Entidades pedem arquivamento de projeto que prorroga uso do carvão no RS

Durante reunião plenária realizada na noite desta segunda-feira (6) na sede do Cpers Sindicato, em Porto Alegre, o conjunto de entidades que forma o Comitê de Combate à Megamineração do Rio Grande do Sul deliberou, por unanimidade, por solicitar o arquivamento do Projeto de Lei do Senado nº 4.653/2023, que visa incluir “a região carbonífera do Estado do Rio Grande do Sul” na Lei Federal 14.299/2022, que criou o “Programa de Transição Energética Justa (TEJ)”. Na prática, destaca o documento divulgado pelo Comitê, “essa lei esvazia de sentido e utiliza de maneira contraditória o termo Transição Energética Justa para maquiar de verde a continuidade da exploração e queima do carvão mineral”.

Confira, abaixo, a íntegra da manifestação:

O PL 4.653/2023 traz injustiça socioambiental e agrava o problema climático
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Recentemente, foi apresentado no Senado Federal o Projeto de Lei 4.653/2023, de iniciativa dos três senadores do Rio Grande do Sul (Paulo Renato Paim – PT, Hamilton Mourão – Republicanos e Luiz Carlos Heinze – PP). O projeto visa incluir “a região carbonífera do Estado do Rio Grande do Sul” na Lei Federal 14.299/2022 (do período Bolsonaro), que criou o “Programa de Transição Energética Justa (TEJ)”. Na prática, essa Lei esvazia de sentido e utiliza de maneira contraditória o termo Transição Energética Justa para maquiar de verde a continuidade da exploração e queima do carvão mineral.

A proposta objetiva, única e exclusivamente, a manutenção da queima subsidiada do carvão mineral, com destaque à Usina Termelétrica de Candiota III – Fase C, como fonte de geração de energia fóssil, “provavelmente” até 2040, momento no qual finalizaria a exploração do carvão da região “para este fim”. Pretendem explorar o carvão até exaurir as jazidas, negando seu papel destrutivo e poluidor nas mudanças climáticas?

O PL 4.653/2023 não aponta nenhuma meta para a transição energética justa e verdadeira, somente empurra com a barriga o incentivo ao uso do pior combustível fóssil por mais uma década e meia e tenta pegar carona na questionável Lei 14.299/2022 (objeto da ADI 7.095 no STF). A referida lei garante subsídios aos combustíveis fósseis até 2040, neste caso os incentivos são ao complexo termelétrico Jorge Lacerda, no município de Capivari de Baixo (SC), obtidos pelo lobby do setor de empresas carboníferas de Santa Catarina. Cabe destacar que os subsídios anuais para o uso do carvão mineral como fonte de energia ultrapassam 700 milhões de reais e são pagos por todos nós através de taxas que encarecem nossa conta de luz.

Sem questionar se os níveis de emprego e desenvolvimento da região são compatíveis com os grandes lucros do setor carvoeiro, a principal justificativa explicitada neste PL seria evitar desempregos e não comprometer a economia no município de Candiota e região, caso a queima do carvão mineral fosse interrompida de forma “abrupta” (sic). Os proponentes ancoram neste ponto a utilização do termo “justa”, ao tratar da necessária transição energética em direção à descarbonização. De fato, um dos pontos para que a transição seja justa é ser inclusiva com os trabalhadores e não contra eles. Entendemos que um dos objetivos deve ser prevenir a perda de empregos, mas não só isso. É preciso um planejamento concreto no sentido de criar novos postos de trabalho de qualidade. Porém, a proposta não apresenta, muito menos vincula a continuidade da queima subsidiada de carvão ao planejamento e desenvolvimento das necessárias, possíveis e diversas mudanças na matriz econômica e produtiva da região. Além disso, a transição deve ser justa com todas e todos, não somente com os empregos locais e com os grupos econômicos que lucram com o carvão.

