Apesar dos constantes reveses, a construção de um espaço de conexão com a espiritualidade traz os Mbyá Guarani para dentro de sua cultura e tradição. Pelo fim da injustiça contra aqueles que chegaram primeiro na Ponta do Arado Velho!
Entre idas e vindas, a área da fazenda do Arado Velho é território Mbyá Guarani. Apesar do modelo econômico neoliberal que prioriza as privatizações estar tomando o espaço, a resistência se mantém forte. No mês de junho de 2022, fecham quatro anos de Retomada Guarani em meio às terras ocupadas. Em 2018, o local contava com três famílias e hoje existe uma parentela, composta por sete famílias. A situação judicial que se coloca atualmente é a mesma de antes do início da pandemia da COVID-19. Os juízes desembargadores da Justiça Federal são os responsáveis por tomar a decisão final sobre a situação dos Mbyá Guaraní. O questionamento que fica é: até quando os Mbyá ficarão nas areias da Ponta do Arado Velho esperando o processo de demarcação territorial?
Hoje, as famílias que residem no território vivem um cotidiano colorido pela ancestralidade, por um presente vivido em sua potência máxima da manutenção de um modo de viver que lhes confere autonomia cultural. Por estes e outros motivos, o apoio de aliados à causa do povo Guarani no decorrer dos últimos anos tem possibilitado uma maior sensação de segurança e apoio por parte do povo atingido. Após momentos de risco de morte e recorrentes ameaças voltadas para a desestabilização emocional dos indígenas, se tornou essencial o trabalho em prol de sua segurança. Para tanto, a comunidade amiga e a organização Amigos da Terra Brasil vêm atuando continuamente na instalação e manutenção de sistemas fotovoltaicos com painéis solares, voltados para a geração e distribuição de energia. O que proporciona aos Guarani uma maior segurança, lâmpadas quando estas se fazem necessárias e comunicação com aliados. Entre outros projetos, foi instalado um sistema de captação e tratamento de água do Guaíba. Esta infraestrutura de raízes fortes que auxilia os indígenas diante das tentativas permanentes de desterritorialização e o convívio com familiares, vai trazendo aos poucos o sentimento de aldeia, o tekoá, espaço para ser um Mbyá. Neste “território” não podem faltar os encontros com Nhanderu Mirim, os deuses menores, na Opy’i, a casa de ligação com os deuses, casa de concentração, casa de “reza”, espaço de contato com a espiritualidade. Na Opy’i, além dos encontros com Nhanderu Mirim, o conhecimento dos ancestrais se faz na celebração de eventos que fortalecem o modo de ser Mbyá.
Desde o início das invasões neste território orquestradas pelos colonizadores, o local se tornou palco de histórias de tristeza, perdas de parentes, doenças, perda de autonomia, escravidão, perda de territórios, desestruturação emocional e sobretudo, de tentativas de apagamento da herança cultural dos Guarani. As lutas desiguais os levaram à busca por terras e por autonomia por meio das leis dos não indígenas. Na Constituição de 1988, esses povos conseguiram garantir, por meio de instrumentos jurídicos ocidentais, alguns direitos básicos. Entre eles, o direito a viverem conforme seus costumes e tradições, mas também direito à saúde e educação diferenciados.
Apesar dos recentes avanços, a situação dos Guarani na Ponta do Arado já vem complicada desde que a ideia de construção de um bairro planejado na Fazenda do Arado Velho começou. Mesmo os órgãos tendo identificado inconsistências técnicas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) apresentado pela Arado Empreendimentos Imobiliários Ltda, proprietária da fazenda e responsável pelo empreendimento, o prefeito Sebastião Melo moveu montanhas para tirar o bairro do papel. Essa construção acarretaria a entrada de condomínios de luxo na área. Isso mobilizou a implantação de um sistema de captação e tratamento de água, o Sistema de Abastecimento de Água (SAA) Ponta do Arado, uma adutora subaquática de captação de água bruta supostamente pensado para melhorar o abastecimento para Belém Novo e arredores. O conjunto de sete obras, sendo de grande relevância também a Estação de Tratamento de Água (ETA) Ponta do Arado, tem previsão de serem concluídas em 2024. No pouco tempo de atuação dessas obras, o desgaste e os estragos feitos no cotidiano dos Guarani já são visíveis. Em 2021, três anos após o início da retomada das terras ancestrais pelos Mbyá Guarani da Ponta do Arado, ocorrida em 15 de junho de 2018, os indígenas tiveram finalmente acesso à água potável e adquiriram autonomia energética.
Hoje em dia, os Mbyá continuam desassistidos pela prefeitura. Segundo a cientista social Carmem Guardiola, pesquisadora do LAE/UFRGS (Laboratório de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que acompanha a situação dos Guarani desde a retomada em 2018, “O que acontece ali na área é uma arrogância racista por parte da administração do município de Porto Alegre. Ela não se comunica com os Guarani da Retomada que navegam pelas águas, e este fato é conhecido por todos na região. A administração não entrou em contato com as comunidades, tanto com os Mbya quanto com os pescadores que ali mantinham uma rotina de navegação. O processo de trabalho para a construção da obra do DMAE, nas águas, não foi esclarecido. Bóias são colocadas em diversos lugares, variando de localização e os Mbya não sabem o que elas sinalizam.. Foram colocadas pequenas placas na praia dizendo que é proibido o acesso devido ao perigo”. Ela explica que aquelas boias vão trocando de lugar e a terra também. Assim, não se tem conhecimento do que acontece ali, e Guardiola observa que “não tem ninguém da prefeitura disposto a explicar o processo”.
Em conversas realizadas na Ponta do Arado (investigações entre os moradores), a cientista social descobriu que “a draga faz um buraco enorme para colocação de canos que vão levar a água até a estação de tratamento. Essa areia que eles deslocam é jogada para um lugar, depois colocam o cano e cobrem de areia. Mas ela fica muito na superfície, fiquei sabendo que deu prejuízo para alguns pescadores ali, porque bateram seus motores nessa areia.” Em meio ao caos, os Guarani arranjaram um jeito. Eles não estão deixando de fazer a travessia, fazem a passagem indo por onde eles acham que podem ir, ou seja, onde não tem boias. Eles atracam em um outro lugar ao lado da prainha de Copacabana onde podem atracar. Fica a reflexão, pois o descaso é ainda mais visível dado que hoje, é de conhecimento geral que os Guarani “moram ali na Ponta do Arado e transitam bastante, inclusive agora tem adolescentes Mbyá indo e voltando da escola todos os dias.”
Hoje, a retomada dos Guarani se dá pelas mãos do cacique Mbyá Guarani Timóteo Karai Mirim, personagem central na atual retomada. Esta semana, Timóteo ergue sua Opy’i, casa de reza, que deve chamar o kokué, a roça, plantação de sementes e alimentos sagrados. Na Retomada do Arado Velho a comunidade ergue a Opy’i, com ela deve vir o kokué, mas também educação e saúde diferenciadas.
Confira a entrevista com o cacique Timóteo Karaí Mirim: