Mais uma vitória se soma às conquistas da luta no Rio Grande do Sul, desta vez na região de Candiota. Protagonizada por pessoas produtoras rurais de assentamentos, pesquisadoras e com participação direta de mais de vinte entidades organizadas a partir do Comitê de Combate à Megamineração (CCM/RS), a iniciativa garantiu a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) de manter a suspensão do licenciamento ambiental da Usina Termelétrica de Nova Seival (UTE Nova Seival). Além do impacto negativo no território, nas formas de vida e na saúde da população, o empreendimento representa um contrassenso frente às mudanças climáticas e ao debate de descarbonização da matriz energética. Democratizando o processo, a articulação assegurou a realização de três audiências públicas, assim como a anulação da audiência realizada em maio de 2021, que não contou com ampla participação das comunidades atingidas. Outro triunfo foi a inclusão da avaliação de emissão de gases nos estudos que devem ser apresentados pela empresa Copelmi, proponente da UTE Nova Seival. As boas novas vão além das fronteiras de Candiota: serão incluídas questões referentes às mudanças climáticas e riscos à saúde humana para todos os estudos de termelétricas que se instalarem no estado.
Registros dos últimos anos apontam os fortes impactos da estiagem na região, que afeta diretamente produtores rurais e a cadeia de alimentos. O fenômeno é uma das facetas da emergência climática, causada majoritariamente pela emissão de gases de efeito estufa via atividades da indústria fossilista, que adota fontes de energia de alto impacto socioambiental (petróleo, gás e carvão). Hoje, 70% das emissões globais estão relacionadas ao uso destas fontes. As atuais medições de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, um dos principais gases responsáveis pelo efeito estufa, chegam a pico histórico, alcançando nível inédito em três milhões de anos. O desequilíbrio energético no topo da atmosfera, produzido pelo aumento da concentração desses gases, é o equivalente a acumular em calor, a cada segundo, a energia proveniente da explosão de 21 bombas de hiroshima. A situação é alarmante, com aquecimento atual 20 vezes mais intenso e acelerado que o ocorrido no fim da última Era Glacial, grande mudança climática natural. E evidências científicas do Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) escancaram de forma inequívoca que agora a mudança tem causas antrópicas, e que é indispensável limitar o aquecimento global.
A construção da UTE Nova Seival, maior termelétrica de carvão do RS, teria efeitos muito agressivos no Pampa. Com capacidade de produzir 727 megawatts (MW), ela emitiria sozinha uma quantidade de CO2 equivalente a toda frota de veículos de Porto Alegre. De acordo com a empresa em seu Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a soma de emissões de CO2 gerada pela UTE Nova Seival seria de 1,4 milhão de toneladas por ano (valor que pode estar subestimado). Tendo este dado como base, e considerando as emissões de 2018 em Candiota, só nessa região o incremento seria de 54%. Comparando com as emissões de 2019 no estado, esse número representa um incremento de cerca de 7% nas emissões do setor energético no RS. Este mesmo valor, comparado às emissões do município de Porto Alegre em 2018, aponta que a UTE Nova Seival emitiria o equivalente a 90% de toda a emissão do setor energético da capital. Um único empreendimento pode ter esse nível de estímulo na crise climática.
Além da construção da termelétrica a carvão, o projeto da UTE Nova Seival prevê a construção de uma nova barragem no Passo do Neto, o que acarretaria no alagamento de grande área, atingindo o Assentamento Estância Samuel. Só aqui o saldo previsto é o reassentamento de 26 famílias. Os impactos também prejudicariam a produção agroecológica do entorno e os modos de vida e produção sustentável por ali. O Rio Jaguarão, que tem importante vegetação e fauna, alagaria, assim como áreas de várzea que são as mais férteis do local.
Este projeto não é algo isolado. No estado gaúcho, centenas de áreas e mais de oitenta assentamentos da reforma agrária estão na mira de projetos de mineração. A temática da mineração e queima do carvão é sensível. Embora o discurso oficial da região de Candiota alegue que o carvão não causa problemas ambientais, uma série de estudos científicos publicados contradizem esse argumento. Desde informações críticas sobre a alteração da qualidade de ar, até estudos que demonstram efeitos e mutações em plantas, e alterações em exames de sangue de animais humanos e não humanos.