As mudanças climáticas em curso nos colocam diante da tarefa inadiável de promover, nos próximos dez anos, uma profunda mudança no atual modelo de produção e consumo. Pensar, neste momento, em manter e expandir empreendimentos de megamineração e queima de carvão é comprometer as condições de vida desta e das futuras gerações a nível global, mas também a nível local, pois essas atividades estão diretamente relacionadas a pioras na qualidade ambiental e, consequentemente, de vida da população residente nos territórios onde se localizam tais estruturas.

O PL desconsidera totalmente o contexto da emergência climática e do aumento de contaminação ambiental local e regional decorrente das atividades ligadas a este combustível fóssil altamente poluente.

No que se refere aos Gases de Efeito Estufa (GEE), é importante assinalar que os combustíveis fósseis, em especial o carvão, vêm causando o agravamento de eventos climáticos destruidores da natureza e das condições de vida. As usinas térmicas de Candiota foram consideradas, no ramo de termelétricas, as principais responsáveis pelos gases de efeito estufa no ano de 2022 no Brasil, segundo recente estudo do Instituto Energia e Meio Ambiente (IEMA).

É incontestável o quadro de agravamento da crise climática, decorrente do aumento dos gases de efeito estufa emitidos pela queima de combustíveis fósseis que não param de crescer. A quantidade de gás carbônico na atmosfera do planeta já chega a 420 partes por milhão, o que não tem precedentes nos últimos 800 mil anos. Estimativas de recente trabalho científico (Ripple et al. 2023) levantam a possibilidade muito provável de que a quantidade de CO2   na atmosfera possa ultrapassar valores maiores do que nos últimos 100 milhões de anos. O ano de 2023 já é considerado o ano com maior temperatura média já registrada da atmosfera do planeta, segundo a Organização Meteorológica Mundial. Recentemente, tivemos no Rio Grande do Sul eventos climático-ambientais de dimensões dramáticas e inéditas, em decorrência do fenômeno El Niño, nas regiões da bacia do Guaíba, Taquari e Litoral Norte. Em outubro, os rios do Amazonas passaram secas extraordinárias e por níveis até então nunca vistos. O aquecimento global e as mudanças climáticas já estão sem controle e talvez correspondam aos maiores problemas ambientais atualmente.

Quanto aos poluentes do carvão (térmicas ou mineração), a poluição não se dá somente por gases tóxicos (gases de nitrogênio, enxofre, ozônio e monóxido de carbono, etc.), mas também por particulados (poeiras oriundas da mineração, transporte, trituração e beneficiamento). Ambos os processos geram metais pesados (mercúrio, chumbo, cádmio, arsênio, cromo, etc.), que, no conjunto, provocam doenças graves e múltiplas às pessoas, principalmente em crianças. Cabe destacar que as crianças em Candiota apresentam internações por problemas respiratórios elevadíssimos (54%), sendo 6,3 vezes mais do que Esteio, por exemplo, segundo o Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS) da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul. Diversos trabalhos científicos realizados nas regiões carboníferas do RS apontam, também, problemas da saúde (dentição) de bovinos decorrentes do flúor; contaminação de ovos de galinha com chumbo, cádmio e flúor; genotoxicidade em amostras de carqueja; citotoxicidade e fitotoxicidade das águas superficiais; genotoxicidade em células sanguíneas, fígado, rim e pulmão de roedores nativos (Tuco-Tuco). Além de já terem sido identificados efeitos genotóxicos do carvão em trabalhadores de Candiota que foram expostos ao carvão como parte de sua ocupação, com significativo aumento de danos em células linfócitas e bucais, além de outros problemas. Bigliardi et al. (2020) avaliaram parâmetros hematológicos e bioquímicos em residentes (há mais de dez anos) de Candiota, Pedras Altas e Aceguá e sua relação com a qualidade do ar da região. Os resultados sugerem uma possível influência de MP10 (materiais particulados inaláveis menores que 10 micrômetros) na função hematológica, especificamente em hematócrito, entre os residentes. Uma importante percentagem desta população demonstrou alteração nos parâmetros hematológicos (43,1%) e função do fígado (30%). Entre as três cidades, a população de Pedras Altas parece ter um maior comprometimento dos parâmetros sanguíneos avaliados.

