Enchentes já afetaram mais de 80 comunidades indígenas no RS; saiba como ajudar

Levantamento feito por organizações indígenas e indigenistas busca cobrar o poder público e apoiar campanha de arrecadação de doações para comunidades afetadas

A comunidade Pindo Poty, do povo Guarani Mbya, que fica localizada no bairro Lami, em Porto Alegre é uma das mais afetadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul. Foto: Roberto Liegbott/Cimi

Os impactos das chuvas e das cheias inéditas no estado do Rio Grande do Sul chegam de forma avassaladora em comunidades indígenas da região. Um levantamento colaborativo indica que mais de 80 comunidades e territórios indígenas foram diretamente afetados, alguns com extrema gravidade.

O mapeamento, que segue em atualização, é realizado de forma conjunta pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Sul, Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Fundação Luterana de Diaconia, Conselho de Missão entre Povos Indígenas e Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (FLD/Comin/Capa), além do Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Rio Grande do Sul (Cepi/RS).

O mapeamento, que segue em atualização, é realizado de forma conjunta:

Acesse o mapa e confira as atualizações aqui

Comunidades dos povos Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, espalhadas em 49 municípios gaúchos, são as mais impactadas da região. Dentre as comunidades que se encontram em estado de emergência mais grave, todas elas do povo Guarani Mbya, estão Lami e da Ponta do Arado, situadas no município de Porto Alegre, com 18 famílias atingidas; Yva’ã Porã, em Canela, com 16 famílias afetadas; Flor do Campo e Passo Grande Ponte, em Barra do Ribeiro, com 25 famílias impactadas, e as 19 famílias da aldeia Araçaty localizadas no município de Capivari do Sul.

Nessas comunidades, as famílias precisaram deixar suas casas para se deslocar para áreas mais elevadas, dado o risco de alagamento e deslizamento de terra. Na aldeia Pekuruty, localizada às margens da BR-290, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) destruiu as casas e edificações da comunidade, sem qualquer consulta ou justificativa.

As famílias precisaram deixar suas casas para se deslocar para áreas mais elevadas

Segundo Roberto Liegbott, missionário do Cimi Regional Sul, “essa comunidade foi removida para que o DNIT pudesse consertar uma tubulação que passa ali e eles acabaram destruindo toda a comunidade indígena. Eles arrancaram as casas dos indígenas sem que os Guarani sequer soubessem ou tivessem sido comunicados. Os indígenas no momento encontram-se em um abrigo, mas quando retornarem, a comunidade já não existirá mais, porque o DNIT destruiu tudo”, informou o missionário.

A inundação persiste na região metropolitana de Porto Alegre. A situação ainda é preocupante nos municípios de Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Guaíba, Eldorado do Sul e Cachoeirinha, além dos bairros de Porto Alegre, especialmente nas zonas Norte e Sul.

O levantamento realizado pelas organizações indígenas e indigenistas ainda está em estágio preliminar e possui o objetivo de auxiliar, nesta fase emergencial, a realização de uma campanha de doação para as comunidades afetadas. “Há um conjunto de entidades e instituições organizadas para ajudar essas famílias não só nesse primeiro momento, mas também depois, na reconstrução de suas casas e aldeias”, explicou Roberto.

As organizações pedem apoio e doação de alimentos, material de higiene e limpeza, lonas, telhas, colchões e cobertores para as comunidades. As doações podem ser feitas na Paróquia Menino Jesus de Praga, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

O Cimi Regional Sul, a ArpinSul e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também disponibilizaram uma conta bancária para receber doações financeiras.

Além de apoiar a campanha de doação em curso, o mapeamento das áreas impactadas também busca subsidiar informações para cobrar, tanto do governo federal como do governo estadual, providências e amparo às comunidades indígenas do Rio Grande do Sul.

“Há também a necessidade que haja a regularização e a demarcação dos territórios, de preferência que se assegure lugares adequados, não degradados, para que essas famílias possam viver tendo um horizonte de segurança e não de vulnerabilização como ocorre hoje”, considera Roberto Liebgott.

Este material foi publicado originalmente em Cimi Sul,  no dia 06/05, no link: https://cimi.org.br/2024/05/indigenascheiars/

 

Enchente no RS: Informe sobre comunidades indígenas, quilombolas e de pesca artesanal

Prezadas amigas e amigos,

Estamos acompanhando as informações acerca das comunidades indígenas, quilombolas e de pesca artesanal que, como toda a população, enfrentam os impactos decorrentes deste último evento climático que bateu recordes no Rio Grande do Sul.

Ontem terminamos um mapeamento das comunidades indígenas que estão sendo mais impactadas pelas águas e identificando os casos mais graves, para posteriormente pensarmos em ações conjuntas de apoio e solidariedade, e subsidiar a tomada de ações pelo Poder Público.

Retomada Arado Velho, em Porto Alegre (RS)

De todas as comunidades indígenas, destacamos três casos Guarani emergenciais:

Comunidade Yjerê da Ponta do Arado, em Porto Alegre (bairro Belém Novo), onde o cacique Timóteo preferiu se manter na área após abandonarem suas casas às margens do Guaíba e se deslocarem para um terreno mais elevado.

Comunidade Pekuruty, em Eldorado do Sul, e Comunidade Pindó Poty, em Porto Alegre (bairro Lami), as quais precisaram deixar suas áreas com apoio da Defesa Civil. No entanto, após a saída das famílias Guarani da comunidade Pekuruty, o DNIT destruiu suas edificações às margens da BR-290, sem qualquer consulta ou justificativa.

