Carta Pública: Em defesa de direitos territoriais das comunidades do Cerrado, os povos do campo merecem ser escutados!

Representantes de movimentos, organizações sociais e comunidades dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia se reuniram no dia 26 de fevereiro de 2021 para debater as ameaças aos direitos territoriais que as comunidades tradicionais do Cerrado da região vêm sofrendo e querem ecoar sua voz. 

Neste ano de pandemia de Covid-19, os grileiros e desmatadores não entraram em quarentena e as comunidades se viram muitas vezes sujeitas a situações de conflito. Esses conflitos por terra acompanham a expansão da fronteira agrícola sobre a região chamada MATOPIBA. E diante do fato de que muitos processos de demarcação e titulação dos territórios não avançam, a situação de vulnerabilidade das comunidades só aumenta.

O Cerrado dos quatro estados contém as extensões mais preservadas de toda a savana brasileira, em especial nas porções sob ocupação tradicional indígena, quilombola, ribeirinha, geraizeira, de fundo e fecho de pasto e de quebradeiras de coco-babaçu e nos assentamentos de reforma agrária. Esse Cerrado é o berço das águas e biodiversidade, fonte de alimentos e base para a vida e geração de renda de centenas de milhares de famílias.

Mas essa realidade vem mudando de forma acelerada à medida que o Cerrado da região foi sendo visto como uma oportunidade de negócios. Um processo que iniciou já nas décadas de 1970 e 80, no Oeste da Bahia, e teve trajetórias diversas, mas viu uma aceleração com o chamado boom das commodities nos anos 2000 e com a consolidação do entendimento da região como destino de investimentos em terras e empreendimentos monoculturais para exportação, referendada sob a égide do MATOPIBA. 

A não concretização, do ponto de vista institucional, do anúncio de lançamento do Plano de Desenvolvimento Agrícola (PDA) Matopiba em 2015 e a posterior revogação do Decreto em 2020 podem dar a falsa impressão de que o processo tenha sido suspenso. Mas a expansão conflitiva e devastadora da fronteira agrícola sobre a região continuou sendo realidade antes, durante e depois de sua breve vida institucional. É assim que, por exemplo, o Cerrado da região foi mais desmatado nos últimos 20 anos (12,23 milhões de hectares entre 2000 e 2019) do que nos 500 anos anteriores (10,75 milhões de hectares até o ano 2000), de acordo com dados do PRODES Cerrado do INPE.

Ao mesmo tempo, assistimos com preocupação enquanto importantes debates com profundas implicações sobre a vida dos povos do campo têm ocorrido a portas fechadas. Os governos e mesmo o poder judiciário dos estados da região têm firmado acordos com o Banco Mundial para financiamento de ações de regularização fundiária e mudanças nas legislações estaduais de terras que objetivam declaradamente oferecer segurança jurídica para grupos nacionais e internacionais que compraram ou pretendem comprar grandes extensões de terras na região. Trata-se, na realidade, de propostas que visam legalizar o ilegal, ou seja, validar grilagens de terras públicas e tradicionalmente ocupadas que deram origem aos latifúndios do agronegócio, assim como permitir a continuidade desse processo. 

Por outro lado, as Corregedorias dos Tribunais de Justiça Estadual dos quatro estados têm se reunido, desde 2018, no chamado Fórum Fundiário dos Corregedores Gerais de Justiça do MATOPIBA, em eventos com participação restrita, sem participação da sociedade civil organizada, especialmente as comunidades, movimentos sociais e organizações do campo que são diretamente impactadas pelas alterações normativas e de resoluções que têm sido promovidas desde então. 

No mesmo sentido, em 09 de junho de 2020, por meio da Portaria Conjunta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), houve a inclusão do MATOPIBA no Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão do CNJ e do CNMP. 

Nestes importantes espaços têm sido realizados debates e aprovados encaminhamentos para lidar com o chamado caos fundiário na região, mas até então os principais interessados, ou seja, todos os povos do campo em sua imensa diversidade, especialmente aqueles atingidos pelos conflitos fundiários, não têm sido chamados para participar e contribuir; em síntese, não são consultados sobre propostas que vão ter consequências diretas sobre os seus modos de vida, violando, no caso dos povos indígenas e comunidades tradicionais, o direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, determinada pela Convenção 169 da OIT.

