Nos últimos dias marcamos presença no X Fórum Social Pan-Amazônico, que aconteceu em Belém, capital do estado do Pará, no campus da Universidade Federal do Pará (UFPA). Considerado o maior evento de debate social sobre a região, o Fórum é um espaço de articulação dos povos e comunidades da Amazônia para a incidência e a resistência frente ao atual modelo neoliberal desenvolvimentista. Modelo este baseado na exploração predatória dos bens comuns e nas consequentes e constantes violações de direitos dos povos e comunidades das águas, das florestas, do campo e das cidades.
Estiveram presentes movimentos e organizações sociais dos países que integram a região Pan-Amazônica: Venezuela, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Brasil. Junto a diferentes articulações e redes, nós da Amigos da Terra Brasil somamos na construção de atividades sobre bioeconomia, direitos humanos e empresas, e sobre os impactos dos acordos internacionais de livre comércio sobre a Amazônia e América Latina.
No dia 27, data pré Fospa oficial, participamos da atividade promovida pelo Grupo Carta de Belém: Bioeconomia na Amazônia: o que é e consequências para os povos e territórios. O Brasil é apresentado como espaço privilegiado para a experimentação de propostas da bioeconomia em distintos setores, mas as reais consequências permanecem pouco debatidas. A atividade se aprofundou neste tópico, promovendo dois momentos de mesa redonda. O primeiro provocou: “o que é, como se estrutura como política e quais os impactos da bioeconomia para os povos e territórios?”. O segundo momento da atividade propôs: “Como a bioeconomia chega aos territórios e como os territórios respondem à bioeconomia?”.
Na manhã, representantes do grupo Carta de Belém que acompanharam as negociações da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 26) trouxeram contribuições do debate internacional. O esforço foi para popularizar como estes acordos, por meio dos interesses das empresas e da cooptação dos Estados pelas transnacionais, têm impactos locais. Na parte da tarde, o grupo compartilhou experiências dos impactos nos estados da Amazônia, em especial do Pará, e de outras regiões do Brasil e do Pan-Amazônico. Abordando como afetam o trabalho e o sindicalismo, e como se dá a resistência dos povos e comunidades tradicionais, das águas e das florestas, e das populações rurais e da cidade. Entrelaçando essas informações com a realidade política, a atividade expôs os desmontes das políticas públicas e como estão sendo remontadas sob uma perspectiva privatizante, como é o caso dos projetos do mercado de carbono (nos seus diferentes nomes: Redd+, NetZero, Soluções Baseadas na Natureza), além dos programas Adote um Parque e do Programa de Desestatização do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Após esse intenso encontro, o final da tarde do dia 27 contou com a apresentação do documento “Retomada Verde nas Eleições”, que traz contribuições do Grupo Carta de Belém, da qual somos parte, ao debate eleitoral e à reconstrução da política socioambiental brasileira. Considerando as crises econômica, ecológica, alimentar e sanitária e o quanto acirraram disputas e aceleraram projetos relacionados à reinvenção da economia no século X, a organização popular e propostas de projetos políticos antissistêmicos, que colocam a natureza no centro do debate e reconhecem nela valor em si, são de relevância central.
No dia 28, data de abertura oficial da X Fospa, estivemos no segundo dia do II Encontro Nacional das Atingidas e Atingidos por Barragens da Amazônia, no lançamento da campanha “Essa terra tem lei – Direitos para os povos, obrigações para as empresas“. Na ocasião foi debatida a aprovação do Projeto de Lei Marco Nacional de Direitos Humanos e Empresas (PL 572/2022), construído a partir do debate e da articulação de diversos movimentos sociais e organizações.
O PL 572 tem como objetivo garantir que as grandes empresas sejam responsabilizadas pelos seus crimes e pelos impactos nocivos que provocam nos territórios e nas suas populações. É um passo a mais na luta pela reparação histórica para os povos quilombolas, indígenas, ribeirinhos e tradicionais.
No lançamento foram abordadas as origens do projeto, que tem em sua formulação aprendizados históricos da luta do Movimento de Atingidos por Barragens, como os direitos à moradia, auxílio emergencial, reassentamento e acesso à água. Também foi pautada a relevância da iniciativa e a necessidade da mobilização popular, tanto para fazer com que o projeto seja aprovado, como para assegurar que ele siga sendo um instrumento na luta pelos direitos dos povos.
A dimensão dos impactos causados por megaprojetos, que visam a mercantilização da natureza e se inserem ainda em um contexto de privatizações, é incalculável. Os efeitos negativos, muitas vezes irreparáveis, transbordam para as relações de trabalho, relações comunitárias, para os os povos, rios, matas, solos, atmosfera e modos de vida e produção conectados à natureza, que dependem de sua preservação para existirem. Iury Paulino, integrante da coordenação nacional do MAB, levantou essa discussão: “Como mensurar os problemas que assolam os atingidos e as atingidas? Como medir o valor da perda de entes queridos, de amores da vida, ou da própria vida?”, questionou.