Apesar dos impactos negativos, a questão é tensionada pela dependência econômica da região em relação à cadeia do carvão. Cada novo empreendimento, novas promessas de geração de empregos e impostos para o município. Na realidade, muitos destes empregos são ocupados por mão de obra estrangeira ou de outras localidades, além de que nem sempre é possível acompanhar como é realizado o investimento e que valores são gerados através da arrecadação de impostos.
Uma série de lacunas e omissões estão presentes nos estudos ambientais apresentados por empresas, o que inviabiliza que processos de licenciamento proporcionem segurança ambiental e das comunidades. Além disso, a injustiça socioeconômica é aprofundada pela forma como se dá a tributação destes setores, junto à falta de controle social da aplicação dos recursos arrecadados. Atualmente, os impactos ambientais e à saúde humana, assim como a contribuição da queima de carvão na emergência climática, não estão adequadamente presentes nos estudos de impacto ambiental de Usinas Termelétricas. Na contramão desse cenário, pautando medidas concretas de combate à crise climática e ecológica, estão vitórias populares como no caso da UTE Nova Seival. Sua ação torna obrigatório que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) inclua essas análises de risco nos Termos de Referência para licenciamento ambiental das Usinas Termelétricas no RS, assim como as diretrizes legais previstas nas Políticas Nacional e Estadual sobre Mudanças do Clima. A vitória incide na região, em todo estado e abre pressuposto para o debate nacional e a respeito de outras atividades poluidoras.
A prática do uso de carvão como fonte de energia precisa de uma redução drástica, enquanto se criam condições materiais e diálogos coletivos para que ela seja eliminada. Embora empresas ligadas ao modelo mineiro energético afirmem que pode haver ganhos para a população, os impactos desfavoráveis são imensos, sobretudo por alimentarem uma lógica de acúmulo e produção infinita em um planeta finito, o que o leva ao colapso. É possível pautar outra forma de produção de energia, que garanta a autonomia dos territórios, o equilíbrio ecológico e a geração de empregos em atividades e setores que puxem o freio da emergência climática. No caso de Candiota, um exemplo prático seria investir e absorver mão de obra em agroindústrias articuladas pelos assentamentos, construindo processos produtivos verdadeiramente sustentáveis, que garantam a saúde dos solos, preservem os biomas e produzam alimentos de qualidade.
Não resta dúvida: a organização coletiva em defesa de um futuro realmente sustentável se faz imprescindível. E as articulações que barram estes projetos a partir da resistência dos territórios, em defesa de suas águas, florestas, solos e biodiversidade, abrem o debate nacional sobre a transição energética, pauta central deste século. Que num horizonte anticapitalista, deve ser também uma transição produtiva e de consumo justa, ecológica e soberana.
Para saber a fundo sobre esse processo de luta, a relação do carvão com a emergência climática e como está sendo pautada a transição energética justa no Brasil, conversamos com o engenheiro ambiental Eduardo Raguse, integrante do Comitê de Combate à Megamineração e da Amigos da Terra Brasil. Confira a entrevista na íntegra:
Amigos da Terra Brasil: Como a decisão do TRF4 afeta a vida do povo gaúcho?
Eduardo Raguse: A decisão foi importante para o caso específico da região de Candiota, pois anulou a audiência pública virtual sobre o projeto da UTE Nova Seival realizada em maio de 2021 (em função desta audiência não ter possibilitado a ampla participação das comunidades atingidas) e determinou a realização de 3 audiências públicas presenciais ou híbridas (em Candiota ou Hulha Negra, em Bagé e em Porto Alegre), ainda suspendeu o processo de licenciamento ambiental até que sejam sanados os vícios do EIA/RIMA apontados pelo IBAMA e pelos diversos pareceres técnico-científicos apresentados por pesquisadores e entidades. Porém esta decisão também afeta positivamente a qualidade de vida do conjunto da sociedade gaúcha, pois obriga o IBAMA a incluir nos Termos de Referência para licenciamento ambiental de Usinas Termelétricas no RS, a realização de análise de riscos à saúde humana, e as diretrizes legais previstas nas Políticas Nacional e Estadual sobre Mudanças do Clima, sobretudo quanto a necessidade de realização de Avaliação Ambiental Estratégica. Tais conquistas são muito importantes tendo em vista que apesar da conhecida contribuição da queima de carvão para o atual cenário global de mudanças climáticas e também de seus impactos ambientais e à saúde humana, estes componentes não são avaliados pelos estudos de impacto ambiental de projetos de Usinas Termelétricas. Abrimos assim importante precedente, que pode ser estendido também para todo território nacional bem como para outros tipos de atividades poluidoras como a mineração, produção de celulose, refinarias, indústrias petroquímicas, etc.
ATBr: Quem são as organizações que estão nessa luta? Com qual objetivo?
ER: O enfrentamento a esta pauta, em apoio à comunidade local, principalmente de produtoras e produtores rurais dos assentamentos, se articulou através do Comitê de Combate à Megamineração no RS – CCM/RS , e contou com a participação direta de mais de 20 entidades que incidiram neste processo, realizando discussões técnicas e diálogos com a população local, elaborando pareceres técnicos (de diferentes áreas do conhecimento) de análise crítica aos estudos apresentados pela empresa, participando da audiência pública, e elaborando as peças jurídicas que estão levando à mais esta vitória, que só foi possível pelo intenso trabalho coletivo empregado, principal característica que tem consolidado o trabalho do CCM/RS. O objetivo do Comitê é evidenciar que o atual modelo minero-energético brasileiro é gerador de inúmeros impactos socioambientais negativos, que os processos de tomada de decisão para a implantação de empreendimentos não são democráticos, que os estudos ambientais apresentados pelas empresas apresentam uma série de lacunas e omissões que não garantem a segurança ambiental e das comunidades através do processo de licenciamento, e que a tributação destes setores, junto à falta de controle social da aplicação dos recursos arrecadados aprofundam processos de injustiça socioeconômica e ambiental nos territórios, ao invés de trazer o prometido desenvolvimento. A luta é pela construção de um modelo mineral e energético soberano e popular e que garanta a qualidade ambiental e de vida das comunidades.
ATBr: Como surgiu a proposta de construção da Usina Termelétrica Nova Seival entre Candiota e Hulha Negra?
ER: O projeto era conhecido anteriormente como UTE MPX Sul, e obteve uma Licença Prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama ainda em 2009, já vencida. A MPX Energia fazia parte do grupo EBX, do empresário Eike Batista, o qual vendeu o controle da empresa para a alemã E.ON, que em 2013 alterou o nome MPX para Eneva (dissociando a empresa da imagem do empresário que fez fortuna com mineração e agora coleciona condenações por crimes contra o mercado de capitais, uso de informação privilegiada e pagamento de propinas por contratos com o governo do Rio de Janeiro). Após anos sem viabilização do projeto nos leilões de energia, em fevereiro de 2019 o mesmo grupo econômico proprietário da Copelmi (proponente também da Mina Guaíba), e proprietário majoritário da Mina do Seival, comprou a participação da Eneva na mina por R$ 18 milhões, juntamente com os direitos do projeto UTE MPX Sul, agora renomeado para UTE Nova Seival. Desde então se anuncia intenção de incluir o projeto nos leilões de energia, e em maio de 2021 a empresa anunciou que iria passar a utilizar a tecnologia supercrítica, acelerando o processo de licenciamento ambiental para concorrer no leilão A-6, que era previsto para setembro de 2021, mas até o momento não conseguiu avançar no licenciamento.
ATBr: Candiota é o município gaúcho com maior arrecadação no RS sobre a Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), mas pouco se discute o uso desse recurso, em relação aos impactos da mineração na vida da população. Por que não há estruturas para divulgar a arrecadação e a aplicação dos recursos da CFEM? Para onde foram os 3 milhões recebidos em 2021?
ER: Estas são perguntas que entendemos que a população de Candiota e região tem que fazer aos poderes públicos municipais (Prefeituras e Câmaras de Vereadores). Tanto as atividades de mineração de carvão como de geração de energia através de sua queima geram impostos como a CFEM e o ICMS, porém não existem mecanismos de controle social do quanto é de fato arrecadado, onde estes recursos são aplicados, muito menos a possibilidade de a comunidade definir e priorizar sua aplicação. Por exemplo, parte destes recursos deveria ser destinada ao desenvolvimento de atividades econômicas diversas à mineração, diminuindo assim a dependência da comunidade local da cadeia do carvão, que ao que tudo indica está se encaminhando para ter seu ciclo encerrado. Além disto, é importante entender que as alíquotas da CFEM no Brasil são muito baixas comparadas com às de outros países, configurando o que o Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM classifica acertadamente como um saque.
ATBr: Por que o carvão ainda é apontado como caminho para geração de energia, em um contexto em que o mundo todo discute a descarbonização da matriz energética, dado o processo das mudanças climáticas?
ER: O motivo, defendido pelo setor e pelos governos, para manter e até mesmo ampliar a presença das termelétricas na matriz energética brasileira, é o de que haveria a necessidade de se garantir uma geração de energia que o setor chama de “firme”, em relação às fontes de energia renováveis, como hidrelétrica, eólica e solar, por estas apresentarem variações em sua geração em função das variações anuais, sazonais, mensais ou horárias dos regimes pluviométricos, de ventos e de incidência solar. A ironia contida neste discurso é o fato de ser justamente a queima de combustíveis fósseis um dos principais fatores responsáveis pelas alterações climáticas, que trazem instabilidade e riscos à operação das hidrelétricas, principal fonte de geração de energia elétrica do Brasil, e das eólicas, fonte em maior crescimento no país. O estudo Inventário de Emissões Atmosféricas em Usinas Termelétricas publicado em 30 de junho, pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), conclui que Candiota III e Pampa Sul, ambas localizadas no município de Candiota/RS, são as Usinas Termelétricas que mais emitiram gases de efeito estufa por eletricidade gerada em 2020. O parque de termelétricas coberto no Inventário foi composto por 72 usinas: 36 movidas a gás natural como combustível principal, oito a carvão mineral, 17 a óleo combustível e outras 11 a diesel. A UTE Nova Seival afirma utilizar melhor tecnologia em relação ao projeto MPX Sul, porém o ganho de eficiência seria de apenas 2,25%, e já iniciaria sua operação entre as 10 termelétricas com maior emissão do Brasil, emitindo sozinha, segundo informações da própria empresa (que podem estar subestimadas) 1,4 milhões de toneladas de CO2 por ano, o que equivale a praticamente a mesma quantidade de CO2 emitido por toda a frota de veículos de Porto Alegre. Analisando nossa matriz elétrica e suas tendências e potencialidades futuras, percebe-se que o discurso da dependência do carvão como garantia de eletricidade “firme” não tem mais sustentação, e só serve para a tentativa de manutenção deste setor anacrônico. A geração eólica e fotovoltaica conjunta demonstra que quanto maior o investimento na diversidade de projetos, sua distribuição geográfica e geração descentralizada, maior o patamar de energia “firme” que estas fontes garantem, resultando no chamado efeito portfólio, o que já é uma realidade hoje.
ATBr: O Prefeito de Candiota, Luiz Carlos Folador, e jornais da região, divulgam que a qualidade do ar do município “está entre as melhores do Brasil”, esta informação procede? Além da emissão de gases de efeito estufa quais os outros impactos gerados pela queima do carvão?
ER: Primeiramente é preciso ressaltar que nossa rede de monitoramento público da qualidade do ar no RS, um dia existente, acabou. As parcas informações que temos são produzidas justamente pelas indústrias responsáveis pelas principais fontes fixas de poluição de nossa atmosfera. Ao que temos conhecimento estas afirmações sobre a qualidade do ar de Candiota se dão a partir de dados das estações de monitoramento do ar operadas pelas próprias termelétricas, e contemplam apenas parâmetros básicos (Dióxido de Enxofre – SO2 , Dióxido de Nitrogênio – NO2 e Partículas Inaláveis – PM 10 ), sem analisar, por exemplo, a composição química do material particulado emitido, especialmente de elementos traço (como metais pesados). Além disto, os resultados são comparados com a Resolução CONAMA 491/2018 que se encontra sub judice por meio de ADIN promovida pela PGR em face de representar elementos protetivos insuficientes, ou seja, nossa legislação não garante um ar com concentrações de poluentes abaixo das quais não se esperam efeitos adversos, nenhum distúrbio ou efeito indireto significante à saúde, como os recomendados pela OMS – Organização Mundial da Saúde. Os efeitos do carvão nas regiões carboníferas do RS, sobre os meios físicos e bióticos, sobre atividades produtivas e sobre a saúde humana, são objeto de pesquisa científica há pelo menos quatro décadas. (Confira a lista ao fim da matéria com alguns dos estudos disponíveis*)
Uma questão que fica é se o governador do Estado, deputados, prefeitos, vereadores e comunidades dos municípios das regiões carboníferas do RS têm conhecimento destas informações científicas. Qualquer resposta para essa pergunta é grave, pois se não se tem este conhecimento, decisões estão sendo tomadas de maneira desinformada. Caso se conheçam estes fatos, decisões estão sendo tomadas em favor de grupos econômicos em detrimento da saúde ambiental e humana, e sem informar adequadamente as populações locais.
ATBr: Em que pé estamos no processo de transição energética? E quanto a uma transição justa?
ER: Estamos em uma fase embrionária desta discussão no Brasil, e que está se dando principalmente desde a sociedade civil organizada, pois desde o governo brasileiro não há nenhum comprometimento concreto, e nenhum tipo de planejamento para uma transição que culmine com o fim da mineração de carvão e de sua queima via termelétricas. Pelo contrário, há uma insistência no sentido de manter o setor em funcionamento, ignorando as questões socioambientais locais e globais envolvidas e forçando uma “solução” fácil, que não encara a problemática de planejar e desenvolver outras cadeias econômicas locais em direção a uma transição energética justa e ecológica.
As e os próprios trabalhadores do setor do carvão têm que compreender que devem assumir o protagonismo deste debate, para que a transição destes empregos se dê de maneira justa e que beneficie a classe trabalhadora, e não somente os donos dos novos negócios que surgirão na nova reinvenção energética do capitalismo (poderosos setores empresariais já estão estruturando este novo mercado “verde”). Além disto, temos que ir além da discussão das formas de geração de eletricidade em substituição aos combustíveis fósseis, e temos que encarar de forma séria e consistente a questão do nosso modelo econômico de produção e consumo.
Os combustíveis fósseis liberaram a energia de um sistema econômico que precisa se expandir continuamente e infinitamente. E isto implica na indução de um maior nível de consumo e, portanto, de produção, o que implica em uma maior demanda energética, tanto para bens de consumo quanto para serviços. Os combustíveis fósseis se tornaram o coração energético do sistema capitalista. Não há saídas dentro deste sistema de crescimento infinito da economia e, portanto, da demanda infinita de energia induzida por este processo. Um exemplo disso é verificar que é crescente a expansão das fontes eólica e solar, e ainda assim as emissões seguem aumentando. Precisamos definitivamente entender que a redução da demanda energética global é ponto fundamental.
As renováveis seriam apenas a maneira de suprir, com impactos, porque não há geração de energia sem impactos, uma demanda energética reduzida. Sem redução na demanda, as renováveis tanto se mostram incapazes de substituir ou até de frear as fósseis, como se tornariam novos elementos destrutivos. A crescente fabricação dos equipamentos de geração, armazenamento e distribuição de energia eólica e fotovoltaica apresenta uma imensa demanda de minérios (como lítio e cobalto), que carregam consigo os impactos socioambientais de sua extração. A instalação e operação destes sistemas também trazem impactos aos ecossistemas e comunidades locais.
Precisamos urgentemente abandonar os combustíveis fósseis, manter jazidas no subsolo, mas isto não vai ser possível com a escalada da demanda energética atual para produzir bens de consumo supérfluos, para produzir materiais descartáveis, para transportar matérias-primas e depois produtos de um lado para o outro do mundo. E as renováveis, para ser de fato parte da solução, precisam avançar a partir de uma lógica socioambiental e não a partir da mesma lógica de predação. É preciso uma profunda mudança no modelo de produção e consumo. A luta de todas e todos tem que ir além do combate às formas de produção de energia; é uma luta que tem de assumir uma perspectiva totalizante, de uma nova sociedade capaz de se ajustar e se adaptar aos limites planetários e aos fluxos e ciclos de matéria e energia que comandam o metabolismo do nosso planeta. Sem isso, não temos saída. E para isso, somente a informação, envolvimento, mobilização, resistência e organização popular. Construindo uma transição energética, produtiva e de consumo justa, ecológica e soberana. E rumar à superação do capitalismo. Mudar o sistema, não o clima.
Aqui você confere a entrevista de Eduardo Raguse para o programa Terra Livre, que aborda em áudio como se deu o processo de luta e os impactos da UTE Nova Seival na região de Candiota:
*Os efeitos do carvão nas regiões carboníferas do RS, sobre os meios físicos e bióticos, sobre atividades produtivas e sobre a saúde humana, são objeto de pesquisa científica há pelo menos quatro décadas. Confira aqui alguns dos muitos estudos disponíveis a respeito:
1. A deposição de cinzas volantes emitidas por usina termelétrica sobre as pastagens da circunvizinhança, além de eventuais prejuízos aos vegetais, pode gerar prejuízos para a pecuária (Martins et al, 1992 ; Martins e Zanella, 1990 (MARTINS, A. F.; ZANELLA, R. Estudo analítico-ambiental na região carboenergética de Candiota , Bagé, RS. Ciência e Cultura, v. 42, n 3/4, p. 264-270, 1990), e Riet-Correa, 1986). Os fluoretos associados às cinzas, além de contaminarem as pastagens, juntamente com o efeito abrasivo das cinzas, podem determinar lesões dentárias em bovinos, ovinos e equinos.
