Bruno Pereira e Dom Phillips presentes!
O antropólogo Viveiros de Castro disse que a morte é um acontecimento corporal que só se experiencia no outro. Assim, tudo que sabemos consiste em observar a morte do outro e dar nossos significados. É precisamente sobre esse qualificar do fato que movimentos populares relembram a memória de Bruno e Dom, não como aqueles que foram vítimas de um crime isolado por algum pescador ilegal, mas como grandes lutadores dos direitos indígenas e da preservação da Amazônia, cujo legado deverá seguir ecoando.
Por detrás da morte deles se desvela o violento processo implementado pelo Governo Bolsonaro de genocídio dos povos indígenas no Brasil. No começo do governo, em 2019, a Amazônia pegou fogo como nunca e, segundo entidades indígenas, há uma clara relação entre a destruição da floresta e a expansão do agronegócio e do garimpo. Inclusive, apontam a conexão com empresas transnacionais e investidores do Norte Global e sua cumplicidade na destruição da floresta e seus povos.
É preciso recordar que, já em seu discurso como candidato à Presidência, Bolsonaro sempre defendeu a completa paralisação do reconhecimento e titulação dos territórios indígenas e quilombolas. Dizia ele: “nem um centímetro de terra indígena será demarcada”. Quanto ao desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) – principal órgão do Estado brasileiro para a proteção dos direitos dos povos indígenas – manifestou-se: “vamos passar a foice”. Na contramão da onda progressista latino-americana de respeito à pluralidade, diversidade e identidade cultural dos povos, o governo caminha, nas palavras do presidente, para “proporcionar os meios para que o índio seja igual a nós”.
O Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e a Associação de Servidores e Indigenistas da FUNAI (INA) apresentaram, em junho de 2022, um estudo detalhando sobre a “Nova FUNAI” (termo utilizado pelo atual presidente Marcelo Xavier), no qual concluem que o órgão se tornou anti-indígena. Logo no início da gestão de Bolsonaro, o governo editou a Medida Provisória 870, transferindo a FUNAI do Ministério da Justiça (onde esteve desde 1991) para o (ultraconservador) Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Na mesma normativa, deslocou a identificação e a demarcação de Terras Indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o clássico Ministério do agronegócio. Essas entre outras medidas, como a separação da atenção à saúde indígena, fragmentaram a política indigenista, criando um cenário de caos de gestão que inviabiliza a execução das políticas e vulnerabiliza ainda mais os povos originários do Brasil, em flagrante violação dos seus direitos pelo Estado, que tem obrigação constitucional de garanti-los.
A mudança de competência para a demarcação de terras indígenas permaneceu até a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou, em agosto de 2019, que o Executivo não poderia legislar sobre o tema. Apesar da decisão, a demarcação segue paralisada e aguardando o julgamento pelo STF contra a tese anti-indígena do Marco temporal. O resultado é a explosão de conflitos, ataques e violência brutal em Terras Indígenas que assistimos diariamente: as invasões ao território Yanomami por garimpeiros, o abuso e a violência sexual como arma nessa guerra; o próprio caso dos povos isolados no Vale do Javari (AM), ameaçados por garimpeiros, narcotráfico e pesca ilegal, desnudando a gravidade do desrespeito aos povos em isolamento voluntário; a situação dos Guarani e Kaiowá, que convivem com verdadeiras milícias privadas do agronegócio no Mato Grosso do Sul, as quais atacam retomadas com apoio dos poderes públicos locais.
De acordo com o Conselho Indígena Missionário (CIMI), há um aumento das invasões e exploração ilegal em Terras Indígenas durante o Governo Bolsonaro: só em 2020, registrou-se 263 casos, que atingem 201 Terras Indígenas, 145 povos em 19 estados, evidenciando que a política de desmonte é estrutural. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denomina essa ação do governo contra os povos indígenas como genocídio, chegando a denunciar Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional.
A FUNAI convive ainda com um corte orçamentário gigantesco, por volta de 40%, que afeta diretamente na atuação dos servidores para a continuidade dos trabalhos de promoção e proteção dos direitos indígenas. Uma das políticas adotadas na atual gestão é o não atendimento de indígenas em áreas de retomada de seus territórios ancestrais, o que implica deixar dezenas deles completamente à margem do Estado, não havendo qualquer atuação, até para pacificação de conflitos. Das 39 Coordenações Regionais da FUNAI, apenas duas contam com servidores de carreira da instituição, tendo sido nomeados pela gestão atual: 17 militares, 3 policiais militares, 2 servidores da Polícia Federal e 6 profissionais sem vínculo anterior. Estes últimos, têm sido alvo de polêmicas, já que muitos são indicações religiosas feitas pelo MMFDH. No caso do Vale do Javari, a coordenação de Bruno Pereira foi substituída por um ex-pastor evangélico, sendo um dos setores mais sensíveis da FUNAI, de povos isolados que exigem o máximo de experiência para o respeito à sua autodeterminação.
O show de horrores acontece diariamente. Tal como Bruno, que foi exonerado do cargo de Coordenação em 2020 por sua atuação, há uma perseguição sistemática de servidores com a retirada de suas atribuições, o deslocamento compulsório de localidades, a explosão de processos administrativos contra funcionários, uma série de denúncias criminais encaminhadas pelo próprio presidente da FUNAI. Alguns funcionários são acusados de atuar por “questões ideológicas”, de serem ligados ao “PT”. Torna-se tão escandaloso quando o urucum pintado nas paredes de algumas das sedes do prédio da FUNAI é censurado, sendo pintado de verde e amarelo. Ou ainda quando o art. 231 da Constituição Federal se torna “tema controverso”. Pode-se dizer que há uma verdadeira ditadura interna para “deixar passar” o agronegócio e o garimpo. Novamente, os discursos assimilacionistas para com os povos indígenas toma lugar, sendo estes alvos cotidianos do discurso de “entraves ao desenvolvimento”.
Muito ainda está por ser revelado desse período de terror da nossa história. Algumas notícias recentes têm apontado para um esquema de empresas de fachada que prestam serviços à FUNAI por meio de contratos milionários. A gravidade das ações que envolvem a presidência do órgão levaram o Conselho Nacional de Direitos Humanos a solicitar o afastamento do presidente. Não restam dúvidas de que os anos desse governo deverão ser objeto de investigação, num caminho árduo ainda a traçar na reconstrução de uma memória e verdade desse período.
Vidas e terras indígenas importam!
Em 2022, o Brasil marca o bicentenário da suposta independência, um convite a toda a esquerda que se enraíza nas lutas emancipatórias dos povos contra todas as formas de opressão e se engaja na construção de um Projeto Popular de país para repensar a formação do Estado Nação brasileiro, marcado pela barbárie colonial e racista, especialmente contra os povos indígenas. Nesse cenário, os indígenas têm ressignificado as comemorações do 19 de abril, o “dia do índio”, não como uma data esvaziada de lutas históricas, mas como marco da resistência e mobilização, enunciada na construção do Abril Vermelho Indígena.
Já são 17 anos de construção do Acampamento Terra Livre (ATL), que em suas duas últimas edições emergiu como um forte grito dos povos indígenas contra as atrocidades do Governo Bolsonaro. As mobilizações indígenas também têm sido fortes ao redor do julgamento no STF sobre o Marco Temporal que, apesar da pressão popular, segue com data indefinida. Cabe lembrar a centralidade do Povo Xokleng, caçado, violentado, que resistiu ao massacre em 1904 em Santa Catarina, e deu ensejo à ação judicial sob a qual se debate a infame tese do marco temporal, enfrentando as oligarquias locais que os expulsaram de suas terras e afirmando os direitos territoriais indígenas. A pressão ao redor do julgamento é tão grande, que ainda não houve conjuntura para que o STF decida sobre o tema.
Daniel Munduruku dizia que os povos indígenas são uma fronteira sobre a qual o capitalismo brasileiro ainda não conseguiu avançar. De fato, os mais de 500 anos de colonização não foram capazes de apagar essa identidade coletiva, e mais que nunca, avança organizada contra o bolsonarismo, ensinando, de cocar em punho e reza, relembrando todos os mortos, que podemos enfrentar essa política de morte e erguer as estruturas de uma sociedade centrada na produção e reprodução de vida.
* Coluna publicada no jornal Brasil de Fato em 5/07/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/07/05/a-amazonia-e-que-vai-derrubar-bolsonaro