Em sua fala, Iury relatou a história de sua família, que perdeu suas terras, produção agrícola e o conforto ao ser atingida pela Barragem do Açude Castanhão, no município de Jaguaribara (CE). O saldo foi ainda pior: a morte de seus avós. Sem terras, sem os modos de vida e sem reparação alguma por parte da empresa ou estado, a família se viu obrigada ao deslocamento forçado da área rural para a cidade, o que acarretou em diversas privações e no adoecimento mental e morte dos avós de Iury. “Como você calcula o que representou a morte do meu avô Luiz e da minha vó Maria, chamada de Dona Nenê pela minha família? Isso é uma dimensão que é incalculável quando se pensa em indenizar ou reparar isso. Como você calcula as perdas de uma comunidade que viveu cinquenta, cem anos em determinado lugar, tem seus entes queridos lá e foi obrigada a se mudar? Isso não tem como calcular”, evidenciou.
Os grandes índices de depressão e suicídio em regiões afetadas por barragens também foram um ponto levantado por Iury, trazendo a tona a necessidade urgente de amparo para as populações que ali vivem e de repensar esses projetos. “Imagine você o que é uma pessoa que mora abaixo de uma barragem depois de ter visto as de Brumadinho e Mariana se romper. Como é que você consegue dimensionar o sofrimento de uma pessoa dessas? Já vi companheiras que os filhos não conseguem dormir. Não é só a dimensão do que é material, não é só ficar sem a casa, não é só ficar sem a terra. Às vezes isso não aparece. Mas a dimensão sentimental é muito profunda”, ressaltou.
Daniel Gaio, da Central Única dos Trabalhadores (CUT Brasil), comentou sobre a cooptação do capitalismo quanto a pautas centrais a respeito da emergência climática. Como é o caso da captura da pauta de descarbonização por parte do capitalismo verde e da economia verde. “Um cenário muito adverso no Brasil e no mundo, requer ainda mais luta e unidade. Por tanto esse encontro e esse PL são muito importantes para o Brasil voltar a trazer esperança para o mundo”, expôs.
Letícia Paranhos, da coordenação internacional de resistência ao neoliberalismo da Amigos da Terra Internacional, pontuou a importância desse PL: “As empresas são mais fortes do que muitos Estados, resulta que o crime delas compensa. Mas assim como há violações há resistências”. Alertando que a lei, assim como as pautas centrais do nosso século, pode ser cooptada, esvaziada e utilizada de forma arbitrária, Letícia apontou que o sucesso desta ferramenta necessita de organização popular e pressão coletiva. “A gente sabe que só a lei não garante. O que garante é a luta para assegurar que não seja esvaziado nas várias comissões que irá tramitar, para garantir que a lei continue forte e um instrumento eficaz”, resumiu. Ana Luisa Queiroz, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), complementou a ideia: “A gente vai precisar de uma mobilização muito forte para que essa lei seja aprovada e continue viva”.
Tchenna Maso, doutoranda em direitos humanos e representante do Centro de Direitos Humanos e Empresas da UFJF (Homa), falou sobre a relevância do PL 572/2022 nos nossos tempos e como ele complementa a política nacional dos MAB, contando com aprendizados históricos do movimento em sua formulação, como os direitos à moradia, auxílio emergencial, reassentamento e acesso à água. Ela destacou ainda o pioneirismo do projeto e o quanto o tema é protagonista no Brasil, especialmente devido à cultura de impunidade, que não responsabiliza as empresas pela violação de direitos que comentem. Quanto a essa temática, a deputada estadual Vivi Reis (PSOL), salientou: “Não estamos falando das pequenas e médias empresas, mas sim das grandes que afetam a vidas das populações. As empresas precisam pagar pelos seus crimes com as devidas multas, devidas reparações pelos impactos na cultura e na vida das pessoas no nosso país”.
Na manhã de sexta (29), somamos no curso “Acordo Mercosul-UE: O que a Amazônia tem a ver com isso?”, promovido pela Frente Brasileira Contra o Acordo Mercosul União Europeia e EFTA Mercosul, articulação que a Amigos da Terra Brasil integra, em parceria com a Rede Brasileira pela Integração dos Povos Rebrip e Palataforma America Latina Mejor Sin Tratados de Libre Comercio. Durante a atividade, Lúcia Ortiz, presidente da Amigos da Terra Brasil, lembrou que o acordo avançou durante o governo Bolsonaro, mas com a péssima gestão e afetaria a imagem do acordo, se firmado com Bolsonaro, a ratificação aguarda o próximo governo. Na semana em que ocorreu o Fospa, o ex-ministro das relações internacionais, Celso Amorim, informou que Lula está disposto a revisar o acordo UE-Mercosul se vencer a eleição, com a inclusão de cláusulas sobre proteção ambiental, direitos humanos e tecnologia. Lúcia destacou que é importante pensar em profundidade a questão das compras governamentais, como da agricultura familiar (PNAE e PNAD), pois “quando se aumenta a concentração do poder das empresas transnacionais, se reduz a capacidade do Estado de fazer políticas de compras públicas”, observou.
