Seminário “Direitos Humanos e Empresas” evidenciou a relevância do PL 572/22 na defesa dos direitos humanos

Realizado em Brasília, evento abordou projeto de lei que propõe políticas públicas para coibir a violação de direitos humanos por empresas, trazendo ainda a importância de sua implementação e os desafios na atual conjuntura política 

Dos dias 14 a 16 de março , uma série de atividades compuseram o “Seminário Direitos Humanos e Empresas: O Brasil na frente”. Os encontros aconteceram no prédio da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), em Brasília (DF), com atividade especial de encerramento na Câmara de Deputados. Organizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pela entidade ambientalista Amigas da Terra Brasil (ATBr), Fundação Friedrich Ebert (FES – Brasil), Centro de Direitos Humanos e Empresas (Homa),  Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Oxfam Brasil, o seminário alçou vozes que demandam direitos para os povos e regras para as empresas

A atividade contou com mesas, troca de experiências de luta, articulações e reunião com parlamentares. O  foco foi debater a importância de regulamentar a atuação de empresas nacionais e estrangeiras no Brasil , responsabilizando-as pelas violações de direitos humanos e evitando crimes, como no rompimento das barragens de rejeito de mineração nas cidades de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019), em Minas Gerais, em que as empresas Vale, Samarco e a BHP Billiton seguem lucrando, enquanto uma casa sequer foi construída para as populações afetadas. Para fazer com que as empresas respondam por crimes como esses, as diversas organizações sociais defendem a aprovação do PL 572/22 – Lei Marco Sobre Direitos Humanos e Empresas, projeto de lei de autoria coletiva que tramita atualmente na Câmara dos Deputados.

Pioneiro na forma com que se propõe, o PL 572/22 nasce da base para romper com a assimetria de poder imposta por grandes empresas. Além disso, traz três pontos fundamentais: a primazia dos direitos humanos, que passam a valer mais que os acordos de livre comércio e o interesse privado. Se aprovado, será a primeira lei do mundo a garantir obrigações diretas para as empresas. E traz a centralidade do sofrimento da vítima, que assegura o poder popular das comunidades atingidas, desde a prevenção até a reparação em termos de violações de direitos humanos. 

A assimetria de poder entre pessoas e empresas, sobretudo transnacionais, é evidente. E os impactos socioambientais da impunidade corporativa são alarmantes.  Aqui no Brasil, temos o caso do afundamento de cinco bairros de Maceió (Alagoas), devido à mineração de sal-gema da Braskem, que atingiu  cerca de 60 mil pessoas e colocou milhares em situação de deslocamento obrigatório. Os vínculos com os territórios são dilacerados pela ganância das empresas, que muitas vezes impõem a morte como imperativo na vida. Passados 5 anos, as famílias ainda cobram reparação da mineradora. 

Essa relação se torna ainda mais desigual quando essa assimetria é pautada entre sul e norte global, periferia e centro do sistema capitalista. Enquanto grandes empresas e transnacionais seguem aumentando os lucros, a base desse acúmulo de capital, que se concentra nos Estados Unidos ou em países da Europa, se sustenta na violação de direitos humanos, dos povos e da natureza. O que tem lastro na precarização das relações trabalhistas, flexibilização da legislação ambiental, desmontes de políticas públicas de seguridade, aumento da violência contra a mulher, extermínio das populações negras, indígenas e das comunidades tradicionais e periféricas. 

Os corpos, seja dos povos, seja dos rios ou das florestas, são transformados em mercadorias descartáveis em nome do lucro. Recentemente, três vinícolas da Serra Gaúcha, Salton, Aurora e Garibaldi, foram expostas por trabalho análogo à escravidão. Supostamente comprometidas com o ESG (Environmental, Social, and Governance – Ambiental, Social e Governança), alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), definidos em 2015, elas assumem em discurso que não compactuam com a violação de direitos humanos. Dizem-se, ainda, sustentáveis. Na prática, o fomento ao racismo em uma de suas formas mais nefastas, com jogadas de marketing enquanto se isentam da responsabilidade a deslocando para empresas terceirizadas. 

