Principais beneficiários do desmonte generalizado dos últimos anos no Brasil se mostram dispostos a retroceder a tempos de ditadura para manter privilégios
A bancada ruralista tem sido uma das protagonistas do processo de golpe iniciado em 2016 contra a democracia brasileira. À época, movimentos populares, como o MST, já denunciavam esse fato, prevendo a realidade que o país vive hoje sob o governo Bolsonaro: recordes de lucro e exportações para o agronegócio, enquanto o país volta a ser colocado no Mapa da Fome e não apenas os processos de reforma agrária e demarcação de terras indígenas e quilombolas são completamente paralisados, como os órgãos responsáveis por essas políticas sofrem desmontes e até inversão de suas funções.
Após ser o único setor a crescer e atingir recorde de participação no PIB brasileiro em 2020, o agronegócio se prepara para bater em 2021 os números de exportações do ano passado. Considerado atividade essencial, o setor se beneficiou da abismal desvalorização do Real e da demanda externa por agrocommodities durante a pandemia. Como fica evidente agora, o fato de ter sido considerado “essencial” não se traduziu no que o povo brasileiro mais precisa durante a pandemia: o acesso básico à alimentação. Em 2020, 9% da população brasileira esteve em situação de insegurança alimentar: 19 milhões de pessoas passaram fome, segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN). Em meio a uma das piores crises socioeconômicas dos últimos tempos no Brasil, o agronegócio, propagandeado como essencial para a segurança alimentar da população, começa a ter sua “era de ouro” junto à volta massiva da fome ao país.
Por isso choca, mas não surpreende, o envolvimento direto de ruralistas no financiamento de atos contra a democracia e em defesa do governo Bolsonaro, como revelado recentemente pelo The Intercept Brasil. Porque os atos não têm a ver com as pautas pelas quais estão sendo convocados: “em defesa do voto impresso” ou contra supostos atropelos do Supremo Tribunal Federal (STF), trata-se de movimentos políticos que tentam frear o derretimento da popularidade do governo Bolsonaro, e pior, deter a tímida justiça brasileira na investigação das ilegalidades cometidas pelo presidente e seus aliados, que possam acabar na sua destituição ou na eliminação definitiva de qualquer possibilidade de reeleição do eterno político do Centrão. Isso, quando não defendem diretamente um golpe militar mais explícito com o objetivo de eliminar toda possibilidade de vozes e votos populares.
A defesa que o agronegócio faz do governo Bolsonaro tem menos a ver com a capacidade do presidente da República de liderar a direita no país do que com sua política de “deixar fazer” (laissez-faire, um dos pilares do liberalismo econômico). Bolsonaro está entregando tudo o que prometeu ao setor ao simplesmente “desligar” ou desvirtuar completamente partes essenciais do Estado brasileiro encarregadas de defender e assegurar direitos garantidos pela Constituição e que chocam com os interesses de acumulação de capital do agronegócio, das indústrias extrativas e das transnacionais do setor de energia. Portanto, ao imitar o ex-presidente estadunidense Donald Trump na denúncia sobre o sistema eleitoral, Bolsonaro, mais do que tentar evitar a derrota certa em 2022, fornece aos beneficiários de seu desgoverno uma espécie de “falsa bandeira”, uma demanda que na verdade não importa a ninguém, mas que serve para defender um governo que garante o cumprimento das bandeiras ocultas, que poderiam ser resumidas em “lucro acima de tudo e de todos”. Assim, Bolsonaro serve de boi de piranha da boiada que continua a passar.
E os desmontes e retrocessos em termos de reforma agrária, dos povos originários e justiça ambiental são inúmeros, como temos abordado no espaço desta coluna.
Até a metade do governo, Bolsonaro conseguiu bater dois recordes seguidos de quantidade de agrotóxicos aprovados na história do país. Em 2019, foram 474 venenos agrícolas aprovados e no ano passado, 493. Até junho deste ano, já foram mais 230. Não satisfeito com os recordes, os ruralistas, por meio do presidente da Câmara, Arthur Lira, pretendem retomar o tratamento do PL do Veneno (PL 6299/02), que visa facilitar ainda mais o processo de aprovação de agrotóxicos.
Já em relação ao apagão dos órgãos ambientais, o antiministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, saiu, mas a agenda não mudou, apenas passa mais despercebida. Além dos cortes já realizados antes da mudança de ministro (como a redução de 35% do orçamento da pasta), propostas de desmontes como a fusão do ICMbio e o Ibama continuam em pauta. No final de julho deste ano, o Ministério Público Federal entrou com ação civil pública na Justiça Federal para que proíba a União de avançar na proposta sem a participação da sociedade civil.
