Um projeto do LAE/UFRGS, do CIMI, do Instituto Econsciência e da Amigos da Terra Brasil gera água potável às famílias Mbya Guarani da Ponta do Arado
Nesta semana fecham 3 anos desde a retomada às terras ancestrais pelos Mbya Guarani da Ponta do Arado, ocorrida em 15 de junho de 2018. Ao longo deste período, as famílias da retomada Mbya Guarani da Ponta do Arado, no bairro Belém Novo, zona sul de Porto Alegre, sofreram diversos ataques por parte daqueles que se dizem donos daquelas terras e que pretendem desenvolver um empreendimento imobiliário de luxo na região para um público de classe A. Mesmo sob disputa, a retomada segue firme, forte e cheia de vida. Com uma enorme rede de apoio que presta solidariedade e mantém firme a chama de esperança por justiça histórica com os povos originários destas terras. Hoje, as famílias têm autonomia energética e água potável graças a essas redes.
São 3 anos de convivência com uma vizinhança nada amigável. Os seguranças da empresa Arado Empreendimentos Imobiliário Ltda mantiveram durante esse período cada passo dos Mbya Guarani e seus apoiadores sob vigília. Filmados de forma intimidadora, as famílias tiveram barcos sabotados, foram surpreendidos com ataques a tiros e permaneceram por um largo período com o direito cerceado de buscar água potável e lenha por conta de uma cerca imposta pela administração do empreendimento, que, por um período, chegou a ter um sensor de movimento que notificava os seguranças caso os indígenas cruzassem a área. Um trecho de 30 metros entre o rio e o limite pela cerca por 100 metros de praia. A única forma de acessar a retomada era de barco até que a ação da empresa foi revogada pela Justiça em janeiro de 2020, com a determinação de que o cercamento configura “confinamento desumano”, segundo o TRF4.
O primeiro ataque da empresa Arado Empreendimentos Imobiliário Ltda foi também o mais vil ataque contra a natureza humana: concretar o poço artesiano que dava acesso à água potável às famílias. A saída foi fazer um pequeno buraco no chão, ou pocinho, como chamam os Mbya. Com o acesso apenas por barco, naquele momento, com um trajeto de cerca de 20 minutos e com a impossibilidade de acesso por terra para buscar água, este foi o caminho possível. Poços foram tapados, fechados com entulho por parte dos seguranças da empresa contratada pela Arado. Fato que gerou receio de possível contaminação com o que poderia ter sido adicionado à água, naquele momento fonte única de acesso dos Mbya da Ponta do Arado.
A pesquisadora do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da UFRGS e apoiadora da Retomada, Carmem Guardiola, conta que: “Desde o início da Retomada os órgãos responsáveis pelos direitos constitucionais indígenas foram acionados como Ministério Público Federal (MPF), Fundação Nacional do Índio (Funai), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e secretarias municipais de Porto Alegre. O Ministério Público Federal garantiu nas primeiras semanas que a empresa Arado distribuísse água potável em bombonas, mas esta ação durou pouco. Também foram acionados todos os órgãos responsáveis, mas nada, nunca, foi feito para a chegada da água às famílias da retomada. A Sesai, secretaria de saúde indígena entregou um reservatório de água aos Mbya, mas este ficou abandonado por falta de uso, por falta de água, pois o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), sempre alegou incapacidade de levar água até o reservatório, em virtude do terreno alagadiço, mas que só alaga em tempos de chuva”.
Ela relata ainda que ao longo desses 3 anos de retomada, não foi apenas uma vez que estas instituições foram acionadas. Órgãos responsáveis diretos pela promoção e defesa dos direitos indígenas. Nem mesmo a “Audiência Pública por Direitos Humanos na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, ocorrida no ano de 2019, também não fez mudar a situação”, conta Carmem.
Agora, uma parceria do Instituto Econsciência, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Laboratório de Etnoarqueologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul LAE/UFRGS, da Amigos da Terra Brasil e com os/as indígenas da Retomada construíram um projeto para autonomia da comunidade da Ponta do Arado. O grupo implementou um sistema de tratamento da água do Guaíba para torná-la potável.
Água limpa e segura, recurso essencial para vida
Fernando Campos, que é bioconstrutor e integra a Amigos da Terra Brasil, conta que o primeiro trabalho feito foi de construir filtros para a água que as famílias já tinham acesso vinda dos poços cavados: “na beira do Guaíba, o lençol freático está quase no nível do solo, então qualquer buscado que se cave, vai encontrar água. Água do Guaíba, que está no solo, que tem um processo de filtragem natural”. O trabalho realizado pelo Felipe Viana, do Instituto Econsciência, construiu filtros de grande capacidade. Ele utilizou baldes com filtros que fazem a filtragem da água vinda dos poços para que as famílias tenham acesso à água livre de impurezas.
