Como povo brasileiro, nos acostumamos a questionar as narrativas de desenvolvimento. Em nossos territórios, junto a elas, instalam-se uma série de promessas não cumpridas, reproduzindo a triste realidade da marginalização social. Terras ocupadas por gente que depende delas para viver, trabalhar, se reproduzir, são consideradas desabitadas, relegando comunidades inteiras à invisibilidade.
Essa crítica reflete o que se passou, e ainda acontece, com a comunidade da Vila Nazaré, zona norte de Porto Alegre (RS). Expulsas pela primeira vez em razão do avanço do agronegócio no campo, durante os anos 1960, as famílias que ocuparam a Vila vieram do fenômeno do êxodo rural para a periferia da Capital gaúcha. Uma área desabitada, sem qualquer serviço público, sob a qual dezenas de trabalhadores e trabalhadoras foram organizando suas vidas, tecendo seus laços sociais e culturais por meio do território. Com a força da organização popular, conquistaram acesso à água, luz, posto de saúde, escolas.
Mas eis que um dia, o tal do desenvolvimento chegou. Em março de 2017, a prefeitura municipal começou a expandir seus interesses pela zona norte de Porto Alegre. Uma área de banhado que vem sendo aterrada para avanço do “setor produtivo”, no qual se insere a obra de ampliação do Aeroporto Salgado Filho para cargas, e não pessoas.
Nessa época, ocorreu a concessão do aeroporto para a empresa alemã Fraport. Talvez a palavra concessão represente um imaginário mais consensual, no entanto, na prática, o que se estabelece é a brutalidade da privatização de um serviço público por 25 anos. Trazendo todas as implicações que isso determina na vida cotidiana do povo, entre elas o aumento dos custos da prestação do serviço, com o estabelecimento de tarifas adicionais, como as cancelas que estão sendo instaladas. A lógica da maximização dos lucros prevalece sobre os interesses populares.
Para esse projeto, a Fraport investiu R$ 382 milhões, visando atender aviões com capacidade para cargas maiores. A narrativa governamental que se estabeleceu era a da promoção do desenvolvimento regional com a facilitação da ampliação da logística de transporte, o que implicaria na ampliação do aeroporto. Não houve preocupação do poder público com o destino das 2 mil famílias que viviam ali. O único órgão estatal a manifestar preocupação com a responsabilidade pelos impactos, realocações e desocupações foi a FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). Cabe mencionar que, segundo a ação movida pelas instituições de justiça, consta no contrato de concessão a responsabilidade da empresa alemã com os custos da realocação da comunidade.
Submersas num cenário de incertezas, sem diálogo com a empresa, as famílias começaram a vivenciar um violento processo de expulsão. Reproduziram-se na região todas as mazelas dos grandes projetos de infraestrutura: falta de negociação coletiva, sobretudo, por meio do estímulo à individualização do conflito; criminalização de lideranças e promoção de uma imagem negativa da comunidade; falta de acesso à informações; não pagamento de indenizações.
A prefeitura, desconsiderando a responsabilidade assumida pela empresa, destinou os loteamentos Nosso Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas, longe da região da Vila, para a levar as famílias. A opção que só foi oferecida de forma precária no fim do processo de remoção, depois que as famílias aguentaram a falta de água, coleta de lixo, ficaram sem iluminação pública, retiraram-se escolas e postos de saúde. Inclusive, durante a remoção, a Fraport não reconheceu a associação de moradores legalmente constituída e contratou a empresa de engenharia ITAZI, especializada em remoções, para realizar o processo, terceirizando sua responsabilidade e, assim, evidenciando seu descaso. A condução das remoções ilegais contou com a cumplicidade do Estado por meio da Brigada Militar (nome dado à polícia militar no Rio Grande do Sul).
Vários equívocos são apontados em relação à postura da prefeitura: a não utilização de áreas próximas à região, para diminuir o impacto da perda do território; o fato de que os loteamentos, construídos com recursos do programa federal “Minha Casa, Minha Vida”, estavam destinados para atender ao déficit habitacional da cidade, não para atuarem como política compensatória. Além do que os loteamentos não possuem acesso à plenitude dos serviços públicos como escolas, hospitais e transporte público, e apresentam falhas na edificação.
Como no capitalismo a história se repete como tragédia, as famílias da Vila Nazaré foram expulsas para dar lugar às obras de ampliação da pista. Cada uma que deixava a vila, tinha sua casa destruída, dando o aviso aos demais de que as terras tinham novos donos. O proprietário, sem a posse, foi devidamente indenizado; aos pobres, apenas a realocação forçada. E na triste saga dos desterrados, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) tem feito esforços para juntar os removidos da zona norte, na ocupação Povo Sem Medo, demonstrando a viabilidade de outras áreas próximas na região, e resistindo aos despejos.
A privatização do serviço público retira a orientação da destinação social e coletiva do mesmo, perdendo ainda mais seu caráter com a isenção fiscal, uma vez que não há retorno social e nem financeiro à coletividade, que perde o poder do controle e gestão comum. À medida que prevalece a lógica do lucro, tudo passa a ser objeto de mercantilização. Assim, após a privatização, o Aeroporto Salgado Filho passou a se chamar “Airport Salgado Filho”, sendo administrado por uma empresa transnacional que não tem qualquer comprometimento com a realidade local.
Dados apurados pelo mandato do vereador Mateus Gomes (PSOL) apontam que a Fraport, entre isenções de IPTU, anistia de multas e juros, recebeu de presente o abono de R$ 71 milhões em 2022. Enquanto as famílias deslocadas para os loteamentos sofrem da precariedade de serviços. Se compararmos as contrapartidas dadas pela empresa, como a construção da escola primária no loteamento Irmãos Maristas, no valor de R$ 4 milhões, na verdade estão sendo financiadas pelas isenções e anistias fiscais.
Cabe ressaltar que o transporte aéreo contribui para o aumento das emissões de gás carbônico na atmosfera, não se constituindo num eixo ecológico de logística. Representa apenas a maior viabilidade para corporações integrarem suas cadeias produtivas. Acerca disso, alternativas ambientais têm demonstrado a importância de problematizar a logística a longa distância e estimulado o comércio e consumo de produtos locais como ponto-chave para redução de emissões de gases do efeito estufa, e desta forma contribuir efetivamente com a redução das mudanças climáticas.
Na contramão disso, a Fraport busca promover-se com uma imagem verde, anunciando que será empresa “carbono zero” até 2045, algo bastante difícil de se reconhecer já que se sustenta no tráfego de aviões. Isso só é possível porque a empresa alemã faz uso de um esquema de compensação e redução de carbono (Carbon Offsetting and Reduction Scheme – CORSIA), ou seja, mantém outros territórios florestais como compensação para a neutralização das emissões. Em verdade, estendendo seus danos a outras áreas, cometendo múltiplas violações: com a comunidade da Vila Nazaré pela remoção compulsória; com a população de Porto Alegre, pela apropriação do serviço público, cobrança de tarifas; e com os povos do Acre e outras partes que sofrem com as políticas de carbono.
A rede global Stay Grounded (SG) tem denunciado os impactos da indústria da aviação no mundo. Além da promoção da injustiça climática, o acesso à aviação é concentrado numa minoria rica. Segundo dados, os habitantes da América Latina e Caribe, em sua maioria, nunca colocaram os pés em um avião, como os moradores da Vila Nazaré. Em seu mapa das injustiças, demonstra como a construção de aeroportos e infraestruturas não promovem o desenvolvimento local, pelo contrário, expulsam pessoas de suas terras, destroem meios de subsistência, pilham água, solo fértil e devastam ecossistemas.
Na esteira da crítica proposição em rede global, o caso da Vila Nazaré ganhou repercussão na Alemanha, com o apoio da Bund Amigos da Terra Alemanha e da KOBRA (cooperação Brasil-Alemanha), que levaram à mídia alemã a atuação suja da Fraport em terras brasileiras. Tal iniciativa se deu articulada com um processo de denúncia junto aos acionistas da empresa, a partir de um trabalho de levantamento de violações aos direitos humanos realizado por empresas alemãs no Brasil.
Ainda segue o trabalho de denúncia da brutalidade com que a empresa alemã conduziu a expulsão das famílias da Vila Nazaré, no qual não assumiu qualquer responsabilidade, nem mesmo as de devida diligência que anuncia. Pelo contrário, beneficiando-se da estrutura da arquitetura da impunidade, destacadamente da morosidade do processo judicial que discute os direitos das famílias, consolidou a retirada de toda a comunidade, externalizando o problema para outras regiões da cidade, justamente longe do aeroporto.
Conclusões
A expansão aeroviária está intimamente ligada à disputa territorial, sendo o caso da Vila Nazaré exemplar. Com o violento silêncio de autoridades e o lobby corporativo, pistas de aeroporto e imensos complexos industriais expulsam a população pobre sempre para mais longe nas cidades. A fim de impedir a desapropriação, a poluição, a destruição, a apropriação privada dos serviços públicos e o ecocídio causados pela indústria da aviação e atividades conexas, os direitos dos povos, especialmente das comunidades locais e de camponesas e camponeses em relação à governança e posse de suas terras e territórios devem ser totalmente reconhecidos e respeitados. Isso também ajuda a garantir a soberania alimentar e a proteger os meios de subsistência, o trabalho, a cultura e os costumes dos povos.
O sentimento de injustiça socioambiental que paira sobre o caso lança luzes à urgente e necessária reflexão sobre a mudança do paradigma de impunidade corporativa no Brasil. Tal como propõe o PL 572/2022, deveria ser considerada a centralidade do sofrimento dessas vítimas no manejo do conflito, assegurando a elas o direito de participar do debate sobre o empreendimento, sendo resguardado o direito à reparação integral. De igual modo, o Poder Judiciário deveria atuar para preservar os direitos delas, prevenindo-os da exposição à marginalidade e equalizando a assimetria de poderes entre a Fraport e a comunidade.
Também se acende o alerta para o avanço da privatização de serviços públicos. Estão em curso diversos projetos de lei que, caso aprovados, entregam a empresas o serviço de saneamento e distribuição de água, o controle da produção de petróleo e gás, o que pode implicar em aumento de tarifas para a vida do povo. Mas não apenas marcos normativos tradicionais, há o risco do avanço do Acordo Comercial União Europeia-Mercosul, que impactará na abertura de possibilidade de privatização de serviços públicos essenciais, como medida de contrapartida.
A saga do pobre na sociedade capitalista é sempre ser empurrado para as fronteiras, a tal ponto que a ele lhe cabe apenas um “não lugar” no espaço. Nessa terra das desigualdades, somos um mar dos que não existem para o Estado, que se situam na externalidade de qualquer projeto de direitos. Servimos para carregar sobre as costas o peso de todos os danos. É triste, mas ainda somos os desterrados em nossa própria terra.
Crédito da imagem de destaque: Reprodução/ ATBr
* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/23/desenvolvimento-para-quem-transnacional-fraport-expulsa-familias-em-porto-alegre