Lobo em pele de cordeiro: a economia verde e as falsas soluções para a crise climática

Em 1992, durante a ECO-92, os Estados resolveram despertar para o problema das mudanças climáticas e assumir uma agenda comprometida com a redução das emissões de carbono. Naquele momento, ganhava força uma nova narrativa para modelo de desenvolvimento neoliberal, sua adjetivação como sustentável. 

Buscando atender a agenda, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) criou em 2008 a Iniciativa Economia Verde. Em sua definição, a economia verde, como ficou conhecida, seria a alternativa ao modelo econômico dominante que ameaça a saúde humana e o meio ambiente, tornando a economia mais sustentável por meio da inclusão social, maior eficiência no uso de recursos naturais, estímulo ao consumo consciente, estabelecimento de políticas de baixo carbono ou carbono zero.  

Diversas iniciativas decorreram da economia verde, como a criação do mercado de carbono, que passou a incluir as florestas por meio de políticas de Redd e Redd+; a propagação da “agricultura climaticamente inteligente”, assentada no uso de transgênicos e agrotóxicos; a promoção do uso de energia limpa, por meio do emprego de fontes renováveis, incluindo hidroelétricas, eólicas, solares, agroenergia e da transição energética nos países. Mais recentemente, esse pacote foi apresentado como soluções baseadas na natureza (SBN), que buscam a compensação ambiental, contabilizada em carbono ou biodiversidade, para justificar a continuidade do avanço de projetos destrutivos dos territórios e, assim, também do clima e do meio ambiente. 

Todas essas políticas que partem de atribuir valor econômico para a natureza, não por acaso são promovidas por grandes setores industriais e grupos empresariais, muitos deles diretamente responsáveis por cadeias de valores entre as maiores emissoras de gases de efeito estufa (GEE), como a do agronegócio. Dessa forma, ao invés de serem responsabilizados por contribuírem para a crise climática, esses atores são os protagonistas das novas “soluções”. Ao contrário de frear a destruição, criam-se mecanismos para que ela possa continuar, desde que compensando.  

Desde a Rio+20, organizações da sociedade civil e movimentos populares alertam para essas “falsas soluções”, à medida que as “inovações” propostas não respondem à pergunta de como proteger, preservar, restaurar e aumentar a biodiversidade, nem como reduzir as desigualdades sistêmicas que enfrentamos. Pelo contrário, a economia verde atua com políticas compensatórias que mantêm o paradigma da produção de danos. Ademais, reproduzem uma assimetria de poderes entre Norte e Sul global ao determinar os lugares onde se compensa e se produz danos, em geral ao Sul. E por fim, desconsideram o papel dos povos e comunidades na gestão comunitária da sociobiodiversidade. 

Essa visão utilitarista da Natureza tem causado impactos que são desconsiderados. Segundo estudos da Amigos da Terra Internacional há uma conexão entre a expansão das soluções baseadas na natureza (SBN) com a expansão da fronteira agrícola, o desmatamento na Amazônia brasileira, o avanço da financeirização da Natureza; com a intensificação do uso de agrotóxicos e organismos geneticamente modificados e inúmeros danos sociais e ambientais pela adesão a políticas de crédito de carbono. 

Agora em 2022, que completa 50 anos da primeira conferência da ONU que tratou do tema do Desenvolvimento Sustentável, em Stockholm, na Suécia, o relatório divulgado pelo IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) confirma o crescimento das emissões de GEE e, consequentemente, o fracasso dos mais de 10 anos de economia verde em resolver a crise climática. Aponta, ainda o relatório, para a importância de uma visão integrada entre a crise ambiental, a saúde, as desigualdades e a produção de alimentos, reconectando a agenda do clima com um de seus propósitos iniciais: a erradicação da fome. Há, também, um destaque aos povos indígenas no relatório, que chama a repensar o papel dos povos da floresta na participação e decisão da questão ambiental no mundo, à medida que esses sujeitos têm proposto alternativas bastante sólidas para a transição como a agroecologia, o manejo comunitário dos ecossistemas, a produção de energia renovável de forma descentralizada em parcerias público-comunitárias etc. 

ACRE: “quem corre é os rios”

Um estado amazônico esquecido da política nacional é, há mais de uma década, alvo de experimento de políticas e projetos da “economia verde” no Brasil, o Acre. No final da primeira década dos anos 2000, a administração pública adotou o discurso da modernização do estado com base em construir um modelo de “economia verde” para o país. O primeiro passo foi a criação do Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), implementando em todo o estado o REDD, do qual resultou a compensação de cerca de 18,5 milhões de dólares pelo governo alemão para manter a floresta em pé. Contudo, o que tem ido abaixo é justamente a floresta. Essa política sufocou as fontes de renda de comunidades extrativistas na região e atraiu fazendeiros. Para os povos que habitam a floresta, é apenas um “verniz ecológico” que oculta a captura de suas terras – e as conquistas de suas lutas sociais,  reconhecida mundialmente desde a década de 80 na história do líder sindicalista seringueiro Chico Mendes, impondo uma submissão a essa política.