A questão de acordos que legislam sobre direitos humanos e meio ambiente também gera um debate entre os países, com a sociedade civil, com os sindicatos e movimentos sociais, que reivindicam que exista uma regulação das grandes empresas. “As empresas transnacionais não podem redigir um acordo em que as populações são atingidas e não são sequer consultadas”, denunciou Lúcia. Este tratado que possar regular as empresas transnacionais em matéria de direitos humanos está em negociação no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Bem como, aqui no Brasil, o PL 572/22 propõe uma lei marco sobre direitos humanos e empresas, garantindo direitos para populações atingidas.
Lúcia lembrou da força do povo nas ruas nos países latinoamericanos, que derrotou o projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e reforçou a necessidade de engajamento popular para barrar esse acordo, que pode avançar ainda no próximo governo.
O dia também contou com a atividade autogestionada “Golpe Verde: falsas soluções para o desastre climático“. Facilitada pelo Cimi Conselho Indigenista Regional Acre, ela trouxe o contexto do avanço dos projetos de compensação de carbono na região amazônica.
Foram denunciados os projetos dos grandes poluidores do mundo, que querem compensar suas emissões comprando créditos de carbono nas áreas protegidas pelos povos que secularmente vivem com e na floresta. A proposta dos projetos de compensação de carbono transforma em produto as terras e as matas sagradas para os povos originários, quilombolas, das florestas e das águas. Tenta ainda transformar os povos da floresta em assalariados com programas de pagamento por serviços ambientais. “Há muita gente boa que acha que está contribuindo para barrar as mudanças climáticas com os programas de compensação da Uber e da Gol, por exemplo, mas não sabem como isso impacta nos territórios”, pontua Lindomar, salientando a importância de dialogar com o povo da cidade.
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Ainda dentro das atividades que a Amigos da Terra Brasil participou no 10º Fórum Social Pan-Amazônico, destacamos o momento para pensar estratégias de avanço do Projeto de Lei marco na relação Direitos Humanos e Empresas, que ocorreu na tarde de sábado (30). O PL 572/22 é uma proposta para reverter a lógica da impunidade das empresas. Ou seja, a busca é por garantir a primazia dos direitos humanos, frente a lógica empresarial de lucro a todo custo, historicamente sob custo humano e dos territórios. O projeto se propõe a dar protagonismo aos atingidos e às atingidas por empreendimentos.
Quantas casas a Vale construiu depois de Mariana e Brumadinho?, perguntou Leticia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil. “Zero! Nenhuma!”, retornou o público lembrando do maior crime socioambiental Brasileiro. A atividade propôs diálogo entre os presentes com o questionamento: o que poderia ter numa lei para fortalecer a nossa luta? A pergunta gerou um potente debate entre participantes da atividade e ajudou a popularizar o conteúdo do PL.
É preciso dar um basta nas atividades de empresas violadoras, garantindo o direito de não repetição dos crimes e, ao mesmo tempo, assegurar o direito de reparação às populações atingidas. A lei garante que se consiga avançar no processo de reparação e também no direito de dizer não a empreendimentos violadores.
Nessa linha, a lei propõe que as empresas apresentem relatório a cada seis meses para os/as atingidos/as, em diálogo com CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos) e Defensoria Pública. A empresa precisa também garantir uma assessoria técnica independente, antes mesmo da chegada do empreendimento. Diferente do que ocorreu no caso da Vale em que a Fundação Renova, ao invés de assegurar a reparação dos atingidos na bacia do Rio Doce, apenas “renova as violações”, como dizem as populações atingidas.
A lei estabelece as diretrizes, mas é importante a mobilização das comunidades organizadas para garantir seus direitos, de acordo com o que faz sentido para o seu contexto. Assim, a Lei nasce de uma articulação popular e segue com a necessidade da luta popular para ser implementada. Direitos para os povos, regras para as empresas!
Desde de distintas localidades, a luta dos povos se mostra a mesma: defesa de seus direitos à vida e ao território, e de viver os seus modos de vida frente ao avanço da financeirização da biodiversidade. E neste conjunto de contextos, a articulação para o enfrentamento é fundamental. Nossa participação no Fospa deste ano encerrou. Mas o encontro dos povos vai além das fronteiras e se faz na luta diária travada nos territórios. Seguimos!
**Confira também a coluna As vozes da floresta se insurgem por um outro Brasil, publicada no jornal Brasil de Fato em 02/08/2022
**E aqui você sabe mais sobre o X Fospa na coluna Do coração da Amazônia pulsa um projeto popular, publicada no jornal Brasil de Fato em 04/08/2022