Abertura do Seminário Direitos Humanos e Empresas: Brasil Na Frente contou com debate sobre importância da aprovação do PL 572/22 | Foto: Ruy Conde

É preciso frear o poder das corporações e pautar o debate a partir dos direitos humanos e da vida, trazendo o protagonismo de pessoas trabalhadoras, atingidas pelas violações de direitos e de minorias sociais. É  com essa premissa que o “Seminário Direitos Humanos e Empresas, o Brasil na Frente” apresentou ferramentas, acúmulos e como avançar na luta pela garantia dos direitos humanos. Os debates foram intensos, sobretudo em um cenário de disputa nacional e internacional, que muito pauta o voluntarismo e a responsabilidade social corporativa como soluções, com práticas que não são efetivas para prevenção e tampouco para a reparação de violações de direitos humanos. 

Letícia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil e coordenadora internacional do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo da Federação Amigos da Terra Internacional, membra da Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmontar o Poder Corporativo e Por Fim à Impunidade, faz  uma síntese sobre o Seminário:  

Primeiro dia do Seminário debate a necessidade do PL 572/22 na defesa dos direitos humanos e os desafios da atual conjuntura política 

Intitulada “Direitos Humanos e Empresas: os desafios na nova etapa do Brasil”, a abertura do Seminário, que ocorreu no dia 14 de Março, contou com apresentação da problemática e da visão das novas autoridades nacionais a respeito. Estiveram presentes Silvio Almeida (Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania), Gonzalo Berrón (FES Brasil), Leandro Scalabrin (MAB), Dulce Pereira (CNDH/UFOP) e Deborah Duprat (PFDC).

Gonzalo Berrón (FES Brasil) deu um panorama sobre a conjuntura política após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Situando a relevância de diálogo com o governo sobre o tema e a importância do PL 572/22, expôs a necessidade do compromisso via Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e da construção de políticas públicas a partir dos povos em luta. 

Silvio Almeida no Seminário Direitos Humanos e Empresas: Brasil na Frente | Foto: Ruy Conde

“Do ponto de vista do governo, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, esse tema já foi escolhido como tema prioritário”, assumiu o ministro Silvio Almeida. Ele relatou que, dentro do ministério, estão sendo mapeadas iniciativas que levam em conta as experiências internacionais e nacionais, dando base a uma atuação mais acertada para assegurar direitos humanos. Revelou, ainda, que será criado um grupo de trabalho com diversos ministérios para estabelecer a inclusão do tema na Política Nacional de Direitos Humanos.

 “Queremos construir um grupo de trabalho que vai reunir outros ministérios, como da Fazenda, Gestão, Planejamento e Indústria e Comércio, para que possamos estabelecer uma conversa a fim de que a política de direitos humanos e empresas faça parte da política nacional de direitos humanos. Esta  é parte da política do governo e mais ainda, essa é uma política do estado brasileiro”, evidenciou Almeida. 

O ministro considerou que é preciso levar em conta as crises do capitalismo e os processos de financeirização, com relações de trabalho pautadas pelo mundo dos aplicativos, o que traz novos desafios para a construção de políticas que atendam aos povos e responsabilizem as transnacionais. Pontuou, ainda, a relação entre degradação do meio ambiente e violações dos direitos humanos.“Não existe possibilidade de se pensar em qualquer atividade que degrade o meio ambiente e destrua as condições do ser humano e da natureza se reproduzirem, sem pensar em violação de direitos humanos.  São fatores a levarmos em consideração quando pensamos em atividade empresarial”, destacou.  

Almeida concluiu sua fala notabilizando que existe profunda divergência entre países da Europa, os Estados Unidos e países do Sul Global quanto a tratados internacionais a respeito, e que é preciso pautar a partir do Brasil uma resposta. “Essa discussão hoje sobre estabelecer um tratado internacional com regras mais claras, evidentes, está sendo colocado pelo Equador e pela África do Sul. O Brasil, dado seu tamanho e importância, não pode ficar de fora dessa discussão”, defendeu. Para ele, a participação e a incidência da América Latina no debate é crucial. “A humanidade é produzida a partir de uma série de processos na qual a economia é fundamental. Então a discussão sobre uma regulação internacional  interfere de forma brutal na maneira em que vamos fazer a  nossa política em âmbito nacional. Temos que ficar muito atentos a isso”, sintetizou.

Leandro Scalabrin, advogado do Coletivo de Direitos Humanos do Movimento das Atingidas e dos Atingidos por Barragens (MAB), deu sequência  evidenciando que as violações de direitos humanos pelas empresas no Brasil são estruturais. Apontou que perpassam a economia, a política e as subjetividades, conformando uma racionalidade específica e violenta.  “Estando enraizadas na atividade econômica empresarial, as violações de direitos humanos  perpassam a política. O grande número de empresários no Congresso revela esse controle sobre a política. Portanto, precisamos combater de forma estrutural essa violação de direitos humanos por empresas, por meio de um marco regulatório forte”, argumentou. 