Outro destaque é a ausência de conexão entre tais políticas climáticas, que deveriam estar baseadas ou enraizadas no chão, na natureza, com os direitos territoriais dos povos. Os recursos provenientes do Redd+ servem para cooptar lideranças e dividir comunidades, impondo outras formas de organização social. Não são recursos aplicados para assegurar os direitos coletivos à terra e direitos associados aos territórios, como água, autodeterminação, direitos das mulheres. Assim, tais políticas estão deslocadas dos contextos locais, não promovendo demarcações de Terras Indígenas e desenvolvimento local, pelo contrário, significam desterritorialização, perdas culturais. 

A sociedade civil e movimentos sociais têm se organizado há décadas para resistir à invasão da economia verde em seus territórios, construindo poder popular para incidir na agenda climática. Ao longo dos anos, essas articulações foram se dando em torno de alguns objetivos comuns: compreender e denunciar os impactos dos projetos e programas da economia verde nos territórios, com protagonismo dos povos indígenas, extrativistas e comunidades tradicionais, e fazer a resistência ao processo de mercantilização e financeirização da natureza, em curso no estado, no Brasil e no mundo. Um dos exemplos dessa construção é o Coletivo Carta de Belém, que tem levado críticas e demandas de um conjunto de organizações e de movimentos sociais do Brasil às COPs de Clima (Conferências das Partes organizadas pela ONU). 

As propostas populares começam com a exigência de reduções reais das emissões de gases de efeito estufa (GEE), tendo como objetivo a mudança de sistema para não mudar o clima, responsabilizando efetivamente poluidores e não sobrecarregando povos com a conta ambiental. A segunda proposta reside em organizar a resistência para denunciar e paralisar as falsas soluções do capitalismo verde, sobretudo na crítica aos mercados de carbono e biodiversidade. “É preciso apagar – de uma vez por todas do livro de regras climáticas e sobrevivência humana – o artigo que permite negociar e lucrar com medidas que violam direitos e modos de vida das pessoas nos seus territórios, e que em nada contribuem para evitar o aquecimento acelerado do planeta” como propõe a Amigos da Terra Brasil, em publicação lançada nesse mês, um Abril de mobilizações indígenas históricas, em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM).

Para onde vai o Brasil? Como trabalhar com a Natureza?

Até agora, os governos têm assumido a agenda da economia verde como resposta aos impactos da crise climática no país, quando não escancaradamente a dos grileiros, desmatadores, garimpeiros e poluidores, como acontece no governo atual. Tendo sido o Brasil um país sede de tantas importantes conferências e debates ambientais globais, a questão segue complexificada e maquiada, exigindo um debate público mais amplo e qualificado para além da mera adesão às propostas de mercado. Ao pensar no projeto político que queremos construir para os próximos anos, devemos assumir uma noção e prática de respeito à Natureza e trabalhar com ela para a nossa soberania. Nesse sentido, existem inúmeras experiências práticas construídas pelos movimentos e povos organizados no país, como a agroecologia, a construção da soberania alimentar, a gestão comunitária de florestas e outros ecossistemas, que se relacionam de maneira profundamente humilde, com compreensão e respeito pela Natureza e com a cultura popular.

As comunidades vêm administrando seus territórios de forma sustentável ao longo de gerações, por meio de abordagens que são profundamente ecológicas e pedagógicas. Nesses casos, o que é necessário é um ambiente institucional colaborativo e uma governança responsável que proteja as comunidades locais e indígenas das ameaças colocadas pela expansão do agronegócio, que força as pessoas a abandonarem seus territórios e ecossistemas ou a defendê-los.

Para enfrentar a crise climática, os governos devem começar urgentemente a cooperar para uma eliminação gradual coordenada da produção e consumo de combustíveis fósseis, com equidade, indo ao coração desse problema, que é repensar o modelo produtivo. Precisamos acelerar a transformação para um mundo justo, transformando nosso sistema energético, incluindo princípios como suficiência energética para todos, soberania energética, democracia energética, energia como um bem comum, energia 100% renovável para todos e energia renovável de baixo impacto, com gestão comunitária e com controle social das políticas no setor.

O Brasil que queremos é um país líder internacional na promoção de experiências concretas de combate à crise climática, construídas dentro de um profundo processo democrático participativo. Para um governo que virá, chamamos a atenção às falsas soluções ambientais que promovem maior dependência econômica do país, e não se mostraram efetivas para as mudanças climáticas. Instamos a investir em saídas muito mais simples e acessíveis, baseadas nos saberes do povo brasileiro, como repensar o modelo agrícola, o conservacionismo ambiental, os investimentos privados em energia e investir acreditando nos povos como sujeitos políticos protagonistas das transformações que necessitamos fazer.

*Este artigo de opinião da Amigos da Terra Brasil foi veiculado no site do jornal Brasil em Fato em 11 de Abril (acesse aqui).

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