Em ação histórica, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denunciou Jair Bolsonaro pelos crimes de genocídio e ecocídio ao Tribunal de Haia no começo de agosto. “Os fatos que evidenciam o projeto anti-indígena do Governo Federal vão desde a explícita recusa em demarcar novas terras até projetos de lei, decretos e portarias que tentam legalizar as atividades invasoras, estimulando os conflitos”, afirma a Apib em nota.
Além das denúncias em âmbitos da justiça nacional e internacional, os povos indígenas mantêm a mobilização contra os ataques promovidos pelo governo Bolsonaro. Após a realização do Acampamento Levante pela Terra contra a aprovação de projetos anti-indígenas, voltaram à Brasília para lutar contra a aprovação da farsa do “marco temporal”, na maior mobilização indígena da história do país. Infelizmente, em desrespeito à manifestação indígena, o STF voltou a adiar o julgamento, e deve retomá-lo na próxima quarta-feira (1°).
O regresso dos povos originários ao DF para a realização do Acampamento Luta pela Vida é um exemplo da resistência que vem crescendo no país contra o projeto encabeçado por Jair Bolsonaro. São mais de 6 mil pessoas pertencentes a cerca de 170 povos indígenas mobilizados contra a farsa promovida pelos ruralistas, e também contra toda a política genocida em curso no Brasil.
Assim como no acampamento anterior, os indígenas se somam em Brasília ao 5° Ato Fora Bolsonaro, que desta vez se somará à convocatória do 27° Grito dos Excluídos, que acontece sob o lema “Na luta por participação popular, saúde, comida, moradia, trabalho e renda, já!”.
Tirar Bolsonaro e seus aliados do poder é uma das prioridades dos movimentos populares e entidades da sociedade civil que lutam por justiça social e ambiental no país, mas, como mostra o lema do Grito dos Excluídos deste ano, as demandas são muito maiores. Até porque diante do derretimento da popularidade de Bolsonaro, há vários dispostos a assumir a agenda e os interesses dos projetos políticos neoliberal ao qual ele até agora serviu muito bem.
Isso é evidente na sua linha sucessória, com o militar Hamilton Mourão e o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (já que Arthur Lira não pode assumir, por ser investigado). Mourão finge moderação, mas seu projeto de militarização da Amazônia, no comando do Conselho da Amazônia, entre outras ações e falas, mostram que a diferença com Bolsonaro pode ser de estilo, não de essência. Já Pacheco, que foi o candidato bolsonarista à presidência do Senado, tem uma curta carreira na política, tendo chegado à Brasília em 2014, como deputado federal pelo PMDB, e apoiando rapidamente toda a agenda golpista dos anos seguintes, desde o impeachment contra Dilma Rousseff, até a PEC do Teto dos Gastos Públicos e a Reforma Trabalhista, passando pelas lavajatistas “Dez Medidas Contra a Corrupção”.
Por outro lado, aqueles que querem se apresentar como “a terceira via” de oposição a Bolsonaro, tampouco diferem substancialmente da boiada que vem avançando sob o atual governo. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), por exemplo, tem mostrado que a defesa da ciência que tem feito no contexto da pandemia é uma ferramenta política que utiliza mirando as eleições de 2022. Desde o começo do ano, Doria não ouviu as recomendações feitas pelo seu próprio Centro de Contingência, e para avançar nas medidas de flexibilização da quarentena, dissolveu o centro.
E na mesma linha de responder aos interesses ruralistas, um projeto do governo Doria que tramita em regime de urgência na Alesp, pretende tornar trabalhadores rurais de assentamentos da reforma agrária em proprietários das terras e não mais beneficiários da concessão de uso de terras públicas. A medida é feita sob a mesma lógica do programa federal Titula Brasil, e ambas vêm sendo denunciadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como formas de permitir o avanço da especulação sobre terras de reforma agrária.
Em uma coluna anterior, também denunciamos a estratégia política idêntica utilizada pelo governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) de propagandear seu suposto distanciamento da figura de Jair Bolsonaro, mas mostrar um completo alinhamento em sua gestão, em especial no que diz respeito à entrega do patrimônio público e natural nas mãos do capital e dar as boas vindas à invasão de terras e territórios por megamineradoras e monoculturas envenenadas.
A campanha contra Bolsonaro é tão fundamental quanto a denúncia e resistência ao projeto neoliberal genocida em curso e aos demais pré-candidatos que fazem fila para pegar o bastão da representação dos interesses das corporações extrativas e do agronegócio no nosso país.
* Este artigo de opinião da Amigos da Terra Brasil foi veiculado no site do jornal Brasil em Fato em 30 de Agosto (acesse aqui).