Em Porto Alegre (RS), mesmo sob chuva, povos Kaingang, Mbya Guarani, Charrua e Xokleng estiveram reunidos, junto a apoiadores dos movimentos sociais e organizações de base
Entre os sons dos maracás e os gritos por “demarcação já, demarcação já!”, indígenas dos povos Kaingang, Mbya Guarani, Charrua e Xokleng estiveram reunidos, junto a apoiadores dos movimentos sociais e organizações de base, sob a chuva fina que caia em Porto Alegre (RS), para manifestar o pedido de que o Supremo Tribunal Federal (STF) vote e rejeite a tese do Marco Temporal. O julgamento, que estava previsto para essa quinta-feira (23/06), foi novamente adiado, a partir de decisão do presidente do Supremo, Luiz Fux, no início do mês. A manifestação também soma voz ao pedido de justiça pelas mortes do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari (Amazonas), neste mês, por defenderem os direitos indígenas e da natureza. Uma dor partilhada pelos povos indígenas de todo o país.
Com suas danças e cantos, os povos percorreram as ruas do centro de Porto Alegre, atraindo olhares e palmas da população que circulava pelo local. Reunidos em roda na Esquina Democrática, foi momento de cada um dos povos ali presentes se apresentarem e manifestar seu posicionamento. “Queremos de volta o que foi tirado de nós. Nossa vida, nosso território. Demarcação já!”, reforçou Kulung, liderança do povo Xokleng. Ela também lembrou, durante sua fala no ato, que a retomada Xokleng, localizada em frente à Floresta Nacional de São Francisco de Paula (Flona), no Rio Grande do Sul, vem se manifestando e atuando para impedir o processo de avanço da privatização do parque: “Nós, Xokleng, na retomada em São Francisco de Paula, seguramos a boiada para não passar”, finalizou Kulung.
“O Marco Temporal viola nossos territórios indígenas. Queremos que nos vejam com outros olhos e queremos participar das políticas públicas”, explicou o cacique Kaingang Moisés Kacupri. “A nossa luta nunca vai parar, sem luta não conseguimos nada”, reforçou ao lembrar que a luta é presente há 522 anos nessas terras e segue de forma intergeracional, e dessa forma as raízes, os filhos e netos ficam na terra para brotarem.
O dia foi nomeado pelo movimento indígena como “Dia de luta pela vida”, com ações em aldeias, nas redes e atos em cidades como Porto Alegre (RS), São Paulo (SP), Campo Grande (MS), Dourados (MS), Cuiabá (MT), além de mobilização em frente às sedes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do STF em Brasília. Desde segunda-feira (20), cerca de 150 indígenas representantes dos povos Terena, Kaingang, Tuxá, Xokleng, Tupinambá, Karapó, Guarani Nhandeva, Guarani Kaiowá, Takaywrá, Cinta Larga, Karipuna, Tukano, Macuxi, Wapichana, Taurepang, Mura e Marubo, ao longo desta semana, realizaram uma série de reuniões e audiências: com parlamentares no Congresso Nacional; na Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH); no Conselho Nacional de Justiça (CNJ); no Supremo Tribunal Federal e na Funai, além de participarem do “Seminário sobre o Regime Constitucional das Terras Indígenas no Brasil”, na Universidade de Brasília (UnB), que reuniu indígenas, parceiros, acadêmicos e juristas.
O que é a tese do Marco Temporal?
De acordo com a tese do Marco Temporal, a demarcação de uma terra indígena só poderia acontecer se fosse comprovado que os povos originários ocupavam a área em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal. Sem levar em consideração, por exemplo, povos que tenham sido retirados forçadamente de seus territórios e não o tivessem reocupado até essa data, assim perderiam o direito à sua terra tradicional.
A tese que se contrapõe ao Marco Temporal se chama Tese do Indigenato, que entende os direitos indígenas como originários, ou seja, anteriores ao próprio Estado. Como dizemos, antes mesmo de existir o Brasil, já haviam povos indígenas nessas terras. Hoje, no Brasil, há mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão em aberto. A decisão pode definir o rumo desses processos.
A tese defendida por ruralistas e setores econômicos interessados em explorar as terras indígenas não tem data prevista para voltar à pauta do Supremo. O tema começou a ser votado em agosto de 2021, com dois votos publicados, do ministro Edson Fachin, que votou contra o marco temporal, e do ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro (PL), de forma favorável. De lá pra cá, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista ao processo e suspendeu o julgamento, que seria retomado nesta quinta-feira (23) e foi novamente adiado.
A tensão entre os poderes pode ter resultado no adiamento da votação da pauta. Vale lembrar que no fim de maio, durante um culto evangélico em Goiânia (GO), Bolsonaro afirmou: “não é ameaça, é realidade”, ao se referir que não irá cumprir a decisão do STF caso seja favorável aos indígenas.
Seguimos apoiando a luta dos povos indígenas. É preciso lutar contra esses retrocessos históricos e fazer com que o STF elimine, de uma vez por todas, a aberração jurídica que significa o “marco temporal”, assim como toda a “boiada” que vem sendo promovida contra os direitos dos povos tradicionais e originários, maiores defensores dos bens comuns, da biodiversidade, das florestas e das águas.
Veja também:
Marco temporal não é tese, é embromação jurídica de ruralista. O STF tem o dever de enterrá-la!
Pelo fim da farsa do Marco Temporal. Demarcação já!
Confira mais fotos do ato em Porto Alegre (RS):