Os indígenas buscam o reconhecimento da área como território tradicional junto à Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2011.
Artigo originalmente publicado no site do Coletivo Catarse em parceria com Alass Derivas.
As famílias Xoklengs que retomam desde o 12 de dezembro suas terras ancestrais na Região de São Francisco de Paula saíram, na noite do dia 1 de janeiro de 2020, voluntariamente da área da Floresta Nacional (Flona). No entanto, seguem resistindo às margens da RS-484, do lado de fora da cerca da Flona. A estratégia se deu após mais uma ameaça de reintegração de posse, que tinha como prazo o dia 2 de janeiro.
Após ver todos os interesses privados nas concessões das florestas nacionais do país, incentivados pelo Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, é possível entender melhor a pressa em tirar os indígenas da Flona e a impossibilidade de diálogo.
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“Somos sementes prontas para germinar”
No meio da manhã do sábado (2), chegaram os agentes públicos para cumprir a ordem da Justiça Federal de Caxias do Sul, solicitada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), que administra a Flona. No mandado, consta: “determinação para que a polícia federal proceda à desintrusão dos invasores fazendo uso das medidas necessárias”. Com a saída voluntária por parte dos indígenas, não havia mais o que os agentes públicos fazerem ali além de intimar as partes responsáveis no processo.
As quatro famílias Xokleng, descendentes de Veitcha Teiê e Voia Camlem, tiveram a solidariedade de cerca de 10 apoiadores na noite da véspera da reintegração. No entanto, foi uma manhã de tensão, devido ao aparato armado da Polícia Federal, o certo isolamento da retomada em relação a distância e comunicação e também devido às intransigências da coordenação do ICMBio, na figura da chefe da Flona, Edenice Brandão Ávila de Souza. Apesar disso, nenhum incidente de violência direta aconteceu, e os Xokleng seguem firmes e fortes no lado de fora da cerca da Floresta Nacional. Mantém-se em resistência com os seus corpos enquanto traçam estratégias para quando o judiciário voltar do recesso.
No dia 2 de janeiro, as lideranças da Retomada Xokleng publicaram uma nota explicando o movimento de saída voluntária e anunciando que a luta segue. “Não vão nos amedrontar com ameaças de remoção forçada e muito menos nos intimidar através de medidas judiciais protelatórias ao nosso direito. Nossa retomada é sopro de vida, sinal de esperança e símbolo de luta e resistência. Seguiremos unidos aos demais Povos do Brasil contra as injustiças, pela demarcação de todas as terras, defendendo-as e combatendo a tese do marco temporal e as demais manobras políticas e jurídicas criadas para nos roubar a terra e inviabilizar a Constituição Federal de 1988”.
As retomadas encabeçadas pelos povos indígenas podem ser consideradas como ações diretas de caráter decolonial. Ao adentrarem novamente no seu território ancestral, os Xokleng da retomada Konglui restauram a história do nosso país. Dão visibilidade a fatos, acontecimentos e pessoas que foram apagadas da história oficial. Ao mesmo tempo, os horizontes de futuro que projetam nos territórios recuperados se espelham nos conhecimentos dos seus antepassados. O retorno, que nasce no interstício do esbulho e da indignação, conta com a presença dos espíritos que guiam os Xokleng nas suas decisões e nos seus caminhos. Algo incompreensível pelo oficial de justiça, pelos agentes da FLONA, do ICMBio e da Polícia Federal – que se deslocaram no segundo dia deste novo ano, ainda em plena pandemia de Covid-19, para despejar os indígenas, e isso, “em nome da lei”.
Relato da manhã de reintegração
Assim que chegaram, os agentes públicos – a Polícia Federal, com o Grupo de Pronta Intervenção da PF (GPI); o funcionário da Funai, Francisco Aureliano Dorneles Wit; uma ambulância e o oficial de Justiça – pediram para conversar em reservado com a coordenação do ICMBio. Ingressaram na Flona, vistoriaram a área onde estava a retomada, observaram o novo acampamento por trás da cerca e só depois, aproximadamente uma hora depois, vieram conversar com a comunidade. O oficial de justiça foi recebido por Yoko Camlem e Kullung Veitcha Teiê, as duas mulheres à frente da retomada. A primeira intervenção feita por Kullung foi solicitar para o oficial afastar os policiais, pois as armas estavam assustando as crianças.
