Afinal, o que significa dizer “é pela democracia”?
Não é por Lula, o candidato, é pela democracia. É pelo seu direito de cidadão, assim como pelo direito de todas e todos de decidir os rumos do país, sem a interferência do judiciário na política, menos ainda de um judiciário elitizado, seletivo e desmoralizado. Foi isso o que dissemos na rua e o que tem sido dito pelo grosso dos movimentos que nessa semana tomam as ruas de Porto Alegre e do Brasil em vigília ao julgamento do ex-presidente.
A primeira parte da resposta é mais simples: nos posicionamos radicalmente contrários ao governo que tomou o poder de golpe em 2016, sem legitimação das urnas e sem respaldo popular, a fim de acelerar o projeto neoliberal de venda dos bens naturais brasileiros e de ataque violento a direitos sociais e conquistas históricas do povo, como as leis trabalhistas e de previdência social, além do ataque a políticas públicas voltadas a mulheres, à população negra e à comunidade LGBTTTI. O golpe é misógino, racista e homofóbico, e contra isso nos erguemos.
Acreditamos que o julgamento de hoje, 24 de janeiro, encenação teatral que tem como cena final uma condenação já definida desde muitos PowerPoints atrás, é o prolongamento do golpe que instaurou este projeto neoliberal fascista que, incapaz de vencer uma eleição, toma todas medidas violentas e ilegítimas para se manter no poder e seguir um projeto que não se sustenta por via democrática.
Percebam, porém, o uso da palavra “acelerar” quando falamos no projeto de governo posto em prática por golpistas. Poderíamos ter usado da mesma forma “acentuar” ou “agravar” ou “radicalizar” e todos os termos serviriam, mais ou menos, para tensionar o fato de que este projeto não é completamente novo. Lembremos de nomes como Henrique Meirelles e Joaquim Levy, homens do mercado financeiro responsáveis pelos rumos da economia nacional também nos governos PT.
De maneira mais grave, o desenvolvimentismo da era Lula-Dilma foi trágico para as comunidades tradicionais, fazendo avançar sobre as aldeias indígenas a mineração, o agronegócio e os projetos megalomaníacos de hidrelétricas que mudam os cursos de rios e destroem a fauna e flora local, impedindo modos de vida seculares e expulsando as pessoas da sua terra. A demarcação de terras indígenas foi menor com Dilma do que havia sido com Lula, e com este foi menor do que havia sido com o tucano FHC. Em um Congresso dominado por ruralistas, as instituições desta democracia serviram para esvaziar órgãos de proteção e demarcação e legitimar o avanço do agronegócio. (Veja no link a seguir um interessante comparativo das demarcações nos últimos sete governos: https://pib.socioambiental.org/…/demarcacoes-nos-ultimos-go…)
Da mesma maneira, sofreu a população negra, como tem sofrido historicamente – o golpe não nasceu ontem e nem morre amanhã nem em outubro, independentemente de resultados de uma nova eleição. O Brasil tem a terceira maior população carcerária no mundo (726 mil pessoas trancafiadas), e 64% dela é composta por negros. A titulação de terras quilombolas também não avançou ao longo dos 13 anos e meio de governo progressista: Lula titulou 12 terras em oito anos; Dilma, 16, sendo que 15 de maneira parcial. Hoje, apenas 258 comunidades quilombolas – em 168 terras – contam com o título de propriedade em um total de 762 mil hectares titulados. O número total de comunidades quilombolas no país, cerca de 3 mil, destaca o quanto as políticas públicas estão atrasadas neste quesito. Somemos a isso o extermínio da juventude negra e os constantes despejos e remoções que seguem acontecendo nas periferias das grandes cidades, acentuados desde a realização dos grandes eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas, e perceberemos o quanto devemos ponderar antes de defender cegamente e sem questionamento este modelo de democracia. É por isso mesmo que lutamos?
Frágil, facilmente golpeada por homens brancos, esta democracia pela qual tanto se faz barulho agora sempre mostrou ser também extremamente seletiva. A umas e uns, população negra, indígenas, periféricos, ela nunca passou de fábula com rituais que se repetiam a cada dois anos, momento das promessas jamais cumpridas, dos apertos de mão sem compromisso e de palavras sem significado.
Reconhecemos, contudo, que os problemas enfrentados pelos governos petistas são históricos e sistêmicos; nada disso nasceu em 2003, no primeiro mandato de Lula. E reconhecemos também as importantes conquistas que nos permitem avançar na consciência popular, assim como na crítica, desde baixo, como as cotas raciais e sociais nas universidades públicas, que receberam investimentos significativos; o ProUni e o Pronatec; programas de saúde comunitária e que levaram médicos às periferias; o incentivo a pequenos produtores rurais e à agricultura familiar, como o PNAE; a difusão de Pontos de Cultura que resgataram e valorizaram o fazer cultural e a identidade popular; a estruturação do Bolsa Família, que qualificou a vida das famílias que pouco têm; ou ainda programas como o Minha Casa Minha Vida Entidades e o Luz Para Todos, que levaram moradia, luz e energia para grande parte do país; são avanços importantes e, ao olharmos para a composição do nosso Parlamento, extremamente conservador e elitista, tais vitórias são mesmo feitos sem tamanho. Ainda assim nos reservamos o direito de fazer críticas à política de conciliação de classes, incapaz, por sua essência, de reformar as estruturas de um país erguido sobre os esqueletos da escravidão, do colonialismo e do patriarcado.
E aqui vem a parte mais difícil da resposta para a pergunta: por que democracia lutamos afinal?
Certamente por uma outra, em gestação, permanente construção popular, que surja de baixo e com participação real e protagonismo de mulheres e homens trabalhadoras; somente assim poderá suprir as verdadeiras necessidades do povo. Que preze pela vida das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Que enfrente o patriarcado intrínseco às nossas instituições. Que pense em um novo modelo de desenvolvimento, um que não priorize a construção centralizada e impositiva de centrais hidrelétricas, a carvão ou nuclear, a produção desenfreada de energia fóssil e de fábricas que incentivam mais e mais um consumo incessante, inútil e insustentável. Um modelo que não despeje rejeitos de minério sobre as cidades, matando pessoas, animais e um rio inteiro. Defendemos a soberania popular sobre os bens comuns, a distribuição das riquezas e o respeito às diversidades de modos de existir, de resistir, de preservar as culturas e a natureza.
Por ora, gritamos contra a farsa de mais um golpe neoliberal e sua agenda de retrocessos, cada vez mais sofisticada, que ataca também outros países irmãos da América Latina (Honduras, Argentina, Paraguai, Haiti), verdadeiro laboratório de perversidade que, no Brasil, tem como episódio atual o julgamento de Lula. Mas o golpe não termina aqui, nesta condenação específica, e nem nossa luta se resume a um julgamento. O avanço segue correndo submerso, independente dos resultados das urnas para o novo presidente. Estamos nas ruas para lutar por uma democracia real, com soberania popular e justiça ambiental, com protagonismo dos territórios, valorização da diversidade e das culturas populares.
CONTRA O RACISMO AMBIENTAL E MAIS UM GOLPE NEOLIBERAL.
DEMOCRATIZAR E ECOLOGIZAR A DEMOCRACIA.
A foto no início da página é um registro da Marcha do dia 23 de janeiro, na Avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, em que o Amigos da Terra Brasil esteve presente.