Ponta do Arado, terra ancestral Guarani.
Ali coexistiram muitos mundos e realidades antes da invasão europeia, mas todos eles respeitaram, cultuaram forças que hoje parecem se voltar contra nossa sociedade. Na Ponta do Arado – Tekoá Yjere – diz Timóteo, cacique da aldeia: “A terra tem dono, não pode fazer o que quer!”
Será que podemos dispor do meio de forma a beneficiar indivíduos, como se a “natureza” existisse para nós? Timóteo sabe da disparidade de forças entre um ser e todo o restante.
Qual o limite para nossas aventuras e prazeres pessoais?
Qual o limite de nossa tolerância diante grandes predadores assassinos?
A “natureza” está sendo devorada e não percebemos?
Na Ponta do Arado, a “natureza” está vencendo quando um agente de um sistema judiciário, de nossa sociedade, barra esta devoração em forma de um megaempreendimento imobiliário, um verdadeiro projeto de morte para o Arado.
A agente pública ajuíza este projeto como sendo “frágil”, uma devoração frágil por não considerar os mundos e verdades vividas e viventes naquele ambiente: “O projeto é demasiadamente frágil, desamparado de qualquer estudo ou fundamento capaz de rechaçar os riscos, problemas e impactos ambientais e urbanísticos apontados pelo Ministério Público”.
Sua decisão aponta os devoradores, prefeitura e Câmara Municipal de Porto Alegre, aliados com interesses da Arado Empreendimentos LTDA. Num tempo de sentirmos em nossos corpos aquilo que nos parece difícil entender, os fenômenos catastróficos da “natureza”, e como menciona a agente, “riscos ambientais intoleráveis”, e mesmo assumindo a ideia de controle e proibição na tutela ecológica, a agente pública, em uma lógica de tentativa de salvamento, auto-salvamento, diz: “o intento legislativo municipal desconsidera os interesses culturais, paisagísticos, ambientais, urbanísticos, históricos e arqueológicos, menosprezando o impacto sobre as populações indígenas e desafiando o Estatuto da Cidade”, diz a decisão.
A agente continua a sentença: “Ambiente é definido, constitucionalmente, como um bem de uso comum do povo e resultado das relações do ser humano com o tecido natural que lhe circunda”. Édis Milaré, autor da frase, auxilia na construção do argumento e reflete a relação de uso do meio ferindo a perspectiva dos povos indígenas, pois para estes o equilíbrio no meio é igual a uma existência plena entre todos os seres.
Com a decisão judicial, Timóteo comemora a vida. Que bom para todos nós! Ao fim e ao cabo, a Ponta do Arado é um Território de Vida – Yjere.
Uma batalha ganha em uma guerra que já dura mais de 2 mil anos.
Texto por Carmem Guardiola, da Amigas da Terra Brasil
Vitória! No início de Junho, a Justiça do Rio Grande do Sul julgou procedente a Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público contra o município de Porto Alegre, a Câmara Municipal e a empresa Arado – Empreendimentos Imobiliários S.A., declarando a nulidade da Lei Complementar nº 935/2022, que visava modificar o regime urbanístico da área Fazenda do Arado, no Extremo Sul da Capital gaúcha, com a finalidade de beneficiar um empreendimento imobiliário.
A Fazenda do Arado é rica em biodiversidade, possui relevante patrimônio histórico, paisagístico e arqueológico, além de ser uma área natural para o amortecimento de cheias do Rio Guaíba. Na área da Ponta do Arado fica a retomada indígena Yjere do Arado Velho, que pede a realização de estudos e demarcação da área como terra Mbya Guarani. Esta questão tramita na Justiça Federal. Mais informações aqui
Justiça declara nulidade da Lei Complementar nº 935/2022 que favorece empreendimento imobiliário na Fazenda do Arado
A lei declarada nula beneficiava a instalação do maior empreendimento imobiliário em área da cidade, em local que ainda preserva o encontro dos biomas Pampa e Mata Atlântica na capital gaúcha.
A Fazenda do Arado é rica em biodiversidade, possui relevante patrimônio histórico, paisagístico e arqueológico, além de prestar incontáveis serviços ecossistêmicos como servir de área natural para o amortecimento de cheias do Guaíba.
A Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do RS contra o Município de Porto Alegre/RS, a Câmara Municipal de Porto Alegre e a empresa Arado – Empreendimentos Imobiliários S.A. (processo nº5107966-40.2021.8.21.0001) foi julgada procedente em 05.06.2024 para declarar a nulidade da Lei Complementar nº 935/2022 que visava modificar o regime urbanístico da área denominada Fazenda do Arado com a finalidade de beneficiar empreendimento imobiliário.
A juíza Patrícia Antunes Laydner, da 20ª Vara Cível e de Ações Especiais da Fazenda Pública do Foro da Comarca de Porto Alegre, afirmou que a alteração do zoneamento urbano pretendida pelo município exige a apresentação de estudos técnicos aptos a considerar os interesses culturais, paisagísticos,
ambientais, urbanísticos, históricos, arqueológicos e de populações indígenas, como determina o artigo 42-B do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), o que não ocorreu.
