Povos indígenas existem e resistem no Brasil

Em 2018, Jair Bolsonaro (PL) foi eleito com a promessa de não demarcar nenhuma Terra Indígena no Brasil. Passados quatro anos, nenhum território foi demarcado. Mas não apenas; a violência contra os povos indígenas se tornou crescente. Em relatório recente divulgado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) sobre a violência contra os povos indígenas, com dados coletados entre os anos 2019 e 2022, registrou-se 795 assassinatos, 407 conflitos relativos aos direitos territoriais, 1.133 invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio.

“O relatório do Cimi mostra que Bolsonaro criou – em seu governo – um roteiro para o genocídio indígena por meio da desterritorialização, da desconstrução dos direitos, da devastação do ambiente, da destruição das estruturas de fiscalização, da desassistência  generalizada, da desumanização e a busca pela integração dos povos”, sintetiza Roberto Liebgott, coordenador do Cimi no Rio Grande do Sul.

Para o indigenista, “as invasões de terras foram programáticas”; o governo atuou para viabilizar o acesso de garimpeiros, madeireiros e grileiros aos territórios indígenas. As características da violência – relacionadas ao abuso de poder, racismo, intolerância e assassinatos – revelam uma “desumanização dos indígenas”, produzindo uma violência sistemática, explica Roberto. Destaca, ainda, a desassistência em saúde a partir da fragilização da assistência primária, ou seja, ausência de ações preventivas, gerando mortalidade na infância, desnutrição e um ambiente de profunda vulnerabilidade dos indígenas.

No mesmo sentido, Rose Padilha, membra do Cimi-Regional Amazônia Ocidental, salienta que os números dizem por si: “Foram 309 casos de invasões, em 218 terras de 25 estados brasileiros”. No seu estado, o Acre, a missionária ressalta que ocorreram casos emblemáticos em razão da falência da proteção do Estado. Entre eles, o aumento do suicídio entre o povo Madijá, que ocorre desde 2015, resultado da marginalidade a que são submetidos pela desassistência do poder público.

O povo Madijá enfrenta falta de acesso a documentos; também é vítima da extorsão de comerciantes locais, que retêm seus cartões de benefício social, vendem bebidas alcoólicas e alimentos vencidos. Ainda, como povo de recente contato, não falam português, não tiveram acesso à escola, nem a material didático em sua língua, ou seja, sem qualquer política específica.

O relatório do Cimi revelou a presença de um novo agente externo nos territórios indígenas: o crime organizado. Rose comenta como as facções afetam a situação da juventude Huni Kuin. Sem perspectivas de futuro, acabam se envolvendo com facções do crime. Um dos casos diagnosticados no relatório é de um jovem, assassinado com 30 facadas, nas proximidades da cidade de Jordão, no Acre.

Rose relembra, ainda, outro tipo de violência, que passa invisibilizada: a do mercado de créditos de carbono. No Acre, o governo autorizou a constituição do mercado de carbono, que passou a operar primeiro nas Terras Indígenas, afetando formas de uso e continuidade das relações territoriais. As soluções climáticas da economia verde foram se consolidando no estado, violando os direitos territoriais assegurados aos povos indígenas na Constituição como “usufruto exclusivo de suas terras”, destaca Rose.

Recentemente, em meio às atividades dos Diálogos Amazônicos, em Belém do Pará, a 200 km de distância, três lideranças indígenas do Povo Tembé foram baleados na segunda-feira, dia 7 de agosto de 2023. As lideranças se preparavam para uma visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos em Tomé-Açu/PA. Existe um conflito na região entre os indígenas e as monoculturas de palma pertencentes ao grupo BBF (Brasil Bio Fuels), a maior empresa do ramo na América Latina, que mantém operações no entorno com frequente presença de seguranças armados dentro do território indígena. Segue a violência colonial e do capital contra os corpos das gentes, águas e florestas.

:: Diálogos Amazônicos foi uma ‘imagem falsa’, diz mãe de indígena baleado ::

Lideranças Mbya Guarani de aldeias nas cidades de Porto Alegre e de Viamão, no Rio Grande do Sul, falam, no vídeo acima, sobre a necessidade urgente de se demarcar as terras indígenas para a sobrevivência dos seus povos, de sua cultura e para a preservação do meio ambiente

E agora, o que muda no novo governo?

Ao final do relatório, confere-se destaque à iniciativa de constituição de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, como um caminho para identificar e responsabilizar atores que historicamente vêm invadindo, matando e destruindo as formas de viver dos povos indígenas no Brasil. O tema foi pauta do Acampamento Terra Livre (ATL) em abril deste ano. A Comissão foi encaminhada como uma proposta da deputada Célia Xakriabá (PSOL), acolhida pela Presidenta da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana.

O governo federal iniciou sua gestão constituindo uma força-tarefa para exterminar a violência contra o povo Yanomami. Em abril, na ocasião do ATL, Lula liberou R$ 12,3 milhões para a FUNAI apoiar comunidades Yanomami. O presidente assinou, ainda, a demarcação de seis Terras Indígenas, das 13 identificadas pelo Grupo de Trabalho de Transição como prontas para serem demarcadas. Por fim, o retorno do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI).

São grandes as expectativas de avanço na proteção e efetivação dos direitos dos povos indígenas no Brasil com o atual governo. No entanto, como recorda Liebgott, ainda existe um longo caminhar para romper com os ciclos programáticos de violências. O governo precisa reconstruir toda a política indigenista desmantelada, avançar urgentemente nos processos demarcatórios e de desintrusão, explica.

Políticas como a da Instrução Normativa n.º 01/2021 da FUNAI, que autorizou a associação entre indígenas e não indígenas no arrendamento de terras, ainda que revogadas, criaram inúmeros conflitos internos e externos nas comunidades. Remover esses arrendamentos dos territórios, que com a Instrução foram realizados de boa-fé, exigirá um grande esforço do governo.

A demarcação dos territórios, o acesso às políticas públicas, os investimentos em saúde e educação indígena, a proteção social aos que vivem em áreas de retomada e acampamentos serão medidas fundamentais para a redução do quadro de violência. “A política indigenista não deve ser um faz de contas, não pode ser vista como enfeite, adorno ou pintura a ser mostrada no âmbito do governo. Há gente, comunidades, povos que padecem cotidianamente e clamam por seus direitos constitucionais. Por isso, demarcação já, e não ao marco temporal!”, defende Liebgott.

O Congresso Nacional, de maioria conservadora, também vem se constituindo como um obstáculo à ruptura com a violência contra os povos indígenas. Na semana passada, caminhou no Senado o projeto de lei sobre o Marco Temporal (PL n.º 2903/2023), com pareceres favoráveis à tese. Igualmente, segue ainda respirando o PL n.º 191/2020, que autoriza a mineração em Terras Indígenas. E no STF (Supremo Tribunal Federal), em passos lentos, o julgamento do Marco Temporal (RE 1017365).

Os novos ventos que sopram do governo em Brasília são mais favoráveis à causa indígena. Superar as políticas de retrocesso implementadas pelo governo anterior constituirá uma das tarefas prioritárias. Além dela, é preciso avançar na demarcação das terras indígenas, ampliando o orçamento para políticas públicas nelas. E educar o país para um diálogo intercultural. Como podemos ver, o caminho ainda é longo para erradicar os mais de 500 anos de violência contra os povos indígenas no Brasil.

* Coluna publicada no jornal Brasil de Fato originalmente em 

Somos Amigas da Terra Brasil

A gente
Fala
Grita
Canta
Chora
Ri
Encanta

A gente anda
Corre
Cambaleia
Tropeça
Cai
Levanta

E retoma
Não para
Constrói
Sonha
Faz
Da vida esperança

De se ter
Paz
Terra
Teto
Justiça
E amor

Porto Alegre, 22 de julho de 2023

Roberto Liebgott

A coluna desta quinzena conta a nossa própria história de revisitar as nossas reflexões e ação política e, assim, a nossa identidade coletiva. Em nossa última Assembleia Geral, realizada no dia 21 de julho, deliberamos pela modificação de nossa identidade de “Amigos da Terra Brasil” para “Amigas da Terra Brasil”. Assumir essa nova identidade representa o acolhimento de um processo de transformação da nossa história, das pessoas que compõem a organização, do nosso fazer coletivo.

Neste ano, em que completamos 40 anos de organização como membros da maior federação ambientalista de base do mundo, a Amigos da Terra Internacional (Friends of the Earth), organizada em 75 países, acreditamos que é tempo de que nossa identidade reflita os novos contornos das ações práticas. Nos últimos anos, empunham a luta pelo feminismo popular e pela justiça ambiental, assumindo com centralidade em nosso trabalho o desmantelamento do patriarcado e do neoliberalismo.

Reconhecemos que não é possível construir justiça ambiental sem enfrentar as desigualdades de gênero. Em nosso cotidiano, visitamos nosso passado e assumimos esta identidade para construir outras perspectivas para o presente e futuro. Essa identidade reflete um processo de construção interna (falando para dentro) e se expandindo para fora.  A Federação, por meio das questões colocadas por diversas organizações membras e das alianças, assume para si um debate que, para além da complexidade da nossa realidade, cria toda uma narrativa que, por meio do feminismo e da resistência ao patriarcado, propõe-se a desmantelá-lo desde nossas organizações, entre elas na própria Federação e para o mundo. Para isso, a criação do debate nas regiões e de protocolos que garantam o acolhimento e as consequências de atos de machismo, violência e preconceitos de gêneros e a garantia de acesso às instâncias das organizações membras, da própria região e da Federação toda. Desde a Aliança Feminismo Popular, na solidariedade à luta das mulheres camponesas, das atingidas por barragens, afetadas pelas políticas de economia verde, das mulheres em luta por moradia, identificamos a carga desigual que as mazelas do capitalismo impõem para os corpos das mulheres.

Ao afirmarmos o gênero feminino em nosso nome, expressamos o caráter de um movimento diverso, plural, multissetorial, que ganha mais unidade e coerência à medida que nos desenvolvemos como individualidades, organizadas e em movimento.

Sob a mística do eterno oroboro, símbolo da continuidade, da transformação, do abraço e da unidade, da solidariedade internacionalista que une as pessoas amigas da terra na organização, na Federação, na aliança política com outros movimentos, como a Via Campesina e a Marcha Mundial de Mulheres, na construção de outro modelo de produção no qual sejamos todas amigas da terra. Caminhamos para usar a terra para continuar a produção e reprodução da vida, para que nossas relações sociais sejam pautadas por outro paradigma. Que não haja opressão.

Em nossa nova identidade, ressaltamos o punho cerrado, que dá forma à árvore que antes ocupava seu lugar. Símbolo da clareza política de nos posicionarmos contra todas as formas de opressão, na luta antirracista, na defesa da natureza, dos direitos difusos da sociedade, na defesa da democracia e contra o neoliberalismo, na promoção da justiça ambiental, na construção do feminismo popular. Reconhecendo as forças do povo brasileiro que resiste à escravidão, aos despejos, à violência contra seus corpos e territórios.

A nova identidade se alinha com um pensar descolonial de nossa história. Promove o encontro da identidade de nossa luta com a afirmação do papel das mulheres, dos povos indígenas, do povo negro e quilombola em nosso país. A árvore, que simboliza o movimento ambiental nos anos 70, encontra o oroboro, e se enraíza nesta terra na solidariedade e no internacionalismo. Na crítica contundente a todas as formas estruturais de opressão, de raça, classe e gênero.

Hoje, somos uma geração de Amigas da Terra que já não precisa assumir imposições linguísticas do patriarcado. Somos compostas por uma diversidade de gerações, gêneros, orientação sexual, raça, dons, idades e capacidades. Hoje, somos uma geração de mentes e corpos que estão diferentes. Certos de que o caminhar até aqui nos tornou o que somos, visitamos o passado e nossa identidade com a certeza de que mudanças são necessárias. Nossa firmeza na luta que nos guia para avançarmos por um mundo mais justo e solidário é o que nos move a constantemente nos transformarmos e nos reinventarmos.

Na Terra Brasil, que tantas dores carrega, em toda a sua abundância e esplendor, que floresçam incontáveis gerações de pessoas amigas da terra! Que elas se cultivem, adubem-se e se nutram das marchas, místicas, alianças, do calor da organização, da esperança, da luta. Que possamos seguir com a ousadia de mudar o mundo e mudarmos a nós mesmos!

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/08/01/somos-amigas-da-terra-brasil 

A questão dos agrotóxicos no Brasil

O Brasil é líder mundial do uso de agrotóxicos. Os efeitos desses venenos na saúde humana são devastadores. Segundo a “Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida”, rede que reúne diversas organizações da sociedade civil e movimentos populares, 20% dos agrotóxicos que consumimos são altamente tóxicos. Inclusive, 30% dos que são utilizados no país estão proibidos na União Europeia.

Grandes empresas transnacionais farmacêuticas buscam incidir na política nacional para abrir mercados para a entrada de seus agrotóxicos. Um dos exemplos é o lobby corporativo em torno do projeto de lei nº 6299/2002, o chamado “Pacote do Veneno”, aprovado em fevereiro de 2022 na Câmara dos Deputados. A proposta prevê a mudança completa do marco legal sobre a comercialização de agrotóxicos no país, visando facilitar o registro. O texto contém uma série de eufemismos para a toxicidade do produto, como a utilização dos termos “pesticidas” e “produtos de controle ao meio ambiente”. No texto, o banimento de determinados agrotóxicos fica restrito aos casos de “risco inaceitável” à saúde humana, que como a própria terminologia designa, significa que existem riscos aceitáveis.

Inclusive recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu a ADPF n.º 910, interposta pelo Partido dos Trabalhadores, para revogar a flexibilização da produção, pesquisa e registro de agrotóxicos no Brasil apresentada pelo Decreto nº. 10.833/2021. A Ministra Carmen Lúcia entendeu que o decreto deveria ser considerado inconstitucional, pois acarretava retrocesso ambiental e uma proteção deficiente. Assim, a Corte reconhece os alertas e riscos que eram apontados pelas organizações à época.

Outro aspecto chave sobre a comercialização de agrotóxicos no Brasil são as isenções e reduções fiscais. O governo federal concede redução de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); isenta a cobrança de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), pois contém em suas fórmulas determinados ativos; ainda estando prevista isenção de PIS/PASEP e Cofins, que envolve diretamente questões previdenciárias dos trabalhadores.

Alguns estados prevêem outras isenções envolvendo os mesmos impostos e contribuições. Somente no Rio Grande do Sul, em 2016, o estado concedeu R$ 182 milhões de isenção de ICMS, como aponta sistematização do Prof. Drº. Althen Teixeira Filho, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). De acordo com levantamento do professor, as empresas do agronegócio deixaram de pagar R$ 10 bilhões, entre isenções e reduções fiscais.

Dessa forma a conta não fecha, pois com as isenções aos agrotóxicos não se compensa o aumento da sobrecarga no sistema de saúde pública. Conforme o Datasus, entre 2010-2019 houve um aumento de 109% dos casos de intoxicação por agrotóxicos.

O tema sofreu alterações recentes com a proposta de Reforma Tributária, aprovada na Câmara dos Deputados. Agora, termina-se com as isenções totais, passando a fixar a alíquota de descontos ao máximo de 60%. Segundo a avaliação da Campanha dos Agrotóxicos, o Congresso perdeu uma oportunidade histórica de acabar definitivamente com a isenção dos agrotóxicos. Preocupa, ainda, a possibilidade de que os agrotóxicos sejam incluídos como produtos “agropecuários” base para produção de “alimentos para consumo humano”, e continuem sendo beneficiários com reduções. Não se aplicou, por exemplo, uma tributação mais dura, com fins de reduzir o consumo de agrotóxicos no país.

Os agrotóxicos também estão sendo usados como armas químicas; em verdade, sua criação envolve esse uso. Tal fato ocorre devido à autorização da prática de pulverização aérea, proibida em outros países. Por meio delas, fazendeiros violam normas sanitárias, ou mesmo se beneficiam da falta de uma regulamentação mais rígida para disseminar o veneno, expandindo assim a fronteira agrícola sobre assentamentos, acampamentos e territórios indígenas e quilombolas. Utilizando-se da pulverização para afastar cultivos agroecológicos, formas e usos distintos da terra.

Frente a isso, alguns estados estão avançando na regularização do uso de agrotóxicos. Um marco nessa iniciativa é a Lei Zé Maria do Tomé, no Ceará. A lei proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos naquele estado. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade da lei, abrindo as portas para um movimento em outros estados. Cabe recordar que a lei leva o nome do camponês Zé Maria do Tomé, que lutou contra o uso de agrotóxicos pelo agronegócio na Chapada do Apodi (CE).

Alguns pesquisadores têm atribuído o uso de agrotóxicos no Brasil como uma nova espécie de prática colonialista, o “colonialismo molecular”. O termo designa não apenas o uso indiscriminado de agrotóxicos, mas também sua combinação com o uso de plantas geneticamente modificadas; o cercamento das sementes, que produzem uma dependência com empresas transnacionais.

As maiores empresas do mercado de agrotóxicos, Syngenta, Bayer CropScience e Basf, são europeias e vendem seus produtos tóxicos, muitos deles proibidos em seus países, para o Sul Global. Não por acaso, essas mesmas empresas são donas das patentes de sementes geneticamente modificadas, que necessitam de seus agrotóxicos para cultivo, criando uma profunda dependência por meio do controle das sementes e insumos. A situação é ainda mais grave para a reprodução dos ciclos de vida, à medida que estudos apontam para um crescimento da resistência de pragas e “ervas daninhas” ao uso de agrotóxicos, o que tem exigido cada vez mais produtos fortes e novos patenteamentos de organismos geneticamente modificados.

De acordo com o estudo das organizações Public Eye e Unearthed, das 17 empresas europeias que exportam agrotóxicos ao Brasil, a Syngenta é a que mais envia produtos. Cerca de 10,4 mil toneladas, o equivalente a 79% do total, desembarca no país proveniente dos portos da Bélgica, Espanha, França, Alemanha, Áustria, Grécia e Hungria. Dentre os componentes dos agrotóxicos encontram-se neonicotinóide, tiametoxam e lambdacialotrina, que são totalmente tóxicos para as abelhas.

Protesto em Porto Alegre (RS), em 2021, contra a aprovação de projeto de lei que liberou o uso, no Rio Grande do Sul, de agrotóxicos proibidos em outros países – Foto: Isabelle Rieger/ Arquivo ATBr

A resistência do Assentamento em Nova Santa Rita (RS) aos agrotóxicos

Além da resistência das comunidades da Chapada do Apodi (CE) ao uso dos agrotóxicos, as famílias que vivem em um assentamento na cidade de Nova Santa Rita, na região metropolitana de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, denunciam o uso da pulverização aérea de agrotóxicos como uma estratégia para destruição de seus cultivos agroecológicos.

Nos últimos anos, o agronegócio que cerca o assentamento tem pulverizado veneno sobre as plantações e casas das famílias assentadas. Segundo estudos que vêm sendo realizados, encontram-se vestígios de contaminação na água e na plantação. A área faz parte de um polígono de produção de arroz orgânico no estado – aliás, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Os ataques causam contaminação, inviabilizando a continuidade do selo de orgânico que as comunidades possuem.

As famílias se organizaram e conquistaram uma lei municipal (nº. 1680/21), que estabelece restrições e condições para a pulverização aérea no município. O objetivo dos camponeses é avançar, constituindo um polígono de exclusão à pulverização aérea de agrotóxico na região, que é banhada pelo Rio Jacuí, importante manancial hídrico para todo o estado. Outra luta vem sendo travada na Justiça para que o Estado desenvolva um plano de pulverização que permita a coexistência das formas de produção livre de agrotóxicos. Na ação, solicita-se ainda que a União faça análise das amostras coletadas para determinar grau de contaminação.

Em 2021, o governador Eduardo Leite aprovou, na Assembleia Legislativa gaúcha, o PL nº 260/2020, que flexibiliza a Lei nº. 7.747/1982, liberando o uso, no estado, de agrotóxicos proibidos em outros países. A medida é um retrocesso da luta ambiental no RS.

A tecnologia tem agregado dificuldades à resistência à deriva de agrotóxicos, à medida que novos pacotes têm sido apresentados como o uso de drones, dificultando ainda mais as estratégias de fiscalização. Assim, com a autorização de novos agrotóxicos, atualmente no Brasil, 562 tipos são comercializados.

Agrotóxicos contra a vida

Inúmeros estudos apontam para a gravidade das consequências do uso de agrotóxicos, tanto para contaminação humana como para o meio ambiente. A atrazina, por exemplo, um dos agrotóxicos mais comercializados no país, tem sido encontrada nas águas. Estudos realizados constataram seus efeitos sobre a produção de hormônios em sapos, ocasionando severas mutações, como a do sexo. Por isso, a luta central dos povos é pela afirmação da vida, havendo como única pauta possível a luta contra os agrotóxicos.

Emiliano Maldonado, advogado popular que acompanha o caso de deriva em Nova Santa Rita (RS), afirma que existem inúmeros relatos das violências e violações cometidas pelo agronegócio; comprovações científicas das principais universidades do Brasil, demonstrando a gravidade do que estamos vivendo. “Estamos sendo envenenados. Esses venenos são produzidos por empresas, muitas delas europeias”, denuncia. Emiliano destaca, ainda, os riscos que a negociação do Acordo UE-Mercosul pode trazer ao tema, já que não envolve nenhuma revisão sobre a comercialização de agrotóxicos banidos na União Europeia (UE).

Segundo ele, é preciso revisar as relações Norte-Sul Global, para que os agrotóxicos banidos na Europa não sejam produzidos e comercializados nos nossos territórios, nos países da América Latina. Além disso, aponta como caminho fundamental a responsabilização das corporações que os produzem, mesmo com os estudos científicos comprovando seu caráter nocivo, sendo que diversos desses estudos apontam também seu caráter cancerígeno.

A gravidade do “colonialismo molecular” precisa ser revertida na construção de um modelo de produção no campo que possa existir em coexistência com as outras formas de produção da vida, assegurando a possibilidade de reprodução dos ciclos das águas, da vida humana, dos solos. Estamos falando de uma produção voltada para a alimentação saudável e conservação do meio ambiente. Nesse cenário, a agroecologia, a agrosociobiodiversidade, estão no centro da proposta alternativa dos povos.

Afirmar a vida e a luta contra os agrotóxicos é questionar o agronegócio. Afinal, é a produção de commodities agrícolas em larga escala que aprofunda a dependência com sementes transgênicas e agrotóxicos. A produção agrícola, que tem seu cerne no lucro, não organiza uma cadeia produtiva em função da demanda por alimento e da natureza. Repensar esse lugar será tarefa fundamental para a continuidade da vida humana.

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/07/21/a-questao-dos-agrotoxicos-no-brasil 

Emergência climática e democracia: um problema estrutural

No mês passado, mais uma vez, fortes chuvas no estado do Rio Grande do Sul deixaram um cenário de destruição ambiental, provocando a perda de vidas humanas, isolamento de famílias e agravando a situação de vulnerabilidade social de muitos territórios. A passagem do ciclone, culminando com fortes chuvas, produziu um cenário de caos social, deixando 50 famílias desalojadas no município de Maquiné (RS), 418 mil residências sem energia elétrica, estradas bloqueadas e 13 pessoas mortas. Os efeitos climáticos nos centros urbanos têm sido uma constante no país. Tragédias são vistas em Petrópolis/RJ, São Paulo/SP, alguns anos atrás em Santa Catarina. Todos esses casos se relacionam aos efeitos das mudanças climáticas e à falta de planejamento urbano e territorial.

Para os atingidos e atingidas de Maquiné, as tragédias evocam a necessidade de um repensar das relações entre sociedade e natureza. Segundo o abaixo-assinado da comunidade: “Os rastros da tragédia estão inscritos na paisagem, nos noticiários, na mente e nos corações de todos e todas. As perdas, os danos e as dores são muitas, e, nós como habitantes dessas matas, guardiões desse manancial de biodiversidade, precisamos refletir sobre o presente e o passado para planejarmos um futuro consciente e responsável, visando a reconstrução deste território sagrado, que junto com outros biomas, permite a vida na Terra.”

Os governos e gestores públicos tendem a associar tais fatos como eventos extremos da natureza, sobre os quais precisamos desenvolver soluções técnicas capazes de “controlar” esta força. A comunidade de Maquiné explica em seu abaixo-assinado que “enchentes, ciclones, deslizamentos de terra e inundações são considerados como catástrofes naturais, mas mais do que isso, representam a força da Natureza em restabelecer seu curso, suas leis e impor a necessidade de respeito, fato que precisa ser interpretado e internalizado para a elaboração de planos de recuperação e prevenção”.

Quanto à visão governamental, precisamos primeiro refletir sobre a reprodução da construção moderna que separa “homem” da natureza. Como nos ensina o professor Carlos Marés, dos diálogos do direito socioambiental, essa cisão permite um processo de objetificação da natureza no qual o homem passa a impor sobre ela um modelo de dominação. É assim que, no capitalismo, toda a abundância da natureza, a água, terra, chuvas, ar, vento, vários bens comuns podem ser mercantilizados, tornando-se “recursos naturais”.

O segundo efeito desta apreensão da realidade é supor que a crença de uma tecnicização irá resolver os problemas das mudanças climáticas; acreditamos que não foi por falta de técnica que chegamos até aqui, mas por decisões tecnificadas, visando o lucro. Por isso, as soluções propostas investem em mecanismos da economia verde, dentre eles a metrificação das políticas de compensação do carbono, como as propostas de “netzero” apresentadas na COP 26, e mais antigas como os créditos de “REDD”a proposta do Banco Mundial da “agricultura climaticamente inteligente”;  as cidades climaticamente inteligentes. No entanto, tais proposições ignoram as causas sociais e políticas mais amplas da crise climática, que envolvem as questões estruturais do modelo de produção capitalista.

Ao determinar as mudanças climáticas como um fenômeno recente se desconecta do efeito direto que o modelo de desenvolvimento adotado tem sobre a continuidade da vida no planeta Terra. Ainda que seja evidente uma emergência climática, é preciso cuidar com o uso do termo à medida que não esteja acompanhado de uma reflexão histórico-estrutural do sistema capitalista.

Com isso, queremos afirmar que o debate do clima envolve as reflexões sobre o capitalismo, colonialismo, desenvolvimento, participação e a governança global. Por isso, a construção de soluções que sejam respostas técnicas aos efeitos do clima, constituem-se apenas uma pequena parte do reconhecimento do problema que existe. Assim como as propostas históricas dos povos, em muitos momentos desconsideradas e desqualificadas, sendo que hoje a solução mais eficiente é a existência dos povos nos territórios, esta realidade de resistência foi o que garantiu a proteção ambiental territorial.

Assim, a crise climática é uma consequência das relações desiguais de poder. Não à toa seus efeitos se reproduzem igualmente de maneira desequilibrada. Enquanto países do Sul Global, especialmente regiões marginalizadas, sofrem profundas transformações ecológicas em virtude dos efeitos das mudanças climáticas e das “soluções da economia verde”, países do Norte Global dispõem de recursos para assegurar qualidade de vida a sua população.

Essa distribuição desigual de poderes e consequências compõe o cenário de uma injustiça socioambiental, que se aprofunda com o impacto da ação do Estado e de empresas em uma constante e histórica ação de “passar a boiada” no agro literalmente, mas também na construção civil e na mineração, com grandes obras de infraestrutura que, em sua busca insana de extração de capital do ambiente natural, descumpre, altera e flexibiliza a legislação ambiental, priorizando o interesse corporativo em detrimento do ambiente natural equilibrado e sadio.

Famílias desabrigadas ficaram alojadas no Ginásio Municipal de São Leopoldo, cidade da região do Vale do Rio do Sinos, no RS. Crédito: Gustavo Mansur/Secom

Inclusive, o tema de uma “justiça reparadora” é muito forte entre os povos afetados pelo clima. Países como Bolívia, e mais recentemente, Brasil, vêm afirmando a presença de uma “dívida climática” dos países desenvolvidos para com os subdesenvolvidos. Indo mais além nas questões estruturais, a presença do subdesenvolvimento é um produto direto da divisão internacional do trabalho, da presença intrínseca ao capitalismo mundial de um intercâmbio desigual entre os países, que cria a dependência. Reverter a situação de dependência, reconhecer o processo de silenciamento do colonialismo é tarefa fundamental para pensar a construção de alternativas à crise ecológica que vivemos.

A líder indígena hondurenha e lutadora ambientalista Berta Cáceres, quando recebeu o prêmio Goldman do Meio Ambiente, denunciava que as iniciativas para o clima estavam pensadas “fora do tempo”. Claramente, Berta se referia a uma injustiça histórica e social que vivem os povos da América Latina e Caribe, da África, do Sul Global, sobre os efeitos catastróficos que o colonialismo e o capitalismo impõem. De tal forma que pensar as questões do clima não significa apenas uma análise de seus efeitos físicos, mas conectar ao racismo, às desigualdades de gênero e classe que fazem com que territórios e corpos sejam mais afetados. Retomar a história de negação dos povos do Sul Global é parte fundante das discussões sobre o clima, ou seja não é somente o clima que deve ser visto, mas as causas dessas alterações e a dívida histórica aos povos que esta lógica produziu no campo das violações dos direitos dos povos, as métricas de carbono como estão colocados não respondem à diversidade da natureza e, menos ainda, na reparação dessas violações, este debate tem que estar no centro das soluções.

Desse modo, devemos nos questionar sobre os espaços internacionais promotores das soluções e a responsabilidade que determinados países têm na estruturação da crise. As metas voluntárias de redução das emissões não envolvem qualquer política de questionamento da destruição socioambiental das empresas transnacionais, pelo contrário, afirmam seu protagonismo. São os mesmos países causadores dos problemas estruturais que envolvem o clima, que estão hegemonizando a construção das soluções. Certamente, não serão eles a questionar os seus privilégios. De igual modo, lhes interessa manter as questões histórico-estruturais que lhe permitem seu domínio. Como o presidente Lula falou em Paris, “que os países que fizeram a revolução industrial são os responsáveis pela poluição do planeta, e que eles têm uma dívida histórica com a Terra”.

Importante perceber essa forma de agir das corporações, que querem ser voluntárias e não cumprem regras criadas para a garantia das leis, constituições e princípios da coletividade. Assim, lutamos para garantir regras para as empresas e direitos para os povos, como a campanha por um tratado vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos, instrumento internacional vinculante que responsabiliza diretamente as empresas transnacionais pelas violações de direitos humanos decorrentes de suas atividades, como no PL 572/2022 que cria um marco nacional sobre direitos humanos e empresas e estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o assunto.

Retornando aos impactos das enchentes nas cidades brasileiras, os governantes locais, estaduais e federais não são menos responsáveis pela reprodução deste sistema desigual. Os ventos, a chuva, são questões climáticas; agora, a alteração dos leitos dos rios não, o assoreamento dos rios, não; o aterro em banhados e áreas de várzeas, desmatamento, resíduos sólidos sem a implementação das leis, barramentos nos rios, falta de regularização fundiária, moradia, obras de infraestruturas que alteram os caminhos das águas e as cotas nos territórios, colocando essas comunidades de forma cada vez mais expostas a essas situações de alagamento e deslizamentos, expondo famílias e os mais vulneráveis a riscos previsíveis. As elites brasileiras seguem apostando na construção de respostas vindas “de fora”, que promovem um desencontro entre nosso passado, presente e futuro. Não há, por parte de muitos governantes, um compromisso com a construção de transformações sociais profundas em nosso país. A maioria do Congresso Nacional é bastante representativa da completa ignorância da destruição do planeta, e não tem consciência para além da lógica do lucro.

Repensar o problema dos danos causados pelas mudanças climáticas, da reparação das comunidades, famílias e territórios envolve, portanto, um profundo questionamento sobre o modelo de desenvolvimento, a organização do sistema produtivo e um giro ético político de relações sociais e com a natureza. É necessário construir outras respostas governamentais para além da prestação de serviços emergenciais, pensar a construção de alternativas fora dos espaços hegemônicos, desde as lutas e resistências populares locais, da organização política popular. É fundamental que nos casos, sobretudo de emergências climáticas, a reconstrução dos modos de vida seja feita mediante a escuta das comunidades locais e com processos de verdadeira participação popular, oportunizando-se da troca de saberes locais.

Edificar um projeto político de sociedade, territórios, cidades, que garanta essas profundas transformações, não serão reais e verdadeiras se não forem construídas com a participação efetiva de cada território, com seus povos e seus conhecimentos e cultura.

Esta ética-política renovada do reconhecimento de que o problema do clima é um problema civilizatório é de um tempo presente. Ou nos organizamos e mobilizamos para uma mudança da correlação de forças desta agenda, ou estaremos reféns de um futuro incerto. Um futuro que poderá não existir quando destruirmos as condições de vida concreta.

Texto originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/07/05/emergencia-climatica-e-democracia-um-problema-estrutural 

MTST promove janta, shows e sarau para arrecadar fundos para a Cozinha da Azenha

Ação na Cozinha Solidária do MTST em Porto Alegre ocorre nesta quarta-feira (5), a partir das 18h, com entrada franca

Com objetivo de levantar fundos para a Cozinha da Azenha, será realizada nesta quarta-feira (5) a terceira edição do Tempero de Luta, evento mensal do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). A atividade acontecerá na sede da cozinha, localizada na Avenida Azenha, nº 608, em Porto Alegre (RS), e terá nesta edição strogonoff de pinhão (com opção vegana), sarau e shows de Frank Jorge e Forró de Bandido.

Aberta em 26 de setembro de 2021, a Cozinha da Azenha surgiu com o objetivo de minimizar a fome agravada pela combinação das crises econômica, política e sanitária no Brasil. De acordo com o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea-RS), mais de 1 milhão de pessoas passam fome no estado. A cada 10 famílias, sete enfrentam dificuldades em conseguir comida ou não têm o que comer.

Leia também a reportagem: Fome no Brasil atinge mais as famílias de mulheres negras, aponta estudo

Conforme explica um dos organizadores do evento e militante o MTST, Pepe Martini, a proposta surgiu a partir da militância do movimento e da avaliação da cozinha ser um espaço importante para o movimento no estado. Segundo ele, com quase dois anos de existência, a cozinha é um lugar que vai além da distribuição diária de refeições.

“É um espaço que tinha potencial para também proporcionar um momento de encontro entre a militância, a base do movimento, os apoiadores, num contexto também um pouco mais lúdico e cultural. Proporcionar outro tipo de encontro entre essas pessoas, fortalecer a rede do movimento. Trazer para um lado um pouco mais humana essa convivência. E também, claro, como uma atividade de autossustento”, descreve Pepe.

Leia também: Programa de Aquisição de Alimentos pode ser votado na Câmara nesta quarta-feira (5)

O militante pontua que todo o trabalho da festa é feito de forma voluntária, por quem cozinha, por quem toca, por quem se apresenta de qualquer forma, por quem produz. “Todo o lucro vai diretamente para o caixa da cozinha. A gente também tem venda de algumas bebidas e essa atividade tem gerado uma renda bem interessante para o movimento, que consegue, por exemplo, abater uma boa parte do custo de aluguel, que é um dos maiores custos ali da cozinha”, expõe.

Luta para que as cozinhas se tornem política nacional

Atualmente o movimento tem cerca de 46 cozinhas pelo país que se financiam de forma completamente autônoma, através de doações, apoiadores do movimento.

“Então a gente convoca que todo mundo que se identifica com essa causa, chegue nas noites do tempero de luta, participe proponha atividades, divulgue. Enquanto isso, seguimos também na luta para que as cozinhas solidárias virem uma política pública, através do governo federal. Agora temos um contexto em que isso, possivelmente, vai se concretizar, mas ainda tem muito trabalho pela frente”, afirma.

A Cozinha abre as 18h, e a janta começa a ser servida as 20h. O evento tem entrada franca, com valor da janta a R$35 na hora, ou R$30 antecipado.

Matéria originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/07/05/mtst-promove-janta-shows-e-sarau-para-arrecadar-fundos-para-a-cozinha-da-azenha 

 

As políticas ambientais e climáticas no Brasil

Uma das promessas de campanha de Lula foi a preservação do ambiente natural. Ainda antes da posse, durante a COP27 (Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas), no Egito, afirmou compromissos com o combate ao desmatamento, aos crimes ambientais, à desigualdade social e à violência na Amazônia. Ao se diferenciar dos anos de negacionismo climático do Governo Bolsonaro, afirmou: “Essa devastação ficará no passado. Os crimes ambientais que cresceram no governo passado estão chegando ao fim. Serão agora combatidos sem trégua”.

Cumprindo com sua promessa, no dia 1º de janeiro assinou o decreto 11373/2023, que extinguiu o Núcleo de Conciliação das multas ambientais. O núcleo havia sido criado por Ricardo Salles, então ministro do Meio Ambiente, por meio do decreto 9.760/2019, que suspendia a cobrança das multas até que fosse realizada audiência de conciliação. Contudo, quase não se estruturou o órgão, levando a uma fila de conciliações que resultaram, na prática, na anistia de multas ambientais no governo Bolsonaro.

Ainda nos primeiros meses de governo, a ministra Marina Silva retomou o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). O plano havia sido uma das prioridades apontadas pelo Grupo de Trabalho da Transição do governo Lula. Sua aplicação vem sendo conduzida por meio de processos de abertura à participação da sociedade civil, de consultas públicas e de um Conselho Participativo. As metas previstas são bem concretas, com medidas a serem adotadas até os anos de 2025-2027.

Como já temos destacado em colunas anteriores, a preservação ambiental caminha lado a lado com a garantia dos direitos territoriais e à terra, dos povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais. Por isso, atribui-se também ao bom resultado dos dados a força tarefa organizada pelo governo de combate ao garimpo ilegal dentro dos territórios indígenas, em especial à questão da invasão do território Yanomami. As operações da Polícia Federal já destruíram 10 garimpos ilegais e aplicaram mais de R$ 4,5 milhões em multas.

A retomada da agenda progressista ambiental pelo governo, porém, sofre com alguns entraves, além dos problemas tão suscitados no orçamento. O primeiro deles é a composição conservadora do Congresso Nacional. Nas últimas semanas, assistimos a uma pressão exercida por Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, sobre o governo. As ameaças vieram com a necessidade do governo de aprovação da Medida Provisória dos Ministérios (MP 1154/23), enfrentada pela proposta de modificações ao texto apresentadas pelo deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL). As alterações do deputado incidiram diretamente sobre o Ministério do Meio Ambiente e Clima (MMA) e sobre o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Diante das pressões, o governo cedeu às proposições, apresentando parecer favorável à proposta.

As modificações aprovadas incidem sobre a agenda socioambiental. Isso porque retiram do MPI a competência para a demarcação das terras indígenas, retornando à política anterior dentro do Ministério da Justiça e Segurança Pública. A medida afeta a autonomia dos povos indígenas; contudo, segundo a ministra Sônia Guajajara, há o entendimento que o governo seguirá mantendo o compromisso com a continuidade do processo demarcatório.

Mas já prevendo que outros mecanismos seriam necessários para barrar as pautas indígenas, a ala conservadora do Congresso partiu para a aprovação do PL 490/2007 na Câmara. O PL trata da tese do marco temporal, defendida por ruralistas; determina que os indígenas só terão direito às suas terras se estivessem na posse das mesmas na data de 5 de outubro de 1988, dia promulgação da Constituição. O texto ignora completamente a expulsão violenta dos territórios a que os povos indígenas foram submetidos historicamente e, também, antes e depois de 1988.  Além disso, libera mineração e exploração econômica em terras indígenas e, na prática, viola o direito dos Povos Indígenas à Consulta Livre Prévia, Informada e de Boa Fé garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

Dentre as mudanças aprovadas, impactos na política de proteção ambiental são sentidos. O MMA perde a competência para controlar o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que irá para o Ministério da Gestão. O CAR é o registro obrigatório para imóveis rurais e um dos instrumentos utilizados para mapear áreas griladas e desmatadas, além de oferecer um diagnóstico das disputas por terras a partir das inúmeras sobreposições de informações prestadas por grileiros de terra para tentar legitimar sua posse. Ainda, a gestão da Agência Nacional de Águas (ANA) vai para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, e os sistemas de informação sobre saneamento básico e gestão de resíduos sólidos, para o Ministério das Cidades. A manobra é idêntica à utilizada pelo Governo Bolsonaro para esvaziar as competências fiscalizatórias do MMA e fortalecer, política e economicamente, outros ministérios com áreas com orçamento relevante. Preocupa, ainda, o fato de que temas que estão sendo alvo de processos de privatização, como o saneamento básico, e de um modo geral, as águas, fiquem sob ministérios de indicação da direita.

Na agenda ambiental, vale destacar ainda a queda de braço entre Marina Silva e o governo pela exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas pela Petrobras. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) negou o pedido com base no risco à biodiversidade, tendo em vista que a área é composta por manguezais e mamíferos aquáticos. No entanto, o Ministério de Minas e Energia e parlamentares da base do governo, ignorando o compromisso com a consulta e participação social dos povos amazônidas diretamente atingidos pelo megaprojeto de exploração petrolífera, reivindicam um melhor equilíbrio entre a produção de petróleo e a preservação da biodiversidade.

Também na Amazônia, povos têm se reunido para denunciar a continuidade dos impactos dos projetos e programas de REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), que visam compensar as emissões de gases do efeito estufa, utilizando-se de áreas preservadas, compondo o mercado de carbono e as chamadas “soluções baseadas na natureza”. Esses projetos e políticas, mais recentemente reapresentados como uma estratégia de “bioeconomia”, com a simpatia da base do Governo Federal, além de falsas soluções à crise climática representam, na prática, a emissão de créditos de poluição – da queima de petróleo, do desmatamento e contaminação do agronegócio e da mineração -, enquanto restringem o uso da terra pelos povos que de fato preservam a floresta, seguindo o modelo de “desenvolvimento” baseado na compensação dos danos ambientais sob o viés do mercado.

No Acre, têm sido registradas violações de direitos dos povos pelas políticas de financeirização da natureza há mais de uma década. Assim mesmo, projetos privados e políticas jurisdicionais seguem avançando na Amazônia em geral, em especial nos estados do ParáTocantins e Mato Grosso. Tanto o caso da exploração de petróleo como as soluções da economia verde turvam o campo progressista do governo, reproduzindo um pensamento social que entende a superação das mazelas da realidade brasileira investindo no avanço das forças produtivas sem aprender com e integrar, de fato, a economia dos povos da floresta, respeitando seus direitos, como estratégias para inserção do país no mercado internacional.

Para esse discurso, a Natureza e suas gentes são passíveis de serem compensados numa redistribuição econômica dos lucros dos projetos. Contudo, a questão é muito mais complexa; em geral, as injustiças ambientais permanecem afetando as populações menos responsáveis pela crise climática, cada vez mais presente e emergente. Como os exemplos sugerem, a solução vai muito além de um problema de clima e carbono, pois é sobretudo um problema de modelo de produção, o capitalismo, e as relações sociais que dele decorrem, para as quais os povos originários já apresentam soluções reais e, por isso, seguem sendo atacados.

Assim, a corda do governo, nas questões socioambientais, está esticada entre sua própria base, entre os desafios de uma governabilidade em uma composição de frente ampla e na presença majoritária de conservadores no Congresso Nacional. A bancada ruralista e os conservadores parecem querer seguir consolidando retrocessos socioambientais do governo Bolsonaro, negociando agendas com o governo. Os conservadores no governo pretendem seguir com suas fatias de benefícios às elites brasileiras. E os nossos, parecem ignorar a reprodução da dependência, numa corrida pela repetição do desempenho econômico do primeiro ano do governo Lula.

Porém, depois de tanto aprendizado, nessa nova fase do jogo político, é o povo quem sustentou e segue sustentando a democracia, a mudança dos ares no Brasil, a reconstrução do país, os discursos e narrativas que incluem e valorizam todos os povos e que precisam se concretizar, na prática, também nas políticas por justiça ambiental e climática do governo Lula.

Em meio a todas as disputas, os povos organizados encontram sabedoria para explorar as conjunturas e correlações de forças e seguir na defesa da democracia e na luta por seus direitos. Inclusive nos espaços internacionais que terão a Amazônia como centro, como a reunião dos Presidentes dos países Amazônicos em Agosto deste ano e a COP 30 do Clima em 2025, em Belém do Pará.

Texto publicado originalmente no Jornal Brasil de Fato, no link: https://www.brasildefato.com.br/2023/06/22/as-politicas-ambientais-e-climaticas-no-brasil 

‘Não basta nos unirmos, devemos caminhar juntos’: pensar a integração e a soberania dos povos

 

As últimas semanas têm sido intensas na relação entre o governo e o Congresso Nacional. A direita se mostrou muito bem organizada na Câmara dos Deputados e disparou uma ofensiva contra o governo na aprovação de mudanças na estruturação dos ministérios, especialmente no esvaziamento das competências dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. O clima do Congresso esquentou a pressão sobre o governo federal, exigindo maior concessão de espaço político para a direita conservadora. A bancada progressista enfrentou inúmeros desafios para barrar retrocessos, sofrendo derrotas na votação.

O ataque também ocorreu contra os movimentos e organizações populares. Isso se deu por meio da aprovação de duas Comissões Parlamentares de Inquérito: a do MST e a das ONGs, por meio das quais a direita pretende desgastar a imagem da luta social. Não podemos deixar de mencionar ainda a aprovação do PL 490/2007, que trata da tese do marco temporal para demarcação dos territórios indígenas na Câmara Federal. O projeto promove uma verdadeira destruição dos direitos constitucionais dos povos indígenas aos seus territórios.

A direita e as elites brasileiras não querem perder suas margens de lucro e pretendem desgastar a imagem do governo, inviabilizando que as propostas de campanha de Lula sejam implementadas. Isso nos coloca em um movimento mais amplo de resistência ao neoliberalismo em nossa região. Desse modo, a derrota das forças conservadoras está intimamente articulada às lutas anti-imperialistas. Em um contexto de intensa disputa da hegemonia global, as potências imperialistas buscam reforçar o domínio sob a região latino-americana e caribenha, impedindo que uma nova onda progressista se fortaleça. Assim, a elite brasileira não pretende abrir mão de seus privilégios e distribuir o mínimo de direitos, por isso está alinhada com os interesses das empresas transnacionais e das potências colonialistas, é comprometida com um projeto político de continuidade da extração de valor da nossa região para os países do capitalismo central.

Obviamente que as lideranças políticas da região estão atentas às movimentações do cenário internacional. Por isso, Lula convocou, na última semana, o “retiro” de presidentes da região, em Brasília. No centro da discussão, estiveram propostas de cooperação e de integração da América do Sul. Em Carta Final,  os chefes anunciaram promover uma cooperação voltada à superação das vulnerabilidades e manter um calendário de encontros. Na oportunidade, Pepe Mujica, liderança uruguaia, enviou uma carta a Lula sugerindo que os erros do passado não se repitam e que sejam construídos projetos de integração com os povos, conclamando que os líderes não apenas estejam unidos, mas caminhem juntos.

Jornadas Continentais: um lugar para repensar a integração regional

Nos anos 90, os povos organizados da América Latina resistiram ao Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), que determinava o aprofundamento da subordinação dos países da região ao imperialismo norte-americano. Essa articulação venceu a iniciativa de aprofundamento da dependência, deixando um legado de organização popular e de integração de mobilizações que alimentou as lutas populares.

Em 2015, inspirados nessa luta, se funda a “Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo” em Havana, em Cuba. A Jornada Continental é composta por diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, que têm construído lutas locais, regionais e globais como frentes ao avanço do neoliberalismo, dos ataques à democracia e da retirada dos direitos dos povos da América Latina e do Caribe.

Reunidos em Brasília na semana passada, movimentos e organizações fizeram um balanço das jornadas. Para Nalu Farias, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), o avanço da direita na desestabilização da democracia trouxe muitas reflexões e aprendizados à esquerda, num cenário mais difícil “porque estávamos num contexto mundial de agudização do contexto capital x vida, em que cada vez mais esta ganância, esta força extrativista, neocolonial, se impunha com mais força, com muita perseguição aos movimentos e lideranças”, aprofundando, opinou ela, uma racionalidade conservadora.

Juma Xipaia, secretária de Articulação e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas, também esteve presente na reunião. Ao abordar sobre os ataques aos direitos indígenas, afirmou: “nós jamais vamos recuar, abaixar a cabeça. Jamais iremos negociar os nossos direitos, tampouco os territórios”. A liderança convidou a refletir sobre a integração latino-americana e do Caribe na percepção de como “tudo está conectado”, explicando que as barreiras, fronteiras e delimitações territoriais são uma criação que podemos transcender.

Na mesma esteira da ancestralidade, Juan Almendares, da Amigos da Terra Honduras, refletindo sobre o bloqueio político e econômico da Venezuela, Nicarágua, Cuba e Honduras, aponta um caminho de luta que envolve ciência, poesia, técnica e ética, sobretudo uma ética de consciência anticapitalista e anti-imperialista. Para ele, em nossa região, as respostas aos nossos problemas podem ser encontradas em nosso passado ancestral.

Um dos temas de ênfase da articulação foi o enfrentamento ao poder corporativo. As organizações integrantes da Jornada estão envolvidas na construção de marcos normativos vinculantes para responsabilização das empresas transnacionais pela violação aos direitos humanos, como o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos junto ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), e o PL nº. 572/2022, que cria a lei marco brasileira sobre direitos humanos e empresas.

 


Em Brasília, Jornada Continental entregou, ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, as demandas dos povos por um instrumento que possa acabar com a impunidade corporativa / Edgardo Mattioli/Radio Mundo Real

 

Aproveitando a presença em Brasília, a Jornada mobilizou os parlamentares brasileiros para aderir a este movimento global. No âmbito internacional, existe a Rede Interparlamentar Global (GIN, sigla em inglês), na qual se engajam parlamentares comprometidos com a perspectiva de responsabilização das corporações. Na semana passada, 10 parlamentares brasileiros ingressaram na rede. Sobre a rede, Reginete Bispo, deputada federal pelo Rio Grande do Sul (RS), mencionou: “o capitalismo transnacional tem como base a supremacia. O centro do ataque somos mulheres negras e povos originários. Vamos nos articular e construir a integração regional para defender os povos indígenas, quilombolas e as mulheres da periferia”.

A Jornada Continental, em sua proposta política, entende que a integração e a cooperação regional devem ser pensadas a partir das necessidades dos povos para viver com dignidade, como o acesso à saúde, educação, trabalho e infraestrutura. Em suas declarações, defende a importância de investimentos públicos em projetos alternativos de desenvolvimento, de bases mais solidárias e cooperativas, que atendam à preservação das formas de produção da vida integradas a um respeito aos bens comuns, como as formas de viver dos povos indígenas.

Na Declaração final do encontro da Jornada, os movimentos destacam a importância da reunião da cúpula do poder da região em Brasília. Segundo a carta, vivemos um momento em que a retomada institucional de um projeto de integração regional, de organização da resistência à ofensiva conservadora, está no centro da agenda política. No entanto, o envolvimento das bases, dos povos, no processo será decisivo para os rumos, tal como as palavras de Pepe Mujica: “não há cúpulas sem montanhas nas quais se apoiar, e essas montanhas são os povos”.

Por muito tempo, as montanhas foram o habitar das forças de resistência às ditaduras e aos autoritários, atuaram como espaços da gestação de projetos de libertação regional. Este movimento promoveu uma junção simbólica entre povos e montanhas. Assim, na esteira de Mujica, se queremos que nos próximos anos as Cúpulas atuais estejam no poder, que não tenhamos que enfrentar novos movimentos fascistas na região, precisamos trabalhar na construção sólida das montanhas, tendo uma base popular que sustentará as transformações urgentes e necessárias que precisamos.

*Conteúdo publicado na íntegra no Jornal Brasil de Fato, em https://www.brasildefato.com.br/2023/06/07/nao-basta-nos-unirmos-devemos-caminhar-juntos-pensar-a-integracao-e-a-soberania-dos-povos

A biodiversidade que se constrói no território do campo à cidade

 

biodiversidade, ou diversidade biológica, tem a ver com a variedade de espécies, sejam plantas, microrganismos ou animais que habitam a Terra. Desse modo, no núcleo central da noção de biodiversidade está a vida em suas mais variadas formas. Se partimos da centralidade da vida, certamente iremos reconhecer que no sistema capitalista, cujo eixo condutor é a obtenção de mais lucro, não há possibilidade de compatibilizar com um projeto político pela proteção da vida e pela preservação da biodiversidade.

Desde os anos 70, os escândalos da contaminação ambiental e da emergência do tema das mudanças climáticas têm impulsionado a construção de uma agenda internacional de proteção à biodiversidade. Nesse sentido, o dia 22 de maio é reconhecido como Dia Internacional da Biodiversidade, com a intenção de alertar para a importância da proteção da mesma. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 25% da biodiversidade do planeta, hoje, encontra-se ameaçada de extinção. Dentro de uma ideia de usar a natureza como biblioteca de saberes e formas que o ambiente se relaciona e constrói soluções, a observação é fundamental. E mais: ter ambiente natural para observar é ter de onde buscar essas soluções, assim como andar e observar a vida se resolvendo.

A partir do Relatório de Brundtland (1987) se desenvolveu a noção de desenvolvimento sustentável, criando um terreno argumentativo para justificar a continuidade do modelo de desenvolvimento econômico sob a narrativa da possibilidade de harmonização com o meio ambiente. De igual modo, as agendas que se seguiram – Agenda 2030 e os acordos firmados nas Conferências das Partes – refletem a linha conciliatória. Inclusive, durante a ECO-92 se desenvolveu a Convenção sobre a Diversidade Biológica (1993), com o fim de promover a proteção da diversidade biológica por meio do uso sustentável da biodiversidade, com a repartição justa e equitativa de benefícios. No entanto, até que ponto essas narrativas sobre o meio ambiente refletem uma real proteção da biodiversidade?

As políticas ambientais tratam a preservação da biodiversidade no que chamamos de “conservadorismo ambiental”, no qual a Natureza é algo distante do sujeito, circunscrito a um espaço delimitado (à floresta, à reserva ou à unidade de conservação), reiterando um paradigma colonialista. Tal visão não integra as relações sociais urbanas, como a de produção alimentar, como parte da totalidade da biodiversidade, ignorando, muitas vezes, o papel que povos e comunidades têm na construção de relações de proteção, em uma visão mais completa da vida natural. Com isso, não queremos afirmar a não importância de criar espaços de proteção integral da biodiversidade, pelo contrário, inclusive denunciamos os riscos à biodiversidade da privatização e aluguel dos parques. O que se quer chamar a atenção é que a criação de espaços de proteção não coloca em xeque o modelo de produção que destrói a biodiversidade, apenas serve como uma política de compensação.

Se olharmos para o campo da produção de sementes, as formas de produção e distribuição, o ingresso de novas tecnologias ligadas à modificação genética tem destruído a diversidade de cultivos. Isso afeta diretamente a saúde humana, na falta de nutrientes. De outro lado, a produção do agronegócio demanda intensa utilização do solo, água, desterritorialização de comunidades, promovendo um desequilíbrio nas condições de reprodução das formas de vida.

Diante disso, organizações ambientalistas, como a Amigos da Terra Brasil, têm convidado a repensar as propostas de preservação da biodiversidade, entendendo o campo e a cidade como parte do mesmo sistema e que, somente juntas e juntos, podemos construir a Soberania Alimentar, difundindo a crítica aos mecanismos de falsas soluções e promovendo direitos conquistados pelos povos.

Nesse sentido, em Porto Alegre (RS), no dia 22 de maio, festeja-se desde 2007 o Dia da Biodiversidade, com a Festa da Biodiversidade (foto acima da atividade em 2012). Um encontro no qual buscamos mostrar a nossa diversidade na capital gaúcha e Região Metropolitana. Em 2023, estamos na nona edição do encontro, que festeja a biodiversidade de nossos corpos e territórios. Desde a última alteração do Plano diretor de Porto Alegre, em que se extinguiu a zona rural, viemos lutando pelo entendimento da importância desta área da cidade, evidenciando o quanto ela é estratégica para a soberania alimentar. Quando ampliamos esta realidade para a região metropolitana, essa capacidade se expande e se complexifica de tal modo a pensar a origem do que bebemos, comemos e respiramos.

Sabemos que nossa água está contaminada com agrotóxicos. Nossa comida também, e apresenta índices assustadores. E o nosso ar, ainda que não tenhamos medidores, certamente está contaminado por agrotóxicos pulverizados no entorno da cidade e pela combustão dos transportes ou das chaminés das empresas. Certos de que essa contaminação precisa ser medida e informada, precisamos de uma proteção para garantir um ambiente saudável no nosso território.

Essa luta vem sendo construída pelas agricultoras e pelos agricultores dos assentamentos da reforma agrária, que, de forma corajosa, mais uma vez, enfrentam o agronegócio e a trama de impunidade que cerca esse setor. Dentre os instrumentos utilizados está a denúncia da deriva criminosa de agrotóxicos, na qual o agronegócio pulveriza o veneno para além de suas terras, contaminando a produção camponesa; fazendo uso do agroquímico em sua função de criação, como arma da guerra. O propósito da deriva criminosa é eliminar a esperança presente na produção de alimentos saudáveis que não fazem uso de agrotóxicos, destruindo com a possibilidade de se construir outras formas de produção autônomas às grandes corporações e tornar impossível a soberania alimentar. Sem pessoas no campo, o conhecimento, as terras, as sementes serão deles, das corporações, e para lutar contra a fome vamos depender das mesmas corporações.

O Campo e a Cidade

Os movimentos sociais e as organizações pautam que o repensar a nossa relação com a biodiversidade é também um refletir sobre as relações entre o campo e a cidade. Na vida urbana, desconsideramos a presença da biodiversidade no nosso dia a dia, como nos alimentos que consumimos. Entender de onde vem a nossa água ou os alimentos em nossa mesa, ou a qualidade do ar que respiramos, e saber que práticas e formas de produção da indústria da alimentação estão destruindo o planeta e evitando que outras formas coexistem, para começar a consumir alimentos locais, de produção camponesa, que causam menor impacto ao ambiente.

Um exemplo concreto dessa relação é dado pela parceria do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) com os movimentos do campo, nas cozinhas solidárias. Durante a pandemia de covid-19 agravou-se a crise alimentar brasileira, quase 33 milhões de pessoas passaram fome. Diante disso, o MTST organizou até hoje 40 cozinhas solidárias nas grandes cidades brasileiras, distribuindo almoço grátis para trabalhadoras e trabalhadores que passavam fome.

Os alimentos utilizados na produção das marmitas são provenientes, em parte, da produção camponesa de base agroecológica – agroecologia é difundida como uma tecnologia social de produção de alimentos realizada pelos camponeses, na qual a relação estabelecida com a terra é de reciprocidade, por isso não se usam agrotóxicos, as sementes são compartilhadas e se preservam as nascentes de água. Assim, além de comerem, os trabalhadores comem produtos de qualidade nutricional, contribuindo para formas de produção alimentar que estão em harmonia com a biodiversidade.

A iniciativa obteve tanto êxito que foi apresentado o projeto de lei nº. 491/223, o PL das Cozinhas Solidárias, em trâmite na Câmara dos Deputados. Dentre os objetivos do PL, estão: a construção de práticas alimentares promotoras de saúde, ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis e o fomento à agricultura familiar.

Denunciar os mecanismo de falsas soluções

Nos últimos anos, no debate internacional, o tema da biodiversidade encontra-se secundarizado, aparecendo nos impactos de mudanças climáticas. Majoritariamente, colocam-se como foco central de investimentos as políticas da economia verde, nas quais se transfere a preservação a entes privados e se cria uma série de narrativas, como os créditos de carbono, a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente, como respostas à destruição da biodiversidade.

Todavia, essas políticas estão gerando efeitos ainda mais perversos à biodiversidade. A proposta do “carbono zero” reúne compromissos assumidos para anular as emissões de gases do efeito estufa, assim, em vez de reduzir as emissões e promover mudanças na produção, as grandes empresas passam a financiar áreas de preservação do seu interesse, para compensar. Dentro das “soluções baseadas na natureza”, pode-se incluir plantações de monocultivos de árvores, como eucalipto; os cultivos com organismos geneticamente modificados; as áreas de parques e de unidades de conservação que estão sendo privatizadas. Essas iniciativas têm ganhado a adesão de grandes empresas, que passam a pressionar as terras e os direitos de camponeses.

As empresas transnacionais também aderiram a uma narrativa sustentável constituindo políticas de responsabilidade social corporativa no tema, dentre elas a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente. Em todos esses discursos, as empresas não mudam suas práticas de produção, apenas incorporam medidas de compensação que mascaram os efeitos de suas atividades. Desse modo, a mineração tem usado da extração de metais importantes para transição energética, como lítio e níquel, para se colocar como atividade sustentável, desconsiderando que isso implica numa expansão da fronteira extrativa, destruindo territórios.

Já a agricultura climaticamente inteligente envolve a conciliação entre segurança alimentar, produção de alimentos e mudanças climáticas. No entanto, o que as organizações apontam é que o mecanismo consiste unicamente nas negociações do mercado de carbono. Inclusive, no Brasil, o agronegócio, em razão da expansão da fronteira agrícola, tem sido um dos principais responsáveis pela destruição dos biomas nacionais, do Pampa à Amazônia.

As falsas soluções que hegemonizaram os debates nos mecanismos multilaterais são controladas pelas empresas transnacionais, que buscam reconfigurar suas narrativas ideológicas para seguir justificando as práticas expropriatórias da biodiversidade. Por isso, movimentos ao redor do mundo têm erguido bandeiras de luta em torno da palavra soberania, assumindo uma crítica ao sistema produtivo como causador dos danos socioambientais e exigindo o controle popular sobre outras formas de constituição de relações com a Natureza.

Direitos por efetivar: um horizonte para lutar

A afirmação e a efetivação de direitos aos povos são um caminho para um diálogo da constituição de outras relações com a biodiversidade, entende-se como parte desta totalidade. Assim, a Declaração de Direitos Camponeses (2018), uma construção popular – com destaque à Via Campesina Internacional, estabelece claramente a relação dos camponeses com a preservação da biodiversidade, assegurando o acesso à terra, território, ao compartilhamento da sabedoria tradicional na troca de sementes, do cuidado com a terra e água.

Na mesma esteira, os direitos estabelecidos na Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhecem o papel que povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais têm na preservação da sociobiodiversidade. E que, portanto, são sujeitos que devem ser consultados sobre projetos que afetem suas terras e territórios. Igualmente, sobre o direito à participação e informação no Acordo de Escazú, ainda não ratificado pelo Brasil, que garante tais direitos para a promoção da justiça ambiental.

Que possamos reconhecer o chamado das organizações e movimentos para assumir que a preservação da biodiversidade envolve um projeto político de mudança do atual sistema de produção, no qual a vida da humanidade é parte integrante do todo da vida do planeta. Que possamos dar um basta na separação entre sujeitos e natureza, romper com as políticas de compensação e construir um novo paradigma que não produza exclusões de nenhum tipo.

Conteúdo publicado na íntegra no Jornal Brasil de Fato, em https://www.brasildefato.com.br/2023/05/23/a-biodiversidade-que-se-constroi-no-territorio-do-campo-a-cidade

 

Confira, abaixo, algumas fotos da 9ª Festa da Biodiversidade, que aconteceu nessa 2ª feira (22/05/2023), no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre (RS). Crédito das fotos: ATBr

 

 

Trabalhadores e trabalhadoras em luta pela democracia e contra as altas taxas de juros

Nos últimos anos, a classe trabalhadora esteve mobilizada lutando pela democracia em vários países da América Latina, resistindo aos retrocessos na legislação do mundo do trabalho, que intensificaram a precarização e criaram obstáculos para a organização sindical. Com a derrota de governos de extrema direita no Brasil, Colômbia e Chile, surge uma nova onda de governos progressistas, mudando novamente o cenário da correlação de forças na região. Assim, este 1 º de maio foi marcado pelo espírito da esperança e da comemoração, quando trabalhadores e trabalhadoras voltam a sentar nas mesas de negociação.

No Vale do Anhangabaú, em São Paulo, no 1° de maio, as centrais sindicais se reuniram com o presidente Lula. Na ocasião, o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Sérgio Nobre, fez duras críticas à política de taxa de juros no país, hoje em 13,75%. Desde 2019, quando foi apresentado o Projeto de Lei Complementar 19/2019 – hoje Lei Complementar nº. 179/2021, o  Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) denuncia que a autonomia do Banco Central do Ministério da Economia significa o enfraquecimento do controle do Estado sobre a política econômica.

Um dos fatores criticados é a relação entre a alta da taxa de juros e o desemprego no país. No ato, o presidente Lula destacou: “A gente não pode viver mais em um país onde a taxa de juros não controla a inflação, ela controla, na verdade, o desemprego, porque ela é responsável por uma parte da situação que nós vivemos hoje”. Não à toa, no ato, o sindicalista Sérgio Nobre anunciou a campanha permanente contra os juros altos, com duras críticas ao presidente do Banco Central.

Dentre as medidas anunciadas por Lula, encontra-se o aumento do salário mínimo, que passou para R$ 1.320,00 já neste mês. A presidência apresentou ainda um projeto de lei ao Congresso Nacional para que haja o reajuste do salário mínimo acima da inflação, como ocorria em governos anteriores. O governo alterou a faixa de isenção do imposto de renda para aqueles que recebem até R$ 2.640,00, com a promessa de subir esta faixa para R$ 5.000,00 até o final do governo.

No ato do Anhangabaú, Lula anunciou ainda que o governo estuda a possibilidade de regulamentação do trabalho em aplicativo e a isenção de imposto para o recebimento da Participação sobre Lucros, que trabalhadores e trabalhadoras recebem em certas empresas.

A defesa da integração latino-americana

Outra mobilização da classe trabalhadora no 1° de maio é a defesa da democracia. O secretário adjunto de relações internacionais da CUT, Quintino Severo, sustentou que a defesa da democracia e dos direitos ao trabalho decente são as principais pautas na região.

O fortalecimento da democracia e da integração regional também foram bandeiras deste 1° de maio para a Central Sindical das Américas (CSA). Rafael Freire, secretário geral da CSA, aponta que é o momento de disputar o modelo econômico, a liberdade sindical e a negociação coletiva, celebrar os avanços da derrota da extrema direita, da jornada de 40h semanais no Chile e o aumento do salário mínimo no Brasil.

As organizações sindicais estão celebrando a reabertura dos diálogos de integração regional no Mercosul, na Unasul e na efetivação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) por entenderem que há expectativas de retomada de crescimento na integração regional. Como destaca Quintino, o Brasil tem um importante papel na liderança regional, e com as ações já realizadas pelo governo, como o retorno à CELAC, o governo demonstra que irá assumir este lugar no diálogo internacional.

Muitas mobilizações sindicais ainda estão por vir ao longo de todo o mês de maio. Está previsto, para o final deste mês, o encontro da Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo em Brasília. A Jornada se formou no final de novembro de 2015, na cidade de Havana, em Cuba, durante a comemoração dos 10 anos de derrota da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), com o objetivo de rearticular movimentos populares do continente na batalha contra o avanço do imperialismo na região.

Várias organizações compõem a plataforma, como a Cloc Via Campesina, a CSA/CUT, Marcha Mundial de Mulheres, Jubileu Sul Américas e Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC). Daniel Gaio, Secretário Nacional de Meio Ambiente da CUT, afirma que “a Jornada Continental é uma oportunidade para fortalecer e construir alianças junto aos demais sindicatos e movimentos sociais de nossa região, uma frente popular contra a extrema direita e suas políticas autoritárias, que acentuam as mudanças climáticas, o racismo e o patriarcado”.

O encontro de maio da jornada será em Brasília tendo em vista os avanços no país da construção de uma lei sobre direitos humanos e empresas (PL nº.572/2022). No marco dos eixos de luta da Jornada está a responsabilização das empresas transnacionais pelas violações aos direitos humanos. Sabemos que as mudanças na organização da produção nos anos 70, conformando as cadeias globais de produção, têm produzido efeitos perversos sobre a vida dos trabalhadores.

As corporações buscam países de legislação laboral mais precária, ou forçam para que assim o seja, para se beneficiar da superexploração da força de trabalho a fim de assegurar suas taxas de lucratividade. Além dos efeitos perversos na jornada de trabalho, as cadeias globais de produção fragmentam a organização do trabalho. Por isso, as entidades sindicais estão também envolvidas na construção de um Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), para pôr fim à impunidade corporativa.

Outra pauta chave tem sido as negociações do acordo entre a União Europeia(UE) e o Mercosul. Entidades sindicais compõem a Frente Brasileira contra o acordo e apresentam preocupação com os impactos sobre a destruição ambiental, a perda de renda dos trabalhadores e a concentração da produção em setores intensivos como energia e água.

Daniel Gaio destaca: “A CUT vê com muita preocupação o impacto que este acordo terá para o sistema produtivo do Brasil em geral e para certos setores econômicos estratégicos. A indústria brasileira, que ano após ano já vem perdendo participação no Produto Interno Bruto [PIB] nacional, pode sofrer um golpe definitivo.”

“O modelo adotado apenas reforça nosso papel de meros exportadores de commodities e importadores de produtos industrializados e de alta tecnologia. Haverá, por exemplo, remoção de tarifas em setores estratégicos de nossa já frágil indústria, como automóveis, autopeças, químicos e fármacos”.

Estudos das organizações têm apontado para efeitos do acordo no que tange ao aprofundamento da reprimarização da economia e na intensificação da produção de commodities. Gaio afirma que o acordo reforça as vantagens comparativas dos países: “Cerca de 70% das exportações brasileiras para a União Europeia são de produtos primários e cerca de 90% das importações brasileiras do bloco europeu são de produtos manufaturados.”

“Além disso, os prazos estreitos ameaçam ainda mais uma transição ordenada dos setores produtivos, com impactos substanciais tanto na quantidade quanto na qualidade do emprego em ambas as regiões, além de resultar em situações imprevistas de deslocamento social (migrações do campo para a cidade, desemprego industrial em massa etc.)”. Assim, as condições de crescimento econômico de longo prazo, defendidas pela classe trabalhadora, na busca por melhores condições de vida, não se sustentaram diante do aprofundamento da dependência externa.

O sindicalismo à frente

Há bastante tempo, as organizações sindicais têm levantado bandeiras estruturais, como a questão ambiental. Na batalha das ideias, a CUT e a CSA têm protagonizado uma discussão sobre a transição energética justa, evidenciando o papel protagonista que a classe trabalhadora tem na construção das alternativas ao sistema. “Nosso trabalho vai no sentido de colocar a pauta da transição energética no cotidiano da classe trabalhadora, defendendo que esse tema não fique limitado a um debate entre especialistas e ecologistas e, menos ainda, um debate capitaneado pelo Capitalismo Verde e empresários do agronegócio e indústria. A existência de uma crise climática é visível e sentida por todas/os, na qualidade de vida, impacto na saúde, no acesso à água, qualidade dos alimentos. O que precisamos garantir é que a classe trabalhadora tenha a possibilidade de colocar seu ponto de vista, disputar a hegemonia e construir soluções para essa realidade. A partir de seus territórios e sua vida cotidiana, somos capazes de identificar quem e como causam problemas. Da mesma maneira que apontamos soluções”, explica Gaio.

As mobilizações do 1° de maio seguiram na campanha permanente contra a alta da taxa de juros, na defesa da democracia, contra o Acordo UE-Mercosul e na organização regional da classe trabalhadora na Jornada. “No Brasil, nós vamos continuar fazendo mobilizações. E o 1° de maio é um símbolo histórico para todos nós. Acreditamos que para recuperar o Brasil precisa de muita pressão e ação popular, como nós estamos vendo agora, por exemplo, na questão da regulamentação das plataformas digitais no Congresso Nacional. Estamos vendo que, apesar da vitória importante do presidente Lula, o Congresso Nacional, o parlamento brasileiro, é muito retrógrado, muito conservador. Portanto, precisamos continuar com as mobilizações sociais, e os trabalhadores seguir mobilizando para evitar que haja mais retrocessos, e temos a possibilidade de avançar naquilo que o governo brasileiro se dispôs a fazer durante sua campanha, que é reconstruir o Brasil e colocar o país de volta aos brasileiros”, defendeu Quintino, reafirmando a luta das organizações sociais.

Conteúdo publicado na integra no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/05/09/trabalhadores-e-trabalhadoras-em-luta-pela-democracia-e-contra-as-altas-taxas-de-juros 

Os impactos das empresas transnacionais na vida das mulheres

As empresas transnacionais são o centro do capitalismo contemporâneo. Organizadas em amplas cadeias globais de valor, expropriam territórios extraindo matérias-primas, que são transferidas por corredores logísticos que cortam terras, países, oceanos. Favorecem a exploração de mão de obra barata em todas as regiões que estiverem dispostas a receber seus investimentos em troca da redução de direitos humanos e trabalhistas. Assim, as corporações detêm um poder nunca antes visto, controlando economia, política, cultura  e, por conseguinte, as formas de produção da vida.

Ao contrário do que os economistas liberais nos querem fazer crer, as corporações são cada vez um grupo mais fechado. Esses donos do mundo decidiram parar de competir e se uniram para controlar setores estratégicos da economia, como a produção de alimentos e a saúde. Por detrás desses investimentos estão fundos de pensão cujas pessoas jurídicas e físicas ficam encobertas por um véu jurídico de proteção, com uma riqueza pulverizada em diversos paraísos fiscais ao longo da Terra. Não há limites, apenas um único objetivo: seguir lucrando sempre mais.

Contra esse poder nascem as lutas ao redor do dia 24 de abril, Dia Internacional de Solidariedade Feminista contra o Poder das Empresas Transnacionais. A data relembra as mais de mil vítimas do desabamento do prédio Rana Plaza, em Bangladesh, no ano de 2013. Mas também, as vítimas do Desastre de Bhopal, quando o vazamento de gás da fábrica de pesticidas Union Carbide India Limited matou quase 4 mil pessoas na Índia. Ou ainda, as 272 pessoas mortas em Brumadinho e as 19 mortas em Mariana, nos rompimentos de barragens de mineração em Minas Gerais. As 150 pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão nas vinícolas do Rio Grande do Sul. Uma lista interminável de graves violações aos direitos humanos por essas empresas.

A atuação das empresas transnacionais deixa um rastro de violência nos corpos das mulheres, que queremos relembrar neste dia 24 de abril. Quando as empresas transnacionais chegam aos territórios com vulnerabilidade social, apresentam uma série de discursos alegando que a obra irá promover o desenvolvimento local. Várias narrativas corporativas são mobilizadas para conseguir a aceitação das comunidades. Em geral, na linha de frente da resistência encontram-se as mulheres. E é justamente sobre suas vidas que recaem a externalização dos danos sociais e ambientais das empresas.

O patriarcado, como um sistema de dominação das mulheres, impõe uma divisão sexual do trabalho, que relega para as mulheres papéis sociais de cuidado da casa, da família, dos filhos, da saúde, da disponibilidade de alimentos, água, moradia. Quando todos esses direitos são ameaçados pelos interesses econômicos das corporações, são as mulheres que suportam a carga negativa. Tomemos como exemplo a situação emblemática da presença da Fraport, empresa alemã, que recebeu a concessão do Aeroporto Salgado Filho, na cidade de Porto Alegre (RS).

A Fraport e a destruição dos modos de vida da Vila Nazaré

No ano de 1960 se formou a Vila Nazaré, nas margens do que hoje é o aeroporto de Porto Alegre. Criada por camponeses e camponesas que foram sendo expulsos do campo e migraram para a capital em busca de melhores condições de vida. Ao longo dos anos na ocupação, a comunidade se organizou na Associação de Moradores, conquistando saúde, educação, acesso à água e luz, e desenvolveram formas de sustentação por meio da reciclagem de materiais.

Em março de 2017, a prefeitura concedeu a administração do aeroporto para a empresa alemã Fraport, que iniciou uma operação de ampliação da estrutura para atendimento de cargas. Nesse momento, começou o pesadelo da comunidade. Primeiro, a empresa negou a existência das famílias na área, alegando que a ocupação era ilegal. Uma técnica bastante comum entre as corporações, negar a existência dos sujeitos e das violações.

As famílias que viviam na Vila Nazaré começaram a sofrer um agressivo processo de remoção e de constrangimento por meio de diferentes estratégias de opressão aos modos de vida existentes na comunidade. Ao passo que as famílias eram removidas, também eram tiradas suas casas, apagando décadas de histórias. As mães que iam permanecendo na comunidade, conviviam com riscos à segurança das crianças, inclusive uma delas chegou a ter a guarda de sua filha questionada pelo Conselho Tutelar diante da precariedade da região de moradia.

Logo no início das obras, a empresa construiu um muro ao redor do aeroporto. Este muro impediu o acesso das crianças da Vila Dique à escola. Sem o muro, o caminho até a escola levava 15 minutos, mas com ele, passou a levar mais de uma hora, demandando até transporte público, o qual muitas famílias não poderiam arcar. Algumas mães tentaram quebrar o muro, para fornecer acesso das crianças à escola, mas foram criminalizadas.

A empresa contratou uma consultoria para conduzir o processo de remoção, que foi pouco a pouco sufocando a comunidade e impedindo as condições de vida. As mulheres enfrentaram, além do problema de acesso à escola, o isolamento das casas e a falta de atendimento à saúde – pois a Unidade de Saúde da região foi fechada. Sendo obrigadas a irem para área de reassentamento, as quais não estavam preparadas com equipamentos para atender as demandas das famílias.

Foram alocadas em dois condomínios – Nosso Senhor do Bonfim, no bairro Sarandi, e Irmãos Maristas, localizado na Rubem Berta, empreendimentos que pertenciam à prefeitura, sendo obras do programa federal “Minha Casa, Minha Vida”. Ocorre que, na divisão, separaram-se familiares e amigos, quebrando os laços comunitários existentes na Vila Nazaré. Para as mulheres, os laços comunitários compõem uma rede de solidariedade e apoio para a socialização do cuidado com as crianças, idosos e emergências de saúde. Em comunidade, as mulheres se apoiam para dividir tarefas de cuidado. Isaura Martins, militante do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Teto (MTST) removida da Vila Nazaré, revela a crueldade da ação: “botaram cada um num canto”.

Isaura conta ainda que o condomínio Irmãos Maristas, onde vive, difere muito da proposta que a empresa apresentou na única reunião que realizou com a comunidade. “A vida é ruim [no condomínio] porque fizeram um monte de proposta para nós, a gente está dentro de um galinheiro, não tem nem espaço para gente ficar com criança, para quem tinha casa grande, agora tem um penico, é ruim”. Conta ainda: “(…) tive que dar metade dos meus bichos, não pode plantar nada, ter horta, mudou muito, (…) fizeram várias promessas não cumpridas: colégio, posto, creche”.

As mulheres na comunidade tiveram que lutar pelo acesso à escola e permanecem em luta para melhorar suas condições porque, como conta Isaura, ainda não são iguais à situação que tinham na Vila Nazaré. Inclusive, na Instituição de Educação Infantil mais próxima não tem vagas suficientes para a demanda da comunidade, levando muitas mães a terem que buscar colégios mais distantes, desafiando o orçamento da família com os custos adicionais de transporte público. Na unidade de saúde referência para o atendimento da comunidade, o acesso também é precário, responsabilizando as mulheres pelo cuidado dos familiares.

Com o processo de remoção e reassentamento, a comunidade enfrenta dificuldades em manter a renda com a reciclagem porque os condomínios, além de não ofertarem a estrutura necessária para garantir a manutenção do trabalho, estão distantes da cidade, numa região com longo histórico de trabalhadores catadores de material reciclado. Isaura relata, que no antigo local de residência, “antes cada um saía catar material até a pé”, justamente pela proximidade da comunidade com as áreas centrais da capital. Porém, hoje, mais isolados, a renda com a prática tornou-se escassa. Muitas pessoas, principalmente as mulheres, não conseguiram se colocar novamente no mercado de trabalho porque a distância do condomínio e a precariedade dos equipamentos sociais e políticas públicas de educação infantil e mobilidade urbana dificultam o deslocamento da população em situação de vulnerabilidade e risco social. Sabemos que as mulheres, sobretudo pretas e periféricas, compõem os setores de trabalho informal, e por isso não acessam os direitos constitutivos da CLT, entre eles o vale-transporte, assim como os demais que permitiriam o acesso ao trabalho.

A vida das mulheres atingidas pela Fraport assemelha-se às violações sofridas pelas mulheres atingidas pelo rompimento de barragens, hidrelétricas, agronegócio, à medida que a chegada das empresas, o exercício de sua atividade econômica, conflita com as formas de produção da vida nos territórios. Em geral se observa que há uma sobrecarga do trabalho da economia de cuidado (acesso à educação e saúde), além do não reconhecimento dos impactos no trabalho das mulheres, aprofundando a invisibilidade e a vulnerabilidade.

O nosso remédio é a economia feminista popular

Não há outras formas de alcançar o fim da impunidade das corporações que não seja por meio da luta contra o poder corporativo. As mulheres, no mundo, têm se organizado e construído a economia feminista popular como uma ferramenta alternativa à crise sistêmica. É por meio desta proposta que as mulheres têm construído laços de solidariedade e apoiado outras mulheres a saírem de sua condição de vulnerabilidade. Podemos citar as cozinhas comunitárias presentes nos condomínios como estratégia de resistência popular ao enfrentamento da fome e insegurança alimentar.

Com organização, mobilização e participação comunitária, cujos laços de solidariedade mostram-se como alternativa aos impactos provenientes do processo de remoção e reassentamento, é possível vislumbrar a potência presente nos territórios. Para além da produção e distribuição gratuita de alimentos, os espaços das cozinhas se tornam referência na atenção, acolhida e cuidado, sobretudo para as mulheres e suas famílias. Uma vez que compartilham suas histórias de vida, demandas e alternativas de melhor resistir entre si. São espaços onde se gestam sonhos e esperanças, trocas e afetos. Locais onde são possíveis a construção de processos sociais emancipatórios e de análise crítica da própria realidade enquanto componente fundamental para o fortalecimento da luta das mulheres.

Pelo fim da impunidade aos impactos das ações produzidas pelas transnacionais! Por uma economia feminista e popular!

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, no link: https://www.brasildefato.com.br/2023/04/24/os-impactos-das-empresas-transnacionais-na-vida-das-mulheres 

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