A água como um bem comum: desafios para um projeto de país

Os conflitos ao redor da água têm se intensificado no mundo. Nos últimos anos, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), 70% da demanda por água é proveniente de atividades agrícolas, 22% para uso industrial e 8% para a população, isso representa que triplicamos a extração dela na última metade de século.

Ocorre que as mudanças climáticas, a velocidade da extração do bem e a poluição têm afetado sobremaneira a disponibilidade de água no mundo, gerando uma intensa disputa. 

De um lado, interesses corporativos que avançam para a mercantilização da água; de outro, povos unidos reivindicando seu reconhecimento como patrimônio comum à serviço da humanidade. Assim, a água é sem sombra de dúvidas um dos eixos “suleadores” das lutas por justiça social e ambiental, o qual é atravessado pela crise econômica, política, ambiental e cultural.

Desse modo, apresentar soluções para a crise da água num programa de governo é tarefa urgente. Basta observar que o Brasil concentra 13% da água do planeta, se tornando território estratégico da disputa geopolítica da água. Sob nossas terras pairam os interesses no acesso às águas dos maiores aquíferos, rios e lagos do mundo, bem como nas possibilidades de negócios e da ação da especulação financeira sobre a prestação do serviço de acesso à água para a população.  

Nesse cenário de disputa, as grandes capitais brasileiras têm sofrido as consequências da ausência de planejamento estratégico sobre o uso das águas, como também os efeitos da deficiência da proteção ambiental.

Em muitas das cidades se implementou regimes de contingenciamento, que variam entre dias da semana e horas sem abastecimento. Tal medida afeta desigualmente os bairros das cidades, uma vez que zonas periféricas estão condicionadas a sofrerem mais essas medidas, chegando em alguns casos à precária prestação do serviço por meio de caminhões pipa

CasaNat, sede da Amigos da Terra Brasil, em Porto Alegre (RS), instalou uma pia na calçada da rua para que as pessoas tenham acesso à água potável / Foto: Arquivo ATBr

Além desses, há a parcela da população brasileira que sequer tem acesso. Estamos falando dos cidadãos que vivem em ocupações urbanas, nas quais a inexistência da regularização fundiária urbana cria entraves burocráticos para o fornecimento de serviços básicos essenciais, como água potável. Essa realidade é semelhante à enfrentada por muitas comunidades rurais nas quais o serviço de abastecimento não é fornecido. E ainda, a parcela ainda mais pauperizada, as populações em situação de rua, que não dispõe de espaços públicos para beber água, lavar-se, coletar água. 

O direito humano à água é um direito essencial para desfrutar da vida e de todos os demais direitos humanos. No entanto, 5,5 milhões de brasileiros e brasileiras são privados dele cotidianamente.

Situação que se agravou na pandemia, quando lavar as mãos constitui-se na principal medida preventiva. Ao contrário de reconhecer e buscar solucionar essa problemática, as ações do governo parecem ir na contramão da garantia do direito, já que nenhum programa foi desenvolvido nos últimos anos sobre o tema. Destaca-se que durante a pandemia, os governos dos estados se limitaram às políticas de não corte de acessos, não abarcando, portanto, os que não acessam o serviço.

Não apenas a problemática do acesso tem se colocado, como o desafio de fornecer água de qualidade. Isso se deve à falta de preservação das nascentes e à contaminação dos cursos de água com poluentes da indústria, com resíduos das atividades extrativas e com agrotóxicos. Em geral, as estações de tratamento de água nas cidades não dispõem de equipamentos de análise sofisticados para pesquisas mais complexas de poluentes químicos, como a presença de metais pesados, logo, estudos qualificados sobre os impactos do consumo dessa água para a saúde humana não estão sendo realizados.

Um dos exemplos é o Rio Guaíba, que abastece toda a cidade de Porto Alegre (RS), no qual estudos recentes têm revelado índices elevados de poluição. 

Como se não bastasse, está em curso uma estratégia de mercantilização das águas no país, que vem sendo confrontada por movimentos populares, os quais defendem a água como bem comum. Dentre as medidas, encontramos a privatização dos serviços de saneamento (distribuição de água, esgoto, limpeza urbana e resíduos sólidos), por meio do avanço de projetos legislativos, e a financeirização das águas.

Se a privatização dos serviços de saneamento avançar, implicará na mudança da orientação da prestação do serviço como público essencial para a lógica capitalista da maximização dos lucros. Isso resultará, em curto prazo, no aumento do preço das tarifas, podendo dificultar ainda mais o acesso da população à água. É importante mencionar que pequenos municípios, e até alguns bairros mais distantes, não apresentam rentabilidade para a prestação do serviços.

No modelo atual isso é compensado por meio da relação de solidariedade do sistema, onde regiões mais rentáveis compensam menos rentáveis, assegurando a universalidade da prestação. Caso ocorra a privatização isso se quebra, relegando essas regiões a ficarem sem o serviço, ou criando um maior ônus ao Estado para sua prestação.

A crise hídrica é uma realidade no Brasil que precisa ser analisada sob a ótica da responsabilização das empresas transnacionais pelo uso indevido do bem comum, bem como dos atores públicos pela sua cumplicidade e má-gestão. Nessa esteira, a falta de acesso à água está diretamente relacionada à não concretização de direitos, bem como à distribuição desigual das riquezas. Não podendo se desconsiderar, nesse cenário, os impactos ambientais. Assim, pensar um programa de governo que dê respostas à crise do povo precisa enfrentar a urgência do tema da água.

A água no Brasil que queremos

Movimentos e organizações populares têm buscado construir a agenda da defesa da água como um bem comum, identificando-se como “guardiões e guardiãs das águas” tal como posto na Declaração Final do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), em 2018: “Água é um bem comum e deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Por isso, nosso projeto para as águas tem na democracia um pilar fundamental.

As mudanças climáticas, a velocidade da extração do bem e a poluição têm afetado sobremaneira a disponibilidade de água no mundo, gerando uma intensa disputa / Foto: Joka Madruga

Existem excelentes exemplos latino-americanos que podem inspirar o Brasil a tomar um novo rumo sobre as águas, desde a perspectiva da gestão pública até um uso mais sustentável do meio ambiente. Nesta esteira, é urgente reverter a possibilidade de privatização do abastecimento de água e manter o Estado no controle da administração pública, em parceria com as comunidades.

No Uruguai e em El Salvador foram realizados plebiscitos populares que mantiveram a água no controle público. Também tivemos aprendizados na Bolívia, em Cochabamba, quando a privatização resultou em tarifas extraordinárias, criando o cenário para a “guerra da água”, que resultou na re-municipalização do serviço. De igual modo, a cidade de Paris, na França, e outras 235 cidades, em 27 países, retomaram ao controle municipal a distribuição da água, avançando para uma maior universalização e qualidade do serviço, partindo do reconhecimento do fracasso da privatização.

Também, nesse caminhar, têm sido reconhecido o papel das organizações comunitárias em gerir a água. Em muitos países, tem se reconhecido a importância de se falar numa função social da água, a partir da afirmação desta como bem comum e patrimônio do povo. São mais de 80 mil comunidades que preservam as nascentes, colocando-as como públicas, de acesso livre às populações de seus territórios, e com cuidado compartilhado, tendo como premissa a universalização, sustentabilidade e democratização.

O direito à água em si ainda não foi reconhecido na Constituição e precisa ser revisto, uma vez que associá-lo apenas ao direito à alimentação adequada não contempla sua complexidade relacional com a saúde, a cultura, a soberania alimentar e hídrica, a garantia dos direitos à natureza. Precisamos avançar na inspiração de outras constituições da região e conectar esse direito aos da natureza, trazendo centralidade para os povos como sujeitos. 

Essas são apenas algumas das iniciativas que podem ser incorporadas em programas e plataformas durante o processo eleitoral deste ano, não se constituindo como o fim do debate, pelo contrário, ainda temos um longo caminho para pensar o controle, a distribuição e gestão popular das águas no Brasil. Seguimos trabalhando, no ressoar da aglutinação do FAMA, entoando que “a água não é mercadoria. A água é do povo e pelos povos deve ser controlada”.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 9/05/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/09/a-agua-como-um-bem-comum-desafios-para-um-projeto-de-pais . Crédito da foto de destaque: Joka Madruga

Quem fez a sua roupa? A luta contra o poder das corporações

A fragmentação das cadeias produtivas em diversos negócios espalhados pelo mundo construiu grandes cadeias globais de valor. Nós, consumidores finais, não temos consciência de todo o caminho que é percorrido de uma roupa até a loja onde as compramos. Até mesmo os Estados não conseguem ter o controle sobre a totalidade da produção, ficando limitados a regular partes da cadeia que estão em seus territórios. A totalidade desse processo está na mão de grandes corporações transnacionais, as quais concentram riquezas maiores que muitos desses países, juntando poderes político, econômico, cultural. 

Na ponta das cadeias globais estão as maiores violações aos direitos humanos, é precisamente no processo de extração de recursos, e no processo produtivo em si, quando a matéria bruta ganha valor agregado com o trabalho, que são ocultadas as maiores barbáries. Isso porque nossa economia, estando sob o controle das empresas transnacionais, é centrada na obtenção de lucro. Esse afã é sustentado na externalização dos danos socioambientais aos povos, como alguns denominam de espoliação, e na superexploração da força de trabalho. Assim, trabalho precarizado e subalternizado, em condições inadequadas, é a lógica estrutural. As grandes marcas, por sua vez, não querem sua imagem diretamente associada a essa violência, por isso atuam por suas terceirizadas, criando obstáculos para sua responsabilização direta.

Essa é a realidade da indústria têxtil. Recordemos, que em 24 de abril de 2013, desabava o edifício de oito andares Rana Plaza, na cidade de Daca, capital de Bangladesh. O prédio abrigava uma parte da cadeia de produção têxtil de grandes empresas transnacionais fragmentadas em diversas fábricas de precárias instalações. No desastre morreram 1.134 pessoas, das quais 80% eram mulheres que trabalhavam na costura. Restaram, ainda, 2.500 pessoas feridas. 

Em termos de responsabilização, o proprietário do prédio foi responsabilizado penalmente. Algumas das vítimas foram indenizadas por corporações da indústria têxtil, com valores por volta de 200 dólares por família, contudo era obrigação dos parentes conseguir provas de DNA. Uma das respostas construídas ao caso, pela comunidade internacional, foi o Acordo sobre Segurança de Fábrica e Predial em Bangladesh. Das 29 marcas identificadas com produtos das fábricas do edifício, apenas 9 participaram das negociações e da assinatura do acordo, e somente 7 contribuíram para o Fundo Fiduciário do Doador Rana Plaza apoiado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Como o desastre de Bangladesh, vários setores da indústria operam dessa forma cotidianamente, evidenciando que não foi um caso eventual, mas é estruturante do sistema. As grandes corporações têm ditado a lógica econômica centradas na maximização de seus lucros, por meio do estabelecimento de condições precárias de trabalho, da promoção da informalidade dos trabalhadores e das trabalhadoras, da exigência de extensas jornadas de trabalho, entre outros. São elas que acumulam todo o lucro gerado ao longo da extração, produção e circulação de bens e serviços, acumulando o domínio, cada vez mais intenso, dos territórios e o controle da vida. Contam ainda com a constituição de um minucioso sistema de proteção de seus direitos por meio da captura corporativa, dos tratados de livre-comércio e das comissões de arbitragem internacional, compondo a arquitetura da impunidade corporativa global. 

Contra o silêncio que o tempo poderia dar a essa história, a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) escolheu o dia 24 de abril como dia de ação global pela solidariedade contra o poder das corporações sobre o trabalho das mulheres, seus corpos e suas vidas. Sendo um dia de luta para desnaturalizar a impunidade, ao colocar rosto e nome nos agentes do mercado que causam violações aos direitos humanos, ao evidenciar a gravidade do controle do poder por parte das empresas transnacionais e em promover a defesa da natureza, da vida digna, do trabalho justo e livre de superexploração. As ações pensadas escracham a hipocrisia da responsabilidade social corporativa, ao passo que constroem exemplos concretos de alternativas ao neoliberalismo, ao organizar processos de construção de soberanias centrados no direcionamento de uma economia para a vida. 

No dia 24 de abril deste ano, está incluída também a denúncia da guerra e de quem se beneficia com ela. O custo de vida no Brasil aumentou exponencialmente nos últimos anos, levando centenas de mulheres a perderem seus trabalhos e se encontrarem sem condições de moradia digna, sobrecarregadas pelas tarefas de cuidado. A solução neoliberal para a crise é o aumento do autoritarismo e o avanço fascista, expresso na guerra “contra o narcotráfico” e na violência da flexibilização da legislação protetiva ambiental para extração de minérios e expansão da fronteira agrícola. Por trás dessas políticas estão empresas transnacionais se beneficiando das políticas de “austeridade” e destruição ambiental. Assim, neste 24 de abril de 2022 as ações são para recordar que existem alternativas à guerra e que tais crises sistemáticas podem ser superadas por meio da solidariedade de classe, com promoção de justiça para todos. É possível construir um mundo no qual todas as mulheres e territórios sejam livres, sem destruir o planeta.

Por onde vamos com esperança: solidariedade feminista em ação

No mês de março um importante passo para a responsabilização das empresas foi dado no Brasil com o PL 572/2022, que prevê a criação de um marco nacional de empresas e direitos humanos. Cláudia Ávila, coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), avalia que o PL é uma ferramenta importante para efetivar a aplicação dos mecanismos de responsabilização cível criminal e administrativa de proteção dos direitos humanos não só no âmbito da reparação, mas também, e principalmente, para prevenção das violações de direito. Em sua justificativa, o projeto reconhece a assimetria e os impactos da atuação de empresas na vida das mulheres, bem como prevê mecanismos que podem representar mudanças estruturais no acesso à justiça para atingidas.

A urgência de um PL é para evitar casos como da concessão do Aeroporto Salgado Filho à Fraport, em Porto Alegre (RS), no qual para ampliação da pista do aeroporto removeu, sem nenhuma escuta, nenhuma participação ou chance de escolha da comunidade cerca de 2.000 famílias da Vila Nazaré para local distante, em moradias não condizentes com a realidade das famílias com todo um modo de vida rururbano que há mais de 50 anos construíram não apenas moradias, mas cidade naquela região.

Destaca-se a previsão, no PL, da criação de um Fundo Emergencial para as vítimas, que possa assegurar a recomposição da renda das famílias; previsão de custos para assessorias técnicas; garantias de acesso à água potável, que permitiriam a continuidade de condições de vida digna até a conclusão da reparação integral. Outra previsão fundamental é a inversão do ônus da prova, já que as empresas dispõem de melhores condições de acesso à prova. Se pensarmos essas medidas aplicadas ao caso, por exemplo, de Rana Plaza, os familiares das trabalhadoras mortas não teriam ficado desamparados durante meses posto que contariam com o Fundo. Ademais, a sobrecarga de provar a perda se inverteria à empresa, facilitando o acesso às indenizações. 

A construção de esperanças também nasce das resistências concretas nos territórios, assim a luta contra o poder corporativo é também momento de construção de alternativas desde os povos. Inspirados nisso é que se organiza, desde 2020, a Aliança Feminismo Popular no RS, composta pela MMM, MTST e Amigos da Terra Brasil (ATBr), com apoio do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Uma das propostas é a construção de hortas agroecológicas  na ocupação do Morro da Cruz, na capital gaúcha, no apoio à soberania alimentar da comunidade. A militante da MMM e moradora da comunidade, Any Moraes, considera as atividades realizadas neste dia 24 de abril no local, marcado pela Ação de Solidariedade Feminista, como “um momento de nos encontrarmos na horta comunitária do Morro da Cruz num espaço que foi construído por meio dessas ações de solidariedade durante o período da pandemia, quando agravou ainda mais a situação de insegurança alimentar, principalmente das mulheres. É um espaço que tem sido importante para construção de reflexões, e a atividade desse domingo foi o momento da nossa resistência, a nossa luta no enfrentamento às transnacionais e a esses governos de extrema direita que aprofundam cada vez mais o autoritarismo, e avançam com a exploração das nossas vidas, dos nossos corpos e dos nossos territórios”.

Investir na construção de soberania alimentar nas ocupações é uma forma de tecer alternativas concretas para a vida prática das mulheres. Ao longo do dia 24 de abril de 2022, as mulheres da Aliança destacaram a importância do direito à moradia e da alimentação como bens comuns,  afirmando a urgência de avançarmos na produção de alimentos com qualidade e soberania. Letícia Paranhos, militante da Amigos da Terra Brasil e membra da Aliança, esteve presente na atividade do Morro da Cruz. Para ela, foi uma felicidade encontrar o avanço na continuidade da organização pela soberania alimentar na comunidade com o estabelecimento de uma cozinha comunitária, num momento em que no Brasil há tanta fome. Frente ao descaso do governo para com essa agenda, é de suma importância conseguir conversar e organizar, sendo esse um dos propósitos da Aliança Feminismo Popular, o de construir possibilidades dentro dos próprios territórios. 

Feminismo Popular

Há muitos feminismos hoje, inclusive o corporativo. Diversas das marcas envolvidas no desastre em Rana Plaza vendem camisetas de slogans feministas; financiam projetos para “empoderamento” das mulheres; promovem políticas de equidade de gênero em seus códigos de conduta; algumas até incorporam debates LGBTQIA+. Todas essas iniciativas fazem crer que as soluções são individuais, na tomada de autoconsciência do indivíduo, não necessitando de mudanças profundas nas estruturas e práticas de poder. 

O dia 24 de abril é também uma crítica a esse movimento. Pensar que as roupas amplamente vendidas pelas grandes marcas possuem trabalho de alguma mulher do Sul global incorporado. É precisamente essa trabalhadora sem direitos e mal paga que conferiu a costura da peça que você veste, trabalho alienado e invisibilizado (que produz a sua roupa). 

Assim, lutar por um verdadeiro reconhecimento da mulher é pensar um projeto político coletivo que rompa a estrutura do poder corporativo global, que possa trazer dignidade a essa trabalhadora, de tal forma que ela se reconheça no produto do seu trabalho e receba as condições para uma existência plena do esforço do seu trabalho, contando com toda uma rede de proteção social gratuita. Letícia, da Amigos da Terra Brasil, considera que aprofundar os laços de um trabalho coletivo, organizado, para a continuidade das vidas no mundo, é redefinir o direcionamento dos lucros extraordinários para serem distribuídos entre os despossuídos, até que todos e todas possam viver com dignidade. Esse é o feminismo que queremos, popular, por ser feito pelo povo, para o povo e com o povo e, portanto, um projeto de libertação de todas as mulheres, porque como indivíduos somos apenas corpos e territórios expostos a brutas estruturas, mas como coletividade somos sujeitas centrais da transformação da sociedade.  

Resistimos para viver, marchamos para transformar!

* Este é um artigo de opinião publicado no site do jornal Brasil em Fato em 25 de Abril (link aqui).

Confira mais fotos:

Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil
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Lobo em pele de cordeiro: a economia verde e as falsas soluções para a crise climática

Em 1992, durante a ECO-92, os Estados resolveram despertar para o problema das mudanças climáticas e assumir uma agenda comprometida com a redução das emissões de carbono. Naquele momento, ganhava força uma nova narrativa para modelo de desenvolvimento neoliberal, sua adjetivação como sustentável. 

Buscando atender a agenda, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) criou em 2008 a Iniciativa Economia Verde. Em sua definição, a economia verde, como ficou conhecida, seria a alternativa ao modelo econômico dominante que ameaça a saúde humana e o meio ambiente, tornando a economia mais sustentável por meio da inclusão social, maior eficiência no uso de recursos naturais, estímulo ao consumo consciente, estabelecimento de políticas de baixo carbono ou carbono zero.  

Diversas iniciativas decorreram da economia verde, como a criação do mercado de carbono, que passou a incluir as florestas por meio de políticas de Redd e Redd+; a propagação da “agricultura climaticamente inteligente”, assentada no uso de transgênicos e agrotóxicos; a promoção do uso de energia limpa, por meio do emprego de fontes renováveis, incluindo hidroelétricas, eólicas, solares, agroenergia e da transição energética nos países. Mais recentemente, esse pacote foi apresentado como soluções baseadas na natureza (SBN), que buscam a compensação ambiental, contabilizada em carbono ou biodiversidade, para justificar a continuidade do avanço de projetos destrutivos dos territórios e, assim, também do clima e do meio ambiente. 

Todas essas políticas que partem de atribuir valor econômico para a natureza, não por acaso são promovidas por grandes setores industriais e grupos empresariais, muitos deles diretamente responsáveis por cadeias de valores entre as maiores emissoras de gases de efeito estufa (GEE), como a do agronegócio. Dessa forma, ao invés de serem responsabilizados por contribuírem para a crise climática, esses atores são os protagonistas das novas “soluções”. Ao contrário de frear a destruição, criam-se mecanismos para que ela possa continuar, desde que compensando.  

Desde a Rio+20, organizações da sociedade civil e movimentos populares alertam para essas “falsas soluções”, à medida que as “inovações” propostas não respondem à pergunta de como proteger, preservar, restaurar e aumentar a biodiversidade, nem como reduzir as desigualdades sistêmicas que enfrentamos. Pelo contrário, a economia verde atua com políticas compensatórias que mantêm o paradigma da produção de danos. Ademais, reproduzem uma assimetria de poderes entre Norte e Sul global ao determinar os lugares onde se compensa e se produz danos, em geral ao Sul. E por fim, desconsideram o papel dos povos e comunidades na gestão comunitária da sociobiodiversidade. 

Essa visão utilitarista da Natureza tem causado impactos que são desconsiderados. Segundo estudos da Amigos da Terra Internacional há uma conexão entre a expansão das soluções baseadas na natureza (SBN) com a expansão da fronteira agrícola, o desmatamento na Amazônia brasileira, o avanço da financeirização da Natureza; com a intensificação do uso de agrotóxicos e organismos geneticamente modificados e inúmeros danos sociais e ambientais pela adesão a políticas de crédito de carbono. 

Agora em 2022, que completa 50 anos da primeira conferência da ONU que tratou do tema do Desenvolvimento Sustentável, em Stockholm, na Suécia, o relatório divulgado pelo IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) confirma o crescimento das emissões de GEE e, consequentemente, o fracasso dos mais de 10 anos de economia verde em resolver a crise climática. Aponta, ainda o relatório, para a importância de uma visão integrada entre a crise ambiental, a saúde, as desigualdades e a produção de alimentos, reconectando a agenda do clima com um de seus propósitos iniciais: a erradicação da fome. Há, também, um destaque aos povos indígenas no relatório, que chama a repensar o papel dos povos da floresta na participação e decisão da questão ambiental no mundo, à medida que esses sujeitos têm proposto alternativas bastante sólidas para a transição como a agroecologia, o manejo comunitário dos ecossistemas, a produção de energia renovável de forma descentralizada em parcerias público-comunitárias etc. 

ACRE: “quem corre é os rios”

Um estado amazônico esquecido da política nacional é, há mais de uma década, alvo de experimento de políticas e projetos da “economia verde” no Brasil, o Acre. No final da primeira década dos anos 2000, a administração pública adotou o discurso da modernização do estado com base em construir um modelo de “economia verde” para o país. O primeiro passo foi a criação do Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), implementando em todo o estado o REDD, do qual resultou a compensação de cerca de 18,5 milhões de dólares pelo governo alemão para manter a floresta em pé. Contudo, o que tem ido abaixo é justamente a floresta. Essa política sufocou as fontes de renda de comunidades extrativistas na região e atraiu fazendeiros. Para os povos que habitam a floresta, é apenas um “verniz ecológico” que oculta a captura de suas terras – e as conquistas de suas lutas sociais,  reconhecida mundialmente desde a década de 80 na história do líder sindicalista seringueiro Chico Mendes, impondo uma submissão a essa política.

Outro destaque é a ausência de conexão entre tais políticas climáticas, que deveriam estar baseadas ou enraizadas no chão, na natureza, com os direitos territoriais dos povos. Os recursos provenientes do Redd+ servem para cooptar lideranças e dividir comunidades, impondo outras formas de organização social. Não são recursos aplicados para assegurar os direitos coletivos à terra e direitos associados aos territórios, como água, autodeterminação, direitos das mulheres. Assim, tais políticas estão deslocadas dos contextos locais, não promovendo demarcações de Terras Indígenas e desenvolvimento local, pelo contrário, significam desterritorialização, perdas culturais. 