Assim, restou determinado pelo Poder Judiciário do Estado do RS:
- a declaração da nulidade da Lei Complementar Municipal nº. 935/2022 impondo ao Município de Porto Alegre que se abstenha de realizar quaisquer licenciamentos, regularizações e/ou recolhimentos de contrapartida com base na legislação declarada nula;
- o deferimento da liminar para determinar a imediata suspensão da aplicação da Lei Complementar Municipal nº. 935/2022;
- a condenação da empresa Arado – Empreendimentos Imobiliários S.A. ao pagamento das custas processuais.
Trata-se de uma decisão de primeira instância da qual poderão vir a ser interpostos recursos. Aventamos ainda para eventual nova investida que vise legitimar a urbanização da Fazenda do Arado.
Portanto, a campanha #PreservaArado reafirma e fortalece a luta contínua em defesa desta que é uma área de alta significância para a cidadania considerando seu incomparável patrimônio socioambiental, antropológico e histórico.
Entendemos que é necessário que o poder público realize uma avaliação da proposta popular para criação de uma unidade de conservação, um Parque Natural na Fazenda do Arado como forma de resguardar o patrimônio natural, histórico e cultural de Porto Alegre, em especial da Zona Sul, considerando fortemente adotar a mesma por se tratar de uma ação positiva para o
enfrentamento e adaptação aos eventos climáticos extremos, cada dia mais intensos.
Histórico de tentativas ilegais de modificar o regime urbanístico da Fazenda do Arado para beneficiar empreendimento imobiliário
A Lei Complementar nº 935/2022, declarada nula no dia de 05.06.2024, se trata da terceira tentativa de modificar o regime urbanístico da Fazenda do Arado.
A primeira tentativa ilegal de expandir o perímetro urbano de Porto Alegre para urbanizar a Fazenda do Arado – 426 hectares de área de produção primária (zona rural) e de proteção do ambiente natural (APAN) às margens do Guaíba – ocorreu no ano de 2015 através de projeto de lei de iniciativa do prefeito (PLCE 005/2015) durante a gestão José Fortunati/Sebastião Melo (2013-2016). O projeto de lei foi aprovado pela Câmara Municipal e deu origem à Lei Complementar nº 780/2015.
Após denúncia da cidadania e de organizações sociais em defesa do direito à cidade e do patrimônio socioambiental coletivo, o Ministério Público Estadual ajuizou Ação Civil Pública diante da ausência de realização de audiência pública.
Em 19.12.2019 a juíza Nadja Mara Zanella, nos autos do processo nº 001/1.17.0011746-8 (CNJ 0016069-55.2017.8.21.0001), declarou a ilegalidade da Lei Complementar nº 780/2015 e de todo o processo que levou a sua edição pois não foi realizada audiência pública com ampla divulgação pelo Poder Legislativo, a qual era obrigatória.
A segunda tentativa ilegal de modificar o regime urbanístico da Fazenda do Arado ocorreu no ano de 2020 através do PLCL nº 016/20, Projeto de Lei Complementar do Poder Legislativo, por iniciativa do vereador Professor Wambert (PTB).
O PLCL nº 016/20 reeditava o texto da Lei Complementar nº 780/2015, declarada ilegal no final do ano de 2019.
Aprovado pela Câmara Municipal, o PLCL nº 016/20 proposto por integrante do Poder Legislativo (vereador), foi totalmente vetado pelo prefeito Sebastião Melo pois continha vício de iniciativa, ou seja, apenas o Poder Executivo (prefeitura), com base em suas informações e estudos, pode propor projetos de lei que tratam do planejamento urbano e de suas modificações.
Já a terceira tentativa ilegal de ajustar o regime urbanístico da Fazenda do Arado aos interesses do empreendedor imobiliário se tratou de mais uma iniciativa do Poder Executivo Municipal (PLCE 024/21) por parte da gestão de Sebastião Melo/Ricardo Gomes (2020-2024).
A proposta do prefeito foi aprovada pela Câmara Municipal e deu origem à Lei Complementar nº 935/2022.
Novamente o Ministério Público Estadual ajuizou Ação Civil Pública (processo nº 5107966-40.2021.8.21.0001) onde alegou a ausência de estudos técnicos* necessários para fundamentar a alteração do regramento urbanístico para ampliação do perímetro urbano de Porto Alegre.
Em 05.06.2024, Dia Mundial do Meio Ambiente, foi proferida sentença declarando a nulidade da Lei Complementar nº 935/2022 uma vez que a regra proposta e aprovada não atende às exigências da lei previstas no artigo 42-B do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01).
*O Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) elaborado pelo empreendedor imobiliário e apresentado para a prefeitura no ano de 2013 para subsidiar a Lei Complementar nº 780/2015 (declarada ilegal) foi objeto de denúncia pela campanha Preserva Arado por apresentar falhas técnicas. Após instaurado o
Inquérito Policial nº. 199/2016/700705-A para investigar o caso o mesmo foi finalizado com a conclusão de que o estudo era falso, omisso e incompleto, portanto não se tratava de um estudo válido para embasar o projeto de lei que deu origem à Lei Complementar nº 935/2022.