2. Ovos de galinha caipira foram utilizados para investigar o impacto das atividades de mineração e geração de energia, em termos de contaminação com elementos-traço tóxicos sobre o meio ambiente regional nas localidades carboenergéticas de Candiota e Charqueadas (Flores e Martins , 1997, e Flores, 1990 (FLORES, E. M. Utilização de Amostras Ambientais das Regiões de Candiota e de Charqueadas (RS) como Bioindicadores de Poluição. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Santa Maria, 1990)). Os resultados indicaram uma correlação positiva entre a concentração de Pb, Cd e F, distribuídos respectivamente na clara, na gema e na casca dos ovos e as atividades carboelétricas destas regiões. Da mesma forma, amostras de mel e de pastagens coletados nas áreas de influência das termelétricas de Candiota e de Charqueadas revelaram concentrações de elementos-traço significativamente maiores quando comparadas com amostras de regiões não submetidas a impacto ambiental (Flores e Martins, 1993 (FLORES, E. M.; MARTINS, A. F. Use of pollution bioindicators for fluorine in the vicinity of coal thermoelectric power plants. South. Braz. J. Chem. V. 1, n. 1, p. 61-73, 1993) e Flores, 1990 (FLORES, E. M. Utilização de Amostras Ambientais das Regiões de Candiota e de Charqueadas (RS) como Bioindicadores de Poluição. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Santa Maria, 1990)).
3. Menezes et al (2013) avaliaram genotoxicidade em Baccharis trimera (planta medicinal tradicional altamente consumida no Bioma Pampa, conhecida popularmente como Carqueja). Foi detectada genotoxicidade em plantas de Candiota, expostas à extração e queima do carvão.
4. Artico et al (2018) avaliaram a citotoxicidade e fitotoxicidade das águas superficiais coletadas no entorno da Usina Termelétrica Presidente Médici – UTPM (CGTEE), em Candiota, através de bioensaios em Allium cepa (cebola) e análises físico-químicas. Os efeitos citotóxicos, mutagênicos e fitotóxicos observados no bioensaio de A. cepa, além dos padrões físico-químicos inadequados obtidos nas amostras analisadas, apontam os impactos causados pelo processo de mineração e queima de carvão nesta região.
5. Da Silva et al (2000) realizaram um biomonitoramento de dois anos nas regiões carboníferas de Butiá e Candiota, e demonstraram a genotoxicidade do carvão e produtos relativos em células sanguíneas, fígado, rim e pulmão de roedores nativos (Ctenomys torquatus – tuco-tuco).
6. Rohr et al (2013) avaliaram os efeitos genotóxicos do carvão em indivíduos de Candiota que foram expostos ao carvão como parte de sua ocupação; o estudo envolveu 128 pessoas, 71 com exposição ao carvão em função de seus trabalhos e 57 sem exposição. O grupo exposto teve um significativo aumento de danos em células linfócitas e bucais, além de outros problemas. Os autores indicam que a evidência de que a exposição ao carvão e seus derivados apresentam risco genético demonstra a necessidade de medidas de proteção e programas educacionais para mineradores de carvão.
7. Bigliardi et al (2020) avaliaram parâmetros hematológicos e bioquímicos em residentes (há mais de dez anos) de Candiota, Pedras Altas e Aceguá e sua relação com a qualidade do ar da região. Os resultados sugerem uma possível influência de MP10 na função hematológica, especificamente em hematócrito, entre os residentes. Uma importante percentagem desta população demonstrou alteração nos parâmetros hematológicos (43,1%) e função do fígado (30%). Entre as três cidades, a população de Pedras Altas parece ter um maior comprometimento dos parâmetros sanguíneos avaliados.
8. Recentemente, por articulação do grupo Medicina em Alerta, foram elaborados pareceres de seis sociedades médicas e duas sociedades de saúde sobre os riscos do carvão à saúde , especialmente do projeto Mina Guaíba, mas que podem ser considerados de maneira mais ampla.