Trouxe a realidade dos atingidos, mencionando que no caso das barragens isso ocorre de forma significativa. “Os projetos de investimento de empresas no setor energético possuem um marco normativo fortíssimo. Anualmente, há aprimorações desse marco regulatório que garantem os investimentos das empresas no setor elétrico brasileiro por trinta anos”, explanou. Contextualizou ainda com o  trabalho realizado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH – atual CNDH), que constatou um padrão de violação de Direitos Humanos nos empreendimentos do setor elétrico tanto no processo de planejamento quanto de construção e de operação. “É esse padrão que permite o lucro da empresa, ao não internalizar os custos sociais,  ambientais,  trabalhistas e os custos como os direitos dos atingidos. A violação de direitos por empresas no Brasil é estrutural, assim como a impunidade delas.Queremos, no mínimo, um marco normativo. Porque para as empresas tem, mas para os atingidos não tem”, expôs, defendendo a aprovação do PL 572/22 para regulamentar a atuação das empresas do setor elétrico. 

Dulce Pereira, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), membra do Grupo de Trabalho de Proteção do Direito de Pessoas e Corporações no Conselho Nacional Direitos Humanos (CNDH) e do Movimento Negro Unificado, apresentou casos em que cientistas com análises rigorosas foram desconsiderados ou silenciados em suas pesquisas. Denunciou que existe uma ciência hegemônica que corrobora com as violações em prol do lucro das empresas. Essa naturalização da violência já inicia na Academia, em que na prática muitos alunos, sobretudo jovens, passam a considerar normal e aceitável o processo de espoliação com a mineração na Amazônia, por exemplo. Um dos resultados prático dessa lógica é o extermínio dos povos originários, que vemos hoje no país. 

A ciência que não leva em conta os direitos humanos, dos povos e da natureza é um pilar para a reprodução das violações. Dentro dessa premissa, está a incidência do mundo privado em universidades públicas, a mercantilização do conhecimento e as patentes, além da produção de pesquisas pagas por corporações, falsas informações e a perseguição de pessoas defensoras de direitos. Pontos que também expõem os impactos da atuação de grandes empresas na naturalização da violência, assim como no ocultamento de dados científicos reais sobre a qualidade dos solos, das águas e sobre a saúde humana e ecossistêmica. O que dificulta, inclusive, a produção de políticas assertivas. “O fato é que a relação das empresas com o sistema de justiça e com a ciência é norteada, desenhada por esse processo de desumanização”, comentou Dulce. 

Na expansão de seu poder econômico, social e político, as grandes corporações travam uma guerra em condição desigual contra os povos, utilizando de uma arquitetura de impunidade para saírem ilesas: negam seu envolvimento, evitam a responsabilidade com acordos em tribunais de arbitragem internacional, manipulam pesquisas científicas, disseminam falsas informações, criminalizam e perseguem defensores dos direitos humanos e enfraquecem comunidades. “Essa hegemonia é mantida pelo ecocídio porque mata, e interessa para eles matar o território. Ela se mantém pelo epistemicídio, matando o conhecimento das pessoas. E ela se mantém também pelo etnocídio, pela eliminação de pescadores, caboclos, negros, indígenas”, explicou Dulce quanto à manutenção da hegemonia corporativa, que utiliza do extermínio para condicionar os territórios e os seus povos a um modo único, o da mercadoria. 

A devastação dos territórios para a extração de recursos, como se fossem intermináveis quando na verdade o planeta é finito, nos traz a outro ponto do debate, que é o aniquilamento das próprias condições de vida na terra. Sem florestas, água potável e solo fértil, não há vida possível. Quanto a isso, Dulce rememorou as falsas soluções, como delimitar uma área específica de impacto, quando a natureza não se estabelece nas mesmas premissas das fronteiras geográficas criadas pelo colonialismo: “Se as partículas que estão no Deserto do Saara chegam na Amazônia e interferem na polinização da Amazônia, como é que você vai dizer que dez metros ou cem metros, que é o que chamam buffer, é área que vai ser ser definida como área de atingidos?”, questionou. 

A advogada e vice-procuradora-geral da república (2009 a 2013), Deborah Duprat, celebrou o momento com alegria. “A gente volta, de alguma maneira, a um regime de direitos que foi suprimido na gestão Bolsonaro. Temos que pensar que ele acabou com todas as capacidades institucionais de promover políticas públicas de Direitos Humanos”, ponderou. Das violações ocorridas nos últimos anos, ela relembrou do golpe na Constituição em 2016 e 2017: “Falo da Emenda do Teto de Gastos e muito particularmente sobre a Reforma Trabalhista, endossada pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente naquilo que ela tem de mais perverso, que é a fragilidade da luta coletiva e dos sindicatos, a precarização do mundo do trabalho, a terceirização. Que permite que atos recentes, como o de escravidão, retornem à prática econômica”.  

Em sua fala, mencionou ainda como a incidência do neoliberalismo, que reduz tudo à individualização exacerbada e à fragmentação da coletividade, influenciou na permissividade das violações de direitos. Frente à dificuldade de regulamentar setores econômicos nessa nova realidade, como o caso dos aplicativos, ela considera o momento apropriado para regular empresas e direitos humanos, e para isso defende a luta pela aprovação do PL 572/22 como marco regulatório. Um projeto que, como ela mencionou, traz a centralidade da vida e do direito humano, um princípio constitucional que orienta também a ordem econômica. Ainda  lembrou que o Brasil assinou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o que obriga as empresas, antes do início de qualquer atividade, a consultar livremente, previamente e de maneira informada, aos povos indígenas, povos e comunidades quilombolas e comunidades tradicionais. “Temos um legado de atividades que vão deixando uma legião de atingidos sem a devida reparação. E há um norte no PL 572 que me parece importantíssimo, que é o direito à verdade. A reparação é um imperativo para que a vítima e seus familiares saibam o que realmente aconteceu. E para a empresa tem um caráter pedagógico da não repetição, de saber enfrentar a verdade para não repeti-la. A centralidade dos atingidos”. Sobre o PL 572/22, resumiu que “avança em todas as linhas: na prevenção, na promoção e na reparação de violações de direitos humanos”.


O segundo momento que marcou a data, contou com a mesa “A necessidade da Lei Marco de Direitos Humanos e Empresas como norma clara e eficaz para a defesa dos direitos humanos no Brasil”. Nela foram apresentadas e debatidas as novas e velhas realidades das violações de direitos humanos por empresas no Brasil, apontando desde a perspectiva da sociedade para os diversos setores econômicos e sociais que a temática perpassa. Jandyra Uehara (CUT), Cláudia Ávila (MTST RS), Gabriel Bezerra (CONTAR) e Mariana Vidal (CPT NE) compuseram palestras a respeito, contextualizando o tema a partir de violações que ocorreram em seus territórios. Também foram propostas ferramentas e mecanismos para assegurar justiça para os povos em luta.

Durante o primeiro dia do Seminário, ao encerrar a sua fala, a professora Dulce parafraseou uma entrevistada de uma de suas pesquisas quanto aos impactos da mineração. As palavras da atingida exclamam: “O amor foi tirado da nossa vida. Sem rio, sem plantas para benzer e banhar, sem peixes. Filhos e maridos deprimidos e problemáticos. Amigos divididos. Sem dinheiro para a sobrevivência. Sem alegria. Portanto, sem direito”. As violações de direitos cometidas por empresas e transnacionais despedaçam o cotidiano, os laços comunitários e, muitas vezes, a possibilidade de celebrar a vida. Mas é possível romper com as assimetrias de poder e construir outro horizonte, assegurando não só direitos, mas memórias pautadas na alegria. Ferramentas jurídicas como o PL 572/22 são um passo importante nessa jornada. A mobilização e organização popular em torno do tema, e indo além dele, podem ditar os rumos do futuro. Um futuro em que o amor é devolvido à vida, e a vida flui livre pelos rios, matas, rezas e alegrias coletivas. Os povos precisam ter os seus direitos assegurados, e as empresas precisam, urgentemente, serem responsabilizadas por seus crimes.

Clique aqui e assista a cobertura em vídeos desse momento!

Nos dias 15 e 16, os debates do “Seminário Direitos Humanos e Empresas: O Brasil na Frente” seguiram em proposição de como construir articulações para promover a centralidade da vida, responsabilizando as empresas por suas violações. Acompanhe as nossas redes sociais e confira os nossos conteúdos especiais sobre o Seminário, onde vamos adentrar o tema da impunidade corporativa, das falsas soluções, a relevância da aprovação do PL 572/22 e como os povos vêm atuando para desmantelar o poder corporativo e por fim a impunidade.

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