A sociedade civil e movimentos sociais têm se organizado há décadas para resistir à invasão da economia verde em seus territórios, construindo poder popular para incidir na agenda climática. Ao longo dos anos, essas articulações foram se dando em torno de alguns objetivos comuns: compreender e denunciar os impactos dos projetos e programas da economia verde nos territórios, com protagonismo dos povos indígenas, extrativistas e comunidades tradicionais, e fazer a resistência ao processo de mercantilização e financeirização da natureza, em curso no estado, no Brasil e no mundo. Um dos exemplos dessa construção é o Coletivo Carta de Belém, que tem levado críticas e demandas de um conjunto de organizações e de movimentos sociais do Brasil às COPs de Clima (Conferências das Partes organizadas pela ONU). 

As propostas populares começam com a exigência de reduções reais das emissões de gases de efeito estufa (GEE), tendo como objetivo a mudança de sistema para não mudar o clima, responsabilizando efetivamente poluidores e não sobrecarregando povos com a conta ambiental. A segunda proposta reside em organizar a resistência para denunciar e paralisar as falsas soluções do capitalismo verde, sobretudo na crítica aos mercados de carbono e biodiversidade. “É preciso apagar – de uma vez por todas do livro de regras climáticas e sobrevivência humana – o artigo que permite negociar e lucrar com medidas que violam direitos e modos de vida das pessoas nos seus territórios, e que em nada contribuem para evitar o aquecimento acelerado do planeta” como propõe a Amigos da Terra Brasil, em publicação lançada nesse mês, um Abril de mobilizações indígenas históricas, em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM).

Para onde vai o Brasil? Como trabalhar com a Natureza?

Até agora, os governos têm assumido a agenda da economia verde como resposta aos impactos da crise climática no país, quando não escancaradamente a dos grileiros, desmatadores, garimpeiros e poluidores, como acontece no governo atual. Tendo sido o Brasil um país sede de tantas importantes conferências e debates ambientais globais, a questão segue complexificada e maquiada, exigindo um debate público mais amplo e qualificado para além da mera adesão às propostas de mercado. Ao pensar no projeto político que queremos construir para os próximos anos, devemos assumir uma noção e prática de respeito à Natureza e trabalhar com ela para a nossa soberania. Nesse sentido, existem inúmeras experiências práticas construídas pelos movimentos e povos organizados no país, como a agroecologia, a construção da soberania alimentar, a gestão comunitária de florestas e outros ecossistemas, que se relacionam de maneira profundamente humilde, com compreensão e respeito pela Natureza e com a cultura popular.

As comunidades vêm administrando seus territórios de forma sustentável ao longo de gerações, por meio de abordagens que são profundamente ecológicas e pedagógicas. Nesses casos, o que é necessário é um ambiente institucional colaborativo e uma governança responsável que proteja as comunidades locais e indígenas das ameaças colocadas pela expansão do agronegócio, que força as pessoas a abandonarem seus territórios e ecossistemas ou a defendê-los.

Para enfrentar a crise climática, os governos devem começar urgentemente a cooperar para uma eliminação gradual coordenada da produção e consumo de combustíveis fósseis, com equidade, indo ao coração desse problema, que é repensar o modelo produtivo. Precisamos acelerar a transformação para um mundo justo, transformando nosso sistema energético, incluindo princípios como suficiência energética para todos, soberania energética, democracia energética, energia como um bem comum, energia 100% renovável para todos e energia renovável de baixo impacto, com gestão comunitária e com controle social das políticas no setor.

O Brasil que queremos é um país líder internacional na promoção de experiências concretas de combate à crise climática, construídas dentro de um profundo processo democrático participativo. Para um governo que virá, chamamos a atenção às falsas soluções ambientais que promovem maior dependência econômica do país, e não se mostraram efetivas para as mudanças climáticas. Instamos a investir em saídas muito mais simples e acessíveis, baseadas nos saberes do povo brasileiro, como repensar o modelo agrícola, o conservacionismo ambiental, os investimentos privados em energia e investir acreditando nos povos como sujeitos políticos protagonistas das transformações que necessitamos fazer.

*Este artigo de opinião da Amigos da Terra Brasil foi veiculado no site do jornal Brasil em Fato em 11 de Abril (acesse aqui).

PL 572: um caminho para a regulação de empresas transnacionais no Brasil

Em 1972, Salvador Allende fez um discurso histórico nas Nações Unidas problematizando o avanço das empresas transnacionais sobre a vida política chilena, clamando pela urgência de se regular o poder das grandes corporações.

Não por acaso, em 1973 foi vítima de um golpe de Estado que inaugurou, no Chile, um laboratório das políticas neoliberais, o qual se expandiu em toda a América Latina, assentado em amplos processos de privatização de empresas públicas, abertura de mercado interno e acesso a matérias-primas para transnacionais.

Passados quase 50 anos, a esquerda volta ao poder no país, com Gabriel Boric, e de novo o tema das transnacionais aparece ligado à disputa de governo, nos embates acerca da privatização do lítio. Em seu discurso de posse, Boric novamente pontua a necessidade de enfrentar o poder corporativo.

No Brasil, desde os anos 90, as políticas neoliberais avançam para a privatização de setores estratégicos do desenvolvimento nacional como setor elétrico, mineração, política agrária, etc.

Todas essas mudanças são processos antidemocráticos e estiveram sempre conectados à defesa de interesses estrangeiros dessas empresas no país. Isso se observa no golpe de 2016 e na implementação subsequente de governos alinhados com os interesses da indústria petroleira, que vem viabilizando a fragmentação e privatização da Petrobras.

Aliás, a mudança nos rumos da política tem permitido que corporações avancem na mercantilização da água, na flexibilização das normativas ambientais, na intensificação da precarização do trabalho, em suma, externalizando os custos sociais e ambientais ao povo brasileiro.  

A configuração da economia capitalista, em sua etapa neoliberal, tem servido para consolidar e reforçar a centralidade das empresas transnacionais na economia mundial.

Assim, elas acumulam cada vez mais poderes econômicos, políticos e culturais, controlando muitos Estados que possuem economia dependente desses investimentos. Estes acabam por tornar-se cúmplices das violações aos direitos dos povos para atender as empresas e assegurar a manutenção da taxa de lucro.

Como bem pontua García Linera, após o golpe na Bolívia em 2019, é um desafio construir governos, e permanecer no poder, tentando construir projetos soberanos frente aos interesses empresariais.

Muitos movimentos populares ao redor do mundo constituem sua resistência no enfrentamento ao avanço do poder corporativo e na afirmação da iminência de se construir um projeto soberano para esses países. Nesse desafio, as táticas de luta vêm sendo revistas; como nas questões agrárias, a entrada da economia verde, o avanço de transgênicos e de agrotóxicos tornaram a luta pela terra muito mais complexa que o acesso à terra face ao Estado.

Assim como no campo dos atingidos pela mineração ou hidroelétricas, que já não enfrentam o Estado para garantir seus direitos, mas estão submetidos a lutar contra empresas de capital aberto, compostas por acionistas dos quais não se tem acesso. 

Isso leva à incorporação da agenda de luta contra as empresas transnacionais presente na luta contra novos tratados de livre comércio, como se traçou contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e, agora, contra os acordo do Mercosul com a Europa; contra o uso da dívida externa como mecanismo de controle dos países do Sul Global para entrada de capitais estrangeiros e a proposta de auditoria das dívidas; no rechaço às políticas da Organização Mundial do Comércio (OMC), clara defensora do protecionismo das transnacionais.

Não apenas em agendas reativas de mobilização, mas também na consolidação de grandes articulações de projetos mais soberanos, como a Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo, que possui um eixo sobre transnacionais; a Campanha Global pelo Desmantelamento do Poder Corporativo e pela soberania dos povos, cuja uma das frentes principais de trabalho é o avanço do Tratado Vinculante para a regulação de empresas transnacionais em matéria de Direitos Humanos no Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas). 

O Brasil e a América Latina como um todo são explorados e colonizados desde a implementação da Companhia das Índias, por isso marcadores de ruptura com processos reais de independência e construção de projetos soberanos sempre estiveram presentes no seio da esquerda.

A novidade é que a luta contra os complexos arranjos jurídico-políticos das empresas transnacionais, organizadas em confusas estruturas de cadeias globais de produção, demanda um refinamento tático para olhar o problema do poder corporativo no seio da captura dos bens comuns como a água, terra, energia, minérios, florestas, corpos-vida dos trabalhadores e trabalhadoras. Contra que arranjo devemos nos mobilizar e pensar num programa de ação?

A arquitetura da impunidade: o crime compensa

As empresas transnacionais são estruturas complexas, compostas por diversas sociedades e subsidiárias ao longo de toda a cadeia produtiva. Essa fragmentação aparentemente demonstra uma independência entre os elos da cadeia, que dificulta sua responsabilização. As normas comerciais, a captura corporativa do processo legislativo por meio do lobby, compõem um quadro em que as corporações são protegidas e as vítimas não reparadas.

Nesse cenário que se consolida a noção de “arquitetura da impunidade corporativa” assentada não somente sobre a assimetria de poder entre as grandes empresas e os povos que resistem e sofrem as espoliações, mas também sobre a assimetria de poder entre essas empresas e muitos Estados receptores de investimentos, bem como nas relações comerciais assimétricas e desiguais entre blocos de países e regiões. Uma arquitetura que possibilita e favorece a injustiça sistêmica, a continuidade dos padrões e a certeza de impunidade por parte das empresas.

Nos últimos anos, avançou-se em marcos protetivos das corporações no cenário internacional. Elas têm ganho a batalha de ideias e se afirmado como atores na construção de políticas públicas com tanta ou maior legitimidade que os povos.

Desse modo, o Estado transfere poderes de fiscalização, monitoramento, responsabilização e reparação por violações aos direitos humanos para as próprias empresas por meio da responsabilidade social corporativa. Como cada vez mais os Estados estão debilitados pelos desmontes neoliberais, já não dispõem de estrutura para fiscalizar cumprimento ambiental e promover políticas públicas sociais em zonas afetadas por empreendimentos, e transferem essas tarefas históricas às corporações.

Esse é o caso do rompimento das barragens de Fundão e Complexo de Feijão em Minas Gerais. A transnacional brasileira Vale S.A, responsável pelo crime, coordena toda a política reparatória.

Há anos, as instituições de Justiça tentam fazer cumprir a legislação e são barradas pela captura corporativa nos três poderes. Apesar da gravidade, até hoje as vítimas não foram devidamente indenizadas, enquanto a companhia segue tendo superação de lucratividade, evidenciando como o crime compensa. Nesse caso, os rompimentos reincidentes da mesma empresa demonstram como a certeza da impunidade é estruturante.

Cartilha lançada no ano passado denuncia casos de violação dos direitos humanos pelas transnacionais no Brasil / Reprodução

Isso é possível porque, desde os anos 2000, com o Pacto Global se consolida a noção de conflito com multiatores, coroada com a aprovação dos Princípios Orientadores de Direitos Humanos e empresas, nos quais se ignora os interesses na lucratividade das empresas para considerá-las parceiras na promoção do desenvolvimento.

A mudança no papel da responsabilização estatal para a voluntariedade das empresas em fazer cumprir, no limite de não interferência dos seus fins de lucro, é um retrocesso no caminho para soberania porque acaba por reforçar o maior controle social e político delas. Dessa forma, assume-se o mito de que os conflitos serão resolvidos com a participação e a consideração de todos os atores envolvidos como os governos, iniciativa privada e sociedade civil por meio de bases igualitárias, desconsiderando a profunda assimetria de poder entre eles. 

Esse é um discurso incorporado por governos que afeta profundamente as bases democráticas. Se nos atentarmos ao fato de que corporações representam apenas seus interesses, que não são outros que lucros que são conquistados com aumento da taxa de exploração, não estão submetidas a prestação de contas pública, a mecanismos de elegibilidade e controle social, vemos como as inovações pensadas como códigos de conduta, relatórios de sustentabilidade e demonstrativos financeiros estão longe de atender os interesses democráticos, outrossim são feitos para responder a demanda de acionistas e dar uma roupagem verde e responsável ao mundo empresarial. 

Por fim, os Tratados de Livre Comércio são o grande atentado à soberania dos países, quando muitos Estados respondem em tribunais privados de disputas sobre investimentos por violar cláusulas de acordos comerciais ao tentar garantir direitos humanos, como a saúde de seus povos.

Essa realidade esteve presente nos absurdos contratuais para acesso às vacinas de covid os quais continham cláusulas de completa isenção de responsabilidade das corporações farmacêuticas por efeitos colaterais.

O efeito global é o de subtrair qualquer tipo de regulação, até mesmo promover o desmonte de direitos fundamentais, para incentivar um modelo de desenvolvimento econômico difundido por essas empresas, já que a característica da empresa transnacional é precisamente sua mobilidade e flexibilidade nas operações em todo o mundo, transcendendo fronteiras e jurisdições nacionais.

Consequentemente, a responsabilidade empresarial pelas violações aos direitos humanos não foi até hoje objetivamente determinada, apenas a dos Estados. Essa proposta, de códigos voluntários e de controle privado das corporações, abre o precedente para compreendermos que existem zonas de “não direitos”, ou ainda pior, que existam direitos humanos que valem mais em determinados territórios.

Um passo adiante no Brasil

Equipe de resgate dos corpos das vítimas do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG) em 2019. Cerca de 270 pessoas morreram / Mauro Pimentel/AFP

Contra essas zonas cinzentas de não direito, no dia 14 de março apresentou-se o primeiro projeto de Lei Marco de Direitos Humanos e Empresas em todo o mundo, o PL nº. 572/2022. Depois de um longo trabalho de organizações da sociedade civil, movimentos populares e parlamentares comprometidos, a lei marco avança para a responsabilização das empresas por violações aos direitos humanos, reconhecendo obrigações ao Estado e às mesmas, e estabelecendo, ainda, medidas de prevenção, monitoramento e reparação, bem como direitos às populações atingidas.

A lei marco é uma conquista porque vai na contramão de iniciativas governamentais que colocam esforços em avançar em mecanismos voluntários e não de responsabilização às empresas, como as iniciativas de Planos Nacionais de Ação (PNA’s), as quais já vêm sendo avaliadas como pouco ou nada efetivas.

Ao mesmo tempo que incorpora uma perspectiva crítica sobre as leis de devida diligência, o PL reconhece o dever de diligência, ou vigilância de respeito a todos os direitos humanos, por parte das empresas, como uma obrigação meio, reconhecendo a importância da elaboração de relatórios e planos de ação pelas empresas, mas apresenta que a mera existência deles sem avanços concretos não pode ser considerado como o fim, como cumprimento das obrigações para as empresas em respeitar e não violar direitos, o que precisa ser demonstrado, ou deve ser denunciado em cortes civis apropriadas.  

Cabe ressaltar que o PL é fruto de anos de construção e aprendizados que se iniciam com as experiências de resistências nos territórios, como o caso da Vila Nazaré, em Porto Alegre, que resiste à remoção forçada devido às obras de ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho pela empresa Fraport, aos diálogos com o Grupo de Trabalho de Empresas e Direitos Humanos do Ministério Público Federal que produziu a Nota Técnica nº. 7/2018, até a construção conjunta da Resolução nº. 05/2020 do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Muito embora a legislação nacional seja avançada na proteção social e ambiental, a captura corporativa, a assimetria de poderes entre grandes corporações e atingidos levam à sua inefetividade. Avançar num marco regulatório que responsabilize as empresas, com um rol claro de obrigações ao Estado e às mesmas, é dar um passo adiante para acabar com a cultura da impunidade.

Caminhos para adiante

Como vimos, amplas redes de poder se movem para barrar avanços na regulação das corporações. Esse passo se alinha na esteira de enfrentamento ao capitalismo, na qual a resistência popular organizada ao redor da batalha por responsabilizar essas corporações, com a formalização de instrumentos concretos, se conforma como um espinho que atrapalha o caminho das empresas transnacionais. 

Se queremos avançar com governos progressistas no Brasil e na América Latina, não podemos deixar de enfrentar o fantasma da dependência dessas empresas. Trabalhar para construir um desenvolvimento soberano passa por regular o poder corporativo, e mais do que isso, coloca-se como uma agenda chave para manutenção de qualquer governo no poder.

Quanto mais povos do mundo estiverem unidos na luta contra as transnacionais, instrumentalizados, nessa conjuntura, no avanço de marcos normativos regulatórios, mais força se ganha para crescer nesses projetos emancipatórios.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 28/03/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/03/28/pl-572-um-caminho-para-a-regulacao-de-empresas-transnacionais-no-brasil . Crédito da foto de destaque: Amigos da Terra Internacional (FoEi)

14 de março: resistir às barragens e construir um modelo energético popular

No dia 14 de março é celebrado o Dia Internacional de Luta contra as Barragens, em defesa dos rios, das águas e da vida. A celebração começou em 1997, quando representantes de populações atingidas de 20 países se reuniram para o I Encontro Internacional de Atingidos por Barragem, em Curitiba (PR). O dia de ação foi construído como um chamado para unidade internacionalista frente às violações causadas pelo modelo energético na utilização de barragens para geração de energia elétrica, armazenamento de rejeitos de mineração e barramento de água. 

Nas palavras de Tatiane Paulino, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB): “É uma data importante para a gente lembrar desses sujeitos que vivem nesses territórios, de denunciar toda violação a qual a gente vive e também de anunciar que nós estamos vivos, nós estamos organizados e que nós vamos continuar resistindo a esse modelo depredador, que só privilegia o capital em detrimento das vidas dos que vivem nesses territórios”.

A realidade invisível dos atingidos e das atingidas

Segundo relatório da Comissão Mundial de Barragens (2000), entre 40 e 80 milhões de pessoas foram deslocadas fisicamente para construção de barragens no mundo. Muitas dessas populações são retiradas de seus territórios em processos violentos, sem o pagamento de indenizações prévias e justas, sem acesso à informação. Esse deslocamento compulsório afeta os laços comunitários e culturais, quebrando importantes teias sociais para a manutenção da reprodução da vida. 

Há uma ausência de estudos aprofundados dos impactos ambientais, sobretudo na perspectiva das mudanças que ocorrem no ecossistema após a construção da barragem, aponta a Comissão. No Brasil, é conhecido o caso da barragem de Tucuruí, no estado do Pará, na qual o lago foi construído sem a retirada da floresta, que ficou submersa, causando a proliferação de mosquitos e a mudança na fauna aquática. Ou ainda, as grandes barragens em Rondônia, responsáveis por alterações no regime de chuvas,  reprodução dos peixes e elevação do lençol freático.

As obras mais recentes de barragem têm se concentrado em zonas de biodiversidade, como na Amazônia, região em que os impactos são ainda mais profundos. Cleidiane Vieira, militante do MAB, argumenta que “as barragens historicamente vêm causando diversas violações aos direitos humanos e ambientais, porém  quando acontece na região Amazônica, esses impactos são potencializados, os impactos praticamente triplicam, visto as drásticas mudanças socioambientais e metabólicas no bioma”. Ela também chama atenção que as hidrelétricas nunca vêm sozinhas. “Assim como outros projetos de infraestruturas, como hidrovias, ferrovias, as hidrelétricas geralmente vêm acompanhadas de outros projetos como os de mineração, o garimpo ilegal, grilagens de terra”, menciona Cleidiane. 

Toda essa cadeia de produção conectada à barragem cria no entorno desses empreendimentos violações não dimensionadas como a prostituição, o aumento da violência doméstica, a especulação imobiliária e falta de acesso a serviços públicos, atingindo as mulheres de forma desigual. Essa triste realidade levou algumas organizações a chamarem esses territórios de “zonas de sacrifício”.

Arpillera bordada por mulheres traz cenas que convergem e criam as condições para que a participação feminina seja real / Vinícius Denadai/ Acervo do MAB

Tem sido um desafio, para os movimentos populares, o reconhecimento desses impactos. Isso porque o Estado e as empresas assumem uma postura tecnicista, considerando esses danos, sociais e ambientais, como elementos externos ao empreendimento, e não consequências diretas de sua existência. Não é à toa que uma das primeiras pautas de luta dos atingidos e das atingidas é o seu reconhecimento como tal.  

A luta pelo reconhecimento dos direitos das populações atingidas

Em 2009, o ex-presidente Lula reconheceu que no Brasil há uma dívida social histórica com as populações atingidas por barragens, e sancionou o decreto criando o Comitê Interministerial de Cadastramento Socioeconômico das populações atingidas. Em 2014, o Instituto Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) desenvolveu uma metodologia de diagnóstico do passivo social de barragens, aplicada apenas no caso de Sobradinho (BA). 

Além dessas iniciativas, não há outros avanços em marcos regulatórios protetivos dos direitos das populações atingidas, ou mesmo da responsabilização de empresas transnacionais por violações aos direitos humanos. Desde 2013 o MAB reivindica a criação de uma Política Nacional dos Atingidos por Barragem (PNAB), na qual se incluía um capítulo sobre o passivo social de barragens por meio do incentivo a programas de desenvolvimento local. Em 2019, após a tragédia criminosa da barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho, em Minas Gerais, passou a tramitar o Projeto de Lei nº. 2788/2019 que prevê a criação da PNAB. 

Se olharmos para o plano do programa energético brasileiro não encontramos menção à situação das populações atingidas. Os programas estão limitados a uma abordagem tecnicista sobre diversificação da matriz energética. Tanto o Programa Nacional de Energia (PNE), como o Programa Decenal de Expansão de Energia 2030, refletem o discurso de grandes corporações da transição energética de “baixo carbono”.  

Em razão disso, os planos de governo envolvem expansão do parque de eólicas para região nordeste; investimentos em pequenas centrais hidrelétricas no sul do brasil; expansão da fronteira agrícola para produção de biomassa; grandes hidrelétricas na região norte. Tais fontes são consideradas “energia limpa”, pela ótica da economia verde, no entanto são causadores de inúmeros deslocamentos e desequilíbrios ambientais. Dessa forma, são falsas soluções que seguem gerando lucros com a destruição, em projetos realizados sem a participação popular, como já vêm denunciando os movimentos por justiça ambiental nas últimas duas décadas. 

População arca com o aumento nos preços das tarifas enquanto empresas do setor privado aumentam seus lucros / Crédito: Rafael Zãn

Para se efetivarem, esses programas de governo exigem mudanças legislativas, sobretudo no licenciamento ambiental, as quais vêm sendo apresentadas para ampliar o controle de corporações no setor. Em entrevista à Amigos da Terra, a militante da Marcha Mundial de Mulheres (MMM), Gabriela Cunha, destaca que o processo de ampliação do poder corporativo no setor se dá pela retirada do papel do Estado na coordenação e condução da política energética, sobretudo por meio das alterações nos marcos regulatórios e nas legislações, a favor de uma expansão na produção e no consumo de energia que privilegia o setor privado, prejudicando a população em geral que arca com o aumento nos preços das tarifas. “Vimos essas alterações regulatórias acontecendo por processo não democráticos, sendo a maioria tramitando em regime de urgência na Câmara de Deputados ou no Senado, a exemplo da lei que permite a privatização da Eletrobras”, disse ela.

Num momento de construção de novos programas de governo no Brasil, que possam superar a condição antidemocrática vigente desde o golpe de 2016, é urgente repensar o modelo energético, fugindo das armadilhas do tecnicismo e inserindo a energia no debate político e democrático. A pesquisadora Gabriela Cunha destaca a necessidade de uma articulação política “entre diferentes setores, de forma popular e participativa” para reposicionar o debate à luz de uma visão “ampliada de sustentabilidade e das tecnologias”. Pensar a energia como um direito é uma das propostas de uma transição energética justa e democrática, que se coloca em oposição à noção hegemônica da energia como uma mercadoria, sem considerar os impactos nos territórios. 

Resistências na construção de propostas emancipatórias

Assim, contra essa lógica da energia mercadoria, povos e comunidades estão organizados a partir de seus territórios na construção da resistência às barragens e na luta pela vida. Essa força social está presente na carta enviada ao Primeiro-Ministro Indiano pelos camponeses adivasi de Jalsindhi, em 1994, em apelo pela não construção da barragem de Sardar Sarovar, quando dizem “nós nos afogaremos, mas não iremos nos mover”, “somos gente da margem do rio”. Da mesma forma ecoa, no Brasil, os gritos de ordem do MAB: “Terra sim, barragem não!”, “Águas para vida, não para a morte”. E na constituição do Movimento de Atingidos por Represa (MAR) em toda a América Latina.

O dia 14 de março como uma data de luta internacional tem como proposta construir uma união de vozes contra os projetos de desenvolvimento que destroem as águas, a saúde e a vida das pessoas. Essa unidade internacional demonstra que o problema da democratização energética e da construção de um modelo de transição justa passa pelo reconhecimento de que estamos sendo todos e todas atingidos e atingidas pelo modelo energético. Dessa maneira, nos unimos à convocatória dos movimentos para a construção de um modelo energético com controle popular, que assegure justiça socioambiental e com distribuição de riquezas que ponha no centro a vida e os direitos dos povos. 

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 14/03/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/03/14/14-de-marco-resistir-as-barragens-e-construir-um-modelo-energetico-popular . Crédito da foto de destaque:  Thais Gobbo

Bons ventos de vitória sopram do Sul

Em meio a tantos reveses e retrocessos na luta em defesa do meio ambiente e por justiça ambiental, este início de 2022 tem nos trazido boas novas. São vitórias que vêm do Rio Grande do Sul, as quais nos animam e reforçam a importância da união, da organização e da resistência das comunidades e dos territórios aos projetos de morte do capital e seus defensores.

A primeira ocorreu ainda em 2021, mas apenas foi descoberta no início de fevereiro devido à falta de transparência e de informação, uma característica comum desses processos. Em novembro passado, a empresa Nexa Resources, controlada pela Votorantim S.A., pediu à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM) o arquivamento do processo de licença ambiental do Projeto de Mineração Caçapava, que ocuparia uma área de mais de 900 hectares na região da Campanha gaúcha.

A intenção da empresa era construir uma mina a céu aberto de cerca de 37 hectares para ​​extrair cobre, chumbo e zinco a 800 metros do Rio Camaquã, na localidade de Guaritas, na cidade de Caçapava do Sul.

Este rio é um importante manancial hídrico da região, utilizado no abastecimento de água das cidades da redondeza, na sobrevivência de comunidades indígenas, quilombolas e na atividade agrícola, bem como ajuda a manter a biodiversidade das matas e animais locais. Constitui o famoso Pampa, tema de tantas músicas e poesias e cenário da figura folclórica do gaúcho pilchado cavalgando livremente pelos campos. No entanto, o Pampa é o segundo bioma natural mais devastado do Brasil, possuindo o menor percentual do seu território inserido em áreas de conservação.

A extração de metais pesados e, como o chumbo, altamente tóxicos para os seres vivos e humanos, gera o risco da degradação irreparável de um ecossistema natural frágil e já bastante degenerado. Representa ainda um perigo à saúde, ao modo de viver e à subsistência das comunidades tradicionais e da população.

O discurso de desenvolvimento econômico da região que os defensores da mina alardeavam também não se sustenta. De acordo com estimativas feitas pela própria empresa, o projeto acumularia ganhos em torno de R$ 4 bilhões em 20 anos, mas a Nexa não esclareceu quem se beneficiaria com todo este dinheiro. Afinal, os metais seriam exportados a outros países isentos de impostos, pois a Lei Kandir abrange a atividade minerária. Não é uma mera coincidência que as cidades gaúchas que têm sua economia baseada na mineração estejam entre as mais pobres do Rio Grande do Sul.

Por esses motivos, o Projeto de Mineração Caçapava encontrou uma forte resistência da comunidade local, pequenos produtores rurais, dos indígenas, quilombolas, ambientalistas, pesquisadores, acadêmicos e demais organizações sociais comprometidas com um desenvolvimento econômico-social que não destrua o meio ambiente e respeite os modos de viver das populações.

A organização popular contra a mina vem desde 2016, quando aconteceram as primeiras audiências públicas para tratar do projeto. Iniciou com uma articulação da comunidade local que, bastante organizada e aguerrida, espalhou a denúncia do projeto e dos seus impactos nas cidades da região, tornando pública a grave situação e, assim, conseguindo apoio em todo o estado.

Prefeituras e órgãos institucionais estaduais colocaram-se contrários ao projeto, entre eles o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) e o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Camaquã (CBH-Camaquã). Um pouco dessa história é retratada no filme Dossiê Viventes – o Pampa viverá, por iniciativa do Movimento Unidade Pela Preservação do Rio Camaquã (UPP) e Associação para Grandeza e União de Palmas (AGRUPA), e produzido pelo Coletivo Catarse com apoio do Comitê de Combate à Megamineração no RS (CCM/RS). 

Embora a empresa não admita, a forte resistência popular é um dos motivos para que solicitasse o arquivamento do processo de licença ambiental do Projeto Caçapava. No entanto, não significa que tenha desistido de encontrar outro local, conforme manifestou em nota emitida à reportagem do portal de notícias Matinal. Cita a matéria: “Na nota enviada ao Matinal, a Nexa afirmou seguir em busca de novas oportunidades no Pampa ou em outros locais. “A companhia ressalta que mantém a pesquisa e a busca por outras oportunidades de negócio e que o projeto de Caçapava do Sul poderá ter continuidade com outra empresa no futuro, a partir de uma nova estratégia de atuação e a realização dos devidos processos de licenciamentos”. 

E muito menos o Pampa gaúcho está livre da sanha da megamineração, pois além do Projeto Caçapava, outros dois seguem em curso no bioma: o da extração de fosfato pela empresa Águia na cidade de Lavras do Sul, que já está em fase de licença para instalação, e o de extração de titânio e zircônio no município de São José do Norte, pela Rio Grande Mineração. Por isso, não podemos baixar a guarda. A resistência parte de camponeses, pescadores, Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambientais do Extremo Sul do Brasil – Universidade do Rio Grande (FURG) e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), somando junto ao CCM-RS. A organização popular e a luta precisam continuar!


Vitórias contra a energia suja do carvão mineral e por comida sem veneno 

Nossa segunda recente vitória também ocorreu contra a megamineração, desta vez em oposição à instalação, na região metropolitana de Porto Alegre, da maior mina de carvão mineral a céu aberto do país. No dia 8 de fevereiro, a Justiça Federal atendeu a Ação Civil Pública (ACP) movida pela Associação Indígena Poty Guarani, Associação Arayara de Educação e Cultura, Conselho de Articulação do Povo Guarani e Comunidade da Aldeia Guarani Guajayvi, declarando nulo o processo de licenciamento ambiental da Mina Guaíba, da empresa Copelmi. As organizações Mbya Guarani foram assessoradas por advogados defensores das causas indígenas, quilombolas, reforma agrária e ambiental.

O pedido de nulidade baseou-se no fato de que o Estudo de Impacto Ambiental/ Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) apresentado para o projeto da Mina Guaíba ignorou completamente a existência da Aldeia Guajayvi na cidade de Charqueadas.

Acionado pela Justiça Federal, o Ministério Público Federal apresentou parecer em que se manifestou favorável ao pedido, reconhecendo que deveria ter ocorrido consulta prévia, livre e informada das comunidades indígenas que seriam afetadas pelo projeto de mineração. A comunidade Mbya Guarani mora a menos de 3km do local do empreendimento, que seria implantado às margens do Rio Jacuí, importante manancial hídrico da região, numa área localizada entre as cidades de Charqueadas e Eldorado do Sul – a apenas 16 quilômetros da capital gaúcha. 

Estimativas apontavam para a mineração de um volume de 166 milhões de toneladas de carvão em 30 anos em contínua atividade. O projeto impactaria direta ou indiretamente a vida de 4,3 milhões de pessoas que vivem na região metropolitana.

Em entrevista à Amigos da Terra Brasil, uma moradora da região afirmou que, pelo menos, agora a população poderá respirar um pouco mais aliviada sem a poeira do carvão, sem os ruídos que seriam gerados pela mina e com as águas limpas para poderem tomar. “Eu não tenho nem palavras pra descrever a desgraça que seria acometida para nós aqui e mais para o pessoal ao redor”, disse ela. 

Moradores da região e do Assentamento Apolônio de Carvalho e comunidade indígena Mbya Guarani são contrários à Mina Guaíba. Eles querem permanecer em suas terras / Carol Ferraz/ Portal Sul 21

Os indígenas também comemoram muito a nulidade do processo, embora ainda possa ser questionada pela empresa. Entre os impactos gerados pela Mina Guaíba, as organizações Mbya Guarani listaram danos ambientais, que se desdobram em consequências graves nas formas de organização da comunidade. A falta de preocupação quanto à sustentabilidade geraria prejuízos no uso do solo para atividades agrícolas e a redução da fauna implicaria novas readaptações nas atividades cotidianas.

Além disso, os indígenas teriam que conviver com explosões e abalos sísmicos diários durante cerca de 30 anos, emissões de gases tóxicos e contaminantes na atmosfera. Tudo isso, para investir na produção da energia à carvão mineral, mundialmente considerada ultrapassada devido ao alto custo de exploração e à degradação ambiental e social que provoca.

A terceira vitória é fruto da resistência dos agricultores assentados que produzem de forma orgânica, sem a aplicação de veneno, na cidade de Nova Santa Rita, também na região metropolitana, junto com a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), COCEARGS, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Instituto PRESERVAR e as organizações ambientalistas INGA, AGAPAN e Amigos da Terra Brasil.

Os camponeses perderam parte de sua produção e tiveram a certificação orgânica ameaçada em decorrência da pulverização aérea de agrotóxico realizada por uma fazenda vizinha no final de 2020. Na época, também foram registrados impactos na mata e biodiversidade local, e assentados apresentaram sintomas de envenenamento por agrotóxico. Após esta deriva, outras situações semelhantes têm ocorrido por parte do agronegócio da região. 

Desde então, os camponeses denunciam os impactos da deriva e as novas tentativas de ataque dos fazendeiros na polícia e na Justiça, a fim de buscar os responsáveis pelo crime e garantir uma segurança mínima para produzirem de forma agroecológica. Seus produtos são vendidos em feiras urbanas, portanto a população da cidade também é atingida ao não ter frutas, verduras e demais alimentos sem veneno à disposição.

A luta das famílias assentadas é apoiada por organizações ambientalistas, pesquisadores de universidades e de alguns órgãos públicos. Após muita pressão, conseguiu-se aprovar uma lei municipal que regulamenta a pulverização aérea de agrotóxico a fim de proteger as áreas de produção agroecológica em Nova Santa Rita. No entanto, a iniciativa tem limites, que vão desde a falta de estrutura do poder público em efetivar a lei e fiscalizar o cumprimento dela pelos fazendeiros e por empresas de aviação pulverizadora até a impossibilidade de delimitar os efeitos da pulverização aérea, afinal o veneno lançado no ar espalha-se facilmente devido à ação natural dos ventos e da chuva.

Plantio afetado pela deriva de agrotóxico em 2020 / Arquivo Pessoal

Em 16 de fevereiro, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) negou recurso do fazendeiro vizinho ao assentamento que foi atingido pela deriva em 2020, uma importante vitória nesta luta. Esta decisão do tribunal reforça outras determinações que já haviam sido feitas pela Justiça, mas que até então não foram cumpridas pela União, pelo Estado do Rio Grande do Sul e pelo órgão estadual ambiental competente (no caso, a FEPAM): a suspensão do uso de agrotóxicos na fazenda vizinha ao assentamento afetado pela deriva e a implementação de um plano de pulverização de agrotóxicos que proteja os produtores de alimentos orgânicos dos assentamentos da Reforma Agrária. 

A luta das famílias assentadas produtoras agroecológicas e seus apoiadores prossegue e quer ir mais além. Pretendemos criar um polígono de proteção/exclusão de pulverizações aéreas naquela região, pois está localizada na zona de amortecimento do Parque Estadual Delta do Jacuí e possui diversos produtores de alimentos orgânicos. Esta medida garante, de forma mais efetiva, uma proteção para a produção agroecológica, para a defesa do meio ambiente e para a própria população dessas cidades, que também podem ser diretamente atingidas pela pulverização aérea de veneno ou pela água contaminada.

Para enfrentar as corporações da mineração e do agronegócio é fundamental garantir o direito à consulta livre e informada, como consta na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e dar fim à Lei Kandir. Toda essa exportação isenta de impostos, assim como os agrotóxicos, geram prejuízos à saúde da população e ao Estado, que deixa de arrecadar.

Como sempre, o capitalismo segue privatizando bens comuns e estatizando os prejuízos. Precisamos enfrentar esta realidade que fortalece setores do Bolsonarismo e que garante este desgoverno. Portanto, para as eleições de 2022 é necessário dar nome aos bois e à boiada. Não passarão!

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 28/02/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/28/bons-ventos-de-vitoria-sopram-do-sul . Crédito da foto de destaque: Movimento Unidade Pela Preservação do Rio Camaquã (UPP)

Passados 2 anos da pandemia, o cerco à Amazônia continua

A federação internacionalista ambientalista Amigos da Terra, por meio do seu membro brasileiro, a Amigos da Terra Brasil, atua há anos em aliança com movimentos sociais, territórios e comunidades. Junto a muitos parceiros, estamos na luta popular contra o desmatamento, em defesa da água, da biodiversidade, da soberania alimentar dos Povos da Floresta e dos direitos dos povos – indígenas, quilombolas e camponeses e urbanos – em seus territórios na Amazônia. 

Toda a solidariedade e organização é necessária frente ao avanço do agronegócio, da mineração e dos grandes projetos de infraestrutura exportadora de commodities na região amazônica, uma das últimas fronteiras no país com mata e biodiversidade original preservadas pelos povos que a habitam, conhecem, respeitam e que seguem resistindo à destruição do capital. O compromisso permanente de buscar caminhos solidários e manter o apoio à organização dos povos em resistência às pandemias do neoliberalismo e na luta por justiça ambiental nos moveu a revisitar as situações denunciadas pelas vozes destes territórios, passados dois anos da conjuntura da covid, agravada pelas mazelas de um governo genocida que chega ao fim neste ano de 2022.

Em meados de 2020, publicamos, em conjunto com a organização Terra de Direitos e sindicatos de trabalhadores rurais da região de Santarém, no Pará, um documentário em três idiomas intitulado “A História do Cerco à Amazônia”. Contamos com os importantes apoios do Grupo Carta de Belém (GCB), da Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo, da rede Jubileu Sul e dos grupos da Federação Amigos da Terra Internacional para produzi-lo. Neste material, denunciamos como os territórios amazônicos vêm sendo transformados em campos de cultivo para a expansão da monocultura da soja, principal commodity agrícola produzida para exportação, destinada especialmente à alimentação animal em outros países. 

Boa parte da cadeia global de produção da soja é controlada por grandes empresas transnacionais como Bunge, Cargill, Monsanto, Bayer, Syngenta entre outras. E está baseada no processo de grilagem de terras no Brasil, utilizando as queimadas e o desmatamento para “limpar” a terra, primeiro para a criação de gado e posteriormente para o plantio, e logo aumentando a pressão por estradas, portos e outros grandes empreendimentos para o seu escoamento. Também revelamos os impactos nas comunidades que residem ali há décadas sobrevivendo de suas lavouras, do extrativismo sustentável de produtos da floresta e da pesca. Quilombolas e trabalhadores rurais relataram a escalada de ameaças de serem expulsos de suas terras e os prejuízos econômicos em sua produção devido ao uso de agrotóxicos pelos fazendeiros e grileiros no entorno, bem como seus efeitos na saúde e no meio ambiente. 

A instalação da cadeia da soja na região de Santarém, no Pará, ocorre por completo. Empresas do agronegócio, com apoio das prefeituras municipais e do governo paraense, buscam implementar estrutura portuária privada para escoar a produção, não apenas da região amazônica, mas também do Centro-Oeste. A multinacional Cargill já tem um porto graneleiro na cidade de Santarém, o qual foi construído sem a realização de estudos de impacto ambiental, em cima de uma área de sítios arqueológicos. O porto causou danos ambientais na Praia de Vera Cruz e afetou a sobrevivência econômica de pescadores e moradores, que tiveram que deixar de se banhar no local. 

Um segundo projeto, da EMBRAPS (Empresa Brasileira de Portos de Santarém), no Rio Maicá, teve processo de licenciamento ambiental suspenso pela Justiça após as comunidades atingidas denunciarem que sequer teriam sido consultadas. Quando estivemos na região para a produção do documentário, no final de 2019 e antes do início das medidas de isolamento social impostas pela pandemia, em 2020, pelo menos mais outras duas empresas tinham interesse em instalar portos privados na área. Se já não bastasse a pressão do poder econômico sobre as comunidades e o meio ambiente, o agronegócio emprega a violência contra as lideranças e quem mais ousar resistir, até mesmo ameaçando de morte – e matando – quem não se cala.

Passados quase dois anos dessa ronda da Amigos da Terra Brasil e parceiros na Amazônia, os relatos das comunidades locais revelam que tudo o que estava acontecendo naquela época se mantém e que a pressão sobre os territórios está aumentando na região. Os garimpos ilegais, o desmatamento sem controle, a liberação de armas para os fazendeiros, a falta de políticas públicas que atendam parte das necessidades da população são alguns dos vilões dessa realidade. As consequências são o aumento da grilagem com facilidade, a fome, a violência no campo, entre outras violações de direitos, sem que o Estado tome alguma providência concreta para conter esses crimes.

Em conversa com a Amigos da Terra Brasil, o ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (STTR), Manoel Edivaldo Santos Matos (o Peixe), defendeu a regularização fundiária como uma das principais saídas para esse transtorno que há muito tempo sofrem os trabalhadores e as trabalhadoras rurais, povos indígenas e quilombolas. Sem isso, opinou Peixe, fica difícil pensar em outras políticas. “A regularização fundiária é a porta para uma reforma agrária de verdade, sem isso é ficar enxugando gelo”, argumentou.

Frente a um ano eleitoral, os povos da floresta têm reivindicações que consideram fundamentais a serem pautadas pelos candidatos que realmente querem se comprometer com a preservação da Amazônia e de suas comunidades. A reestruturação e o fortalecimento dos órgãos dos governos estão entre elas para responder às demandas dos povos. No caso dos agricultores e das agricultoras familiares, Peixe considerou como importante o resgate do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e o funcionamento do MMA (Ministério do Meio Ambiente) para combater o desmatamento, mas que o governo também apoie as iniciativas de organização econômica da população. Para isso, é preciso a desburocratização a fim de acessar financiamento público voltado para aumentar a produção de alimentos saudáveis. 

No entanto, a liderança reforça a necessidade da regularização fundiária urgente por meio da demarcação de terras indígenas, titulação dos territórios quilombolas, os parques de extrativismo com suas comunidades tradicionais, assentamentos de Reforma Agrária,  terras coletivas fora do mercado imobiliário e de uso e garantia dos povos. Caso contrário, não tem como preservar as florestas e seus povos.

Abandono dos governos e expostos à violência do agronegócio

No início deste mês, estudo do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), com base nos dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), concluiu que o desmatamento no bioma foi 56,6% maior entre agosto de 2018 e julho de 2021 que no mesmo período de 2015 a 2018, com avanço evidente a partir do segundo semestre de 2018. No período analisado, mais da metade do desmatamento ocorreu em terras públicas, sendo 83% destas em áreas de domínio federal. No mesmo período, proporcionalmente à área dos territórios, terras indígenas (TIs) tiveram alta de 153% em média no desmatamento, o equivalente a 1.255 km², enquanto em unidades de conservação (UCs) o aumento proporcional foi de 63,7%, com 3.595 km² derrubados no último triênio. Para se ter uma ideia, a perda de florestas em TIs e em UCs foi de mais de 1,7% da área total do estado do Rio Grande do Sul somente nestes anos do Governo Bolsonaro.

Somado a isso, com a liberação de agrotóxicos e de uso de armas para os fazendeiros, a violência no campo na região amazônica aumentou ainda mais sobre os povos da floresta. Dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que em 2021 a destruição de casas, pertences, expulsão, grilagem, pistolagem e impedimento de acesso a áreas de uso coletivo até 31 de agosto de 2021 atingiu 418 territórios em todo o país e foi maior do que o verificado em todo o ano de 2020, sendo 28% destes território indígenas. Mortes em consequência de conflitos passaram de 9 em 2020, para 103 e, destas, 101 foram de indígenas Yanomamis. Mesmo diante desse terrível contexto, o presidente Jair Bolsonaro, em seu discurso a representantes do agronegócio em evento do Banco do Brasil no início deste ano, disse: “Nós praticamente anulamos as ações do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], tirando dinheiro que ia pra ONGs (…), estendemos a posse de arma de fogo com o apoio do Congresso Nacional (…) isso levou mais tranquilidade pra vocês (…), reduzimos em mais de 80% as ‘multagens’ [multas ambientais] no campo, não tivemos uma só demarcação de terra indígena no Brasil (…) e estamos trabalhando nesse sentido: devolver as terras da União para os estados e, consequentemente, para os senhores [do agronegócio]”.

As consequências do desmatamento e a violência atingiram terrivelmente os povos indígenas na Amazônia, que seguem com seus direitos ameaçados, mas organizados em resistência frente à pauta devastadora do Congresso Nacional prevista para esse ano. A resistência à devastação ambiental da Amazônia, a defesa da vida, do clima, da sua diversidade cultural, biológica, das suas águas, matas e mitos mostrou-se com força em 2021 com as mobilizações indígenas de Abril a Outubro nos acampamentos Levante pela Terra e Luta pela Vida, na II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas e no Fórum de Educação Superior Indígena e Quilombola. Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), foi a maior mobilização indígena pós-constituinte, apoiada pelos mais diversos setores populares e movimentos sociais, e resultou na retomada da organização dos povos originários e tradicionais do Brasil pelos seus direitos.

Trabalho em grupos na assembleia do Povo Madija que aconteceu em Janeiro deste ano, na Aldeia Estirão, em Eirunepé (Amazonas) / Lindomar Padilha

Um exemplo é a situação do Povo Madija no Acre e no Amazonas que, depois das inundações na época das cheias de 2021, enfrentava uma situação devastadora de probreza, discriminação e com casos alarmantes de suicídio entre os jovens, o que nos demandou um chamado de solidariedade internacionalista. Rosenilda Nunes Padilha, do CIMI Amazônia Oriental, relatou em entrevista que o Povo Madija passa por dificuldades. “Apesar de ter em torno de 150 anos de contato com a nossa sociedade, nunca assimilaram o capitalismo. São 100% falantes de sua língua materna. Mulheres e crianças não sabem falar português”, disse. 

No início deste ano, o Povo Madija realizou a sua assembleia. Ao denunciar constantes invasões aos seus territórios por madeireiros, caçadores, pescadores e outros, a falta de escolas, de contratação de professores indígenas e de merenda escolar nas aldeias e a falta de atendimento em saúde e de contratação de intérpretes da sua língua na FUNAI (Fundação Nacional do Índio), nos órgãos públicos e de assistência, entre outras violações, comunicou a todos os órgãos, instituições públicas e privadas e à sociedade em geral que: “NÃO SERÃO TOLERADAS nenhuma forma de discriminação, racismo, preconceito e, sobretudo, nenhuma forma de violência contra nosso povo ou qualquer pessoa de nosso povo. Utilizaremos de todos os meios necessários para que sejamos tratados com o mais absoluto respeito e dignidade, conforme nossos direitos assegurados”.

É desde os territórios e dos povos da Amazônia em resistência que vêm se semeando as mentes com demandas, propostas e soluções para um Brasil com mais dignidade, democracia e Justiça Ambiental. Essas serão as vozes a serem, mais que ouvidas, participantes na construção de um novo projeto político para o país.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 28/02/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/14/passados-2-anos-da-pandemia-o-cerco-a-amazonia-continua . Crédito da foto de destaque: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Verde é a cor mais quente

No último período, temos assistido a uma corrida dos governos, de todas as esferas, em lançar planos ambientais e climáticos recheados de metas e de compromissos com o objetivo de aliar a prática econômica e a preservação do meio ambiente. O mais recente foi lançado na semana passada pelo governo do Rio Grande do Sul, mas encontramos propostas semelhantes em estados do Sudeste, Centro-Oeste e da Amazônia Legal.

Até mesmo o Governo Bolsonaro, o mais antiambiental da história brasileira, publicou em Outubro de 2021 o Programa Nacional de Crescimento Verde (PNCV), instituindo o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima e Crescimento Verde (CIMV) específico para prestar o apoio técnico e administrativo necessário à implementação do projeto. O programa federal é bastante vago, sem determinar metas e nem valores a serem empregados. No decreto Nº 10.846/2021 constam os objetivos do PNCV, entre eles aprimorar a gestão de recursos naturais para incentivar a produtividade, a inovação e a competitividade; criar empregos verdes; promover a conservação de florestas e a proteção da biodiversidade; reduzir a emissão de gases estufa, com vistas a facilitar a transição para a economia de baixo carbono; e captar recursos públicos e privados, sejam de fontes nacionais ou internacionais, a fim de desenvolver a economia verde. 

O programa também propõe incentivar a elaboração de estudos e a realização de pesquisas que contribuam para os objetivos propostos. A primeira vista pode parecer um escárnio, já que 10 dias antes de assinar o decreto do PNCV, o presidente Jair Bolsonaro havia sancionado uma lei que cortava R$ 690 milhões que seriam destinados para o financiamento de pesquisas e de projetos científicos do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações. O corte representou uma perda de cerca de 90% do orçamento da pasta. No entanto, a maior parte da verba foi redirecionada aos ministérios do Desenvolvimento Regional e da Agricultura e Pecuária, priorizando as atividades econômicas e do agronegócio, nada diferente da postura do governo federal.

Os discursos verdes dos governos talvez variem nas tonalidades da cor, mas todos partem de uma mesma essência: priorizar o mercado e não a proteção ao meio ambiente. Seus programas buscam adequar os setores econômicos, especialmente o da mineração e do agronegócio, às exigências internacionais para que não sofram sanções e evitar prejuízos com a redução da exportação, com ênfase nas commodities como soja e cana de açúcar, e no gado. A preservação ambiental é transformada em moeda de troca, numa lógica em que proteger o meio ambiente é necessário para o Brasil poder viabilizar a expansão e manter a competitividade internacional dessas cadeias econômicas. Estas estão entre as que mais poluem rios e córregos, desmatam, contribuem para o adoecimento de animais e da própria população com o uso intensivo de agrotóxicos, expulsam indígenas, quilombolas e pequenos agricultores de seus territórios. 

Nesta economia verde, a água potável, matas em pé e ar respirável são vendidos como mercadoria, cuja produção movimenta um grande mercado e gera muito lucro para grandes empresas, inclusive transnacionais. Por exemplo, empresas poluidoras podem “compensar” a degradação ambiental que provocam, comprando créditos de carbono de outras empresas que tenham em haver ou de grupos que “produzam” esses créditos, a partir da apropriação de territórios verdes, a maioria preservados por populações indígenas e povos tradicionais. Essa apropriação ocorre por meio de processos de grilagem, privatização, de conservação de áreas para a compensação ambiental de suas próprias atividades ou, ainda, de obtenção de concessões para a exploração econômica de florestas, parques e outras unidades de conservação. No caso dos bens naturais já poluídos ou degradados, os governos têm privatizado as empresas públicas e repassado a entes privados a prestação de serviços, como tem acontecido recentemente em diversos municípios e estados, com o tratamento do esgoto in natura e da água. Tudo é passível de gerar lucro a alguns poucos.

Discurso verde dos governos se apropria de lutas históricas dos ambientalistas para beneficiar o mercado

Durante quase uma hora, o governador gaúcho Eduardo Leite e seu secretariado apresentaram, no último dia 26 de Janeiro, a etapa da sustentabilidade ambiental do Programa Avançar. Foram anunciados R$ 193,2 milhões em recursos do Tesouro do Rio Grande do Sul (RS) para projetos voltados ao incentivo de energias limpas e renováveis, desenvolvimento sustentável, recuperação do patrimônio ambiental, redução do impacto ambiental no uso da terra e boas práticas para combater as mudanças climáticas.

Diferente do programa federal, o Avançar na Sustentabilidade está cheio de projetos, divididos em quatro eixos: clima, energia, água e parques. Segundo o governo, “todas as ações estão alinhadas aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), e vão ao encontro das metas assumidas pelo governo gaúcho na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança no Clima (COP26) para neutralizar as emissões de carbono no RS em 50% até 2030”. Audacioso, o programa do Governo Leite quer alcançar o total zero na neutralidade de emissões até 2050.

O setor do agronegócio é bem importante para a economia gaúcha. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados no Painel do Agronegócio do RS 2021 mostram que a agropecuária respondeu por 9% do Valor Adicionado Bruto (VAB) total gaúcho em 2018. Parece pouco, mas ganha mais importância ao vermos que as atividades industriais do agronegócio corresponderam a um terço (quase 33%) do Valor Bruto da Produção (VBP) do RS. Em 2020, foi responsável por 71,7% do total das vendas externas do Estado, sendo a soja, as carnes, o fumo e os produtos madeireiros os principais produtos exportados. 

O programa ambiental e climático verde lançado pelo Governo Leite não dá as costas a esta conjuntura e, como os outros, busca viabilizar um agronegócio mais sustentável. Boa parte dos projetos do programa gaúcho visam mitigar os impactos das cadeias do setor, que concentra a maior parte da emissão de gases de efeito estufa do Estado. Nesse sentido, destaca-se a produção de energias renováveis limpas (como biometano, hidrogênio e amônia verdes; aproveitamento da biomassa, energia solar, eólica e resíduos industriais e domésticos) e a modernização das pequenas centrais hidrelétricas (PHCs), que isoladamente – mas não quando considerados casos específicos ou o impacto cumulativo do seu conjunto numa mesma bacia – trariam teoricamente menor impacto às populações e ao meio ambiente em comparação às grandes hidrelétricas. Prevê a revitalização de bacias hidrográficas e a recuperação de espécies nativas da fauna e da flora dos biomas Pampa e Mata Atlântica. Para promover a proteção das unidades de conservação (UCs), a proposta é conceder a gestão de parte delas e dos parques à iniciativa privada.

Até mesmo a pauta sindical e ambientalista da “Transição Justa”, a qual visa apoiar trabalhadores e trabalhadoras das regiões carboníferas que sobrevivem da extração de carvão mineral a se qualificarem e se reposicionarem em outras atividades econômicas, consta no programa. Durante o lançamento, o governador admitiu que a energia a carvão mineral está com os dias contados, afirmação que ocorre somente após a Justiça ter suspenso o processo de licenciamento de dois projetos importantes: o da Mina Guaíba, entre os municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas, por falta de consulta pública junto a aldeias indígenas que serão impactadas, e o da Usina Termelétrica Nova Seival, entre as cidades de Candiota e Hulha Negra, no Pampa gaúcho. Projetada para ser a maior termelétrica a carvão mineral do Brasil, Nova Seival foi parada por uma decisão inédita da Justiça que, entre outras orientações, em primeira instância determinou que o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) incluísse diretrizes climáticas em processos de licenciamento ambiental de Usinas Termelétricas (UTE) no RS. Até então, o governador era um entusiasta da implementação de um Polo Carboquímico no estado. 

Na balança que o governo gaúcho diz querer equilibrar entre a sustentabilidade e o desenvolvimento econômico, o meio ambiente está perdendo faz tempo. O discurso verde de Leite é amplo; não enxerga contradição em ter liberado o uso, no território gaúcho, de agrotóxicos proibidos nos países em que são fabricados e em ter implementado o novo Código Ambiental, que enfraquece os mecanismos de proteção por meio de medidas como a permissão para o autolicenciamento ambiental. O governador também ignora a demanda por debater, com organizações ambientalistas, a implementação de uma reserva legal no Pampa, o que pode ajudar concretamente na recuperação ambiental deste bioma.

Não há desenvolvimento econômico sem meio ambiente e a população sadios e com suas sobrevivências garantidas. Exigimos a reparação das comunidades e do meio ambiente, bem como a garantia dos setores que os defendem a ter espaços cívicos de participação que não sejam limitados pelos 4 anos de governo. Queremos nossos direitos, nossa voz, autonomia e espaço de efetiva participação popular na construção das políticas ambientais, com o fortalecimento dos órgãos e servidores (as) públicos ambientais e em articulação com demais setores e movimentos sociais, para que de fato o direito constitucional ao meio ambiente equilibrado seja de todos e todas e resultado de uma ampla aliança em defesa da democracia, da soberania popular e da justiça ambiental. Afinal, os governos passam; nós ficamos, com a luta permanente por ecologizar a política e defender a sustentabilidade da vida.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 1º/02/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/01/verde-e-a-cor-mais-quente Crédito da foto de destaque: Alan Santos/PR

Desejos de Ano Novo: Fora Bolsonaro, Democracia e Justiça Ambiental para todos

Este ano, de eleições à presidência e aos governos estaduais, é chave para a reinstauração da democracia no Brasil. É o momento para que as forças mais progressistas do país possam retomar o controle político, após três anos de governos dominados, de forma geral, por pautas e posturas conservadoras, do ponto de vista dos costumes, e destruidoras do aspecto social, econômico e ambiental.

Importante lembrar que a eleição de grande parte dos governadores, entre eles de Eduardo Leite (PSDB) no Rio Grande do Sul (RS), assim como de Jair Bolsonaro à presidência, é resultado do golpe de 2016 que depôs a presidente Dilma Rousseff (PT), democraticamente eleita pela maioria dos votos.

O “Fora Bolsonaro, “Fora Eduardo Leite” e todos os demais estiveram na agenda de lutas da organização Amigos da Terra Brasil (ATBr) nesses últimos três anos, mas se tornam prioritários neste 2022 eleitoral que se inicia. Motivos para isso não faltam.

O Governo Bolsonaro encerra seu período se consolidando como o mais antiambiental da história brasileira ao promover o desmonte de políticas públicas e órgãos ambientais, incentivar crimes ambientais por meio de um discurso pró-agronegócio e pró-mineração desenfreado; entregar bens naturais públicos e que são patrimônio da população brasileira e até mesmo mundial, como parques e reservas, à iniciativa privada, e deixar comunidades indígenas, quilombolas e de pequenos agricultores desassistidos. 

Recentemente, Bolsonaro promulgou uma lei que prorroga a contratação de energia gerada por termelétricas a carvão mineral do estado de Santa Catarina até o ano de 2040, garantindo uma sobrevida ao setor e gerando, por mais uns anos, lucro para as empresas que exploram esta fonte de energia altamente poluente.

O presidente também indicou priorizar, para este ano, projetos de mineração de calcário e de metais pesados, este último em São José do Norte (RS).  Relembre na coluna da Amigos da Terra Brasil: Agronegócio: um dos principais interessados no aprofundamento do golpe à democracia brasileira

No RS, apesar de o governador Eduardo Leite apresentar, aparentemente, um discurso menos conservador, a pauta foi bastante semelhante ao do Governo Bolsonaro. Isso se deve porque os programas também são, assim como os objetivos foram os mesmos: beneficiar forças econômicas neoliberais, especialmente o agronegócio e a especulação imobiliária.

Leite conseguiu encaminhar a privatização de estatais e de empresas públicas, flexibilizou a legislação do licenciamento ambiental com o discurso de destravamento da economia e aderiu ao programa do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para conceder parques e reservas naturais, bens públicos, para exploração econômica da iniciativa privada – uma versão do programa federal “Adote um Parque” para os estados.

Foi derrubada para permitir que as grandes multinacionais do ramo químico desovem, no Brasil, os agrotóxicos que não podem mais ser vendidos nos países de origem – especialmente da Europa – devido aos prejuízos que geram no meio ambiente e à saúde animal e humana.


Pela nossa sobrevivência, Justiça Ambiental precisa ser incorporada nos programas dos partidos de esquerda

Os impactos das alterações climáticas e no meio ambiente, provocadas por uma sociedade capitalista que explora e degrada os bens comuns até o máximo para obter lucro para poucos, impactam na vida cotidiana das pessoas todos os dias. No entanto, afeta, especialmente, a classe trabalhadora e a população pobre, que frente à desigualdade social vivem em condições mais precárias e moram em locais com pouca infraestrutura e inseguros. Quando não perdem suas vidas, muitas e muitos perdem bens materiais essenciais para suas sobrevivências e seus meios de sustento.

Somados às mais de 621 mil mortes por COVID no Brasil, os poucos dias que vivemos de 2022 atestam essa situação de desastres nada naturais e seus efeitos na vida da população. O período de chuva, que normalmente ocorre nessa época do ano em áreas do centro e do nordeste do país, totaliza mais de 50 mortos em Minas Gerais (MG) e no Sul da Bahia (BA).

Boletim divulgado pela Coordenadoria Estadual de Defesa Civil mineiro (CEDEC) nesse domingo (16) registrava 47.911 pessoas que tiveram que deixar suas casas, entre desabrigadas e desalojadas. O estado já decretou situação de emergência em 377 cidades mineiras. Na Bahia, números da  Superintendência de Proteção e Defesa Civil (Sudec) de 4ª feira passada (12) indicavam, além dos mortos, 27.210 desabrigados, 59.637 desalojados, dois desaparecidos e 523 feridos.

Ao todo, 175 cidades haviam decretado situação de emergência, mas o número de municípios afetados chegava a quase 200. O órgão baiano confirmou mais de 856 mil pessoas atingidas com as chuvas, alagamentos e deslizamentos de terra.

Em Minas Gerais, as fortes chuvas elevam o risco do rompimento de barragens com rejeitos da mineração, a exemplo do que aconteceu nas cidades de Mariana, em 2015, e de Brumadinho, em 2019, no mesmo estado. Esses crimes cometidos pela mineradora Vale/BHP/Samarco mataram quase 300 pessoas e destruíram povoados, rios e o meio ambiente e deixaram dezenas de pessoas e animais doentes devido ao resíduo tóxico presente na lama residual contida nas barragens.

Na última sexta-feira (14), uma barragem de resíduo estourou numa área particular da zona rural da cidade de Ouro Fino e atingiu o Rio Mogi Guaçu, desta vez sem registros de pessoas vitimadas.

A Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM) de MG informou que 31 barragens de mineração de Minas Gerais apresentam algum nível de emergência; dessas, três em nível 3 (quando há risco iminente de rompimento e moradores são obrigados a sair de suas casas), todas pertencentes à VALE. Segundo a FEAM, as áreas passíveis de serem atingidas por um eventual rompimento dessas barragens mais críticas foram evacuadas e não há mais pessoas vivendo no entorno.

Do outro lado do Brasil, no Rio Grande do Sul a população sofre com a escassez de chuva que é recorrente no verão, mas vem sendo intensificada neste início de ano pelo fenômeno climático La Niña, e com as altas temperaturas. Nesse domingo (16/01), Porto Alegre registrou, pelo terceiro dia consecutivo, a mais alta temperatura entre as capitais brasileiras:  39,8ºC. Pelo menos, nove municípios do estado alcançaram os 40ºC.

A estiagem afeta também o agronegócio, um dos principais setores responsáveis pelo desmatamento e destruição dos recursos hídricos, que já contabiliza as perdas com o milho, soja e até mesmo com o leite.

Para que realmente seja feita a justiça ambiental, os direitos dos povos e a soberania popular devem se tornar realidade, com as pessoas acessando, de forma igualitária, os serviços da saúde, tenham qualidade ambiental, que seus corpos e territórios sejam respeitados no seu alimento, cultura, modo de vida, trabalho, e livres de todas as formas de opressão, seja de classe, raça, crença, gênero ou orientação sexual.

A justiça social, econômica, ambiental e de gênero integram soluções que o neoliberalismo ignora. Quando os governos neoliberais de Bolsonaro, Eduardo Leite, Romeu Zema (MG) e mais tantos outros utilizam a pauta do meio ambiente é com o intuito de ganhar mais dinheiro, aliando o desmonte das políticas ambientais e de direitos humanos a oportunidades de negócios climáticos.

Foi o que ocorreu durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 26) no ano passado em Glasgow (Escócia). Diante da mobilização global liderada pela juventude e movimentos sociais pela justiça climática durante o encontro, Bolsonaro e Leite adequaram seus discursos, em que negavam as mudanças climáticas, para o do ambientalismo de mercado defendendo os créditos de carbono, concessão de unidades de conservação à iniciativa privada etc. 

Os partidos comprometidos na construção com uma sociedade mais justa, igualitária, saudável e de todos precisam compreender que Justiça Ambiental, Democracia e Desenvolvimento não são indissociáveis. São frentes que não se limitam às organizações ambientalistas; dialogam com uma diversidade enorme de movimentos sociais populares que reivindicam direitos e soberania sobre seus corpos, territórios, modos de produção e distribuição de alimentos e energia, trabalho digno, controle social das políticas públicas e acesso aos serviços públicos de qualidade.

A Amigos da Terra Brasil (ATBr) chama todos e todas a votarem em candidaturas para a presidência do Brasil, governos estaduais e para os parlamentos (Câmara Federal, Assembleias Legislativas e Senado Federal)  que tenham compromissos com o povo e com o meio ambiente, com a sustentação da vida.

Vamos fortalecer candidaturas que dêem fim às políticas de morte e ao fascismo no país,  que se proponham a restabelecer as políticas públicas que foram destruídas pelo Governo Bolsonaro e seus apoiadores, a resgatar as legislações ambientais protetivas, revogue a Reforma Trabalhista, que garanta a saúde da população e volte atrás na liberação dos agrotóxicos, derrubar a Lei Kandir – desde 1996 prevê a isenção do pagamento de ICMS às exportações de produtos primários e semielaborados, ou seja, não industrializados, beneficiando diretamente o agronegócio e o setor da mineração.

Por um sistema de solidariedade e em defesa da vida! A economia não pode estar à frente das nossas vidas!          

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 17/01/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/17/desejos-de-ano-novo-fora-bolsonaro-democracia-e-justica-ambiental-para-todos . Crédito da foto de destaque: Douglas Magno/AFP

Bolsonaro se consolida como o presidente mais antiambiental da história brasileira

Depois dos dois primeiros anos de mandato péssimos para o meio ambiente, resultados por um lado do desmonte de políticas públicas e órgãos ambientais, e por outro do incentivo a crimes ambientais por meio de um discurso pró-agronegócio e pró-mineração desenfreados, em 2021 Jair Bolsonaro tentou dar um verniz ambiental a seu governo, que dificilmente tenha convencido alguém dentro ou fora do Brasil.  

Logo no início desse ano, ao tentar consertar a relação de submissão do Brasil com os EUA (após ter torcido pela vitória de Donald Trump e questionado a legitimidade das eleições norte-americanas), Bolsonaro escreve uma carta ao recém-empossado Joe Biden, afirmando: “Estamos prontos (…) a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia”. 

Em setembro, Bolsonaro discursou na Organização das Nações Unidas, onde novamente tentou passar a imagem de que a Amazônia se mantém “intacta” e de que o agronegócio brasileiro é “sustentável”.

Em meados do ano, o Relatório Luz 2021, encarregado de avaliar o nível de implementação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil, mostraria o quão falsas são as afirmações do presidente da República. 

O estudo é contundente ao constatar o retrocesso ou estagnação em 82,8% das 169 metas dos ODS. “A destruição de direitos sociais, ambientais e econômicos, além de direitos civis e políticos arduamente construídos nas últimas décadas, fica patente nas 92 metas (54,4%) em retrocesso; 27 (16%) estagnadas; 21 (12,4%) ameaçadas; 13 (7,7%) em progresso insuficiente; e 15 (8,9%) que não dispõem de informação. Este ano não há uma meta sequer com avanço satisfatório”, informa o relatório. O governo brasileiro se tornou um problema para os brasileiros e para a humanidade como um todo. 

Degradação ambiental generalizada

É evidente que o uso da palavra “sustentável” por parte do governo Bolsonaro não passa de marketing para tentar defender o avanço do agronegócio e a mineração sobre os biomas e terras indígenas. O governo discursa em favor de uma “mineração sustentável” e, ao mesmo tempo, trabalha para que o modelo minerador excludente e contaminador avance, ainda mais, sobre territórios indígenas, como pretende o PL 191 de autoria do Poder Executivo. 

Até novembro deste ano, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) registrou 73.494 focos de incêndio na Amazônia. Ainda em relação à Amazônia, o Inpe mostra que o desmatamento entre agosto de 2020 e julho de 2021 foi o maior desde 2006, sendo o terceiro recorde durante o governo Bolsonaro.

Até setembro, os incêndios registrados pelo Inpe no Pampa gaúcho haviam sido maiores do que a média de todos os biomas. Em 2020, as queimadas no Pampa haviam quintuplicado em comparação com 2019, e representaram o maior número já registrado pelo instituto.

Na Mata Atlântica, o número de queimadas registradas até novembro deste ano é o maior desde 2011. Na Caatinga, os 16.620 focos registrados até novembro pelo Inpe foram o maior número desde 2012.

A relação entre incêndios e agronegócio continua sendo constatada durante o governo Bolsonaro. No ano passado, o Instituto Centro de Vida divulgou Nota Técnica, em que mostra a origem dos incêndios que atingiram 480 mil hectares no Pantanal durante 50 dias de período proibitivo (que vai de 1º de julho a 30 de outubro). O estudo mostra que a origem do fogo que atingiu 117 mil hectares nesse bioma foi em cinco pontos onde estão localizados imóveis rurais com inscrição no Cadastro Ambiental Rural.

Além de constatar essa relação, o relatório deste ano da articulação O Agro é Fogo mostra que os incêndios têm fortes impactos sobre comunidades tradicionais.

Incêndio devasta trecho da floresta amazônica em Novo Progresso, no Pará / Carl de Souza / AFP

A intensificação dos desmontes

Apesar do caos instalado, confirmado por dados e denunciado por todas as organizações e movimentos vinculados às questões ambientais e de direitos humanos, o governo Bolsonaro continuou optando pelo desfinanciamento e desmonte das estruturas e políticas de combate à degradação ambiental. O orçamento deste ano para o Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi um dos mais baixos dos últimos anos. 

Em um balanço sobre a gestão de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente (a 2 meses de ser exonerado), a Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Meio Ambiente (Ascema) afirmou que o ministro foi responsável por 721 medidas contra a preservação ambiental. 

Também neste ano, a Ascema apresentou ao Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho uma denúncia por assédio moral contra servidores públicos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e MMA. 

Em meio ao avanço das investigações sobre sua possível participação em esquema de exportação ilegal de madeira, o anti-ministro do Meio Ambiente (que chegou a ser apresentado em um ato bolsonarista explicitamente como “aquele que representa o agro”), pediu para sair. Como toda e qualquer mudança em ministérios do governo Bolsonaro, a chegada de Joaquim Leite à pasta tem representado mais do mesmo. 

Ex-ministro Ricardo Salles pediu para sair em meio ao avanço das investigações sobre sua possível participação em esquema de exportação ilegal de madeira  / Lula Marques


Bolsonaro não é o único problema

O PL 191 pretende abrir a porteira para ações ilegais que vêm se intensificando durante o governo Bolsonaro. A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) tem denunciado o aumento do garimpo em terras indígenas (TIs) durante a pandemia. “Apenas na região amazônica houve um aumento de 30% na degradação ambiental devido ao garimpo. Na TI Yanomami, em Roraima, as invasões ao território para exploração de minérios aumentaram em 250% os casos de covid-19 entre indígenas”, denunciou a Apib em protesto realizado na frente da sede da Agência Nacional de Mineração, em julho deste ano.

Os povos indígenas ainda enfrentam uma das maiores ameaças da história recente: o marco temporal. Por um lado, o PL 490, que incorpora a farsa do “marco temporal”, está parado na Câmara dos Deputados, mas conta não só com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira, como do próprio presidente da Funai contra os interesses das organizações de povos indígenas!

Além disso, o STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu seu parecer sobre o marco temporal em setembro deste ano, e agora deverá votar em 23 de junho de 2022, já com mais um bolsonarista (André Mendonça) na Corte, que segundo o próprio Bolsonaro, votará do lado do governo em relação à pauta.

Povos indígenas ainda enfrentam uma das maiores ameaças da história recente: o marco temporal / Carl de Souza / AFP

O poder dos ruralistas e do lobby minerador é cada vez maior em todos os Poderes. E essa deve ser uma das preocupações a ter em conta para 2022. Não apenas pelas propostas que visam acabar com a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e liberar a grilagem e a exploração intensiva dos biomas brasileiros, como denunciamos este ano neste espaço.

A última Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP26) apresentou como troféu a regulamentação dos mercados de créditos de carbono, e o Brasil é um dos maiores interessados em participar desse comércio de cotas de poluição.

A cobertura da imprensa brasileira sobre esse novo fato destacou os bilhões de reais que o Brasil poderia receber a partir da regulação do mercado de carbono. Mas, como denunciamos há vários anos, esses mecanismos de financeirização da natureza não resolvem os problemas da crise climática que se intensifica a cada ano, e também não exigem ações dos responsáveis históricos pela crise, pelo contrário, permitem que continuem atuando para piorar o problema. Por outra parte, esses mecanismos põem as florestas a serviço exclusivamente dessa lógica e contra os interesses dos povos que as habitam. 

E isso não é uma possibilidade no futuro. Já vem ocorrendo em várias partes do país, como no Acre, onde povos indígenas e comunidades tradicionais vêm resistindo à imposição de projetos de compensação.

Do ponto de vista da luta pela Justiça Ambiental, a derrota de Bolsonaro e sua penca de projetos, que podem ter efeitos nefastos e duradouros para o povo brasileiro, deve ser a prioridade em 2022. Ao mesmo tempo, o diálogo e denúncia do novo impulso que a “Economia Verde” ganha no país a partir dos consensos gerados na COP26 também devem ser tarefa das organizações que lutam por Justiça Ambiental nas próximas eleições.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 20/12/2021 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2021/12/20/bolsonaro-se-consolida-como-o-presidente-mais-antiambiental-da-historia-brasileira
Crédito da foto de destaque: Evaristo Sa / AFP

  

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