No diálogo, Kullung reiterou a história da sua família naquelas terras e o passado de violência que seu povo sofreu, sendo o episódio que acontecia naquele momento mais uma delas. “Aqui é nosso território, daqui saiu nosso bisavós, tataravós. Eles morreram aqui, aqui está o sangue dos nossos antepassados, aqui é a terra deles. Aqui eles foram massacrados, foram matados e uma parte foi para Santa Catarina. Esse território é nosso. Nós não estamos roubando de ninguém”. Por sua vez, o Oficial de Justiça intimou Kullung com o despacho da reintegração de posse e alertou que, se houver uma nova entrada, a comunidade pode ser prejudicada judicialmente por isso. Também informou sobre a disponibilidade do Sindicato Rural de São Francisco de Paula em conceder transporte para levar os indígenas para Santa Catarina. Quais os interesses do sindicato neste oferecimento?
O primeiro a chegar foi o funcionário da Funai, vindo de Osório, Francisco Aureliano Dorneles Wit. Assim que chegou, buscou contato com a comunidade e foi enxotado por Kullung, que sugeriu que fosse falar com “a sua amiga” Edenice. A indignação de Kullung se deu devido a ausência da Funai durante os dias de retomada. A instituição aparecia no momento da reintegração como participação obrigatória devido o réu ser a comunidade indígena. Ou seja, em vez de garantir os direitos territoriais dos povos, a instituição veio até a FLONA apenas para possibilitar a retirada dos Xokleng do seu território, legitimando assim a reintegração de posse solicitada pelo ICMBio.
O ato derradeiro da ação de reintegração de posse, já no final da manhã, ficou por conta de Edenice. Depois de delegado, oficial de justiça, representante da Funai já terem se afastado do novo local do acampamento da retomada, às margens da RS-484, Edenice voltou, escoltada pela Polícia Federal, e ordenou que um funcionário do ICMBio cortasse colunas de madeiras, estruturas de um barraco que estava sendo construído naquela manhã. Foi questionada por que estavam fazendo aquilo. “Esta madeira é propriedade da Unidade de Conservação”. Então vocês vão levar de volta? “Não, eles podem usar como lenha”. Era apenas um ato de autoritarismo, mesquinharia e provocação. Recebeu como resposta dos indígenas que poderia levar sua madeira embora.
Instantes antes da Polícia Federal e o Oficial de Justiça chegarem, visitamos a região onde estava a retomada, junto com Edenice, chefe da Flona de São Francisco de Paula, com Isaac Simão Neto, biólogo e gerente regional do ICMBio, e com um funcionário do ICMBio, que fazia as vezes de segurança. Tivemos a oportunidade de, por alguns minutos conversar sobre o futuro da floresta, que está em vias de ter seus serviços concedidos à iniciativa privada, e entender como a coordenação estava vendo a ação de reintegração.
Ao invés de reintegração, não seria possível um diálogo? “O diálogo deveria ser anterior à invasão”, defende Isaac. “Se eu invadir a tua casa, como seria? Invadir uma área que não há um documento que mostre que esta área é deles, então você abre precedente e começa o diálogo de uma forma equivocada”. Se assim como Isaac você somente acredita em papéis, sugiro a leitura do texto “Mãe não se vende, Mãe não se troca, Mãe não se privatiza!”: Nota técnica preliminar envolvendo aspectos etnohistóricos e socioambientais da Retomada Indígena Xokleng Konglui na Floresta Nacional São Francisco de Paula/RS”, do etnohistoriador Rafael Frizzo. Um documento que cita diversos outros documentos sobre a presença Xokleng na região e sobre os interesses por trás da Flona.