As águas ainda seguem subindo na região de Porto Alegre. Nos municípios de Canoas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Guaíba e Eldorado do Sul, Cachoeirinha, além dos bairros de Porto Alegre, especialmente nas zonas Norte e Sul, a situação ainda é desesperadora.

Precisamos que as águas baixem para a gente poder atuar no sentido de assegurar habitação, alimentação e todo o apoio na reconstrução das comunidades indígenas.

Além das comunidades já citadas, realizamos um mapeamento preliminar para identificar as comunidades indígenas mais impactadas em decorrência deste evento climático extremo. O mapeamento foi realizado em conjunto pela Comissão Guarani Yvyrupa, Cimi-Sul, FLD/ Comin/Capa e CEPI, a partir do contato com a a diversas lideranças/representantes indígenas e acessando as informações da Funai e Sesai.

Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS): 

 

Até o momento, constam as seguintes comunidades indígenas em situação de emergência:

Água Santa: Kaingang Acampamento Faxinal e TI Carreteiro.

Barra do Ribeiro: Mbyá-Guarani Passo Grande Ponte, Flor do Campo, Yvy Poty, Ka’aguy Porã, Guapo’y e Coxilha da Cruz, Tapé Porã.

Benjamin Constant do Sul: Kaingang TI Votouro.

Bento Gonçalves: Kaingang Acampamento.

Cachoeira do Sul: Mbyá-Guarani Tekoá Araçaty, Mbya Guarani Acampamento Papagaio, Mbya Guarani Acampamento Irapuá.

Cachoeirinha: Mbyá-Guarani Karandaty (Mato do Júlio).

Cacique Doble: Kaingang TI Cacique Doble.

Camaquã: Mbyá-Guarani Yguá Porã (Pacheca), Yvy’a Poty, Tenondé, Ka’a Mirindy, Guavira Poty.

Canela: Kaingag Konhun Mag e Mbyá-Guarani Kurity e Yvya Porã.

Capela de Santana: Kaingang Goj Kosug.

Capivari do Sul: Mbyá-Guarani Acampamento RS-040 e Tekoa Araçaty.

Caraá: Mbya Guarani Varzinha, Tekoa Mbya Varzinha.

Carazinho: Kaingang 2 Acampamentos.

Caxias do Sul: Kaingang Aldeia Forqueta.

Charqueadas: Mbya Guarani Guajayvi.

Charrua: Kaingang TI Ligeiro.

Constantina: Kaingang TI Segu e Novo Xingú).

Cruzeiro do Sul: Kaingang Acampamento TãnhMág (RS-453).

Eldorado do Sul: Mbya Guarani Pekuruty.

Engenho Velho: Kaingang TI Serrinha.

Erebango: Kaingang TI Ventarra, Guarani de Mato Preto.

Estrela Velha: Ka’aguy Poty.

Estrela: Kaingang Jamã Tý.

Farroupilha: Kaingang Pãnónh Mág.

Faxinalzinho: Kaingang TI Kandóia.

Iraí: Kaingang Goj Veso e Aeroporto.

Lajeado: Kaingang , Foxá.

Maquiné: Mbya Guarani Ka’aguy Porã, Yvy Ty e Guyra Nhendu.

Mato Castelhado: Kaingang Tijuco Preto.

Osório: Mbya Guarani Tekoa Sol Nascente.

Passo Fundo: Kaingang Goj Yur, Fág Nor.

Porto Alegre: Charrua Polidoro, Mbyá-Guarani Ponta do Arado e Pindó Poty, Mbya Anhatengua, Kaingang Gãh Ré (Morro Santana), Tupe Pan (Morro do Osso).

Riozinho: Ita Poty.

Rodeio Bonito e Liberato Salzano: TI Rio da Várzea (emergência na Linha Demétrio).

Salto do Jacuí: Kaingang Horto Florestal, Aeroporto e Júlio Borges, Mbyá-Guarani Tekoá Porã.

Santa Maria: Mbya Guarani Guaviraty Porã e Kaingang Kētƴjyg Tēgtū (Três Soitas).

Santo Ângelo: Mbya Guarani Yakã Ju.

São Francisco de Paula: Xokleng Konglui.

São Leopoldo: Kaingang Por Fi Gá.

São Gabriel: Mbya Guarani Jekupe Amba.

São Miguel das Missões: Mbyá-Guarani Koenju.

Tabaí: Kaingang PoMag.

Terra de Areia: Mbya Guarani Yy Rupa.

Torres: Mbya Guarani Nhu Porã.

Palmares do Sul: Mbya Guarani da Granja Vargas.

Viamão: Mbya Guarani Nhe’engatu (Fepagro), Pindó Mirim, Mbya Guarani Jatai’ty TI Cantagalo e Takua Hovy.

Vicente Dutra: Kaingang TI Rio dos Índios.

As Organizações encaminham essa relação, que não é definitiva, pois ainda há informações necessárias a serem acrescentadas, mas através da qual se pede ao Poder Público atenção no sentido de garantir assistência adequada neste tempo de tantas adversidades.

Pede-se também apoio às organizações e entidades da sociedade no sentido de auxiliarem, através de apoios e ações solidárias às comunidades que necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.

Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS): 

Assinam esse documento a Comissão Guarani Yvyrupa, o Cepi, Cimi Sul e FLD/Comin/Capa.

Apoios e ações solidárias às aldeias indígenas:

Aldeias necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.

👉🏽 Ponto de coleta de doações  para as comunidades indígenas: 
📍Paróquia Menino Jesus de Praga, Rua Dr. Pitrez, 61, bairro Aberta dos Morros, Porto Alegre/RS

👉🏽 Apoiar Retomadas Guarani do RS:
📍 Chave PIX para doações: 21.860.239/0001-01

👉🏽 Apoiar Retomada Mbya Guarani Nheengatu de Viamão:
📍 Chave PIX para doações: CPF: 032.874.330-59 | Laércio Gomes Mariano.

Todo solidariedade e apoio aos territórios de vida!

Vídeo da Retomada Arado Velho, em Porto Alegre, (RS): 

Leia também a nota lançada no dia 03 de maio – Inundação no Rio Grande do Sul: Comunidades indígenas Mbya Guarani impactadas pelas enchentes

Não foi descobrimento, foi invasão

22 de abril, Dia da Invasão Colonial

Não foi descobrimento, foi invasão. Timóteo Karay Mirim, cacique da Retomada Mbyá Guarani Ponta do Arado Velho, evidencia: “Para nós não é isso (descoberta), porque aqui é lugar de Guarani há muito tempo. Essa terra é antiga demais. E quando chega Pedro Álvares Cabral os indígenas já existiam há 12 mil anos nessa terra. Depois que ele chegou, invadiu o nosso território. Eu tô sabendo assim”. No vídeo você confere o relato do cacique sobre a data de hoje.

O Brasil é terra indígena. E para além de combater o racismo que marca o cotidiano de povos originários, é mais que necessário lutar para que o projeto de colonização, que segue aprofundando feridas ainda abertas, seja extinto. Isso passa por termos consciência de todas as histórias possíveis, que são diversas, de tantos biomas, que contam também sobre cada território e precisam ser percebidas. Passa por respeitar os povos ancestrais, os seus modos de vida, saberes, culturas e conhecimentos. Assim como por reivindicar que os seus direitos sejam assegurados e que os seus territórios não se transformem em mercadorias. No dia da invasão, gritamos por #demarcaçãojá e #marcotemporalnão.

Retomada Mbyá Guarani Ponta do Arado Velho | Crédito: Carmem Guardiola, Amigas da Terra Brasil

Hoje, data que marca a invasão do Brasil, também é o primeiro dia da 20ª edição do Acampamento Terra Livre (#ATL2024), que acontecerá até o dia 26, em Brasília (DF). O #ATL é a maior mobilização indígena do Brasil. Nele, povos indígenas de todos os biomas do país se encontram para somar forças, exigindo a garantia de seu direito originário, em oposição ao marco temporal e na busca da demarcação e proteção dos corpos-territórios.

A luta segue. O Brasil é território indígena ✊🏽🏹

Todo apoio à Retomada Guarani Mbyá Nhe`engatu de Viamão (RS)

Nós, Povo Guarani Mbyá, do Rio Grande do Sul, estamos cansados de viver nas margens de nossas terras originárias, dentro de áreas degradas ou em acampamentos de beira de estradas. Em função disso decidimos retomar um pequeno pedaço do nosso grande território ancestral, o qual chamamos de Tekoá Nhe’engatu, localizado no município de Viamão, Rio Grande do Sul.

Com essa retomada também homenageamos ao nosso avô, Turíbio Gomes, que morreu com 101 anos de idade, e todos os nossos anciões e anciãs que lutaram e padeceram pela busca de uma vida mais digna para o povo Guarani Mbyá, eles não conseguiram, ao menos passar alguns de seus dias de existência, dentro da terra demarcada.

Não temos mais paciência. O tempo passa e nossos Xeramoī, como nosso avô Turíbio, e nossas Xejaryi, como a Laurinda, estão morrendo.

Não é justo vermos nossas crianças nascerem e crescerem em situação de profunda vulnerabilidade, sem perspectivas de uma vida tranquila, justa e saudável.

Passamos nossos anos em casas improvisadas – barracos de lonas – sem terra para plantar nossas roças, sem água potável para beber, sem mato e, sequer temos um lugar para construir nossa Opy, casa de Reza. Não aceitamos mais essa dura e degradante realidade.

Diante desse contexto de desrespeito aos nossos direitos fundamentais, decidimos ingressar nessa área em Viamão, fazendo memória de nossos velhos e velhas, que lutaram, mas não puderam ver garantidos os seus direitos.

Por causa deles, que nos inspiram e nos guiam, estamos aqui, nessa Tekoá Nhe’engatu, dizendo que esta terra tem dono.

Tornamos o grito de Sepé Tiaraju, nosso grande líder e guerreiro, o nosso grito por terra e vida.

Requeremos, nesse momento, que a Funai assuma suas obrigações e agilize os procedimentos de demarcações de terras para nosso povo. Que sejam retomados os procedimentos paralisados e que se inicie a demarcação dessa nossa Tekoá Nhe’engatu, agora ocupada pelos Guarani Mbyá.

Também requeremos a presença das equipes da SESAI, responsável pela assistência de saúde. Pedimos o apoio do Ministério Público Federal, aquele que tem o dever de fazer a defesa de nossos direitos, e principalmente do Ministério dos Povos Indígenas, assim como queremos a participação da Defensoria Pública da União, como órgão que nos auxilie nas demandas jurídicas.

Contamos também com apoio das demais comunidades Guarani Mbyá do Rio Grande do Sul e os apoios dos parentes Kaingang, Xokleng e Charrua.
Seguimos todos nas mesmas lutas, por terra, território e justiça. Demarcação já!

Viamão, 14 de fevereiro de 2024.

Retomada Nhe’engatu



O avanço da violência no campo no primeiro ano de Governo Lula

Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou recentemente os dados da violência no campo do primeiro semestre deste ano: foram registrados 973 conflitos, representando o segundo semestre mais violento dos últimos 10 anos, perdendo apenas para o ano de 2020, no qual foram registrados 1.007 conflitos. Em sua maioria, os conflitos envolvem a questão da terra e território. Segundo a CPT, ao todo foram assassinadas 18 lideranças até outubro deste ano, sendo que os números aumentaram exponencialmente neste mês. Apenas entre 10 e 11 de novembro, 8 assassinatos ocorreram num único final de semana: 4 quilombolas vítimas de chacina na Bahia; 3 sem-terra assassinados na Paraíba; 1 indígena assassinado no Pará. E durante a semana seguinte, mais uma morte indígena.

O retorno de um governo progressista e a possibilidade de retomada das políticas públicas para efetivação dos direitos constitucionais, tais como a concretização da reforma agrária, a demarcação das terras indígenas e a titulação dos territórios quilombolas, faz movimentar as forças de direita. Darci Frigo, coordenador-executivo da organização de direitos humanos Terra de Direitos, analisa que “quando o poder central está na mão dos setores mais progressistas, da esquerda, que não são de confiança das oligarquias, elas passam a atuar no âmbito local com a articulação de forças policiais dos governos dos estados ou das milícias privadas.

Esses setores não confiam no governo central, ainda mais com a possibilidade de efetivação de políticas públicas, como a regularização fundiária, reforma agrária, desintrusão e demarcação de terras indígenas, titulação de territórios quilombolas. Muitos assassinatos têm relação com possíveis limites à desenfreada expansão do agronegócio e seus grandes lucros com anos seguidos de altos preços das commodities agrícolas”.

Após derrubada do marco temporal, aumentaram casos de violência onde o agronegócio organizou ofensiva aos territórios indígenas – Luz Dorneles/ Arquivo ATBr

A oligarquia rural brasileira é conhecida pela sua violência. É comum haver uma influência desse setor sobre as forças de segurança pública estaduais e locais para realização de despejos e ameaças. Nesse sentido, o tema da violência no campo encontra o problema da segurança pública no Brasil. Vários dos conflitos agrários estão vinculados às atuações policiais envoltas em abuso de autoridade. Além disso, a oligarquia mobiliza forças de segurança privada, que atuam como verdadeiras milícias rurais, exterminando lideranças capazes de mobilizar a luta por direitos que afetem os interesses econômicos.

As movimentações políticas em Brasília afetam consideravelmente este cenário. Depois da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de derrubar a tese do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, explodem conflitos nas regiões, nos quais o agronegócio organizou uma ofensiva aos territórios indígenas. As lideranças indígenas e quilombolas são as mais ameaçadas. A determinação do ministro Barroso para efetivação dos processos de desintrusão das Terras Indígenas Apyterewa e Trincheira Bacajá tampouco vem sendo fácil de executar pelo Ministério da Justiça. Inclusive, a possibilidade de avanço das titulações quilombolas gerou uma contra ofensiva, com as vidas ceifadas das lideranças quilombolas na Bahia e no Maranhão.

A violência refletida nos territórios está no Congresso Nacional. A força do agronegócio impõe violações aos direitos constitucionais, como nos questionamentos às decisões do STF, na reabertura do debate do marco temporal e nos projetos de lei de flexibilização do licenciamento ambiental. Sensível a aliança da bancada do boi com a da bala no apoio à proposta de nova lei das Polícias Militares (PL n.º 3045/2022, na mesa da presidência), que permite ainda menor controle e transparência da sua atuação.

Novamente, deparamo-nos com o cenário da violência no campo de 2003, quando a chegada do primeiro Governo Lula e a possibilidade de mudanças concretas na garantia de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais ao povo brasileiro fez insurgir a classe, até então dona do poder. Quando não controla o poder público federal, ainda que com sólidos braços no governo de composição, a oligarquia rural estende suas ações aos poderes locais, estaduais e municipais. Como enfrentaremos essa ofensiva?

Duas discussões centrais do governo para enfrentar o problema

O tema da segurança pública tem sido um desgaste na imagem do Governo Lula. Sem adentrar no vespeiro, interessa-nos refletir sobre as dinâmicas de controle interno e externo da atuação policial. A Polícia Militar no Brasil está mais associada ao militarismo que à segurança pública, assumindo uma inversão de poder; inclusive, algumas PMs sequer respondem aos governos estaduais. Há ausência de punição sobre os casos de infração, com muitos arquivamentos de inquéritos. Outro elemento é a falta de transparência da Instituição, não apenas quanto a sua atuação, mas também quanto ao orçamento. Igualmente, a responsabilização para os gestores que fazem uso político das polícias para efetivação de seus interesses.

A violência, a polícia e a responsabilização pelas infrações, especialmente o abuso de autoridade, precisam ser tratadas no país. A condução da segurança pública, com o aumento da militarização nos territórios, não é a resposta eficiente à crise. É preciso haver coragem para enfrentar uma reforma da organização das polícias Civil e Militar no país, e isso definitivamente não está na proposta atual de lei orgânica das PMs.

Outro tema importante é a política de defensores e defensoras de direitos humanos, dos povos e dos territórios. No país que figura como um dos que mais mata defensores e defensoras no mundo, o tema parece não ser uma prioridade. Desde as discussões do Grupo de Trabalho da Transição, o governo sabia da determinação judicial para formar um Grupo de Trabalho para reformular a política de defensores no país, com a missão de construir o Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, do meio ambiente e comunicadores e o anteprojeto de lei.

Apesar disso, o Decreto com a criação do GT (Decreto n.º 11.562/2023)  saiu em 13 de junho de 2023. E a primeira reunião do grupo só aconteceu no dia 10 de novembro. Em meio a essa morosidade, vários defensores e defensoras vêm sendo assassinados. As respostas são a investigação criminal dos mandantes e executores, elemento muito importante para cessar a impunidade, contudo insuficiente. Enquanto as políticas de defensores não considerarem os aspectos coletivos da violação, e enfrentarem as questões estruturais que dão causa à ação dos defensores, as tragédias seguirão se repetindo.

A proteção da vida humana e da integridade física é obrigação inegociável do poder público. Não existem expectativas de que o atual governo resolva todos os problemas estruturais que como país enfrentamos; porém, se houver recuos em prol da conciliação com a barbárie da oligarquia agrária brasileira, processos políticos fundamentais na construção de outro país, de um Brasil sem fome e sem violência, não serão possíveis.

É urgente e necessário que os ministérios assumam a orientação de governo de construção popular e participativa de políticas públicas, para que nossos problemas sejam tratados entre nós, com seus limites e potencialidades. Avançar no desenvolvimento de perspectivas regionais e locais também é fundamental. Tanto para gestão da segurança pública como para a efetiva proteção dos defensores de direitos humanos, dos povos e dos territórios.

Esta coluna foi publicada originalmente na página do Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/11/21/o-avanco-da-violencia-no-campo-no-primeiro-ano-de-governo-lula 

PL do Genocídio: Apib convoca mobilizações para que Lula vete na íntegra o PL do Marco Temporal

Entenda os motivos pelos quais Lula precisa vetar totalmente o PL 2903. Movimento indígena alerta que além do Marco Temporal, proposta pretende legalizar crimes e por isso é considerado o PL do Genocídio indígena.

A ameaça do Marco Temporal voltou a estar vigente, agora com formato de projeto de lei (PL 2903). A tese do agronegócio, que viola direitos dos povos indígenas e dos territórios, precisa urgentemente ser barrada. Por isso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma série de organizações, movimentos sociais e coletivos convidam a todes, todas e todos para somarem na  Convocatória #VetaTudoLulaPL2903

É evidente que quem votou a seu favor legisla com as mãos cheias de sangue indígena.  Considerado o PL do Genocídio, o PL 2903, aprovado pelo Senado no dia 27 de setembro de 2023, faz com que o Marco Temporal se transforme em lei. O resultado, na prática, é o ataque a inúmeras formas de  vida dos povos indígenas. Com a legalização de diversos crimes, o PL abre  as terras para exploração, para empreendimentos que geram o extermínio, como a mineração, e representa o pensamento mais retrógrado e colonial do século XXI.   

O retrocesso é imenso, afetando direitos humanos, dos povos e das comunidades, além de impactar negativamente todos os biomas, territórios e a biodiversidade brasileira. Além disso, o  PL 2903, votado por um senado racista e colonial, intensifica ainda mais a emergência climática, colocando todas as formas de vida na terra em risco. 

No momento, o  PL 2903 é analisado pelo presidente Lula, que tem 15 dias úteis para sancionar ou vetar (total ou parcialmente) o projeto. É preciso pressionar o governo federal, a partir das bases, para que a lei seja barrada em sua totalidade. A nossa mobilização é fundamental. 

PL 2903 é inconstitucional

O Marco Temporal é uma tese política patrocinada pelo Agronegócio. Os ruralistas pretendem mudar o rumo da história dos povos indígenas e agravar a crise climática. O STF julgou e decidiu por maioria de 9×2 anular o Marco Temporal.  O resultado do julgamento selou uma importante vitória na luta por direitos dos povos indígenas, travada nas ruas, nos territórios, nas redes e no judiciário durante dois anos. Mas o Senado tenciona uma afronta ao Supremo para atender aos interesses do agronegócio.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ressalta que as atitudes do Senado e da Câmara dos deputados são resultados da ligação direta de políticos brasileiros à invasão de terras indígenas, como mostra o dossiê “Os invasores” do site jornalístico “De olho nos ruralistas”. De acordo com o estudo, representantes do Congresso Nacional e do Executivo, possuem cerca de 96 mil hectares de terras sobrepostas às terras indígenas. Além disso, muitos deles foram financiados por fazendeiros invasores de Terras Indígenas, que doaram R$ 3,6 milhões para campanha eleitoral de ruralistas. Esse grupo de invasores bancou 29 campanhas políticas em 2022, totalizando R$ 5.313.843,44. Desse total, R$ 1.163.385,00 foi destinado ao candidato derrotado, Jair Bolsonaro (PL).

Além disso, após a derrubada do marco temporal no STF, o senador Dr.Hiran (PP-RR) protocolou, no dia 21 de setembro, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que pede a instituição do marco temporal. Nomeada como PEC 048/2023, a emenda quer alterar a Constituição Federal de 1988 que prevê o direito originário dos povos indígenas sobre terras tradicionalmente ocupadas.

