suas terras porque encontraram uma ambiência de hostilidade, de agressão”, argumentou o ex-ministro do Supremo.
Em maio do ano passado, o ministro do STF, Edson Fachin, suspendeu o Parecer Antidemarcação. No próximo dia 25 de agosto, o plenário da Corte deve definir se confirma ou não a decisão de Fachin.
Povos Indígenas em pé de luta
Cerca de 850 indígenas pertencentes a mais de 50 povos realizaram o Acampamento Levante pela Terra em Brasília, de 8 a 30 de junho, dia em que o STF voltou a adiar os julgamentos referentes ao “marco temporal”. O movimento indígena, que chegou a mobilizar 1200 indígenas em Brasília na semana do 30 de junho e em centenas de protestos por todo o país, definiu que as delegações dos diversos estados voltarão em agosto, quando o STF retomar o julgamento.
Além das pautas no Supremo, a mobilização foi contra o Projeto de Lei (PL) 490/2007. Segundo uma nota técnica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o projeto pretende “inviabilizar a demarcação de terras indígenas”, assim como abrir as terras demarcadas “para os mais diversos empreendimentos econômicos, como agronegócio, mineração e construção de hidrelétricas, entre outras medidas”.
O PL foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) Câmara dos Deputados, no último dia 23 de junho, em uma sessão muito questionada pela oposição e pelos movimentos indígenas, que além de terem censurada sua participação, foram fortemente reprimidos pela Polícia Militar do Distrito Federal durante protesto em frente à Casa. Como em outras ocasiões, a presidenta da CCJ, a deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), foi acusada de censurar o debate, chegando inclusive a interromper a fala da única parlamentar indígena brasileira, Joênia Wapichana (Rede-RR). Mesmo sendo aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto não terá validade se o STF decidir pela inconstitucionalidade da aplicação da ideia de “marco temporal” defendida por ruralistas.
A mobilização em Brasília também é contra o (PL) 191/2020, de autoria do próprio governo Bolsonaro, que tenta legalizar a mineração e outros megaprojetos em Terras Indígenas, e o PL 2633/2020, criticado por legalizar situações de grilagem de terras.
A falsidade da argumentação do governo Bolsonaro e sua base neoliberal
Tanto os deputados que aprovaram na CCJ o PL 490, quanto o próprio presidente Jair Bolsonaro, vêm lançando mão da estratégia de falar em nome dos povos indígenas ao defenderem esses projetos anti-indígenas. Bolsonaro passou inclusive a incentivar lideranças indígenas a defenderem a mineração e o agronegócio em suas terras, dentro dessa estratégia. A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o Observatório da Mineração divulgaram o conteúdo de uma reunião de Bolsonaro com um empresário madeireiro, o presidente da Funai e lideranças indígenas Kayapó do Pará, em que essa estratégia fica evidente. “Os índios que querem trabalhar com mineração tem que pressionar seus políticos”, disse o presidente da República na reunião fora da agenda presidencial.
Durante a aprovação do PL 490 na CCJ, um dos vice-líderes do governo na Câmara, o deputado Giovani Cherini (PL-RS), afirmou que os povos indígenas “não precisam de mais terra”, que o projeto visa acabar com a “fome e a miséria” entre indígenas, e ainda que “índio precisa de orientação para que ele possa explorar suas terras de forma racional, de forma sustentável”, um total desconhecimento e desrespeito aos seus modos de vida. Na mesma sessão, o deputado Kim Kataguiri defendeu que o projeto acabaria com o cerceamento do “direito ao desenvolvimento econômico” dos povos indígenas.
A argumentação de suposta defesa dos povos indígenas é evidentemente falsa. É público e notório o interesse do agronegócio e da mineração em avançar sobre territórios indígenas, que é onde estão comprovadamente as áreas com maior preservação da sociobiodiversidade dos biomas brasileiros. Como revelou a Revista Piauí recentemente, os pedidos de mineração em terras indígenas, que somente neste ano já bateram recorde, foram todos feitos por não-indígenas.
Além disso, nenhum dos que defendem essas pautas vêm de movimentos indígenas ou sequer possuem relação com os movimentos e articulações indígenas do nosso país. Essas não são demandas dos povos indígenas, e isso fica demonstrado também quando as portas da Câmara dos Deputados são fechadas às centenas de povos representados pelos indígenas do Acampamento Levante pela Terra, em debates que dizem respeito a esses povos! Isso deixa muito nítido que o discurso de que a exploração pelo agronegócio e a mineração é uma “demanda” dos povos indígenas é absolutamente falso.
Registro dos ancestrais de Vetchá Teiê e de Voia Camlem, indígenas nascidos na terra onde hoje é a Retomada Xokleng | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Precisamos continuar apoiando a luta dos povos indígenas contra esses retrocessos históricos e fazer com que o STF elimine de uma vez por todas a aberração jurídica que significa o “marco temporal”, assim como toda a “boiada” que vem sendo promovida contra os direitos dos povos tradicionais e originários, assim como contra os bens comuns da natureza.
A Amigos da Terra Internacional, a maior federação de base pela justiça ambiental do mundo, com grupos em 73 países, ao celebrar neste mês de junho 50 anos de existência, aprovou por unanimidade, no último dia de sua assembleia geral (2 de Julho), uma resolução comprometendo-se a atuar em solidariedade internacionalista em apoio às mobilizações indígenas articuladas no Brasil, como o acampamento Levante pela Terra e a Marcha das Mulheres Indígenas.
Demarcação já!
Marco Temporal Não!
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. Artigo publicado em 5 de Julho de 2021 na edição nacional e em 6 de Julho na edição do RS. Clique no link para conferir as versões em inglês e em espanhol deste texto