Após Edenice reclamar do mal cheiro da área (não sentido por nós, diga-se), em um tom depreciativo, Isaac apontou para roupas, embalagens que tinham ficado pelo chão, resquícios da saída voluntária às pressas dos Xokleng e perguntou: “vocês acham que isso é um cuidado da natureza por parte dos indígenas, respondam sinceramente?” Como biólogo e representante de um Instituto que tem em seu nome a “Conservação da Biodiversidade”, é um disparate (para não dizer mau caratismo) Isaac apontar calcinhas de crianças – que vão se decompor em alguns anos e que estão ali devido à violência de todo o processo que os Xoklengs passaram naquela manhã – como prejudiciais ao meio ambiente e desconsiderar, na sua fala, na sua visão, todos os monocultivos (de eucalipto, pinus, soja, milho) que existem na região. Esta cena é a consagração de uma visão de mundo que vê a retomada dos indígenas como invasão. Que vê o monocultivo de árvores como reflorestamento, ignorando ou combatendo quem aponta todo o dano à biodiversidade que este sistema comercial de exploração do solo, água e impactos na biodiversidade que esse modelo produz.
Por que Isaac não se preocupa em questionar os danos ao meio ambiente de propriedades como da foto abaixo, produtora de gado e monocultivo de Pinus? Você vê algum animal mais que gado, alguma planta mais que Pinus? Ao cortar o Pinus, não fica nada. Foto tirada perto da Barragem do Blang, em São Francisco de Paula.
Dos povos indígenas do Sul, os Xokleng foram os mais afetados pelos bugreiros e caçadores, recorte da história que relatamos no texto “Somos sementes prontas para germinar”. Reportagem publicada no dia 30 de dezembro, contando a história da retomada, da Flona e das perseguições ao povo Xokleng. Em nota sobre a reintegração de posse, o Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul destaca este processo, trazendo elementos sobre os caminhos dos Xokleng:
“A violência foi tanta que os poucos grupos que sobreviveram se refugiaram em Santa Catarina para não serem também exterminados. Durante esse processo violento, pequenos grupos de Xokleng se refugiaram nas matas da encosta da Serra, que sempre foi parte de seu território ancestral. Estiveram constantemente em movimento até se refugiarem na Serra de Santa Catarina, onde em 1914 os Xokleng entraram em contato com agentes do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (posteriormente SPI e em 1967, FUNAI). Desde então, tem se difundido o mito de que os Xokleng seriam “índios de Santa Catarina”, o que é uma invenção colonialista, pois para os povos indígenas as fronteiras entre os Estados nada mais são do que linhas artificiais desenhadas sobre seus territórios, além de esconder uma estratégia de apagamento e negação dos direitos desses povos”.
O coordenador do ICMBio pede documentos, desconsiderando que o próprio documento é uma arma de coerção, de desapropriação, de roubo de terras. Desconsiderando que na história deste país os documentos que promoviam a expulsão e extermínio dos povos eram o calibre das armas e a lâmina do facão. Hoje, a Polícia Federal apresenta armas semelhantes, aliados à caneta (e aos documentos) da Justiça.
Na véspera de ano novo, dia 31 de dezembro de 2020, o presidente do STF, Luiz Fux, ministro plantonista, indeferiu o pedido de liminar, proposto pela Defensoria Pública da União, em nome da comunidade Xokleng. Fux desconsiderou a medida do colega Edson Fachin que impedia reintegrações de posse durante o período da pandemia. A ação de reintegração foi mantida, determinada pelos juízes plantonistas (primeiro Fernanda Cusin Pertile, no dia 23, e depois Patrick Lucca da Ros, no dia 29) da Justiça Federal de Caxias do Sul, a pedido do ICMbio. A assessoria jurídica da retomada ainda não teve acesso à decisão integral de Luis Fux, portanto a motivação é desconhecida.
Já no final da ação de intimação, um agente da Polícia Federal se aproximou e pediu um favor: se poderia ter as fotos daquela manhã enviadas por Whatsapp, pois nesta semana enviaria um relatório que ia direto para o Presidente da República Jair Bolsonaro. Destacamos o pedido do policial para lembrar que os serviços da área da Flona estão em vias de ser concedidos à iniciativa privada após Bolsonaro e o Ministro da Economia Paulo Guedes a terem incluído no Programa Nacional de Desestatização. No entanto, a chefe da Flona e o coordenador do ICMBio insistem em ressaltar no discurso que a Floresta não vai ser privatizada. Inclusive esta informação é destacada na nota do perfil do Facebook da Floresta Nacional de São Francisco de Paula que divulga a visita do Ministro Ricardo Salles, em 12 de abril de 2019. Na comitiva do Ministro, estavam os deputados inimigos dos povos indígenas, Luis Carlos Heinze, Alceu Moreira e Marcel Van Hattem.