O projeto de lei do genocídio foi apresentado pelo deputado Homero Pereira do PR de Mato Grosso, no dia 20 de março de 2007. A proposta inicialmente recebeu o número de PL 490/2007. A Câmara dos Deputados aprovou o PL 490, no dia 30 de maio de 2023. A proposta seguiu para o Senado e recebeu novo número: PL 2903.

No mesmo dia em que o STF finalizou o julgamento do Marco Temporal, 27 de setembro, o Senado aprovou o projeto de forma atropelada. A votação foi marcada por mentiras da bancada do Agronegócio e pelo descumprimento da promessa do presidente do Senado Rodrigo Pacheco de não pautar o projeto antes da conclusão do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), sabendo que se tratava da mesma tese.

 Por que Lula precisa vetar TODO o projeto?

Além do Marco Temporal, o PL 2903 pretende legalizar crimes cometidos contra os povos indígenas e por isso é considerado o PL do Genocídio. Entre as violações e violências que ele reproduz e intensifica, estão pontos como:

1) o PL 2903 quer definir critérios racistas de quem é ou não indígena;

2) quer autorizar a construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras em Terras Indígenas, sem consulta prévia, livre e informada, conforme prevê a OIT 169;

3) o PL quer permitir a plantação de soja, criação de gado, promoção de garimpo e mineração em Terras Indígenas;

4) propõe que qualquer pessoa questione os processos de demarcação dos territórios, inclusive os já demarcados;

5) busca reconhecer a legitimidade da posse de terra de invasores de Terras Indígenas;

6) quer flexibilizar a política de não-contato com povos indígenas em isolamento voluntário; 

7) quer mudar conceitos constitucionais da política indigenista como: a tradicionalidade da ocupação, o direito originário e o usufruto exclusivo dos povos indígenas aos seus territórios.

No Congresso Nacional, quando um projeto de lei é aprovado tanto pela Câmara dos Deputados, quanto pelo Senado, a proposta segue para a análise do presidente, que vai ter 15 dias para dar uma posição. Nesse processo, o presidente pode vetar, total ou parcialmente a proposta, e também pode aprovar o projeto sem modificar nada da proposta avaliada pelo Congresso.

Quando acontece do presidente aprovar sem vetar nenhuma parte do projeto, o projeto é sancionado e na sequência a proposta deixa de ser projeto e passa a ser Lei. Quando o presidente propõe vetos no projeto, sejam eles totais ou parciais, os pontos vetados voltam para o Congresso. Em uma sessão conjunta entre Câmara e Senado, parlamentares vão decidir se acatam os vetos ou não.

Caso os vetos sejam mantidos, a lei será aprovada retirando as partes apontadas no veto. Caso os vetos sejam derrubados, os trechos antes vetados serão desconsiderados e a lei será aprovada sem as considerações de mudanças do presidente. Ou seja, mesmo com o veto total do presidente, o Congresso Nacional pode aprovar a lei mesmo assim.

Crédito: APIB

🏹 Como participar das mobilizações

Apoie o movimento indígena e some nas lutas em seu território.  Pressione o presidente Lula pelo #VetaTudoLulaPL2903. Marque Lula nas redes sociais, mobilize ações nas aldeias, cidades e redes .Produza sua arte e poste no seu perfil usando as tags #DesignAtivista #VetaTudoLulaPL2903

A luta segue pela demarcação das terras indígenas, por reparação histórica, pela manutenção da biodiversidade e em defesa da vida

#VetaTudoLulaPL2903 #EmergênciaIndígena #EmergênciaClimática  #MarcoTemporalNÃO #DemarcaçãoJá

Fonte: VETA TUDO: Apib cobra compromisso de Lula para barrar PL do Marco Temporal”, publicada no site da Apib em 03 de outubro de 2023  

Confira a nossa série de vídeos “Perspectivas Indígenas: os Guarani e a luta por direitos no RS” e saiba mais sobre as lutas indígenas: 

Confira também o artigo com posicionamento da Amigas da Terra Brasil quanto ao Marco Temporal

 

 

Vitória! STF invalidou a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas

Vitória! Este 21 de setembro é um dia histórico aos indígenas e não indígenas do Brasil. O STF (Supremo Tribunal Federal) invalidou a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas.

A Corte do STF começou a analisar o tema em 2021, tendo sido suspenso naquele ano e retomado agora em 2023. Esta decisão é muito importante, pois repercutirá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estão sendo discutidos ou que poderiam ser questionados na Justiça.

Marco Temporal é uma tese jurídica que restringia o direito dos povos indígenas apenas às terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Atualmente, existem cerca de 300 processos de demarcação, os quais serão influenciados por essa decisão do STF.

A Amigas da Terra Brasil saúda a todos os povos indígenas do Brasil e às suas organizações que, após muita mobilização e pressão, vencem uma grande batalha nesta guerra que perdura desde 1.500. Afinal, o que está em jogo são os territórios de vida e não do capital.

É preciso seguir em alerta para as novas propostas trazidas durante o julgamento no STF e a outras tentativas judiciais, assim como no parlamento, que tentem flexibilizar o Marco Temporal e atacar os direitos dos povos originários e seus territórios. A luta segue pela demarcação das terras indígenas, por reparação histórica, pela manutenção da biodiversidade e em defesa da vida de todos e de todas nós.

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Vitória dos povos contra a tese do Marco Temporal | Crédito: Cimi

Vídeo: André Benites/ Guarani de Maquiné (RS)

Até quando as veias estarão abertas na América Latina?

Integrantes da Amigos da Terra, MST, RENAP (advogados populares) e APIB (indígenas) visitaram países europeus para denunciar os impactos do Acordo UE-Mercosul. Na foto, protesto na Alemanha. Crédito: Amigos da Terra Europa

A história da América Latina é marcada por uma espiral, na qual passado, presente e futuro se encontram e se distanciam em ciclos revisitados de exploração. Nossas independências nunca marcaram rupturas profundas com a hegemonia europeia. Desde que o capitalismo é capitalismo, temos um lugar periférico na divisão internacional do trabalho. Somos os que vivem sob as condições da superexploração do trabalho, dos territórios, para produzir uma riqueza extraordinária constante, que é diretamente transferida às potências globais. Assim, portanto, nosso subdesenvolvimento não é causa do nosso fracasso civilizatório, é estruturante para que outros se creiam desenvolvidos. 

A pilhagem colonial se reinventa nesses ciclos históricos. Antes, a barbárie da escravidão, da destruição da natureza, da violação dos corpos das mulheres, temas ainda cadentes e não resolvidos, que permitiram o acúmulo primitivo da riqueza dos países ditos desenvolvidos para constituírem seu avanço industrial e a estruturação de Estados sociais. Amargam ditaduras sangrentas quando a sombra de ideias revolucionárias perpassa o mundo, para que nos mantivessem presos na subordinação. Nos anos 90, a expansão do neoliberalismo nos prendeu nas dívidas externas, obrigando a vender todo nosso patrimônio nacional, a desregulamentar nossos setores, a sujeitar-nos aos comandos do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC). Eis a produção e reprodução da dependência.

Uma luz surgiu no final dos anos 90 e anos 2000 em vários países. A Venezuela, sempre na liderança revolucionária na região, Equador, Bolívia, Brasil, Argentina, Uruguai, Honduras e Paraguai tiveram a experiência da chegada de governos progressistas. Ainda que na reprodução de um modelo de desenvolvimento hegemônico, centrado na produção e exportação de commodities, os avanços de setores industriais como o petróleo, a cooperação sul-sul e a efetivação de políticas sociais avançaram e incomodaram muito. Por isso, a contrarrevolução foi brutal, os golpes arquitetados contra nossas democracias, com todo o requinte da guerra híbrida, passaram, mas deixam as forças auxiliares presentes da extrema-direita. Os donos do mundo, as empresas transnacionais, usam alguns fantoches de países desenvolvidos para recolocar as regras do jogo, a lex mercatoria no lugar, e interferem na soberania dos países para assegurar suas melhores posições no mercado internacional.

Hoje, governos progressistas retornam à Abya Yala. À exceção de Equador, Uruguai e Paraguai, vivemos um novo momento da esquerda. Certamente a eleição no Brasil, com a vitória de Lula, deu peso a esta nova onda. Se de um lado a América Latina busca forças para seguir respirando, a Europa encontra uma crise econômica com sua dependência energética com a Rússia, e os Estados Unidos (EUA) tentam uma corrida de hegemonia com a China. Nesse cenário, a pressão por novos tratados e acordos comerciais que sejam favoráveis à recolocação dos países desenvolvidos está crescente.

O desenvolvimento é sempre a chave utilizada para as políticas imperialistas. Como a desigualdade de inserção no mercado internacional nos condiciona a produtores de matérias-primas (commodities), estamos sempre buscando investimento estrangeiro direto e reduzindo nossos padrões de proteção social e ambiental. A onda de acordos que estão em negociação com a região, entre eles o Acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul e o Acordo de Associação Transpacífico, prevê a expansão da exportação de commodities, sem mensurar seus impactos sociais e ambientais e, ainda, a transferência de produtos e tecnologias defasadas para nossa região e a privatização de setores de serviços. Claramente, acordos com vantagens econômicas aos países do Norte e o aprofundamento da dependência para nós. 

O Acordo UE-MERCOSUL e o Brasil

Há mais de 20 anos, a negociação do Acordo UE-Mercosul, a portas fechadas, ficou estagnada. Em 2019, os países anunciaram a conclusão do acordo. No entanto, começaram movimentos da sociedade civil e de parlamentos de países europeus para evitar uma assinatura com o Governo Bolsonaro, com medo de serem associados ao momento crítico do desmatamento no Brasil. O presidente Lula, juntamente com o ex-chanceler Celso Amorim, ainda em campanha, anunciaram a intenção de revisitar o acordo na próxima gestão, com particular preocupação quanto a elementos como restrições à implementação de políticas de reindustrialização, impacto da abertura das compras públicas às transnacionais europeias, maior regulamentação sobre direitos de propriedade intelectual, comércio e privatização de serviços e os impactos do comércio bi-regional sobre o meio ambiente. Por outro lado, a União Europeia tem pressa e faz pressão para garantir suas cadeias de suprimento de energia, agro e minero commodities afetadas pela guerra na Ucrânia, e está propondo um protocolo adicional, com promessas sobre os impactos climáticos, para amenizar as críticas e resistências.

