Em audiência pública, população de Montenegro (RS), comunidades vizinhas e organizações da sociedade civil se manifestam contrárias a projeto de aterro de resíduos industriais perigosos

O projeto em fase de licença prévia na Fepam propõe um aterro de Resíduos Industriais Classe I com vida útil de 26 anos. A população denuncia a falta de diálogo, inclusive sem respeitar o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé dos povos atingidos pelo empreendimento, como o Povo Kaingang e a Comunidade Kuilombola CoMPaz

Na noite desta terça-feira (22), foi realizada Audiência Pública promovida pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) para diálogo com as comunidades do município de Montenegro (RS) e região sobre um projeto de em fase de licença prévia para receber, durante 26 anos, Resíduos Industriais de Classe I, ou seja considerados perigosos, num aterro localizados na comunidade de Pesqueiro, às margens do rio Caí.  Vale ressaltar que, de acordo com a ABNT na resolução NBR 10004/2004, são considerados resíduos perigosos aqueles que possuem características de: inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade ou patogenicidade.

A audiência pública foi realizada para apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) durante mais de 3 horas com transmissão online pelo perfil no YouTube da empresa que pretende se instalar no município, a Fundação Proamb, com participação da comunidade através de uma reunião online. O projeto seria construído em uma área de 46 hectares, localizada a 850 m do entroncamento com a ERS-124, no município de Montenegro (RS). Para realização do aterro estão previstos mais de 40 impactos gerados na região e, como retorno para o município,  a geração de apenas 40 vagas durante a implantação do projeto, sendo 20 empregos na fase de operação. O investimento previsto no projeto chega a 5 milhões de reais.

Dispostos lado a lado, um grupo de representantes da Fepam e da empresa apresentaram a proposta. Davi Valduga, que coordena o processo de licença prévia e apresentou o andamento de avaliação do EIA/RIMA por parte da Fepam. A proposta foi apresentada pela empresa Fundação Proamb, junto às consultorias Bioarea Soluções Ambientais, representada pela bióloga Lisiane Ferri, que coordenou o EIA/RIMA, além do projeto de engenharia proposto pela empresa Vector Geo4D, representada pelo engenheiro Rovane França.

População não sabia da existência do projeto

Área da comunidade quilombola está localizada a cerca de 8 km do local pretendido para o aterro e não teve seu direito de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé respeitado. Imagem: reprodução

A transmissão manteve a participação de cerca de 70 pessoas do município que acompanharam diretamente de um salão paroquial na região de Pesqueiro, área próxima de onde se instalaria o aterro. Além disso, moradores da região, representantes de comunidades e organizações sociais inscreveram-se para participar online, realizaram perguntas e expressaram, em ampla maioria, posição negativa ao projeto. Um dos pontos de crítica por parte dos participantes, incluindo vereadores do município, foi a pouca divulgação sobre a realização da audiência, o que acarretou na baixa participação da população do município, incluindo relatos de que grande parte só soube da sua realização no dia, com o aluguel do salão paroquial. Montenegro possui uma população de 59 mil pessoas, segundo o último censo de 2010 do IBGE. 

Quanto à consulta à população, apenas 10 residências do entorno do local onde se instalaria o empreendimento foram consultadas, sendo 8 dentro do raio de 1km e 2 nas proximidades. A Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz) não teve seu direito de Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé respeitado, como prevê o artigo 6º da Convenção 160 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário e que encontra respaldo na Constituição Federal e ordenamentos legais do país. Questionados quanto a isso, a bióloga Lisiane Ferri argumentou que a comunidade está localizada a 8,374 km de distância do local em que se pretende construir o aterro e usou como fundamento o raio mínimo de influência apontado para empreendimentos considerados pontuais pela portaria interministerial nro. 060/2005, contudo não citou qual documento estabelece a distância de 8 km como limite para aplicação do direito à consulta prévia para comunidades e povos tradicionais. Tal informação não está descrita nas portarias do Ministério do Meio Ambiente (MMA)  274/2020, 280/2020 que dispõem sobre resíduos sólidos, ou mesmo na política sobre resíduos sólidos disponível no site do MMA. Érica Pastori, socióloga da Fepam, respondeu que pela proximidade de localização da CoMPaz ao limite de 8 km, a partir do marco utilizado, foi encaminhado junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) o preenchimento da Ficha de Caracterização de Atividade (FCA) e o processo está em andamento. 

Diversas foram as manifestações dos representantes da CoMPaz questionando o perímetro que viola o direito de Ser e Existir da comunidade para consulta segundo seus próprios protocolos comunitarios e posicionamento sobre a realização da proposta de aterro. Yashodhan Abya Yala destacou inclusive que houve a necessidade de inscrever-se para falar como organização não-governamental, pois nos critérios da Fepam não constava a possibilidade de inscrição para participar como comunidade tradicional e povos originários. Ela ainda destacou que os impactos gerados afetaram a toda a região: “nosso povo água não tem limites, nosso povo ar não tem limites, nosso povo terra não tem limites”. Além disso, somou críticas à forma com que a Fepam mediou a audiência, posicionando-se em defesa do projeto e dos empresários. Vale ressaltar que a relação de proximidade e parceria entre poder público e privado fica evidente já ao acessar a audiência que foi transmitida pelo perfil do YouTube da empresa que pretende se instalar em Montenegro.

