O texto abaixo integra a campanha #MundoSinMuros que foi publicado em inglês no dia 9 de novembro de 2019 no marco dos 30 anos da queda do muro de Berlim. O objetivo da Campanha contra o Muro do Apartheid está alinhado com o desejo palestino de libertação. É um movimento de base que une a luta dos comitês populares nas aldeias, campos de refugiados e cidades que lutam contra o Muro, construindo alianças na sociedade civil palestina e nos movimentos globais de justiça social. Hoje, dia 30 de março, publicamos o texto em português para somar ao chamado da 5ª Ação Feminista da Marcha Mundial de Mulheres para a Ação das mulheres pela autodeterminação dos povos no Dia da Terra Palestina. Estamos juntas com as companheiras da marcha na resistência ao capitalismo patriarcal e racista que impõe fronteiras e muros e seguiremos em marcha contra os ataques do capital até que todos os povos sejam livres!
Na linha do horizonte, há um muro. Está longe, distante da maioria de nós. Mal o enxergamos, porque acreditamos não fazer parte de nossa realidade. Mas isso é mera ilusão: todo muro nos diz respeito, nos pertence. Então, é importante que apertemos nossos olhos e vejamos melhor. O que é, afinal, aquele paredão maciço no fim da paisagem? De longe, até lembra uma floresta, mas não é nada mais que uma plantação que não deveria estar ali. Com sua voracidade, acabam com o solo, com a água, com a vida no campo. Convertem ricos campos nativos em desertos inóspitos, em que nada cresce, a não ser o lucro de alguns poucos. Tornam reféns as comunidades que lá habitam, que ficam dependentes de uma única fonte para saciar seu desejo de uma vida melhor, encarando a truculência dos bancos ou das balas de jagunços quando rejeitam esse projeto. Muitos não resistem ao ver esse muro se levantar sobre suas terras e partem – do campo para a cidade, onde novos muros os bloqueiam. Podemos vê-los nas monoculturas de eucalipto para a indústria da celulose, nos extensos cinturões agrícolas, em que a soja, a cana-de-açúcar e o milho degradam nossas diversas paisagens, e na queima do Cerrado e da Floresta Amazônica para criação de gado bovino, dizimando ecossistemas inteiros, juntamente às comunidades indígenas e quilombolas que lá habitam. Um muro de morte se ergue no horizonte e nós precisamos derrubá-lo.
No final da rua, há um muro. Embora esteja logo ali, mal o notamos. Naturalizamos os longos e altos muros das cidades. Erguidos pela especulação imobiliária, pelas grandes empresas, pelo Estado, recortam a cidade e restringem o acesso e o movimento. Já envolvem até mesmo nossos parques e nossos rios. Negam a cidade a quem não pode pagar por ela, a quem não quer lucrar com ela. A quem deseja apenas existir e desfrutar de um convívio cidadão com seus vizinhos, seus conterrâneos, seus amigos e colegas. Isolam populações e criam ambientes artificiais de prosperidade e miséria que não se comunicam, não se enxergam e não se ouvem, mas se reforçam. Tomam os centros, deixam nossas cidades inseguras, feias e impessoais. Podemos vê-los no muro que se ergue na expansão de um aeroporto – e expulsão de uma Vila Nazaré inteira – em Porto Alegre, nos inúmeros parques cercados em todo o país, nos condomínios de luxo que ocupam irregularmente áreas públicas e isolam comunidades de seus bens naturais. Um muro de exclusão se ergue no final da rua e nós precisamos derrubá-lo.
Logo em frente à porta, há um muro. E o que acontece dali para dentro sempre dizem que não é da nossa conta. Mas, por ser um muro, nosso muro, nos diz respeito também. E o que ocorre atrás desse muro é perverso e doentio. Violências, violações, abusos. Controle, opressão, ridicularização. Possessividade, desmandos, desatinos. Mulheres e crianças sofrendo constantemente os transtornos do machismo, calcada na violência e no silenciamento sistemático, na brutalidade e no controle, chanceladas por um sistema patriarcal sustentando e sustentado pelo sistema capitalista e por um pacto social escancaradamente desigual. Engana-se, porém, quem pensa que esse muro é físico e que o problema está apenas dentro de casa: ainda que a grande maioria dos casos de agressões aconteçam no ambiente doméstico e por pessoas conhecidas das vítimas, esse muro sutil acompanha mulheres e crianças onde quer que elas vão. São milhares de mulheres espancadas a cada 15 segundos no Brasil, mais de mil mulheres assassinadas apenas por serem mulheres, além das incontáveis crianças que têm suas infâncias torturadas pelo abuso físico, sexual e psicológico de uma sociedade que não dá voz ao seu futuro e substitui o brincar pelo trabalhar. Um muro de violência se ergue em frente à porta e nós precisamos derrubá-lo.
Em frente aos nossos olhos, há um muro. Um muro sutil, erguido pela indiferença e pelo individualismo fomentados pela cultura do capital. Muro que recobre nossos olhos frente o desespero do próximo, que passa fome e humilhação nas esquinas, em frente aos bancos e mercados, implorando com seus olhos e suas mãos por ajuda, por reconhecimento. Mas o muro em frente aos nossos olhos os torna invisíveis: para cada um de nós, para as empresas, para o Estado. Quando os vemos, só enxergamos os problemas. E os seres humanos que ali estão continuam invisíveis, assim como suas vulnerabilidades – fome, doença, insegurança, desconfiança. Mas, também, seus sonhos roubados, seus momentos de alegria escondidos. O aumento da desigualdade social e o aumento da população de rua em até 100% em 3 anos, em uma cidade como Porto Alegre, evidencia o que tentamos não ver. Um muro de invisibilidade se ergue em frente aos nossos olhos e nós precisamos derrubá-lo.
Dentro das nossas cabeças, há um muro. Um muro imaterial que impede nossas trocas, distorcem nossas relações e dificulta nossa compreensão de nós mesmos. Que contém nossas ideias em caixas estanques e nos aprisionam às mesmas ações infrutíferas e viciadas. Nos encerra em bolhas reais e virtuais, em que só falamos as mesmas coisas, mantemos as mesmas discussões, encontramos as mesmas pessoas. Estampa a ansiedade, a depressão e a raiva que nos acomete em profusão epidêmica. Nos dirige à loucura, à apatia, à falta de convívio social. Interdita o diálogo, polariza nossos atos e torna a violência e ódio uma opção política. Um muro de sofrimento se ergue dentro das nossas cabeças e nós precisamos derrubá-lo.
Um muro, contudo, é uma criação humana. Está sujeito a falhas, portanto. E, se observarmos suficientemente de perto, veremos que nenhum desses muros é sólido, rígido e coeso o suficiente: em todos eles, há frestas. Em cada fresta, alguém resiste a esses muros. Resistência que se mostra em ações, muito mais concretas do que esses muros que se erguem contra nossa vontade. Em movimentos agroecológios, de soberania alimentar e reforma agrária de base popular. Nos diversos grupos e comunidades populares que resistem à gentrificação das cidades e gritam bem alto que as cidades também lhes pertencem. Nos incontáveis movimentos feministas que se proliferam ao redor do mundo, na força das mulheres que resistem à tomada de seus corpos, mentes e corações e seguem na luta, em busca de melhores condições de vida e de seus sonhos. Nas muitas iniciativas de inclusão social de pessoas em situação de vulnerabilidade social, em que essas pessoas têm a oportunidade de comer, se abrigar e se relacionar de uma maneira solidária, muitas vezes até mesmo descobrindo um novo ofício. Nos grupos de apoio psicológico, que acolhem as pessoas e oferecem um espaço de conversa franca e reconhecimento mútuo.
Quanto maiores forem os muros, mais frestas eles terão. Se os muros nos cercam, devemos manter conosco a esperançosa certeza de que, um a um, eles serão derrubados. Enquanto o povo seguir de pé, eles cairão!
Campanha: https://book.stopthewall.org/