 O acordo tem como eixo central a exportação de matérias-primas pelo Brasil – como grãos, carnes e minérios, cujo modelo de produção gera conhecidos conflitos socioambientais no nosso país, e a importação de produtos industrializados de transnacionais europeias, muitos que já não são mais utilizados ou são até proibidos na Europa – como os agrotóxicos, que tanto afetam a saúde das pessoas e dos animais, a biodiversidade e a qualidade das águas. Em suma, não se trata de um acordo no qual duas partes saem beneficiadas; é mais uma solução neocolonial para a crise europeia. 

Nesta linha, Luana Hanauer, da Amigos da Terra Brasil, destacou que “O que está em jogo nos capítulos dos acordos comerciais com a Europa é perpetuar e aprofundar a agenda de violações e retrocessos dos direitos. O acordo acentua a reprimarização da economia brasileira e atualiza os dispositivos coloniais que mantêm a dependência do país em relação à Europa, além de incentivar a violência racista contra povos indígenas, comunidades negras, camponesas e tradicionais. Isso porque o dano ambiental, associado à expansão do desmatamento e do agronegócio, recai desproporcionalmente sobre os povos negro e indígena e, em particular, sobre as mulheres”.

Inspiradas nas lutas dos anos 2000 contra o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), 120 organizações da sociedade civil e movimentos populares construíram a Frente contra o Acordo UE-Mercosul. Desde 2020, a Frente vem realizando formações e diagnósticos dos impactos do acordo na vida da população brasileira, apresentando documentos de posicionamento, como a Carta à equipe de transição do governo. A Frente reafirma as consequências do aumento da exportação de commodities em troca da importação de carros, agrotóxicos, das privatizações e dos riscos para a economia nacional da restrição das compras governamentais, evidenciando como o texto beneficia a atuação das empresas transnacionais.

Em turnê realizada na Europa, ativistas brasileiros que compõem a Frente reiteraram oposição ao acordo e demandaram participação social com debate público, após o anúncio do governo eleito no Brasil da intenção de reabrir os diálogos com o Mercosul e, posteriormente, com a Europa, sobre o Acordo, especialmente para que sejam apresentadas as críticas e propostas populares sobre outros modelos de comércio, condizentes com as necessidades do povo brasileiro. Reabrir as negociações e frear seu avanço rumo à ratificação do Acordo pelos parlamentos nacionais, com compromisso de diálogo e participação popular, é também reconhecer a possibilidade de dizer não ao acordo, de ouvir as vozes das populações atingidas diante dos seus impactos sociais, ambientais e econômicos para um projeto popular e democrático de nação. Nas palavras de Graciela Almeida, liderança do MST (Movimento Sem Terra) no Assentamento Santa Rita, afetado pela pulverização de agrotóxicos no Rio Grande do Sul, “no acordo UE – Mercosul se pretende que, países como Brasil, continue sendo exportador de commodities e importador de agrotóxicos, entre outros. Transforma o agronegócio num grande negócio para poucos, submetendo as comunidades dos territórios de reforma agrária, territórios ancestrais, a todo tipo de violação de direitos humanos e da natureza”.

Que projetos de nação nos esperam

Muitas dúvidas pairam sobre os novos governos progressistas da América Latina; as mesmas condições de crescimento, com o boom de commodities de anos anteriores, não estão dadas. Países estão falidos, seja pelo fascismo, pela pandemia de COVID, com populações empobrecidas, especialmente o Brasil. Qual será a resposta de inserção econômica no mercado mundial que irão construir? 

Luis Lacalle, presidente do Uruguai, anunciou na recente cúpula do Mercosul a intenção de assinar o Acordo de Associação Transpacífico, sem qualquer consulta ou diálogo com o Mercosul, fragilizando o bloco. Por isso, recebeu duras críticas de Alberto Fernández, presidente da Argentina, para quem a negociação de acordos comerciais internacionais cada vez envolve menos a solidariedade entre os países. No mesmo momento, o Peru, assim como a Argentina, vivem sob forte pressão da direita para retomar o poder, com o uso da máquina do lawfare. Desse modo, está a pleno as táticas de cooptação de lideranças e do exemplo pedagógico do terror, para engrossar o caldo dos desafios dos novos governos.

Embora os povos de nossa América sejam muito aguerridos, nas lutas e organizações políticas – não à toa a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), essência do projeto imperialista americano, foi derrotada no último ciclo de governos progressistas com base na  força de um referendum popular regional, nossa governabilidade é sempre um caminho de poucas escolhas diante de nossa subordinação ao mercado mundial. Os arranjos políticos que levaram a vitórias eleitorais e as derrotas ao fascismo certamente condicionarão essas escolhas. Resta saber que tipo de semente tais governos irão semear neste novo ciclo. 

Serão os primeiros passos rumo à superação de nossa dependência? Se este for o caminho, as velhas formas de acordos comerciais e tratados de livre comércio, revisitados criticamente e à luz do atual momento histórico e dos compromissos de um novo governo no Brasil, suleado pelo combate à fome e pela qualificação (e não privatização) dos serviços públicos essenciais à garantia de direitos, deverão nele florescer as iniciativas econômicas emancipatórias populares, solidárias e feministas que, na resistência, sustentaram a vida e a política nesses duros anos de obscuridade, abrindo alas para uma reconstrução democrática no país. Se as apostas trilharem outros rumos, norteados por interesses empresariais neocoloniais, a história se repetirá, e o ciclo da espiral novamente estará longe de se quebrar.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2022/12/20/ate-quando-as-veias-estarao-abertas-na-america-latina 

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