Como agravante, a própria Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) admite que o carvão gaúcho é de má qualidade, possuindo muito enxofre (poluente em maior quantidade) e mais de 55 % de cinzas, o que requer custos elevadíssimos de tecnologia na redução de sua poluição.

Destacamos também que a justificativa do PL, bem como os discursos de seus defensores resgatam a Lei Estadual 15.047/2017, que criou aPolítica Estadual do Carvão Mineral e instituiu oPolo Carboquímico do Rio Grande do Sul. A implantação de um Complexo Carboquímico na região e o desenvolvimento de uma indústria de gás sintético derivado do carvão mineral localtêm sua viabilidade econômica e socioambiental altamente questionáveis:

  1. Não há demonstração da viabilidade industrial de uso do carvão gaúcho (de má qualidade) para gaseificacão;
  2. Não há especificação do tipo de planta carboquímica a ser adotada para o carvão gaúcho;
  3. Não há indicação de viabilidade econômica sem os subsídios atuais, nem da fonte de recursos necessários (na casa dos bilhões de dólares) para o desenvolvimento das atividades previstas de incremento do uso diversificado do carvão;
  4. Não há estudo da viabilidade ambiental de uma planta carboquímica em Candiota, que além da liberação ainda maior de poluentes, implicaria em altíssimo consumo de água e energia.

É de conhecimento público que as indústrias carboquímicas dos EUA e China apresentam prejuízos bilionários nos últimos anos, problemas operacionais (como corrosão em gaseificadores e dificuldades para tratar efluentes), denúncias de danos ambientais (como vazamento de sulfato de hidrogênio, fortes emissões de enxofre) e estudos que apontam alta emissão de CO2 e uso elevado de água e energia para a produção do gás sintético. Em fim de ciclo de investimentos nessas tecnologias obsoletas, esses países nada têm a perder ao exportar o que lá já se pode considerar sucata, enquanto aqui brindam como modernidade ilusória.

Cabe destacar que essa Lei Estadual 15.047/2017 foiaprovada em regime de urgência, portanto sem debate com a sociedade, no apagar das luzes do governo deJosé Ivo Sartori (MDB), contrapondo-se à anterior Lei 13.594/2010, que estabelece a Política Gaúcha de Mudanças Climáticas. O atual governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), apesar de ter mudado seu discurso (após a tentativa frustrada de implantação da Mina Guaíba), na prática não apresenta nenhum esforço no sentido de revogar a Lei do Polo Carboquímico, ou de limitar a exploração e queima do carvão mineral no RS, ao contrário, faz movimentos ativos na busca por investidores nestas áreas, através do programa InvestRS.

Portanto, fica evidente que esse desastroso projeto de lei representa um risco ainda maior de expansão da mineração predatória e insustentável no Rio Grande do Sul, correspondendo a um enorme retrocesso nas políticas de redução de uso de combustíveis fósseis, em face da liderança retomada pelo Brasil no que toca aos acordos internacionais (COP). A contradição é explícita quando a proposta dá destaque à “valorização” do carvão, sem prever o resgate das vocações socioeconômicas do Pampa, como a pecuária familiar, seus produtos derivados, a apicultura, a olivicultura, o turismo rural e ecológico, crescentes, ou mesmo o estabelecimento de uma potencial indústria de equipamentos ligados às fontes de energias renováveis necessárias e urgentes (eólica, solar, bioenergia diversificada), importantes desde que desenvolvidas e implantadas a partir de uma lógica socioambiental e não predatória.

Assim, o Comitê de Combate à Megamineração do Rio Grande do Sul, que reúne mais de 100 entidades e movimentos organizados do Estado, vem solicitar o arquivamento do Projeto de Lei do Senado nº 4.653/2023, reivindicando um amplo debate sobre uma transição energética justa e verdadeira, que aponte para os modos de vida diversos (sociobiodiversidade) da região e suas vocações econômicas locais, com apoios, inclusive financeiros, de parte dos governos (federal, estadual e municipais), quiçá internacionais, no esforço coletivo para o combate urgente aos gases de efeito estufa e na melhoria da qualidade de vida para todas e todos.

Comitê de Combate à Megamineração no RS

Porto Alegre, 06 de novembro de 2023

 

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