Os órgãos do sistema de Justiça, assim como os poderes executivo e legislativo, têm uma grande responsabilidade tanto no que se refere ao triste quadro atual dos conflitos agrários, como também na superação e resolução destes mesmos problemas. É neste sentido que nós, organizações e movimentos sociais, comunidades, sindicatos e grupos de pesquisa abaixo assinadas, apelamos aos governos estaduais, às assembleias legislativas, e especialmente ao Fórum Fundiário dos Corregedores Gerais de Justiça do MATOPIBA, ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público, para que os povos do campo sejam ouvidos e suas propostas consideradas, tendo em vista que a participação social é uma condição fundamental para o exercício da cidadania e da democracia.

Assinam:

  1. Agência 10envolvimento – Bahia
  2. Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins – APA-TO
  3. Articulação Tocantinense de Agroecologia – ATA
  4. Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado
  5. Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais no Estado da Bahia – AATR
  6. Associação Agroecológica Tijupá – Maranhão
  7. Associação Apsu de Povos Indígenas do Sangue em Uruçuí – Piauí
  8. Associação dos trabalhadores filhos e amigos de Currais – Piauí
  9. Associação União das Aldeias Apinajé – Pempxà
  10. Associação Ecológica e Meio Ambientalista – AEMA – Mato Grosso
  11. Casa de Sementes Cocalinho – Aldeia Apinajé Cocalinho – Tocantins
  12. Coletivo de Mulheres do Oeste Baiano
  13. Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDH
  14. ACIFORP – Associação de Combatentes  de  Incêndios Florestais de Formosa do Rio Preto – Bahia
  15. Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME
  16. Associação de Preservação Ambiental Ecoterra – Tocantins
  17. Associação Boa Vista – Loreto / Maranhão
  18. Amigos da Terra Brasil
  19. Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
  20. Coletivo de Fundo e Fecho de Pasto do Oeste da Bahia
  21. Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais dos Cerrados do Piauí
  22. Comissão Pastoral da Terra – CPT Nacional
  23. Comissão Pastoral da Terra – CPT Piauí
  24. Comissão Pastoral da Terra – CPT Regional Maranhão
  25. Comissão Pastoral da Terra – CPT Araguaia-Tocantins
  26. Comissão Pastoral da Terra – CPT Bahia
  27. CPT Diocesana de Bom Jesus do Gurgueia – PI
  28. Comunidade Indígena Jenipapeiro
  29. Comunidade Quilombola Guerreiro – Maranhão
  30. Conselho Indigenista Missionário – CIMI Leste
  31. Conselho Indigenista Missionário – CIMI Goiás Tocantins
  32. Conselho Indigenista Missionário – CIMI Regional Maranhão
  33. Conselho Indigenista Missionário – CIMI Nacional
  34. Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos – CONAQ
  35. Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins – COEQTO
  36. Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE
  37. Centro Dom Helder Camara de Estudo e Ação social – CENDHEC
  38. Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
  39. Centro de Direitos Humanos de Sapopemba – CDHS
  40. CDDH Dom Tomás Balduíno de MARAPÉ ES
  41. Federação dos Trabalhadores Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado da Bahia (FETAG-BA)
  42. Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do estado da Bahia – FETRAF BA
  43. Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE
  44. Fórum Ecológico de Bacabal – FECOBAC
  45. Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
  46. Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento – Formad
  47. Fórum Permanente de Saúde
  48. Grupo de Pesquisa sobre Geografia, Territórios e Sociedades / UFMA
  49. Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte – GPEA/UFMT
  50. Instituto EcoVida
  51. Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN
  52. Instituto Mãos da Terra – IMATERRA
  53. Instituto Caracol – MT
  54. Justiça Global
  55. Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB
  56. Movimento de Mulheres Camponesas – MMC
  57. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
  58. Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA
  59. Movimento dos Atingidos por Barragem – MAB
  60. Movimento Leste Maranhense – Cerrado
  61. Núcleo de Estudos Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias – NERA / UFMA
  62. Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da Bahia – OBSUL/IF Baiano, campus Valença
  63. Rede de Agroecologia do Maranhão – RAMA
  64. Rede Mato-grossense de Educação Ambiental – REMTEA
  65. Sindicato  dos Trabalhadores  Rurais  de São Desidério – Bahia
  66. Terra de Direitos

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