“Depois que a gente resolveu o trabalho da água filtrada, a gente foi para o problema da energia elétrica, que era o tema das placas solares, que tinha essa urgência pelo tema da segurança para eles terem os celulares carregados, principalmente, porque na época estava acontecendo os ataques dos seguranças”, relembra Fernando. O isolamento da área tornou o uso de placas solares como saída possível para gerar autonomia energética. O projeto foi realizado através de campanha de solidariedade que arrecadou verba para aquisição de duas placas, o que pode manter a comunicação da Retomada e a iluminação da área, trazendo mais segurança para as famílias.
Fernando conta ainda que o processo de geração de energia foi fundamental para o segundo passo no acesso à água das famílias com a possibilidade de bombear água do poço para uma caixa d‘água. “Se trabalhou com uma torre de madeira com uma caixa d’água alta, com uma bomba que traz a água do Guaíba para o reservatório. Tem uma cloração na água e depois tem um filtro que tira o cloro e filtra a água de forma bastante eficiente. Então, a água sai da caixa d’água, passa pelos filtros e fica disponível para o uso”, relata.
A medida busca solucionar a questão de acesso ao bem mais precioso e básico para sobrevivência humana, como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1949, em que o direito à água foi validado em 2010. Os Direitos nela citados pertencem a todos e a cada ser humano igualmente. O Brasil, como os demais Estados signatários das Nações Unidas, tem de cumprir as normas instituídas, sob pena de serem submetidos a um tribunal penal e reparar os direitos lesados.
No atual contexto brasileiro, sob uma política de morte declarada, é compreensível, porém ainda assim inaceitável que estas famílias sejam ignoradas pelo Estado brasileiro em diferentes instâncias e que se mantenha por 3 anos sob risco de vida e privadas de acesso ao bem mais básico para manutenção da vida. Tal decisão do Estado torna claro a quem presta serviço: à promessa de desenvolvimento, ao lucro. O silêncio até aqui de tantas autarquias acionadas sistematicamente indicam que outros direitos prevalecem sobre o direito à água potável e à vida, como o da propriedade privada e principalmente dos grandes conglomerados do poder capitalista.
Empreendimento retorna à pauta
Uma audiência pública foi marcada pela prefeitura de Porto Alegre para o próximo dia 7 de julho para debater a alteração de regime urbanístico da área da Fazenda do Arado. A audiência ocorrerá em formato virtual a partir das 17h. Em 4 de junho, técnicos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) apresentaram a proposta de alteração aos moradores da Região de Planejamento 8, no bairro Belém Novo. No final de 2020, o projeto já havia voltado ao debate público com a tentativa de avanço do PLCL 16/20, buscando alterar o plano diretor do município e possibilitar a urbanização da Fazenda Arado Velho. O Projeto de Lei Complementar nº 16/20 foi uma proposta apresentada pelo vereador Wambert Di Lorenzo (PTB), ao apagar das luzes de seu mandato, em pleno período eleitoral. O projeto foi aprovado pela Câmara Municipal, em 17 de dezembro de 2020, mas foi vetado pelo, agora, prefeito Sebastião Melo (MDB) por entender que o PLCL continha vício de origem, uma vez que alterações de regime urbanístico seriam de prerrogativa do Poder Executivo municipal. Agora, o Executivo busca apresentar um novo projeto.
Se aprovada a alteração do plano diretor do município, a Fazenda Arado Velho de 426 hectares irá se transformar em um bairro planejado para quase 8 mil pessoas. Projeto esse que afetará diretamente a Retomada da Ponta do Arado, bem como a Aldeia Pindó Poty, do bairro Lami, que luta para preservar suas terras.
Viemos denunciando os impactos negativos que este projeto trará como as investigações que seguem ocorrendo em relação às informações apresentadas no EIA/Rima — que levaram ao arquivamento do Projeto de Lei nº 780/2015 que, hoje, está na justiça (Processo no: 001/1.17.0011746-8) sob investigação do Ministério Público e pela Delegacia do Meio Ambiente da Polícia Civil (Dema) por identificarem inconsistências técnicas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) apresentado pela empresa —, além da falta de diálogo com os moradores da região, das problemáticas ambientais que o empreendimento pode trazer, do atropelo da realização da audiência em formato virtual e, especialmente, da falta de um posicionamento da Funai sobre a Retomada Mbya Guaraní da Ponta do Arado, já tendo sido declarada a existência de bens arqueológicos relacionados com a etnia Guaraní na área.