440% da área da Flona tem árvores plantadas, que vão ser leiloadas pelo Estado, segundo Edenice e Isaac. O que será feito com esse dinheiro? O que será feito com a área liberada? Como o Governo Federal pretende “passar a boiada” nas Unidades de Conservação?
Se há um processo de reivindicação da área correndo na Funai desde 2011, os Xokleng deveriam ser considerados interessados prioritários na área e, portanto, seguindo recomendação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, deveriam ser consultados sobre a concessão. Ao ser questionado sobre isso, Isaac afirma que os indígenas foram convidados para a audiência pública que aconteceu em setembro. A comunidade que, hoje, retoma a Flona não recebeu nenhum contato. O Conselho Indigenista Missionário comentou o caso em nota do dia 14 de outubro de 2020, quando o Ricardo Salles lançou edital para concessão dos Parques Nacionais:
“Esta medida poderá afetar diretamente a comunidade Kaingang de Canela, já que reivindica a demarcação da Flona como sendo área de ocupação originária. Também afetará o povo Xokleng que reivindica a demarcação de sua terra, sobreposta pela Floresta Nacional em São Francisco de Paula. Aguarda-se por uma intervenção do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União, já que as privatizações dos parques atentam contra o meio ambiente, contra o patrimônio da União e contra os direitos constitucionais dos indígenas, dado que estes devem ser consultados para atender as determinações da Convenção 169 da OIT- Organização Internacional do Trabalho, que determina haver a necessidade de consulta livre, prévia e informada quando medidas adotadas pelo Poder Público ou qualquer outro ente, afetem povos e comunidades indígenas e tradicionais”.
Depois de ver o envolvimento do ICMBio em diversas negociações de concessão para iniciativa privada de Unidades de Conservação, alinhado às políticas do Ministro Ricardo Salles, é possível entender melhor a motivação das intransigências da coordenação da Flona e pressa na reintegração de posse dos Xokleng.
Enquanto isso, Kullung Vetcha Teiê, senhora de 63 anos, resiste com o próprio corpo, com sua família e seus parentes. Resiste a todo um esquema internacional de privatização de florestas nacionais. Amparados nos sopros que vem do grande espírito.
A luta segue
Neste momento, é necessário fortalecermos a solidariedade e as estruturas do acampamento Xokleng em frente à Flona. Uma campanha de arrecadação está sendo organizada para viabilizar uma placa solar (assim como já existe na Retomada Guarani da Ponta do Arado) para trazer mais segurança e possibilidade de comunicação das famílias que está sem acesso a energia.
O frio das madrugadas na região serana do Rio Grande do Sul também traz a necessidade de moradias que deem proteção ao Xoklengs. Por isso, tábuas e telhas são fundamentais.
As doações podem ser encaminhadas para:
Conta: Banco do Brasil
ag: 5437-2
Cc: 5440-2
CPF: 06124632900
Nome: Woie Kriri Sobrinho Patté
Veja o vídeo “Retomada Xokleng Konglui Resiste”:
Mais fotos da Retomada:
Interessante você citar na matéria a questão que não houve o respeito à pandemia, que os agentes federais se deslocaram em plena pandemia mas não dizer que os Xoklengs saíram de uma terra indígena em Santa Catarina (que teve um surto de COVID, aliás) para a FLONA em plena pandemia. Aliás, repare nas suas fotos: quantos indígenas estão usando máscaras e quantos agentes federais estão usando máscaras? Se a pandemia é argumento para agentes federais não agirem, deveria ser para indígenas não se locomoverem e se exporem. Se a pandemia é importante, porquê os indígenas fotografados não estão usando máscaras? E quanto a existir Pinus na Flona, ainda que a maior parte dela seja de mata nativa, sugiro que você tente aprender um pouco mais sobre o SNUC e porque existem diferentes categorias de áreas protegidas. Tente entender também a diferença entre concessão de serviços e privatização, que são coisas bem diferentes. Aliás, se não fosse a FLONA, essa mata nativa que ela protege talvez já não existisse mais também. Espero que vocês tenham um mínimo de imparcialidade publicando meu comentário. Obrigada.