Desde 2018, a Ponta do Arado, parte da fazenda às margens do Rio Guaíba e dentro da área de preservação ambiental, é ocupada por indígenas Mbya-Guarani. Estudo antropológico entregue à Justiça Federal indica resquícios históricos de habitação indígena no local. Além disso, a área de mata e na beira do rio garante as condições necessárias para a sobrevivência dos Guarani, que já estão presentes no Extremo Sul de Porto Alegre, no bairro Lami, e próximo à região, mas já pertencendo à cidade de Viamão, nas localidades do Cantagalo e de Itapuã.
Oficialmente, tanto a empreendedora quanto a prefeitura omitem a presença dos Guarani na Ponta do Arado. Eles não constam no projeto da empresa, sequer são citados nas audiências públicas e demais debates sobre o destino da fazenda. Tampouco são levados em consideração em algum planejamento do poder público que previsse alternativas, como a manutenção da comunidade indígena junto à área de preservação na fazenda. Os Guarani estão invisíveis para a empresa, para a prefeitura e até mesmo para alguns moradores locais, que os acusam de se aproveitarem da sua condição de indígena para “invadir” a área.
A cientista social Carmen Guardiola, pesquisadora do LAE/UFRGS (Laboratório de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), acompanha a situação dos Guarani desde a retomada em 2018. Ela avalia que essa invisibilização está sustentada no preconceito quanto ao modo de ser Guarani e, especialmente, na disputa pelo território. “O ‘modo de ser’ Mbya Guarani é de territorializar por itinerância, não permanecendo por muito tempo em um determinado local, local este de seu território ancestral. Com o avanço da urbanização sem planejamento, que reduz as matas e a área verde, fica muito difícil para os Guarani encontrar territórios livres da propriedade privada ou do Estado, ambos interditados a eles. Estão na Ponta do Arado porque é território ancestral, região de mata e rio, com os elementos ambientais próprios ao seu modo de ser”, explica.
Ambientalistas e demais apoiadores denunciam ser intencional o fato de a Arado Empreendimentos omitir a presença dos Guarani na área, pois ao estarem invisíveis frente à opinião pública eles ficariam mais fragilizados e cederiam a pressões para não buscar seus direitos previstos na Constituição Federal. A pressão é provocada, na maior parte, pela própria empresa, que tenta expulsar os indígenas para avançar com o projeto do bairro planejado, empregando para isso até agressões e violência. A Arado Empreendimentos contratou uma empresa de segurança privada e montou um posto a 10 metros da retomada. Esses seguranças faziam ameaças verbais, provocando terror e infligindo violência psicológica aos Guarani. Também foram alvo de ataque com arma de fogo, comprovado em investigação policial posterior, e ameaçados por pessoas que andaram entre as barracas dizendo que da próxima vez “iriam matar todo mundo”. A Arado ainda instalou uma cerca com sensor de movimento para monitorar os indígenas, deixando-os confinados em um espaço de 20x100m; concretou poço artesiano e não permitiu outros acessos para buscar água potável, proibiu que buscassem lenha e isolou a aldeia a tal ponto que apenas podia ser acessada de barco pelo Guaíba, entre outras ações. A empresa também identificou apoiadores da retomada que acessaram o local para ajudar os Guarani e os arrolou em ação judicial, na tentativa de criminalizá-los. Essa situação de cercamento gerou um “confinamento desumano” segundo a própria Justiça, que em Janeiro de 2020, numa decisão do TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) determinou a retirada da cerca junto ao acampamento Guarani na Ponta do Arado e exigiu que a empresa respeitasse o direito de ir e vir dos indígenas e o acesso à água.
Outra frente de ataque da Arado Empreendimentos é a jurídica. Assim que os Guarani ocuparam a área em 2018, a empresa ingressou com pedido de interdito proibitório e de reintegração de posse na Justiça Estadual, obtendo uma liminar favorável. No entanto, a decisão foi suspensa, e o debate jurídico transferido para a Justiça Federal, pois a questão dos territórios indígenas é de âmbito federal. Atualmente, o processo de demarcação encontra-se na fase de estudo e de análise pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) para reconhecimento da área da Ponta do Arado como terra indígena. Mas enquanto este parecer não sai, a permanência dos Guarani no local depende dos julgamentos de duas ações, uma pela 9ª Vara Federal sobre o direito dos indígenas de ficar ali até a decisão da FUNAI, e outra pelo TRF4 em relação ao pedido de liminar da empresa para que saiam imediatamente. Há ainda um terceiro elemento, que pode determinar esta disputa: o julgamento do Marco Temporal pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Caso o Supremo ceda aos interesses do agronegócio e do setor ruralista, validando a tese do Marco Temporal, a demarcação da Ponta do Arado como área indígena estará inviabilizada.
Em meio à agressão e violência e à indefinição do seu futuro pelo judiciário, os Mbya Guarani resistem na Ponta do Arado. “Se o projeto de urbanização for concretizado da forma como está sendo apresentado, significa a destruição de seu mundo e de sua sobrevivência”, enfatiza Carmen.
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