Rafael José Altenhofen, presidente do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (COMDEMA), se pronunciou e informou que o órgão não foi consultado. “A Resolução 237/1997 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para esse tipo de licenciamento tem que haver um aval prévio do município atestando a viabilidade e conformidade do zoneamento, enfim. Não foi consultado o COMDEMA, a Câmara de Vereadores, não foi consultado o Conselho do Plano Diretor”, ele pontua. Durante a manifestação na audiência, Rafael sugeriu que, com o apoio popular demonstrado, os vereadores ali presentes propusessem uma legislação que proíba a instalação deste tipo de projeto, como o município de Estância Velha aprovou no final do último ano. O presidente do COMDEMA ainda lembrou que uma licença ambiental emitida pelo Executivo municipal que autoriza uma pedreira em área vizinha ao projeto: “Geraria instabilidade por explosões e britagem nesta área do aterro, ou seja são atividades incompatíveis”, complementa. 

Os representantes da Fepam foram questionados sobre o projeto de pedreira vizinho ao empreendimento pretendido e afirmaram desconhecer a proposta. “O sistema não está interligado entre município-Fepam-estado e nós não tivemos como fazer essa verificação em tempo e será feito agora e também essa licença foi emitida em 2021”, defendeu-se do desconhecimento o coordenador do processo de licenciamento Davi, tendo sua fala complementada por Rafael Volquinde, diretor da Fepam, que presidiu a audiência pública.

Representantes da empresa participaram de reunião com o prefeito
 do município – Foto: Prefeitura de Montenegro

Em 2020, uma certidão assinada pelo então prefeito, Carlos Eduardo Muller (PP), e pelo secretário de Meio Ambiente, Adriano Chagas, liberou a solicitação de licença prévia. No documento, a Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) expõe que “nada tem a se opor ao empreendimento” e autorizaria o recebimento de resíduos industriais inclusive de outros municípios. As informações foram compartilhadas pelo vereador Juares Silva, que exerce seu segundo mandato. Ele informou que não sabia do projeto ou mesmo das tratativas da antiga gestão com a empresa. Os demais vereadores presentes na reunião, Felipe Kinn, Paulo Azeredo e Ari Muller também informaram desconhecer a liberação do projeto por parte da antiga gestão.

Riscos do projeto

Outro ponto levantado, foi quanto aos riscos de contaminação ambiental de se ter um aterro de resíduos industriais tóxicos na região. Além de possíveis incidentes como os já ocorridos na unidade de Pinto Bandeira, administrada pela Fundação Proamb, em que dois incêndios ocorreram, em 2014, e o último, em 2020, que durou mais de 30 horas. Questionados, o representante da empresa afirmou que medidas foram adotadas para qualificar o monitoramento, mas defendeu que este tópico não era foco: “nosso objeto aqui é o novo empreendimento de Montenegro, não discutir questões operacionais lá de Pinto Bandeira”, afirmou Gustavo Fiorese, representante da Proamb.

São mais de 40 impactos possíveis gerados na região do município, entre eles a mortalidade da fauna, a perda da cobertura vegetação, contaminação das águas superficiais, além da redução da recarga e níveis freáticos, ainda risco de rompimento dos taludes do aterro e células dos resíduos. É importante destacar os possíveis incômodos da comunidade vizinha ao projeto com odor e aumento da frota de veículos pesados. Aos riscos do projeto apresentou planos de monitoramento.

São mais de 40 impactos contabilizados caso o projeto venha a se instalar na região. Imagem: reprodução

De forma praticamente unânime, os moradores se manifestaram contrários a instalação do aterro na localidade, com exceção de uma empresária da região que declarou apoio ao projeto. O argumento são os possíveis impactos ambientais que podem afetar as propriedades rurais locais, as águas de arroios e do Rio Caí, impactando com reflexos diretos e irreversíveis não apenas aos ecossistemas existentes, mas terras e comunidades que vivem e dependem da água do rio Caí e afluentes que tem suas nascentes na subacia alvo do projeto.

Apresentação do EIA/RIMA mostrou a proximidade com os corpos d’água da região. Imagem: reprodução

A Amigos da Terra Brasil posicionou-se durante a audiência pública representada por Fernando Campos. Ele destacou que vê com tristeza o projeto de instalação de um aterro na região: “a gente sabe do esforço que vem sendo construído na região metropolitana para construir um cinturão verde, uma área protegida, acabamos de conseguir derrotar a Mina Guaíba, que era um risco para toda a região, também conseguimos derrotar a exploração no rio Camaquã, que também foi uma vitória, a própria questão da deriva dos agrotóxicos também estamos tendo vitórias em Nova Santa Rita. Então, acreditamos sim que vamos ser vitoriosos em barrar esse empreendimento e que a região metropolitana vai ser livre de resíduos tóxicos e de contaminação e que a gente possa ter uma vida mais saudável dentro dessa realidade”. 

Fernando reforçou os comentários feitos pela população de que o papel da Fepam apresentava uma relação desigual entre os direitos da população e os interesses da empresa, já que a população não recebe o mesmo tratamento e atenção de diálogo que a empresa proponente: “Tratar desiguais como iguais é uma forma de desigualdade. O poder econômico das empresas é diferente do poder das comunidades. O papel da Fepam não é tratar todos como iguais”. Ele ainda fez um pedido para que os vereadores e a comunidade se articulem para barrar o projeto.

Ao fim da audiência foi reforçado o pedido de participação popular sobre a matéria. A Fepam receberá manifestações por escrito até 1 de março de 2022 por email rsi-montenegro@fepam.rs.gov.br.

No dia de hoje (24), uma carta escrita por moradores e apoiada por diversas comunidades e organizações da sociedade civil, articuladas na Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA-RS), foi entregue à Prefeitura, Câmara de Vereadores e Conselhos Municipais de Montenegro 

Para subscrever, enviar mensagem para: movimento.toxico.aterro.nao@gmail.com 

Confira a íntegra da Audiência Pública: 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress