A água sempre encontra um caminho: A caminhada da CoMPaz pelo respeito ao seu Direito de Ser e Existir

“É que nós sabemos: tem portas que só se abrem pelo lado de dentro. Então fomos cavar as brechas, cavar os caminhos arduamente percorridos por pessoas como nós. E nós somos água, senhoras e senhores. E a água sempre encontra um caminho”, referiu-se Yashodhan Abya Yala, Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz.  Sua menção foi realizada ao contar a história viva da luta desta comunidade para ser ouvida e consultada durante o processo de ampliação de uma rodovia. Obra que ameaça o território, os corpos de matas, rios, animais e de gentes, assim como impõe uma lógica perversa que busca minar os modos de vida dessa diversidade que pulsa, tomando o seu direito de ser e existir. Frente a um processo colonizatório marcado por violência, existe outra possibilidade de estar no mundo, com a potência de nascentes que vão de encontro ao mar. Contada dos tempos de lá atrás que são também esse instante, ela narra a realidade da resistência dessa comunidade negra em permanecer em seu território, com seus costumes e práticas. De seguir existindo na sua terra fincada no município de Triunfo, às margens da BR 386. Uma importante estrada para escoamento da soja no Rio Grande do Sul que está sendo ampliada, rodeada ainda pela monocultura do eucalipto – duas atividades do agronegócio gaúcho.

Em 9 de março, mês conhecido por suas águas, a Comunidade Kilombola Morada da Paz (ComPaz) abriu caminhos na primeira sessão do ano do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH/RS), na Assembleia Legislativa (AL/RS). Som do berrante. A sua chegada em cantos para Ogum, anunciada por vozes que faziam coro ao batucar de tambores, já trazia como horizonte a força de uma história que tem uma demanda e uma proposição. A demanda é pelo comprometimento do Conselho de Direitos Humanos e Cidadania, para que se coloque como órgão atuante em defesa de que as comunidades sejam ouvidas, especialmente em casos de violações de direitos. Como proposição, para além de alianças possíveis e de compromissos firmados para garantir a justiça dos povos, a Comunidade apresentou o seu Protocolo de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé, contido no Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) enfrenta, há pouco mais de dois anos, as ameaças de dois grandes empreendimentos na região: à frente do território, a obra de ampliação da BR 386 e, na parte dos fundos, a proposição de instalação de um aterro industrial às margens do rio Caí. Opressão, exploração e uma série de conflitos são desencadeados pelo avanço desses empreendimentos, que nem sequer realizaram consulta às comunidades afetadas por sua instalação, pautando uma lógica violenta de progresso que pela primazia do lucro se propõe a uma política de morte. Mas a resistência e a ancestralidade são raízes fortes, que fazem o caminho entre solos pavimentados e indicam outras trilhas, com outros valores éticos. Foi na boa fé da articulação coletiva, organização e luta, que recentemente a Comunidade conquistou mais uma vitória por seu direito de Ser e Existir. No início de janeiro, a Justiça Federal no RS concedeu tutela de urgência suspendendo a obra de ampliação da rodovia no trecho que compreende os Km 405 a 415, onde fica a Comunidade Kilombola Morada da Paz. A obra só poderá ser retomada após a realização de novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, em que a comunidade seja consultada previamente conforme dispõe a Convenção 169 da OIT. Os réus, entre eles o governo federal (Ibama e Incra) e as empresas concessionárias (CCR Via Sul e Empresa de Planejamento e Logística / VALEC), ainda podem recorrer da decisão.

A decisão judicial, um importante precedente para as lutas dos povos kilombolas em todo país, se deu em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Comunidade Morada da Paz em dezembro de 2022, e que teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por ação no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em Novembro de 2021. Na ação, a comunidade kilombola requereu liminar que suspendesse a obra de ampliação da BR 386 no determinado trecho. Também pediu a anulação do licenciamento, já que não foi chamada a participar dos termos de referência do estudo e nem foi citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) realizado pela empresa consultora contratada pela concessionária e apresentado ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), apesar de seu território localizar-se a menos de 500 metros da margem da rodovia. 

Saiba mais sobre o processo na matéria: Justiça Federal reconhece o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé de comunidade kilombola no RS

Comunidade Kilombola Morada da Paz, na primeira sessão do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Além de abordar a decisão mencionada, a participação da Comunidade na sessão de abertura do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) também representou um passo importantíssimo nas lutas por território e possibilidade de ser e de existir no mundo. Yashodhan Abya Yala proferiu em sua fala o que a comunidade exigia no momento: “Chegamos ao Conselho Estadual de Direitos Humanos com uma demanda: nós queremos que esse conselho tenha grupo de trabalho, um grupo de trabalho que seja mais que um observatório. Porque um observador, pode ser um traidor. Um grupo de trabalho nessa comissão que seja escutatório, um grupo de trabalho nessa comissão que demande, que dê conforto, que dê encorajamento, que vigie, que proteja, que seja um espaço de resiliência, resistência e potência de força. Um grupo de trabalho que seja feito com senhores e senhoras desta casa, mas também com senhores e senhoras das comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul, com comunidades indígenas do estado do Rio Grande do Sul, com o povo das ocupações do Rio Grande do Sul, com os refugiados e refugiadas do estado do Rio Grande do Sul.”

É preciso ir além do reconhecimento da existência das comunidades e de dar o direito em decreto, é preciso assegurar na prática esse direito e dar as condições para a sua defesa. “Nós estamos aqui hoje para demandar desse Conselho Estadual de Direitos Humanos que ele seja o que ela se propõe na sua missão: resistência, reexistência. Um espaço em que a gente possa ser mais do que corpos contados ao chão. O Conselho não pode servir para contar as nossas mortes, deve servir para impedir a morte moral, a morte espiritual, a morte cultural e a morte histórica e política de povos e pessoas comuns”, expôs Yashodhan.

A demanda levada ao CEDH-RS, reunido na Assembleia Legislativa, é para que o Estado Brasileiro e o Estado do Rio Grande do Sul de fato deem recursos e condições para a existência desse que é um dos bastiões de resistência da sociedade civil e também controle social das políticas no Brasil e no Estado do Rio Grande do Sul. “A gente traz a demanda ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, que faça essa recomendação a todas as entidades do estado, do reconhecimento do Protocolo de Consulta Livre Prévia e Informada elaborada pela comunidade e faça conhecer também a sentença da ação civil pública. E que ela seja vista pela Fepam, pelo Ibama, pelo Ministério Público e pelos demais órgãos competentes como uma oportunidade dada para que possam ser estabelecidos protocolos que façam cumprir o que já é de direito na Constituição, dos povos indígenas, dos povos quilombolas”, mencionou Lúcia Ortiz, presidenta da organização social das pessoas Amigas da Terra, reconhecida nesse tempo e era como Luz das Águas, filha de Mãe Preta. 

Momento de fala de Yashodhan Abya Yala, da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz. Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da comunidade Kilombola Morada da Paz | Foto: Carolina Colorio – ATBr

“Que esse protocolo seja também utilizado, não apenas em processo de licenciamento de grandes empreendimentos, mas de consulta como deve ser, na garantia dos direitos democráticos, consulta aos povos na elaboração das políticas públicas, sejam elas de saúde, sejam elas de educação, porque elas só tem a melhorar com a sabedoria do povo, com a participação popular e com essa articulação que nos fortalece”, salientou Luz das Águas. 

Desta vitória específica, sopram ventos de mobilização e possibilidade para outros cantos do país. A vitória da comunidade levou a um resultado que é um precedente da justiça, que implica órgãos estado, especialmente o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a construir um novo protocolo, um novo procedimento. Algo há muito tempo demandado do poder público. Ao final do encontro, o Conselho se comprometeu estabelecendo um Grupo de Trabalho para elaborar coletivamente sua recomendação e para os órgãos do estado do Rio Grande do Sul, como sugerido pela Comunidade. Passo que representa mais do que uma recomendação sobre um caso específico, mas que tem caráter de uma recomendação para as comunidades e povos tradicionais do estado, em benefício da diversidade de povos, seres, biomas e territórios.

Na sessão estiveram também o povo de Alvorada, da Restinga, das comunidades quilombolas de São Lourenço do Sul e de Santa Maria, ocupações urbanas de Porto Alegre como a Ocupação Jiboia, membros do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, do Conselho Indigenistas Missionário (CIMI Sul), presenças de quilombos, terreiras e das lutas antirracistas, por moradia e direito ao território, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), integrante do Igualdade Racial da OAB, o gabinete da deputada federal do Reginete Bispo (PT), Mestre Cica de Oyó e o novo Ouvidor eleito para a Defensoria Pública Estadual, Rodrigo de Medeiros, entre outros.  

A atividade, além de  demandar os próximos passos sólidos para uma luta que se amplia, com valores acolhidos em cuidado, coletividade e na vida, foi um momento de troca sobre realidades perpassadas por amor e guerra. Foi, também, um debate sobre o tempo e seu entendimento. Desde a entrada da Comunidade na Assembleia até sua saída, a linearidade do tempo de kronos, marcado pelo som do passar de ponteiros dos relógios apressados, se dissolveu. O tempo é memória, resgatou em uma de suas falas Yashodhan. E ali o tempo se fez memória. Vivo, coletivo, entrelaçado entre um ontem, agora e amanhã que rompem a linearidade e tem firmamento em uma cosmovisão e prática de mundo que nos evidenciam respostas que sempre estiveram aqui, afinal, somos natureza. Tempo de fluidez firme que percorre o tambor, o berrante e o peito de quem canta e dança enquanto faz luta, enquanto se regam e brotam sementes e sombras de figueiras, essas guardiãs antigas e de tanta sabedoria. 

É preciso assegurar a consulta livre, prévia, informada e de boa fé às comunidades afetadas por empreendimentos que existem numa lógica colonizatoria de lucro acima da vida, de superexploração dos corpos e territórios para a extração de riquezas que se traduz no monopólio de poder de poucos, às custas de muitos num plano que leva ao colapso socioambiental. É preciso combater a genealogia do desastre que alarga as veias da América Latina. Um caminho possível no fazer em comunidade, na construção coletiva de outros valores, na compreensão que um rio que corre é um ser vivo. Nas vivências que têm como base que, como referiu-se Yashodhan, é preciso que o tempo do relógio se curve para o tempo da vida. Foi preciso parar a légua. E é crucial impedir que outras léguas avancem sob o tempo da vida.

A história de luta pelo direito de ser e existir da Comunidade Kilombola Morada da Paz

Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Justamente trazendo o fio de kitembo, a divindade do tempo na cosmopercepção da Comunidade Kilombola Morada da Paz, que Baogan, Bàbá Kínní da Nação Muzunguê, guardião das choupanas e sapopembas de Mãe Preta e de todos povos de Mãe Preta espraiados nos sete cantos do Ayiê, deu abertura às exposições faladas do momento. Kitembo é senhor dos destinos, não das vontades, manifestou. No instante, compartilhou a partir de memórias a história de luta da Comunidade por seu direito de ser e existir.   

“Inicialmente, em dezembro de 2020, começaram a aparecer algumas pistas de que haviam ameaças à nossa comunidade, ao nosso território”, expôs. Baogan contou como ocorreu a construção do processo de resistência, quando a comunidade se negou a fazer o Estudo de Componente Kilombola proposto por uma empresa de consultoria, e que orientados por suas divindades e com ajuda de parceiros tiveram conhecimento de seu direito de realizar o  Protocolo de Consulta Prévia, conforme previsto na Convenção 169 da OIT. E foi o que fizeram, levando a palavra coletiva e a resistência adiante, assim como a possibilidade de manter acesa a vida em toda a sua sociobiodiversidade. 

Um dos filhos do território, Johny (Johny Fernandes Giffoni – Defensor Público do Estado do Pará), sabedor dessa situação após o nosso contato, nos alertou para a diferença entre Estudo de Componente Kilombola e Protocolo de Consulta Prévia, pois a nossa uma empresa de consultoria chegou propondo que fizéssemos um Estudo de Componente Kilombola, mas isso é uma etapa a posteriori. André Filho de Mãe Preta traz o que está acontecendo e apresenta elementos do Projeto de ampliação da BR 386, não se trata de duplicação, já é uma estrada-duplicada. O direito à consulta prévia, livre e informada de boa fé é algo que nos é assegurado, enquanto povo tradicional. E algo que estava sendo de nós retirado. Então propor a nós um Estudo de Componente Kilombola era uma tentativa de cooptar também o nosso direito de sermos consultados prévia, livre, informada e de boa fé”, explicou Baogan, expondo a violação de direito já no ato de vetar o acesso à informação. 

De acordo com Baogan, esse foi o primeiro ato. “Perceber, entender e compreender que estávamos sendo vítimas de um racismo estrutural e de um projeto de destruição. Anciãs e anciãos e os jovens odomodês do nosso território oram de juncó ao pé do jacutá, nossos orixás respondem: dezembro de 2020. Terceiro Momento, nos ensina a nossa Mãe Preta, a nossa yagbá ancestral: mais do que ter fé, é preciso SER FÉ. Sapopembas, raízes de força, de luz, chamado do berrante, tambor, concha, organização como uma árvore. A nossa luta não é como um pé de funcho, mas como uma figueira negra”, ressaltou, abordando então os passos que seguiram dessa consciência e de uma prática engajada em ser fé. 

Em março de 2022, foi publicado o  Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar, com apresentação no México e no Peru. O dossiê também percorreu a Retomada Gah-Ré (RS), o Quilombo de Dandá (BA), a Jornada de Agroecologia (BA), a Ilha de Colares (PA), o Quilombo Vidal Martins (SC) e com uma série de intervenções em Porto Alegre (RS), que ocorreram em jornadas de Janeiro de 2021 à Março de 2023. Atualmente, o reconhecimento público da Legitimidade do Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar é onde a luta se trava, com incidências políticas, sociais, culturais em âmbito local, estadual, federal e latino-americano. Como trouxe Baogan à palavra, citando Mãe Preta: “Em terra firme se fazem grandes construções”.


Publicação Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar.

Nos próximos passos, a Comunidade e os aprendizados coletivos serão partilhados, ressignificados e articulados na Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, com o horizonte de alcançar outros Territórios Kilombolas, Indígenas e Ribeirinhos, assim como Populações Atingidas por empreendimentos que violam direitos humanos e aos territórios. 

É preciso parar a velocidade da légua’

Como relatado pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), ao menos 650 quilombos sofrem com grandes empreendimentos no Brasil. Quanto à Comunidade Ancestral Morada da Paz – Território de Mãe Preta, Lúcia Ortiz conta que foi necessário barrar o avanço da ampliação da rodovia. 

“A Mãe Preta dizia: ‘Tem que parar a légua, tem que parar a velocidade da légua’. E nós tivemos a missão de fazer uma marcha na BR 386 ao final de 2019. E eu me perguntava: mas como que nós vamos parar essa légua? Somos trinta, quarenta pessoas. Como que nós vamos fazer essa caminhada? E fomos nesse grupo com muita coragem, com muita valentia, e nós tivemos certeza que nós éramos muito mais que trezentos nessa caminhada. E isso foi antes de chegar a empresa de consultoria no território, pedindo licença para fazer um Estudo de Componente Kilombola. E foi só depois que nós ficamos sabendo que a Licença Prévia para a ampliação dessa BR já tinha sido concedida pelo Ibama. E esse mesmo ano começou a pandemia (Covid-19) em março, e também foi esse ano de isolamento e da necessidade da gente retomar o nosso fio de contas e essa força de protegimento, que nós fomos chamados também a compor o colegiado de organizações do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e suas comissões. Então foi em março, sabendo disso tudo, que nós recebemos a Convocatória para a Primeira Reunião da Comissão naquele ano, da comissão chamada assim: “Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Envolvidos em Conflitos Fundiários”. E isso chegou depois da parada da légua, depois das nossas ações, depois de nós tomarmos a consciência da ameaça acontecendo no território, então nós construímos esse caminho com a sabedoria, com a participação dos mais velhos, dos mais novos, de todos os seres dessa comunidade, traduzindo como que a comunidade percebia e sentia no sonho, na vida, no cotidiano, essas ameaças”, explicou.

Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Lúcia também mencionou a relevância da construção coletiva e dos vínculos de afeto entre lutas que convergem, para garantir que a ComumUnidade, assim como tantas outras, possam seguir existindo. Em agradecimento, citou Leandro Scalabrin, do Movimento de Atingidas e Atingidos por Barragens (MAB), que orientou a Comunidade nos ritos do CNDH. Luiz Ojoyandi, filho de Mãe Preta, do OLMA, que assumiu junto a construção dessa relatoria a partir da denúncia encaminhada ao Conselho Nacional de Direitos Humanos. A Sandra Andrade, da Conaq, que foi quem, como coordenadora da comissão nomeada carinhosamente de Terra e Água, elevou até o pleno do Conselho e acolheu e encaminhou a denúncia-relatório para que fosse elaborada uma recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro para que reconhecesse e respeitasse o direito que é dos povos na Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé. Ao Conselheiro Marcelo Chalréo da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, que participou da elaboração da redação da recomendação aprovada por aclamação no Pleno do CNDH. “Uma recomendação que subsidiou então as nossas amazonas de luz também, na representação junto ao Ministério Público, já que continha nessa recomendação que, dentro do contexto de desmonte das políticas públicas, das instituições do estado, e de instituições como a próprio Incra e a Fundação Palmares, que estavam com desvio da função, sendo extintas naquele momento, a responsabilidade era do Ministério Público, de alertar todas as comunidades, em processos de licenciamento de grandes empreendimentos acontecendo na região. Levamos então a representação das Amazonas de Luz ao Ministério Público”, destacou Lúcia. Agradeceu, ainda, a Cláudia Ávila, conselheira e advogada das ATBr e a Fernando Campos, que também estiveram presentes no momento de representação no Ministério Público. E aos presidentes do Conselho Nacional, ao Darci Frigo nosso companheiro da Terra de Direitos e também o Yuri Costa, da Defensoria Pública da União (DPU), que Lúcia destacou terem sido guerreiros muito valentes e importantes na sustentação da existência do Conselho Nacional nos quatro anos do (des)governo Bolsonaro.

Na sessão, Pâmela Marconatto Marques , Coordenadora do Grupo de Trabalho Kombit! Mutirão por Moradia, Território e Dignidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compartilhou sobre como foi a Ação Civil Pública ingressada pela CoMPaz. “É um dos diversos instrumentos utilizados na defesa do território. A Comunidade contou com o empenho de muitas pessoas, organizações e com a articulação com outros povos quilombolas, que enfrentam os mesmos problemas em todo o país, para construir sua própria cartografia comunitária e elaborar o seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé, chamado de Dossiê Kilombo, pontuou. E como Baogan comunicou em sua fala, é preciso recontar a história para não esquecer o que ela é hoje e não o que ela foi: “O Dossiê Kilombo expressa a necessidade de que haja uma pedagogia que oriente o ritual de Consulta Prévia (como fazer, por onde fazer, quem deve fazer)”. 

Apesar da dificuldade e descrença de atores estatais e operadores jurídicos, a comunidade se lançou em movimento. “Como Baba menciona, a BR 386 já é duplicada, então começamos a pensar que o que estava em jogo era uma triplicação, quadruplicação. E tudo que tava em jogo com relação a isso. Porque uma BR precisa ser tão expandida assim? E quem conhece a morada vê que ela é quase um enclave ecossustentável diante de plantação de soja, diante de monoculturas diversas ali naquela região. Então começa a entender que essa ampliação servia justamente a esses cultivos. Ao monocultivo. E a gente sabe tudo que vem junto com ele: Trabalho indecente, gente em más condições, bicho de qualquer jeito. E a gente vai aprendendo que a Comunidade Morada da Paz acabava sendo um lugar que dava conta de tudo isso. Que dava conta, inclusive, de melhorar um território, de melhorar uma terra que tava sendo consumida pela arenização. Quem conhece o território sabe disso também, o quanto essas comunidades fazem para manter viva essa terra. A comunidade Morada da Paz e os povos tradicionais brasileiros, o quanto eles regeneram a vida nesses territórios. Pois bem, vendo tudo isso, nós tínhamos a missão de incidir de maneira a enfrentar o que não nos era possível fazer, que era parar esse megaprojeto”, expôs Pâmela. 

A empreitada foi uma Ação Civil Pública, conectada à noção de que a comunidade já vinha sendo impactada pelo simples fato de não ter sido ouvida sobre o megaprojeto. “Justamente porque a consulta não tinha sido prévia, livre e de boa fé informada do que aconteceria ali, a comunidade não dormia mais de noite. Os jovens e as crianças tinham pesadelos, achavam que a qualquer minuto podia bater à sua porta aquela ampliação. Se houvesse acontecido a consulta prévia, talvez isso não tivesse acontecido assim. A comunidade esperaria, ela saberia que trechos seriam impactados, ela conseguiria olhar para esse megaprojeto e pensar: não, eu sei, vai acontecer ali, depois vai acontecer aqui, mas no nosso trecho não, ou depois”, trouxe Pâmela. Ela contou que o encaminhamento foi o pedido para que a 9ª vara respondesse em face liminar, urgentemente, a demanda do kilombo: parar a légua. 

No atual momento, a Ação teve uma grande vitória e está em fase de embargos. Realizar a consulta prévia é responsabilidade do Estado, que sabe que tem que aplicar a Convenção 169 e que podem haver os protocolos das comunidades. No intuito propositivo de apresentar ferramentas, conectar pontos e garantir a vida, que a CoMPaz está enraizando essa pedagogia da consulta. O que está em jogo é como as comunidades devem ser consultadas, quem deve consultar e como isso deve ser feito, respostas que podem ser encontradas no Dossiê e em tantos outros que podem surgir, a partir das comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e tradicionais, para que sua existência seja não apenas reconhecida, mas possível em toda sua magnitude.  

Ao elucidar que a morte pelo acesso a informação também é real, Yashodhan também contou como foi o processo de resistência à ampliação da BR, destacando tentativas de silenciar a comunidade e o que está em jogo com a efetivação da obra. “Quando nós chegamos a denunciar todo o processo que está acontecendo conosco e com outros parentes e irmãos quilombolas e indígenas, foi-nos dito: Mas vocês estão fazendo uma tempestade num copo de água, o processo de ampliação da BR vai ser só para 2030. Eu vou repetir o que eu disse: em 2030 talvez nós estejamos mortos, precisamos garantir aqui no presente a continuidade da nossa história com o direito de ser e existir do jeito que nós somos. Nós precisamos garantir, aqui, no tempo presente, a luta e as estratégias de sobrevivência”. Salientou ainda que o ponto não é parar o progresso, mas impedir que o entendimento de progresso tenha como massa de sustentação a cultura, a fé, os sonhos e a possibilidade de continuar existindo das comunidades kilombolas. 

A CoMPaz vai fazendo seus caminhos que contrapõe a violenta história hegemônica do Brasil, contada como se desenvolvimento fosse saque, domínio, escravidão e disparos de tantas violências contra os corpos negros, do campo à cidade, das águas às florestas. Ela expõe as feridas causadas por um entendimento dos kilombos a partir da dororidade, num imaginário racista que não reconhece as potências, sabedorias, pedagogias e a capacidade de organização coletiva e manutenção da vida dos territórios negros. E vai além, propondo saberes, práticas e ferramentas de luta, construindo alianças possíveis que florescem afeto e fé. “O que esperam de um kilombo? Criança ranhenta, com o pé no chão, cachorro e mendigando? Não. Nós somos mais do que isso. E se isso existe nas nossas comunidades, é produto de um estado estruturalmente pautado, basilado, na escravização, na morte, no peso da dor. Então nós somos mais do que isso, nós somos a antítese de uma história que teima por ter ouvidos para ouvir, porque voz nós sempre tivemos”, mencionou Yashodhan. 

É no comprometimento, na construção do coabitar e de outros mundos possíveis, que segue a marcha para frear as léguas que soterram a vida. Que a vida segue, como ensina a água, abrindo brechas para correr ao mar. A luta avança, fazendo do chão que se pisa terra fértil para que o sonho de uma liberdade coletiva seja o amanhã possível. Como compartilhou Yashodhan: “É preciso que a gente continue e é preciso, como mulher preta, kilombola, como mulher da zona rural e como gaúcha que sou, que esse estado seja reconhecido e auto reconhecido não só como um estado hegemonicamente branco, simpático do fascismo, simpático do trabalho escravo. Porque o silêncio, senhoras e senhores, e essa frase não é minha, mas o silêncio daqueles que podem e devem fazer alguma coisa é a morte do futuro. É a morte do sonho. Não temos medo do nosso corpo tombado no chão. Não queremos que isso aconteça. Mas nós vamos lutar até o último minuto para que a morte moral não saia encostada em nós quando nos levantarmos dessa cadeira. Nós estamos aqui agora. Que o dia de hoje se transforme numa história que não deve ser esquecida”. 

“Vida longa e próspera: nós continuamos e não estamos só”

📽️ Confira a cobertura em vídeos da participação da CoMPaz no CEDH/RS:

Em janeiro deste ano, a Justiça Federal reconheceu o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé da Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz), em Triunfo (RS). Anteriormente, a consulta, prevista na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), havia sido violada.  Processo narrado acima por Ìyalasè Yashodhan Abya Yala, a Sangoma (Guardiã da Memória e Guiança Espiritual) da CoMPaz na série de entrevistas do podcast “Prelúdio de uma pandemia”. Realizado em parceria com a Rádio Mundo Real, da Amigos da Terra Internacional, o podcast percorreu o contexto brasileiro, da Costa Rica, de El Salvador e do Haiti para denunciar e analisar as violações dos direitos dos povos e seus direitos humanos, antes, durante e depois da pandemia de Covid-19. Confira o podcast aqui  

Como consequência da sessão do CEDHRS do dia 9 de março na AL-RS se formou um grupo de trabalho – GT sobre a Convenção 169 da OIT e sua aplicação no Estado do RS. Esse GT já se reuniu virtualmente e nessa 5a feira dia 18 de maio se reúne presencialmente a partir das 9hs no Território Yagbá Ancestral de Mãe Preta – CoMPaz em Triunfo/RS. O encontro também forma parte das Conferencias Livres prévias à VI Conferencia Estadual de Direitos Humanos (a ser realizada nos dias 26 e 27 de maio de 2023, no Auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).

 

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Indicações de leituras:

Racismo Ambiental. Artigo de Alan Alves Brito (NEAB/UFRGS) e Ìyamoro Omo Ayo Otunja, (Ìyiakekerê da Nação Muzunguê – CoMPaz) Janeiro 2021.

Vitória das retomadas Mbya Guarani de Canela e de Cachoeirinha no Rio Grande do Sul

🏹 Recentemente, os povos indígenas tiveram duas importantes vitórias no Rio Grande do Sul (RS) que reforçam sua árdua luta para permanecer nos territórios.

Na 3ª feira (9/05), a 3ª Turma do TRF4 (Tribunal Regional Federal), em Porto Alegre (RS), suspendeu a reintegração de posse da terra onde estão as comunidades Mbya Guarani Tekoa’s Kuryty e Yvyá Porã, na cidade de Canela, na Serra Gaúcha. A desocupação imediata pelos indígenas havia sido determinada pela Justiça Federal de Caxias do Sul, em ação movida pela CEEE, estatal de energia elétrica privatizada pelo governador Eduardo Leite.

Os Mbya Guarani marcaram presença durante a sessão no TRF (foto acima), junto com suas assessorias, organizações e apoiadores, como a Comissão Guarani Yvyrupa, CAPG, de seus aliados – o CTI, Cimi Sul, Aepin, Cepi – e outros apoiadores dos movimentos e coletivos sociais. Os Guarani celebraram, rezaram, cantaram e sorriram diante desta importante vitória!

Vale destacar que na decisão, o relator, desembargador Rogério Favreto, afirmou haver muitos elementos da ocupação tradicional dos Mbya na área, cabendo à FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas)  a criação do GT de identificação da terra. No entender dos desembargadores, é preciso ainda aguardar pelo resultado da apreciação do Recurso Extraordinário de Repercussão Geral, 1.017.365, a ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em que se discute a tese do marco temporal e os direitos originários dos povos sobre as terras que ocupam.

O colegiado também citou a necessidade de seguir, nas discussões jurídicas sobre os povos indígenas e seus direitos territoriais, as determinações contidas em tratados internacionais, referindo a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Dada a ênfase que a empresa detentora da CEEE deu aos riscos à saúde e à vida dos indígenas na área retomada, pois há uma hidroelétrica e a rede de transmissão, um dos desembargadores destacou que é dever da empresa criar ou encontrar mecanismos de prevenção e proteção aos indígenas, quando houver, na área em questão, algum risco.

Em síntese, o julgamento referenda a necessidade de permanência dos indígenas na terra, garantindo-lhes a posse; aponta que há elementos significativos acerca da ocupação originária Mbya Guarani naquela região, portanto, um direito que prevalece; e há de se aguardar pelo julgamento no STF, acerca da tese do marco temporal e do indigenato.

O TRF4 já tinha tomado decisão semelhante na semana passada, mantendo suspensa a reintegração de posse do terreno onde fica o “Mato do Júlio”, na cidade de Cachoeirinha, região metropolitana. A decisão garante que a comunidade indígena Mbya Guarani siga no local enquanto tramita a ação movida pela empresa Habitasul, proprietária do imóvel.

A área é reivindicada pelos indígenas, que estão com processo administrativo em aberto junto à FUNAI. Há estudo antropológico que afirma ser o local imprescindível para sustento, reprodução física e cultural da etnia, cuja permanência lá data de décadas.

Atualmente, a Retomada Mbya Guarani em Cachoeirinha faz campanha pedindo doações para montar uma escola. Veja como ajudar em http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/04/05/campanha-de-doacao-as-escolas-das-retomadas-mbya-guarani-em-porto-alegre-e-em-cachoeirinha-rs/

Leia mais sobre a decisão em relação à Retomada de Cachoeirinha (RS): https://www.brasildefato.com.br/2023/05/08/justica-confirma-permanencia-de-comunidade-mbya-guarani-no-mato-do-julio-no-rio-grande-do-sul#.ZFm1Cyk2TyA.whatsapp

*Texto de Roberto Liebgott (CIMI Sul) sobre o julgamento da Retomada de canela em 9/05. Sobre a suspensão da reintegração de posse do Mato do Julio e da Retomada de Cachoeirinha, as informações são do  TRF4

Nota de solidariedade à comunidade quilombola Vista Alegre (Maranhão). Alcântara é quilombola!

 

A comunidade quilombola Vista Alegre é uma das 150 comunidades residentes no território de Alcântara (Maranhão), reconhecida pelo Estado Brasileiro desde 2004. Há anos, as comunidades da região têm conflitos com a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) pela Aeronáutica, que tem restringido o acesso ao território, disputando a terra com projetos de expansão, e inúmeras ameaças às comunidades. O município de Alcântara integra a região metropolitana de São Luís, sendo a luta das comunidades quilombolas pelos seus direitos territoriais na região um dos casos mais emblemáticos da causa quilombola no país. Isso se deve tanto pelo tamanho do território como pela ancestralidade da ocupação, que remonta o século XVIII.

No último mês, a Polícia Federal realizou uma reintegração de posse violenta, afetando a vida de 50 famílias. O despejo foi resultado da ação movida pela Advocacia Geral da União (autos nº. 1003280.80.2022.4.01.3700, 3ª Vara Federal Cível da Justiça Federal do Maranhão) contra a construção de um pequeno restaurante no local, que estava desativado desde maio de 2022. Não houve qualquer tentativa de construção de mediação do conflito, mesmo se tratando de território quilombola e da previsão expressa na legislação para uso do mesmo.

Representantes das comunidades estiveram em contato com a Casa Civil, Ministério dos Direitos Humanos, Ministério da Igualdade Racial, Ministério da Justiça e Segurança Pública e secretarias estaduais para intermediar um diálogo, sem que obtivessem resposta até hoje.

As comunidades quilombolas sentiram-se desrespeitadas com a presença da Polícia Federal em suas casas, intensificando as já tensas relações entre as comunidades e a presença da Força Aérea Brasileira (FAB). Ainda que o conflito envolvesse um agente privado, este estava dentro de uma organização coletiva do território, de modo que afetou a todos os membros da comunidade, em desrespeito a seus modos de vida culturais.

A Amigos da Terra Brasil manifesta sua solidariedade às comunidades quilombolas, colocou-se como parceiro na defesa do território étnico quilombola de Alcântara em sua inteireza e plenitude. Afirmamos, em coro com as comunidades, que Alcântara é quilombola! Clamamos ao Estado brasileiro que tome medidas para construir uma mediação do conflito em acordo com os aprendizados da ADPF nº 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). De igual modo, recomendamos o cumprimento das diretrizes estabelecidas na Resolução nº 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos. 

 

Amigos da Terra Brasil (ATBr)

 

Fluxos cosmológicos na cidade: a (des)invisibilização indígena

Artigo  de Carmem Lúcia Thomas Guardiola¹ e Roberta Deroma² aborda as retomadas Mbya Guarani na Ponta do Arado (Porto Alegre-RS). No extremo sul da cidade de Porto Alegre, no bairro Belém Novo, um movimento cosmológico em busca de territorialidade acontece em terras de propriedade privada. Indígenas da etnia Mbya Guarani retomam território na Ponta do Arado até então destinado a construção de um empreendimento imobiliário. O movimento de Retomada de territorialidade perpassa a cidade e seus habitantes em relações de conflitos e afetos, no qual interesses econômicos e de bem viver vão construindo histórias. Confira: 

Porto Alegre tem seus bairros centrais repletos de concreto, prédios uns ao lado dos outros e muitos carros soltando fumaça cinza percorrendo ruas asfaltadas de sentimentos expostos nos ritmos urbanos. Os bairros mais afastados do centro na zona sul mesclam o concreto ao verde em uma mistura de asfalto e de terra, de pessoas e de não humanos, de áreas urbanas e de áreas rurais.

Entre todas estas ambiências — bairros, cores, chãos, pessoas, ruídos –, encontramos os Mbya. Estes indígenas têm seu território de vivências não demarcado por linhas fronteiriças divisórias, mas em uma vasta área ao sul da América do Sul. Eles caminham e vivenciam estes espaços, mas é nas matas ou próximo a elas que se constituem como indígenas Mbya.

É em busca destes territórios, perpassados por concreto, que os Mbya caminham rumo ao seu fortalecimento: três lideranças se deslocaram por terra e por água até chegarem a ponta do Arado Velho. De barco seguiram e aportam no dia 15 de junho de 2018 na Ponta do Arado onde Alexandre, Timóteo e Basílio com suas famílias encontraram todos os elementos de vivência para potencialização de seus corpos.

Neste mesmo espaço geográfico existe outra história.

A Ponta do Arado é uma área de preservação de 223 hectares e faz parte de um todo de 426 hectares da Fazenda do Arado Velho que está localizada às margens do Guaíba no bairro Belém Novo, extremo sul da cidade de Porto alegre. Uma área territorial estranha aos moldes do indígena por ser privada e com donos. Nessa história, os proprietários, representados pela Arado Empreendimentos Ltda., idealizam um projeto de urbanização que prevê a construção de condomínios de alto padrão e centros comerciais.

Conflitos emergem diante de diferentes visões de mundo relacionadas às questões ambientais, estéticas e econômicas. Sentimentos desabrocham, constroem e transformam a história do bairro atravessada pelas disputas sociais e políticas em torno de uma terra singular que é significada através da longa vivência de seus moradores.

Após denúncias e pressões do movimento socioambiental composto por estudantes, ambientalistas e moradores do bairro Belém Novo, o projeto de urbanização está suspenso por questões legais no momento desta publicação. Tais conflitos com os empreendedores se intensificaram frente a uma nova presença antes invisibilizada: a presença indígena Mbya Guarani.

Enquanto os idealizadores do empreendimento imobiliário demandam na justiça a concretização de seus planos, criam conflitos ideológicos e morais entre os moradores e causam indisposições e constrangimentos para os Mbya que permanecem fortes e determinados em estado de Retomada das terras e do seu modo de ser.

Neste estado de Retomada, os indígenas recebem apoio de um movimento em alguns momentos de tensão. Os Mbya foram expulsos das matas da Ponta do Arado e encurralados nas areias da praia sem acesso à água potável, impedidos de transitar nas matas da região para buscarem materiais à construção de casas e de plantar suas sementes milenares passadas de Guarani à Guarani. Quando são constrangidos pelos não-indígenas, o movimento lhes oferece alimentos, filtros de água, roupas, materiais para erguerem seus abrigos, um barco para se locomoverem e visitarem seus familiares ou mesmo recebê-los em visita. Recebem também o apoio afetivo do Juruá (não-indígenas) ao irem em busca de redes de apoio em eventos na cidade.

A cidade perpassa o mundo Mbya. Não mais somente os campos, os rios, os lagos, os arroios e os outros indígenas, como também os espaços urbanos.

Em meio a acusações — como de destruidores do meio ambiente –, as famílias Guarani na Ponta do Arado estão em um espaço ínfimo ao lado de sítios arqueológicos com vestígios de seus ancestrais. Estes, que eram canoeiros, circulavam pelo Guaíba e pela Lagoa dos Patos de ponta em ponta, e a ponta do Arado Velho era somente mais um espaço de vida sem propriedades privadas. Hoje o local se configura enquanto periférico tanto a respeito de sua localização quanto de sua inserção nos espaços de diálogo sobre a cidade de Porto Alegre. Seu próprio status de zona rural se encontra fragilizado, tornando-se alvo de alterações e projetos de leis que denotam parcialidade ao se empenharem em propiciar a construção do empreendimento e ao desconsiderar a malha de conflitos e questões emergentes.

A região segue acompanhada do risco de estar fadada a um único modo de se conceber a cidade sob o discurso de progresso e de crescimento. Modo este que desconhece presenças indígenas no território urbano e que reforça estereótipos em torno da pessoa indígena ao negar este espaço a elas.

O estado de Retomada de terras dentro da sua compreensão enquanto resiliência pode ser entendido como um modo de se retomar uma cosmovisão aniquilada e ressignificar lugares, questionando acerca das funções dos espaços urbanos e o quanto correspondem às necessidades daqueles que, de vários modos, fazem parte deles. Terra e ancestralidade se somam em forma de Retomada, indagações e perspectivas.

Esta distinta forma de interrogar, interpretar e sentir o mundo nos traz respostas para a questão: como em tanto tempo de suas existências, constrangidos a se contentar com cada vez menos matas, suas crianças ainda brincam nas areias das praias da cidade?

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[1] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT/PPGAS/UFRGS), guardiolars2@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/4343383842143051

[2] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), integra o Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/PPGAS/UFRGS), deromaroberta@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/3096737094617446

Referências:

LADEIRA, Maria Inês. O caminhar sob a luz: o território Mbya à beira do oceano. São Paulo: UNESP, 1992.

PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: UNESP/ISA, Rio de Janeiro: NUTI, 2007.

O artigo foi publico originalmente aqui, confira

Campanha de doação às escolas das Retomadas Mbya Guarani em Porto Alegre e em Cachoeirinha (RS)

 

Após 2 meses do início do ano letivo nas escolas das redes públicas gaúchas, finalmente o governo do Estado contratou professor para garantir o aprendizado não-Mbya na Retomada do Arado Velho (zona sul da capital). Em Cachoeirinha, na região metropolitana, os Mbya Guarani ainda aguardam encaminhamento que está sendo tomado pelo poder público. Essa situação de abandono já havia sido denunciada pelo CPERS Sindicato no final de março, reforçada pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e pela Amigos da Terra Brasil no início deste mês. 🔗Confira em http://bit.ly/3nJu4oh

No entanto, as condições para as crianças terem aula nas aldeias estão muito precárias. Não há quadros, nem bancos e mesas adequadas. O material didático (caderno, lápis, borracha etc.) é muito pouco. As aldeias não possuem um espaço fechado, com telhado, para abrigar crianças e professores em dias de chuva ou frio. Também faltam alimentos para a merenda e refeições.

Os Mbya Guarani das Retomadas do Arado Velho (Porto Alegre) e de Cachoeirinha pedem uma contribuição para viabilizar as escolas nas retomadas, proporcionando o aprendizado às crianças indígenas. Estão sendo aceitas doações de materiais para a sala de aula, escolar e para construir o espaço da escola. As doações também podem ser feitas em dinheiro.

Como entrar em contato e fazer a doação:

📌 Cachoeirinha (RS): Cacique Luciano Kuaray (Chave PIX para doações em dinheiro: CPF 01492513008). Para doar materiais, ligue no (51) 99755-6959

📌 Arado Velho (Porto Alegre/RS): para a doação de materiais e/ou dinheiro, ligue no (51) 99697-6974

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Divulgamos, a seguir, dois vídeos da campanha:


Animações explicam o que é economia feminista e princípios da sua construção na agenda de movimentos sociais

Está chegando o dia #8M, data que marca globalmente as jornadas de luta do feminismo popular,  construído diariamente nos territórios. De forma propositiva, a @capiremov, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e a Amigos da Terra Internacional produziram duas animações que abordam a economia feminista, expondo também os princípios para a construção desta na agenda dos movimentos sociais e na construção de uma mudança de sistema. De forma criativa e lúdica, os vídeos se propõe a explicar o conceito e introduzir alguns princípios feministas, sendo recomendados para o uso de movimentos sociais em suas atividades de formação.

O que é a economia feminista?

 A Economia feminista é uma estratégia política para transformar a sociedade e as relações entre pessoas e pessoas e a natureza. Passa por reconhecer e reorganizar o trabalho doméstico e do cuidado, que dentro do patriarcado recaem com força sobre as mulheres. É, ainda, uma resposta à atual crise econômica, ambiental e social. 

As mulheres são sujeitos econômicos e protagonistas na luta contra o modelo econômico dominante. A economia feminista aponta o trabalho que sustenta a vida e a produção econômica, evidenciando todas as pessoas que o fazem – sendo a maioria delas mulheres, pessoas negras e imigrantes.

 É uma economia que se propõe ainda a reorganizar as relações de trabalho, de gênero e raciais na nossa sociedade, fazendo com que o trabalho de cuidado se torne uma responsabilidade compartilhada entre todas as pessoas e o Estado. Ponto que passa tanto por discussões de políticas públicas, retomada de espaços comuns, frear as privatizações e a atransformação de bens comuns como a água e a energia em mercadorias, revogações de medidas de retirada de direitos de pessoas trabalhadoras, mais direitos, qualidade de vida, educação e saúde públicos gratuitos e de qualidade para todas as pessoas. 

Na economia feminista, a sustentabilidade da vida está no centro. Isto significa priorizar as necessidades dos povos e dos territórios ao invés do lucro. Os cuidados são uma necessidade humana fundamental. Todas as pessoas são vulneráveis e interdependentes. Todo mundo precisa de cuidados ao longo da vida, independente da idade ou do estado de saúde.  E para além disso, os trabalhos conectados a essa esfera são de baixa intensidade ecológica, não exigindo extração de recursos da natureza em larga escala e podendo se aliar a uma transição energética, climática e ecológica realmente justa. 

Economia feminista, sociedade sustentável e sociedade do cuidado 

Para transformar nosso atual modelo econômico, precisamos fazer da solidariedade e da reciprocidade uma prática nas nossas vidas, nos nossos movimentos e nos nossos esforços políticos cotidianos. A economia feminista nos lembra que a biodiversidade é fruto da relação com as povos tradicionais e seus modos de vida. Devemos respeitar o ciclo de regeneração da natureza e repensar nossa relação com a alimentação, valorizando práticas agrícolas e culinárias locais e garantindo que as comunidades tenham meios de cultivar alimentos em seus próprios territórios. A economia feminista propõe uma alternativa de sociedade construída a partir da centralidade da sustentabilidade da vida, da interdependência e ecodependência.

Uma sociedade sustentável precisa ser uma sociedade do cuidado, mas um cuidado fora das amarras do capital. Assinalar a importância do trabalho de cuidado, que sustenta a vida de todas, todes e todos é um passo para a valorização deste e para a construção de outras formas de se relacionar.

A economia feminista apresenta ainda atividades compatíveis com a redução da exploração de recursos, o que aponta uma saída para um crescimento econômico clássico, pautado pelo acúmulo infinito de capital em um planeta finito. Processo que se dá por meio da superexploração do trabalho e da natureza, do ecocídio, da criação de zonas de sacrifício, do racismo ambiental e da extinção.

O modelo capitalista divide a nossa sociedade entre as esferas de produção e reprodução da vida, isso faz com que pareça que pareçam coisas independentes. O trabalho que tem relação com o dinheiro é considerado produtivo e a sociedade o valoriza. Já o trabalho doméstico e de cuidados é considerado reprodutivo. E apesar de ser fundamental para sustentar a vida, é invisível para a sociedade e não é considerado parte da economia. A economia tradicional se constrói dentro desse modelo, privilegiando as experiências dos homens e negando as das mulheres. A Economia feminista torna visíveis todos os trabalhos que sustentam a vida, sendo o trabalho reprodutivo fundamental para que o próprio trabalho produtivo aconteça. Não há separação.

A economia dentro da economia feminista, portanto, é o modo como garantimos a vida. Sem cuidados e sem alimentos, por exemplo, não há economia  e nem  vida possível. Por isso a economia feminista reconhece e valoriza os trabalhos de cuidado como parte da economia. E vai mais além: reorganizando esse trabalho pra que seja de todas pessoas, coletivo, e para que hajam políticas públicas a respeito.

O capitalismo se desenvolveu às custas da exploração da natureza e do tempo das pessoas. Tudo em função do mercado. Na África, Ásia e na América Latina as pessoas foram expulsas de suas terras para dar lugar a monocultivos de alimentos e agrocombustíveis para a exportação. Empresas minerárias contaminam as águas, seguem destruindo a diversidade da natureza e colocam em risco a vida de quem vive em territórios próximos. Não é casualidade que nessas áreas de disputa apareçam conflitos armados e as mulheres enfrentem muita violência.

Nas cidades, grandes empresas construtoras se beneficiam com a especulação imobiliária. Para isso, desalojam pessoas de seus lares e comunidades para construir grandes projetos que afetam sobretudo as populações periféricas, migrantes, negras e indígenas. E quem segura as pontas nas comunidades, garantindo que todo mundo tenha habitação, comida e cuidado, são as mulheres.

Para manter as taxas de lucro das grandes empresas, a exigência é de mais trabalho, com menos direitos e mais vigilância. Na lógica da ganancia transformam os bens comuns em mercadorias e superexploram o trabalho das pessoas. Quando menos esperamos, o que era público vira propriedade privada, o que era de acesso comum passa a ser só para quem pode pagar.

Mulheres estão cada vez mais sobrecarregadas com o trabalho em casa e fora de casa, da reprodução e produção da vida. E com um olhar para a ecomomia feminista, a partir do cotidiano de quem cuida da vida, é evidente que os tempos e as lógicas de vida, da natureza, são incompatíveis com os ritmos do capital.

Além de ser muito  invisibilizado, muitas vezes o trabalho de cuidado é não renumerado ou mal renumerado, trazendo ainda mais violências para o cotidiano de quem historicamente assume essa responsabilidade. Situações como a da pandemia de covid-19 escancaram o quão imprescindível é uma economia que tenha o cuidado em primeiro plano, pautando um modo de vida solidário, com o fortalecimento dos espaços comuns, de escolas, creches, lavanderias, hortas e cozinhas comunitárias.

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 01”:

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 02”:

Fonte: Capire 

 Leia também a nossa última coluna no Jornal Brasil de Fato, que também aborda o tema.

 

HONDURAS: Ao menos oito pessoas defensoras socioambientais assassinadas em um mês

Entrevista com Elsy Banegas, lutadora social e coordenadora da Coordenação de Organizações Populares do Aguán (COPA) 

Uma semana depois do início do ano, Jairo Bonilla e Alí Domínguez foram assassinados enquanto trabalhavam em Concepción, departamento de Colón, a poucos quilômetros de sua comunidade, Guapinol. Ambos eram defensores dos rios Guapinol e San Pedro, e do Parque Nacional Montaña de Botaderos, também chamado Carlos Escaleras, onde nascem 34 fontes de água.

Dez dias depois e na mesma região, Omar Cruz, presidente da cooperativa camponesa Los Laureles e membro da Plataforma Agrária do Vale do Aguán, e seu sogro Andy Martínez tiveram o mesmo destino.

As comunidades ancestrais de Garífuna também foram alvo de perseguição e assassinatos no primeiro mês do ano. Após os primeiros 15 dias de janeiro, três jovens originárias de Travesía, Janahira Aranda, Ana Castillo e Cristy Espinosa, foram assassinadas em sua comunidade, perto de Puerto Cortés, no departamento de mesmo nome. O mês terminou da mesma forma, com o assassinato do líder socioambiental Ricardo Arnaúl Montero, garífuna integrante do Comitê de Defesa da Terra Triunfo de la Cruz, mesma comunidade onde quatro defensores garífunas desapareceram há mais de dois anos, localizada na Departamento de Atlantis.

O paradoxo: defender a vida significa encontrar a morte

Os interesses pelas terras e fontes de água de Honduras são multiplos e todos impactam da maneira mais crua as comunidades que vivem na terra e da terra. O extrativismo com seus projetos de minerários e agroindustriais, a interferência histórica dos Estados Unidos, o turismo de elite que almeja as costas do Mar Caribe, a trama da impunidade e os amigos que o ex-presidente Juan Orlando Hernández deixou antes de sua extradição a processos por tráfico de drogas, se unem no mesmo país e empregam sua violência de diversas formas: perseguições, ameaças, assédio, criminalização e assassinatos a sangue-frio.

A dirigente Elsy Banegas, membro do Sindicato dos Trabalhadores do Instituto Nacional Agrário (SITRAINA) e coordenadora geral da Coordenação de Organizações Populares Aguán (COPA), falou com a Rádio Mundo Real. A COPA é integrada por organizações camponesas, sindicais e de mulheres da região de Aguán, área que quase perdeu a conta de suas mortas e mortos por defender o direito à terra, à natureza e aos direitos humanos.

Banegas vive na própria pele a lógica que a oligarquia hondurenha instalou em sua região para apropriar-se de suas terras. Seu filho, Fernando Alemán Banega, foi assassinado em outubro de 2016. Não é por falta de organização e luta que essas áreas são cercadas por pistoleiros, paramilitares e agentes de segurança de empresas mineradoras ou agroindustriais. É graças a uma estrutura de violência e impunidade cravada na história do país.

A coordenadora da COPA contou que o Vale do Aguán foi incluído em um processo de reforma agrária “que garantisse às famílias camponesas um modo de vida que permitisse justiça social no campo, com regularização fundiária”. Mas, segundo a dirigente, ao longo dos anos os diversos interesses empresariais têm impedido e os governos têm procurado “sempre favorecer a oligarquia nacional”. Desde 2014, a COPA está sujeita a uma medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela violência incessante, mas isso não impediu os assassinatos. Quanto a isso Banegas é assertiva, porque é uma realidade cotidiana para ela e sua organização: as mineradoras e as agroindústrias não param de pressionar os governos e ameaçar o campesinato. “Temos visto vontade política porque se assinam acordos (…), mas a realidade é outra”.

Uma história de impunidade

“Os defensores dos dois rios estão presos e os responsáveis ​​pelos saques e altos índices de corrupção do país andam livres.” Com esta frase, Banegas sintetiza uma história de impunidade. Mas a história não é só de injustiças e corrupções, mas também de lutas e resistências para mudar essa realidade e das memórias que essas lutas guardam.

O Parque Nacional Botadero recebeu a denominação de Carlos Escaleras em 2014, com base em uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que responsabilizou o Estado hondurenho pelo assassinato, em 1997, de Escaleras, ativista que lutou contra o instalação de uma planta de extração de óleo de palma dentro do parque, próximo ao Rio Guapinol. É precisamente lá que hoje se projeta a instalação de uma planta de pelotização de ferro do megaprojeto de mineração Inversiones Los Pinares, ao qual resiste a comunidade de Guapinol. Los Pinares é propriedade de Lenir Pérez, um grande beneficiário do narco-estado que Hernández deixou ancorado.

A empresa faz parte do conglomerado de capital EMCO, que também abriga a ECOTEK, a maior usina de processamento de óxido de ferro da América Central que, segundo denúncia da comunidade organizada de Guapinol, opera sem licença ambiental dentro de área protegida do Parque Nacional Serra Botadero.

Estamos defendendo a água e com ela a vida”, disse Banegas com convicção, e detalhou quais são as ferramentas dos poderes hondurenhos para fazê-los desistir. “Começa com um processo de difamação, depois tentam comprar dirigentes, quando não te compram (…) criminalizam-te, uma criminalização que é reflexo do desvio da aplicação da justiça, com mentiras, invenções, com processos encomendados por empresas mineradoras ou agroindustriais, e se não te matam”.

Como resultado dos primeiros assassinatos do ano, várias organizações nacionais como o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), a Coalizão Contra a Impunidade de Honduras, o Comitê Municipal em Defesa dos Bens Comuns e Públicos, entre muitas outras, e entidades globais como a Anistia Internacional e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, emitiram declarações de solidariedade e exigiram investigações independentes.

Sobre essas petições e reivindicações, Banegas informou que ainda não têm nenhuma resposta concreta, embora já tenham apresentado todas as denúncias nos locais correspondentes e frisou que vão continuar insistindo em sua reivindicação. 

Entre o dito e o feito

A imparcialidade da polícia e da justiça não é garantida em Honduras e há vários motivos para desconfiança. Logo após os assassinatos de Ali e Jairo, a polícia informou que as mortes foram decorrentes de roubo e descartou que o crime tivesse ligação com questões ambientais. Isso gerou forte rejeição da comunidade organizada de Guapinol.

Em 2 de fevereiro, a mesma comunidade emitiu um comunicado no qual afirmava: “não há confiança nem no Ministério Público nem na Polícia de Tocoa para realizar uma investigação independente neste caso. Eles já demonstraram sua parcialidade e são responsáveis ​​por usar provas ilegais para criminalizar os defensores da área, incluindo Ali, e despejar violentamente o acampamento Agua y Vida em Guapinol. Em 19 de janeiro, a família de Alí Domínguez solicitou a transferência do caso para a Promotoria de Crimes Contra a Vida com o apoio da ATIC [Agência Técnica de Investigação Criminal], mas a Procuradoria Geral da República não respondeu”.

Ali Domínguez foi um dos 32 ativistas processados ​​por defender o rio em 2018, quando Los Pinares tentava instalar sua mina de óxido de ferro. Dá para entender que não é coincidência, e a desconfiança aumenta, que o promotor que os mandou para a cadeia naquela época seja o mesmo que hoje tem as causas dos assassinatos.

O mesmo acontece com a Polícia. Banegas conta que em 9 de janeiro, enquanto os seguranças privados da empresa DINANT disparavam gás e balas de borracha contra as famílias da cooperativa El Chile, a Polícia assistia e até ria. Uma informação importante: a empresa DINANT ligada ao agronegócio e alimentos ultraprocessados ​​pertence à família de empresários Facussé, a mesma contra a qual Escaleras lutou nos anos 1990.

Tanto a Procuradoria Geral da República quanto o Ministério Público foram nomeados pelo governo de Juan Orlando Hernández e seus mandatos constitucionais ainda estão em vigor. Sob a proteção da constituição, ambos os poderes agem com total impunidade. Atualmente, Honduras está em processo eleitoral para a formação de uma nova Corte Suprema de Justiça e ainda não definiu a nomeação do novo Conselho Fiscal, o que dá esperança de um sistema judicial melhor.

Ontem e hoje o Aguán resiste, não haverá exceção

“Neste quadro em que temos um novo governo, ainda há esperança de que neste segundo ano possam realmente ser procuradas alternativas, que só se têm manifestado numa vontade política de resolver os diferentes problemas. Ao longo deste ano vimos, sentimos e sofremos a violência dessas empresas”.

A Secretaria de Direitos Humanos do governo nacional estava presente no território quando os assassinatos de janeiro se tornaram públicos. No dia 23 de janeiro, aquela Secretaria concedeu uma coletiva de imprensa no local.

Banegas mencionou que em fevereiro de 2022 foi assinado um acordo entre o Ministério do Desenvolvimento e Inclusão Social, o Ministério da Segurança, o Instituto Nacional Agrário e 29 cooperativas agrícolas, “para a solução do Conflito Agrário relacionado com a Recuperação das Terras do Reforma Agrária em Bajo Aguán”. Em julho do mesmo ano, a Plataforma Agrária, com base nesse acordo, fez uma nova petição para acabar com a violência, ter acesso às suas terras e à justiça.

As comunidades Aguán trabalham em estreita colaboração com a Organização Fraternal Negra Hondurenha (OFRANEH) e as comunidades Garífuna que sofrem a mesma situação de desapropriação e violência, vários quilômetros ao norte.

“Estamos exigindo justiça e esclarecimentos, que se cancelem os megaprojetos como é o caso de Los Pinares, e que se entreguem as terras da reforma agrária aos campesinos que foram espoliados ilegalmente, as quais elas pertencem”, disse Banegas. “Nós temos uma luta pacífica, baseada em direitos legítimos (…), e somos vítimas da grande violência que nos estão impondo”. 

Conteúdo traduzido da página da Rádio Mundo Real,  publicado no dia 24 de fevereiro de 2023, no endereço/link: https://rmr.fm/entrevistas/honduras-al-menos-ocho-defensores-as-socio-ambientales-asesinados-as-en-un-mes/

Justiça Federal reconhece o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé de comunidade kilombola no RS

A Comunidade Kilombola¹ Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz), localizada às margens da BR 386 à altura do município de Triunfo, no Rio Grande do Sul, conquistou mais uma vitória na luta em busca por seu direito de Ser e Existir. No início de janeiro, a Justiça Federal no RS concedeu tutela de urgência suspendendo a obra de ampliação da rodovia no trecho que compreende os Km 405 a 415, onde fica a comunidade. A obra só poderá ser retomada após a realização de novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, em que a comunidade seja consultada previamente conforme dispõe a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os réus, entre eles o governo federal (Ibama e Incra) e as empresas concessionárias (CCR Via Sul e Empresa de Planejamento e Logística / VALEC), ainda podem recorrer da decisão.

 A decisão judicial, um importante precedente para as lutas dos povos kilombolas em todo país, se deu em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Comunidade Morada da Paz em dezembro passado e que teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por ação no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Na ação, a comunidade kilombola requereu liminar que suspendesse a obra de ampliação da BR 386 no determinado trecho. Também pediu a anulação do licenciamento, já que não foi chamada a participar dos termos de referência do estudo e nem foi citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) realizado pela empresa consultora contratada pela concessionária e apresentado ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), apesar de seu território se localizar a menos de 500 metros da margem da rodovia. 

No despacho, a juíza argumenta que “a consulta às comunidades tradicionais tem como finalidade assegurar a participação plena e efetiva destes grupos minoritários na tomada de decisões que possam afetar sua cultura e seu modo de viver. Devem ser realizadas antes de qualquer decisão administrativa, a fim de efetivamente possibilitar que os grupos tradicionais e minoritários exerçam influência na deliberação a ser tomada pelos órgãos oficiais”, o que não aconteceu, já que a Licença Prévia (LP), e posteriormente a Licença de Instalação (LI)  para a obra, foram emitidas sem que a comunidade fosse consultada e acompanhasse o processo. 

A magistrada lembrou que o Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT em junho de 2002, o que garante o direito à Consulta e ao Consentimento Prévio, Livre e Informado (CCPLI) das comunidades tradicionais, entre eles o povo kilombola. Para assegurar que a obra não ameace a subsistência da Morada da Paz, a juíza citou que, além do CCPLI, o Estado também deve cumprir com a repartição de benefícios e encaminhar estudo de impactos conduzidos por entidades independentes e tecnicamente capazes.

Conselho de Ìyás de Bàbás da Nação Muzunguê – Comunidade Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) / Vania Pierozan

¹ Porque Kilombola com K? Segundo a Comunidade Morada da Paz – Territórios de Mãe Preta – CoMPaz, a palavra Kilombo significa um grupamento de resistência e salvaguarda da memória do Povo Negro, na língua Kimbundu (parte da grande família de línguas de matriz africana que europeus convencionaram chamar Bantu, uma palavra que significa “pessoas”). Já nos dicionários de língua Portuguesa, quilombo com Qu se refere à povoação “remanescente” habitada por antigos escravos fugitivos ou pelos seus descendentes. “Não somos resto, remanescentes, somos resilientes e resistentes a todo esse sistema opressivo, somos Kilombo”, afirma Baogan Bàbá Kínní.

Comunidade Kilombola luta por seu direito de ser e de existir

A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) enfrenta, há pouco mais de dois anos, as ameaças de dois grandes empreendimentos na região: à frente do território, a obra de ampliação da BR 386 e, na parte dos fundos, a instalação de um aterro industrial. Por isso, a comunidade kilombola comemorou a suspensão das obras, mas seus integrantes sabem que é apenas uma das tantas batalhas que terão. “Sabemos que os desafios são grandes, mas confiamos na nossa estratégia, nas nossas divindades e em toda essa unidade de forças que foram articuladas e que se revelaram tão potentes nesses enfrentamentos todos que tivemos. Seguimos na fé e no esperançar!”, diz Baogan Bàbá Kínní, do Conselho de Ìyás de Bábàs da Nação Muzunguê.

Ele relata que a Ação Civil Pública ingressada pela CoMPaz é um dos diversos instrumentos utilizados na defesa do território. A comunidade contou com o empenho de muitas pessoas, organizações e com a articulação com outros povos quilombolas, que enfrentam os mesmos problemas em todo o país, para construir sua própria cartografia comunitária e elaborar o seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé, chamado de “Dossiê Kilombo: proteger, defender e vigiar” – documento que orienta a consulta à CoMPaz por parte de órgãos governamentais, empresas ou qualquer outro ente em situações de empreendimentos, ou mesmo de políticas públicas, que possam impactá-la. Este dossiê e a luta da CoMPaz por seus direitos serão tema da primeira audiência do Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CEDH/RS), que acontecerá no dia 9 de Março na Assembleia Legislativa do RS, em Porto Alegre.

“Uma consulta que chame a comunidade a dialogar antes do projeto ser elaborado, pois é preciso considerar tudo que impactará na realização dele, e que seja livre dos interesses econômicos, que não preparam o progresso para todos, apenas para alguns e com o nosso sangue, nossa história e nossa cultura”, salienta a Sangoma (Guardiã da Memória e Guiança Espiritual) da CoMPaz, Ìyalasè Yashodhan Abya Yala. Bem diferente do que ocorreu no projeto de ampliação da BR 386, reclama Yashodhan, em que os kilombolas não foram consultados sobre a obra e nem sobre os efeitos dela no território, na água e no ar. “Simplesmente fomos ignorados. E ao sermos ignorados, matam a nossa cultura, invisibilizam nossa potência de força. Nós estamos aqui e existimos, defendemos a vida do planeta com dignidade, com fé e esperançar”, defende.

Yashodhan afirma que a luta travada pela CoMPaz é por um progresso inclusivo, que respeite o jeito de ser e de existir da comunidade kilombola e dos povos tradicionais em geral. “Nossa luta é contra esse sistema de exclusão e de eliminação do que nós somos. Não somos contra o progresso, mas sim contra as bases do desenvolvimento em que esse progresso se dá. Quando nós lutamos contra a poluição sonora, contra a poluição do ar que respiramos; quando lutamos pelo nosso jeito de ser e de existir no mato com os nossos irmãos pássaros e irmãs árvores, nós estamos lutando para que a água que nós e que vocês bebem continue pura, para que o ar que nós e que vocês respiram continue puro”, defende.

A ACP teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por aclamação no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) em 2021, motivada por denúncia apresentada ao Conselho pela CoMPaz por meio das Amigas da Terra Brasil em 2020 e consequente Relatório Direito de Existir e ser Kilombola e a violação do direito à consulta e ao consentimento livre prévio e informado no Caso do Licenciamento da BR 386 no Rio Grande do Sul, construído também em conjunto com o Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA). Para Lúcia Ortiz (Luz das Águas de Mãe Preta), presidenta da Amigas da Terra Brasil, “é importante, nessa vitória coletiva, reconhecer que o CNDH, durante todo o período do governo anterior que desmantelou os espaços de participação social, foi um espaço de resistência e de convergência das denúncias e ameaças, mas também das estratégias de luta e propostas de políticas de garantia de direitos, sobre as quais os povos kilombolas e as populações atingidas em geral devem também ser consultadas. Nesse período de retomada da democracia no país “essa vitória deve ser celebrada do Pampa à Amazônia”, salienta. 

Os desafios do exercício do direito de consulta no Brasil

A decisão é histórica para a comunidade CoMPAz, mas também para todas as demais comunidades kilombolas no país. Desde a ratificação da Convenção 169, grupos sociais lutam pelo seu reconhecimento como sujeitos de direito da Convenção. Os povos kilombolas buscaram junto aos mecanismos da OIT este reconhecimento, que posteriormente veio a ser aceito pelo Brasil. No entanto, demais povos e comunidades tradicionais (PCT’s) ainda lutam para que o Estado brasileiro os reconheça como sujeitos da Convenção, apesar das semelhanças do Decreto 6040/2007, que reconhece os direitos dos PCT’s como vinculados aos artigos da Convenção.

Além da luta pela ampliação dos sujeitos da Convenção 169, diante das diversidades socioculturais do Brasil, a permanência do país na Convenção esteve em disputa. Nos últimos anos a Convenção 169 sofreu grandes questionamentos no poder executivo e legislativo. Uma série de projetos de lei tramitam para a retirada do país da Convenção, como o PDL nº. 177/2021, que visa autorizar o presidente a denunciar a Convenção, procedimento utilizado para a saída do país do acordo. Cabe recordar que o direito à consulta, previsto no art. 6 da  da Convenção 169, inclui qualquer medida administrativa ou legislativa que possa afetar povos indígenas, kilombolas e comunidades tradicionais, portanto, o próprio processo legislativo deveria ser objeto de consulta.

Da parte do poder executivo, em governos anteriores do Partido dos Trabalhadores, a Secretaria Geral da Presidência tentou regulamentar o direito à consulta, como em outros países da região, contudo os povos indígenas inicialmente, e posteriormente também os povos kilombolas, criticaram a tentativa de redução dos direitos, por entender que o texto da Convenção seria autoaplicável. Ainda mais grave foi a gestão de Bolsonaro, quando a política externa brasileira atacou a Convenção 169 na OIT, bem como no amplo “revogaço” de direitos, de 5 de novembro de 2019, com o Decreto nº. 10.088, que também revogava o Decreto nº. 5051/2004 que promulgava a Convenção 169. Tal iniciativa visava reforçar o argumento dos conservadores da falta de aplicabilidade da Convenção 169, e em particular, o direito de consulta, por ausência de legislação. Uma clara manobra para não efetivar o direito e criar uma suposta confusão jurídica.

O poder judiciário também contribui para falta de efetividade da Convenção 169. São raras e escassas as decisões, como essa, que utilizam os direitos previstos na Convenção 169. Em geral, o judiciário brasileiro não utiliza em larga medida os direitos do sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Muitos magistrados desconhecem a Convenção 169, e aqueles que a mencionam não sabem modular os efeitos da decisão para impor sua aplicabilidade, limitando-se a reconhecer a existência do direito. 

  É precisamente por isso que a decisão do caso da comunidade CoMPaz é tão importante. Quando a magistrada reconhece e aplica o direito à consulta para suspender os efeitos de procedimentos adotados sem sua realização, ela efetiva a Convenção 169. Oferece ainda, a oportunidade ao Ibama, órgão do Ministério do Meio Ambiente, de construir um protocolo de licenciamento que abarque e aplique de fato, na perspectiva da transversalidade com demais ministérios, como é a perspectiva da Justiça Ambiental e como é o compromisso firmado pelo novo governo do Brasil, o Direitos à Consulta Livre, prévia e Informada e de Boa Fé. Igualmente inovadora é a comunidade, que diante dos argumentos da ausência de regulamentação do procedimento de consulta, usado como um impeditivo para efetivação, apresenta seu Protocolo Autônomo de Consulta construído de forma comunitária, contido também no Dossiê Kilombo. Diversas comunidades e povos no país têm adotado esta perspectiva inovadora de propor, por meio de sua auto-organização e autodeterminação, as formas e modos como querem e devem ser consultados, colocando a Convenção 169, e o art. 6, em pleno funcionamento.

Nesse momento de esperança renovada para o futuro do Brasil, a decisão sobre o licenciamento da ampliação da BR 386 e a auto-organização da Comunidade Kilombola Morada da Paz recolocam as prioridades da efetivação de direitos na mesa, servindo de exemplo para um repensar as práticas autoritárias sobre os territórios e suas gentes e fazer valer o empenho popular na retomada da democracia. 


Capa do Dossiê Kilombo: proteger, defender e vigiar. Comunidade Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz). Ilustração: Vania Pierozan

Artigo publicado originalmente no Jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2023/02/15/consulta-previa-justica-federal-reconhece-direito-de-comunidade-kilombola-no-rs 

Pulverização de agrotóxicos é debatida no Fórum Social Mundial de Porto Alegre

Famílias assentadas, organizações e movimentos sociais debatem problemáticas da pulverização de agrotóxicos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre e constroem aliança para garantir a produção de alimentos sem veneno

Importância da solidariedade internacionalista e da articulação entre países da América Latina para combater o avanço dos agrotóxicos é enfatizada nos debates. Foto: Maiara Rauber

Nos dias 23 e 24 de janeiro, as famílias Sem Terra participaram do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e debateram sobre as problemáticas da pulverização aérea de agrotóxicos na mesa ‘Povos contra agrotóxicos na República Sojeira’.

Também estiveram presentes representantes do Movimento Ciência Cidadã, em colaboração com Multisectorial Paren de Fumigarnos (AR), Red Nacional de Accion Ecologista (Renace – AR), Instituto de Salud Socioambiental da Universidad de Rosario (AR), Famílias do PA Santa Rita de Cássia II e Integração Gaúcha, Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST RS), Rede Irerê de Proteção à Ciência, Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Terra de Direitos, Amigos da Terra Brasil, Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), Comissões de Produção Orgânica (CPORG), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Cooperativa Central dos Assentamentos do RS (COCEARGS), Instituto Preservar, Jornal Brasil de Fato RS, Rede Soberania e GT-Saúde/Abrasco.

A mesa, dividida entre dois encontros, contou com troca de relatos e experiências entre companheiros de luta do Brasil e da Argentina. A partilha foi de vivências forjadas pelas desigualdades do capitalismo, que avança com um modelo de produção de alimentos primário exportador (o agronegócio) de alto impacto negativo nos biomas, responsável por danos irreversíveis nos territórios além de inúmeras violações de direitos destes e dos povos. Modelo assinalado ainda por uma relação de dependência econômica do Sul Global em relação ao Norte, que incide no cotidiano de pequenos produtores rurais por meio da violência, destruição da sociobiodiversidade, poluição, envenenamento, falta de incentivo via políticas públicas, desestruturação de suas formas de produção e de vida e perseguição política.

Mas para além do descaso do estado e do desamparo presente nos relatos, o otimismo da vontade foi o horizonte das pautas discutidas. De forma propositiva, também foram elencadas estratégias para barrar a deriva de agrotóxicos, a pulverização aérea de veneno e as violências contra pequenos produtores rurais, propondo o direito à terra, trabalho, comida e à produção de alimentos saudáveis. Na confluência de saberes e realidades, os movimentos e coletivos presentes se fortaleceram, dando início a uma aliança latinoamericana para dar um basta às violações dos corpos, territórios e da natureza imposta por uma minoria muito rica que comanda o agronegócio.

Visita a assentamentos conta com troca de experiências entre Argentina e Brasil e proposição de reivindicações coletivas para barrar as violências dos agrotóxicos nos países

No primeiro dia da atividade ‘Povos contra agrotóxicos na República Sojeira’’, foi realizado um roteiro de reconhecimento dos espaços atingidos pela pulverização aérea nos últimos anos. Inicialmente os participantes reuniram-se no Viveiro Bourscheid, no Assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, na região Metropolitana de Porto Alegre (RS). O viveiro é o único com certificado orgânico no Rio Grande do Sul. Espaço que resiste às derivas e as ameaças latentes advindas dos agrotóxicos pulverizados nas proximidades, apontando que outros caminhos para a produção de ervas, temperos, hortaliças e medicinas da natureza, assim como o sonho de uma alimentação saudável, são uma realidade não apenas possível, mas que já vem sendo construído na prática. Realidade que também se traduz na segunda visita do dia, realizada em outra propriedade de assentados da região, muito reconhecida pela produção de morangos orgânicos.

Nos locais os visitantes tiveram uma contextualização histórica sobre o processo de produção de alimentos orgânicos e agroecológicos, assim como das lutas cotidianas travadas pelos assentados. Houve a identificação dos problemas enfrentados, das estratégias adotadas e das implicações das pulverizações de agrotóxicos na vida das famílias afetadas. Também foram apresentadas as articulações com comunidades urbanas e laços estabelecidos com a sociedade local e regional.

O assentado e produtor de mudas Adir Bourscheid, um dos primeiros a relatar a deriva da pulverização de agrotóxicos na região de Santa Rita. Foto: Maiara Rauber

As famílias dos assentamentos de Reforma Agrária Itapuí, Santa Rita de Cássia II e Integração Gaúcha relembram os momentos que enfrentaram em 2020 e 2021, nas quais foram atingidos pela deriva de agrotóxicos pulverizados por aviões agrícolas utilizados por grandes produtores de arroz convencional do município de Nova Santa Rita. Os herbicidas afetaram a saúde de agricultores, moradores, culturas orgânicas, animais e agroecossistemas locais, como consequência de voos rasantes de aviões com agrotóxicos sobre e nas proximidades das áreas dos assentamentos, onde se concentram também algumas das áreas de maior produção de arroz agroecológico da América Latina.

Entre os diversos sentimentos presentes, esteve a tristeza pelas violações nos territórios, com impactos traduzidos em estiagens prolongadas, como a de 2020, no envenenamento das águas, e nas ameaças constantes das pulverizações. Foram evidenciados casos de câncer devido ao contato com o veneno, doenças de pele, alergias, bolhas na pele, adoecimento e enfermidades tantas.

A partilha de relatos sobre a realidade da vida no campo, com enfoque na produção agroecológica, contou com falas como a da companheira argentina Flavia Zenotigh, da organização Mujeres Rurales Campo Hardy y Zona. Ela abordou os impactos do modelo do agronegócio e dos agrotóxicos na vida das mulheres argentinas do campo, que muitas vezes passam por situações como abortos espontâneos pelo contato com o veneno, ou nascimento de crianças com doenças e deformações. Além de um cotidiano evidenciado pela perda de suas crianças, revelou ainda que o câncer alcança índices elevados em seu território, afetando drasticamente as companheiras. Contexto situado dentro da conivência do estado Argentino, que como expôs sua fala, adota políticas que dão as costas aos pequenos agricultores. “E a justiça não nos escuta”, acrescentou. Caso semelhante ao do Brasil, e até mesmo de Santa Rita, com fiscalização que em uma das denúncias feitas demorou 15 dias para ser realizada.

Flavia Zenotigh, da organização Mujeres Rurales Campo Hardy y Zona, abordou os impactos do modelo do agronegócio e dos agrotóxicos na vida das mulheres argentinas do campo na Argentina. Foto: Maiara Rauber

O assentado e produtor de mudas Adir Bourscheid, um dos primeiros a relatar a deriva da pulverização de agrotóxicos na região de Santa Rita, comentou: “Em 2015 fomos atingidos pela primeira vez e ninguém dizia que era veneno, era falado que era falta de água. Tinha veneno por cima de tudo, eu denunciei. Chegamos aqui e construímos o que construímos para persistir na terra, persistir em ir contra o veneno. É difícil fazer uma muda orgânica, mas não vamos parar, porque primeiro de tudo vem a saúde”.

Os impactos das derivas também se dão na vida econômica dos produtores, com perdas que podem comprometer a subsistência das famílias, a ida a feiras e o abastecimento com alimentos em regiões inteiras. Adir resgatou ainda a conexão política com a pauta, mencionando a importância do Movimento Sem Terra e das políticas do governo de Lula para que pudessem tocar o projeto do viveiro.

A questão, que como o próprio assentado e produtor orgânico de morangos, Olímpio Vodzik, ressaltou, vai para além da terra. Olympio, além de contar a história de sua propriedade e a importância da produção agroecológica, que garante inclusive a potabilidade das águas e o equilíbrio ecológico dos locais, destacou a importância dessa forma de produção na fertilidade do solo, na diversidade da vida. E o quanto desde que se assentou no local, numa relação afetuosa com o espaço e sem uso de venenos, foi possível perceber melhorias neste.

A questão, que como o próprio assentado e produtor orgânico de morangos, Olímpio Vodzik, ressaltou, vai para além da terra. Foto: Maiara Rauber

A violência permeia os relatos da resistência contra a pulverização de agrotóxicos no Brasil e na Argentina. Mas para além dela, a indignação, na coletividade e construção das lutas, se torna mobilização para seguir. O assentado do MST, João Vitor de Almeida,  insistiu na cooperação, articulação das lutas, e pressão dos de baixo ao poder público e à justiça para garantir o direito à terra, produção, trabalho e vida digna. “A última vez que nós ficamos muito sufocados era cinco horas da manhã e o avião estava passando. E às cinco da manhã é hora que ninguém fiscaliza. E se as famílias não reclamam, elas não se movimentam. O agronegócio vai corrompendo e vai criando mecanismos que tornam tudo possível novamente. Então a lei é importante, mas mais importante é a consciência e a mobilização das famílias, de que não é possível conviver com agroecologia e agronegócio”, relatou. Evidenciando a importância das alianças de luta, João complementou: “ Temos que juntar todas nossas forças possíveis para que a gente possa produzir alimentos saudáveis, cuidar do ambiente, da terra e do nosso trabalho. E é isso que temos feito nos últimos anos, enfrentando todas as dificuldades possíveis. E o que estamos propondo, diante de todas as dificuldades que enfrentamos é que nós precisamos ampliar essa relação para um processo de luta maior a partir das comunidades locais. Porque uma árvore não se planta de cima para baixo, e nós temos que produzir a luta de baixo para cima”.

Encontro na Assembleia Legislativa apresenta reinvindicações das lutas e proposições para frear o agronegócio

No segundo dia (24) do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o debate da temática, desta vez aberto ao público, teve sequência na Assembleia Legislativa do RS. Lá, trouxe reflexões a nível de América Latina, de Brasil, mas também abordou informações mais específicas dos casos ocorridos em Nova Santa Rita e Eldorado do Sul, assim como em Santa Fé (AR).

Carlos Manessi, da Multisectorial Paren de Fumigarnos (AR), explanou sobre a realidade Argentina. “As condições são as mesmas, temos agora na Argentina  o presidente Alberto Ángel Fernández ,respaldado pelo CEO da Syngenta, principal promotora desse modelo que temos agora em presidência. Falo para que tenham ampla ideia. Manessi acrescentou ainda que em Santa Fé há 20 milhões de hectares cultivados com soja: “Na nossa província, local da qual venho, temos três milhões e meio de hectares, 70% do nosso território está coberto com soja. Isso corresponde a 70% das terras cultivadas. É muitíssimo. É monocultura, monocultivo demais. Demais”, situou.

Em sua fala, abordou os casos de inundações, secas, contaminação de rios e desmontes decorrentes do modelo do agronegócio, diretamente relacionado ao uso de agrotóxicos e transgênicos. “Santa Fé perdeu 50% da colheita. Uma lagoa com 20km de peixes mortos pela seca em grande lagoa que temos. São impactos tremendos que estamos sofrendo”, contou, estabelecendo um paralelo com os impactos na saúde coletiva.  “Os impactos na saúde são muito grandes e não podemos seguir permitindo que nossos vizinhos sofram o que sofrem agora. Então a nossa ideia na Pare de Fumigarnos e esse coletivos de organizações é, para começar, garantir mil metros livres de fumigação… Não podemos permitir mais isso tudo. Vocês no Brasil, nós na Argentina, e paraguaios, uruguaios e bolivianos”.

Manessi também refletiu sobre a importância desse intercâmbio de informações entre organizações e movimentos de luta, inclusive como ação estratégica para frear a emergência climática: “Somos parte do ambiente, a cadeia do sistema agroindustrial é responsável por quase de metade dos gases de efeito estufa de efeito global. A mudança climática que presenciamos e sofremos está fortemente influenciada por esse modelo de produção agroindustrial. Esse sistema de produção agrária com toda cadeia de valor produz mais de 50% por cento dos gases de efeito estufa que nos leva à mudança climática”.

Somando nessa fala, Gabriel Adrian, do Instituto de Saúde Socioambiental da Universidade Nacional de Rosário (AR), elucidou que as articulações de luta reconhecem a necessidade de transformar o modelo do agronegócio, que gera doenças, mortes e consequências socioambientais nefastas. “Nesse século enfrentamos alguns desafios na saúde coletiva que tem a ver com aquecimento global, com surgimento de futuras pandemias. O modelo agroindustrial gera condições para que possam emergir novos microrganismos com potencial pandêmico, com a forma que são criados industrialmente os animais”, explicou, contextualizando que hoje vivemos em ambientes repletos de substâncias tóxicas como nunca ocorreu em outro momento da história. “Frente a todas essas ameaças, o que os companheiros querem reivindicar não se trata de nada mais que uma forma de produzir, um modo de vida.  Entendemos que os modos de vida agroecológicos são reivindicados porque são os modos de vida que nos permitem enfrentar todas essas ameaças e desafios”, sintetizou.

Adrian defendeu ainda que os sistemas agroecológicos são resilientes,  capazes de captar a sociobiodiversidade: “Frente a possibilidade de sofrimento de pandemias, os sistemas agroecológicos são os sistemas que defendem a imunidade coletiva, de toda sociedade. Contra a carga tóxica que há no ambiente, na água, no solo, no ar, os sistema agroecológicos são os que nos permitem recuperar os territórios para vivermos de modo saudável”, demarcou. Em sua exposição, reconheceu a importância da trajetória construída nas lutas, mas questionou quais compromissos  devem ser assumidos desde o setor da saúde para estar à altura histórica do momento em que estamos vivendo. “Por mais que tenhamos ideias e linhas de trabalho, é necessário recuperar desde as vivências que têm as comunidades e povos. É preciso transformar o sistema de saúde atual em um sistema capaz de produzir saúde”, comentou.

Adalberto Martins, da direção nacional do MST, apresentou em dados a problemática do agronegócio em nosso país, relacionando ao caso argentino. Evidenciou que o Brasil é o maior consumidor de veneno,  assinalando  que grande proporção dos agrotóxicos consumidos aqui são proibidos em seus países de origem.  “No Brasil, nas nossas lavouras temporárias que deveriam ser produção de alimentos, estão destinados em três cultivos: soja, milho e cana. Falamos de cerca de 40 milhões de hectares de soja, outros 22 milhões de milho, nove milhões de cana..  Isso implica para nós uma imensa concentração de riqueza, uma imensa concentração de terra, uma imensa concentração de insumos, e nesse caso os agrotóxicos saltam aos olhos no caso brasileiro. Nós somos o maior consumidor de veneno do mundo”, anunciou.

Adalberto Martins, da direção nacional do MST, apresentou em dados a problemática do agronegócio em nosso país, relacionando ao caso argentino. Foto: Maiara Rauber

A advogada e ouvidora da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Marina Dermmam destacou em sua fala o descaso do poder público em relação a fiscalização de crimes vinculados à agrotóxicos, mencionando a relevância do trabalho jurídico realizado para ajudar as famílias atingidas por pulverização aérea de agrotóxicos em Nova Santa Rita. “Os agrotóxicos podem violar uma série de direitos humanos, em especial os direitos que chamamos de DHESCAs (Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais). A gente tem uma série de legislações muito protetivas aqui no Brasil, especialmente que surgiram na década de 80 e 90: o nosso plano nacional de meio ambiente, a política nacional de meio ambiente, leis de crimes ambientais, de fato são muito protetivas, mesmo no que teve em desregulamentação no último momento que vivemos. Mas é um grande desafio quando vamos no sistema de justiça procurar responsabilidade”, mencionou. Marina manifestou ainda a importância dos polígonos de exclusão, locais em que a pulverização de agrotóxicos deve ser proibida.

Acordo Mercosul-União Europeia: acordo comercial sem participação dos afetados intensifica projeto neocolonial de superexploração dos povos e territórios no Sul Global

Para além das lutas cotidianas nas bases dos territórios, abordadas nos encontros do “Povos contra agrotóxicos na República Sojeira”, foi dimensionada como estas se travam dentro da geopolítica global. Na correlação de forças entre centro e periferia do sistema capitalista, países embobrecidos por esta economia hegemônica, como os da América Latina, são grifados pela violenta situação de dependência escancarada no modelo primário agroexportador do agronegócio. Modelo que privilegia o desenvolvimento dos países colonizadores, como os membros da União Europeia, a partir do subdesenvolvimento e superexploração do Sul Global.

Na prática, um acordo que intensifica o racismo ambiental, o ecocídio, a mercantilização da natureza e o genocídio dos povos indígenas, quilombolas,  ribeirinhos, tradicionais, campesinos e das periferias, que são os mais afetados pela emergência climática. Emergência essa causada pelo capitalismo e diretamente fomentada pelo agronegócio, ainda mais tendo em vista que o maior motivo de emissões de gases poluentes da atmosfera no Brasil é a alteração de uso de solos, via desmatamento para a ampliação da fronteira agrícola.

Exemplos que escancaram essa realidade são acordos como a Alca, barrado pelas lutas anos atrás. Caso que a assentada do MST e atingida pela pulverização de agrotóxicos, Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula.

Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula. Foto: Maiara Rauber

Logo, na luta contra a exploração dos corpos, territórios e da natureza na América Latina, este acordo é mais um ponto a ser considerado. Ele se relaciona diretamente com o avanço do agronegócio, que traz o uso de agrotóxicos que poluem águas, solos, afetam a saúde e integram um modelo de produção desigual. Graciela abordou essa situação de dependência econômica prolongada pelo Acordo, assim como o uso de agrotóxicos como armas químicas a qual estão submetidas as comunidades. O Acordo Mercosul-União Europeia a maioria das pessoas  desconhece. Quem conhece um pouco, e um pouco porque nem sequer foi traduzido nas línguas dos países que supostamente estão envolvidos, sabe muito bem que é uma nova exploração dos nossos territórios.  É um aprofundamento da exploração do sistema capitalista nos nossos territórios e nos nossos corpos. E isso significa que a fronteira da soja, a república unida da soja como falava a Syngenta, vai querer se expandir muito além. E isso vai acontecer com todas as monoculturas se nós não paramos, não conversamos e dizemos para esse novo governo que não queremos mais exploração nos nossos territórios”, situou Graciela quanto a necessidade de incidência das lutas neste Acordo.

Encontros fortalecem as alianças entre movimentos e organizações que assumem o compromisso no processo de conscientização da sociedade da América Latina

Leonardo Melgarejo, do Movimento Ciência Cidadã, explicou a importância dessa atividade multi-institucional que envolveu ativistas que lutam contra o agrotóxicos na América Latina, e contou com uma comitiva de quatro instituições da Argentina. “Nós discutimos um fato básico, temos doenças que são as mesmas, que afetam as famílias de todos os países da América Latina, que são causadas por agrotóxicos que são os mesmos comercializados com instituições que são as mesmas. Precisamos estabelecer uma forma de defesa conjunta para atuarmos de uma mesma maneira e não isoladamente, para atuarmos conjuntamente contra este problema que se associa aos avanços das lavouras transgênicas, das lavouras geneticamente modificadas tolerantes agrotóxicos que estão inundando os nossos territórios”, declarou.

Foi concluído no final do debate a importância de superar processos de alienação da sociedade de todos os países da América Latina, pois segundo Melgarejo a água que habita, que dá vida aos territórios da América Latina está sendo contaminada de maneira irreversível sendo que essa água faz parte dos organismos, das crianças, idosos, e também nos rios, lagos e aquíferos. “Uma maneira de tirar esse veneno dos espaços é evitando que ele chegue lá. Para isso temos que estabelecer mecanismos de comunicação que ajudem a sociedade a tomar consciência do problema que está em andamento e esses mecanismos exigem que nós pautamos ações em comum em conjunto nos vários espaços ao mesmo tempo”, reforçou o integrante do MCC.

Um dos exemplos citados por Melgarejo é o documento produzido pelas famílias assentadas de Nova Santa Rita, o qual conta a sua história e as estratégias que vem desenvolvendo para estabelecer essas alianças com as populações urbanas. Para fortalecer o documento estão captando assinaturas de adesão para levar adiante a sociedade do que acontece aqui no Rio Grande do Sul e que por extensão é o que acontece em todo o conjunto da América Latina.

Por fim, Melgarejo encarou o encontro positivamente, ao destacar a relação estabelecida com companheiros de lugares diferentes da América Latina. E novas etapas dessa luta conjunta já estão previstas. Segundo Leonardo, em junho deste ano haverá um momento na Universidade de Rosário, na Argentina, durante o Congresso de Saúde Coletiva e Saúde Ambiental. Outro encontro será realizado em novembro na cidade do Rio de Janeiro, no Congresso Brasileiro de Agroecologia (ABA).

“Nesse meio tempo nós temos um compromisso de apoiar as instituições que trabalham nessa linha e ajudar a proteger esses ativistas que estão envolvidos com essas ações de proteção, pois eles são perseguidos, discriminados e ameaçados. Devemos construir gradativamente esse processo de conscientização da sociedade da América Latina, e tomar medidas em conjunto para superar essa crise”, finalizou Leonardo Melgarejo.

Acesse o documento na integra.

Texto por Maiara Rauber e Carolina Colorio Reck

Confira alguns dos registros das atividades na nossa galeria de fotos: 

 

Créditos: Carolina C.

Não foi possível estar presente? Confira a transmissão ao vivo  da atividade na Assembleia Legislativa, que conta com apresentação da Carta dos atingidos pela deriva de agrotóxicos e debate internacionalista, da sociedade civil, movimentos e organizações sobre a pauta

Transmissão ao vivo

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Saiba mais sobre a luta contra o Acordo Mercosul- União Europeia na matéria “Delegação brasileira faz Jornada na Europa para denunciar os impactos do Acordo Mercosul-União Europeia”

E aqui você confere  o posicionamento da Frente Brasileira Contra o Acordo Mercosul-UE, que foi apresentada ano passado no Parlamento Europeu 

209 organizações da sociedade civil dizem: os acordos comerciais da União Europeia (UE), entre eles o Mercosul-UE, não podem minar os direitos democráticos!

Para contornar as críticas de alguns governos e parlamentos da UE, a Comissão Europeia quer mudar o processo de votação para os próximos acordos comerciais com o México, Chile e países do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e tornar mais fácil e rápido para a UE aprovar os acordos. As organizações da sociedade civil se opõem a este movimento porque ele mina os direitos democráticos.

Esta tentativa de “cisão” pela Comissão Europeia significaria que os pilares comerciais dos acordos de associação com países terceiros seriam adotados sem exigir o consentimento de todos os estados membros da UE no Conselho do bloco, e sem exigir qualquer ratificação nacional. Isso seria um ataque à democracia e um sério desvio das regras e práticas atuais de tomada de decisões comerciais, segundo as quais os acordos de associação são aprovados por unanimidade pelos governos da UE, bem como por uma maioria no Parlamento Europeu e por todos os parlamentos em nível nacional.

A manobra da Comissão Europeia é uma forma cínica e técnica de garantir que os acordos comerciais que ela negocia entrem em vigor rapidamente, apesar de sua controvérsia sobre questões de desmatamento, mudança climática e violações dos direitos humanos. A manobra deixaria de lado a oposição de alguns governos da UE e parlamentos nacionais e/ou regionais.

No caso do acordo UE-Mercosul, por exemplo, essa cisão evitaria a oposição dos parlamentos da Áustria, Holanda, Valônia e Bruxelas, já que sua aprovação não seria mais necessária. O mesmo vale para as posições atuais de alguns governos, como o governo francês, que afirmam que não podem ratificar o acordo UE-Mercosul em sua forma atual por causa de seus impactos negativos na sustentabilidade: eles não teriam mais poder de veto no Conselho da UE. Iria também contra as diretrizes de negociação dadas à Comissão Europeia pelo Conselho em 1999 e as Conclusões do Conselho de 2018. Todo o processo de análise do acordo UE-Mercosul foi baseado no entendimento comum de que os Estados-Membros teriam o direito de veto no Conselho ou por meio de ratificação em nível nacional. A Comissão não pode atalhar este processo. Isso criaria armadilhas processuais e violaria os tratados europeus.

As organizações da sociedade civil se opõem veementemente a esta divisão dos acordos comerciais. A divisão dos acordos acima mencionados é proposta para contornar as preocupações existentes sobre as implicações negativas na biodiversidade, nas mudanças climáticas e nos direitos humanos. Ela dá prioridade aos interesses econômicos sobre a sustentabilidade. A aprovação pelos parlamentos nacionais é um ato democrático de importância crucial que proporciona proteção aos agricultores, trabalhadores, consumidores e a todos os cidadãos.

Chamamos os ministros do comércio da UE, os governos da UE e os parlamentares nacionais a defenderem o escrutínio democrático dos acordos comerciais e a se oporem às tentativas escandalosas da Comissão Europeia de contornar a oposição!

Assinam esta carta:

Asamblea Argentina mejor sin TLC Argentina
ATTAC Argentina Argentina
Diálogo 2000 Argentina
Red de Género y Comercio Argentina
Tierra Nativa / Argentina Argentina
Anders Handeln Austria
Attac Austria Austria
DKA Austria – Dreikönigsaktion Austria
GLOBAL 2000 – Friends of the Earth Austria Austria
ÖBV-Via Campesina Austria Austria
Österreichischer Gewerkschaftsbund (Austrian Trade Union) Austria
Parents For Future Austria Austria
Parents for Future Waldviertel Austria
transform!at Austria
Welthaus Graz Austria
ZAMMM Austria
11.11.11 – Coalition for International Solidarity Belgium
ATTAC Wallonie Bruxelles Belgium
Centre national de coopération au développement (CNCD-11.11.11) Belgium
Centre tricontinental – CETRI Belgium
ENTRAIDE ET FRATERNITE Belgium
Eurogroup for Animals Belgium
Fern Belgium
Forum Gauche Ecoliogie Belgium
FUGEA Belgium
MOC – Mouvement ouvrier Chretien Belgium
Amigos de la Tierra Brazil
Comissão Pastoral da Terra Brazil
FASE – Solidariedade e Educação Brazil
Instituto PACS Brazil
Rede Jubileu Sul Brasil Brazil
Brazilian Front Against the Eu-Mercosur and EFTA-Mercosur Agreements Brazil
Brazilian Network for People’s Integration (Rebrip) Brazil
MST Brazil
The Institute of Socioeconomic Studies (Inesc) Brazil
CODEFF Chile
Fundación Vegetarianos Hoy Chile
Werken Rojo Chile
Réseau des Organisations de la Société Civile pour le Développement du Tonkpi (ROSCIDET) Côte d’Ivoire
Amigu di Tera (Friends of the Earth Curaçao) Curaçao
Hnutí DUHA – Friends of the Earth Czech Republic Czech Republic
Re-set: platform for social-ecological transformation Czech Republic
Global Aktion Denmark
KULU – Women and Development (national NGO network) Denmark
Estonian Green Movement Estonia
European Attac Network European
European Coordination Via Campesina (ECVC) European
foodwatch International European
Friends of the Earth Europe European
WeMove Europe European
WeMove Europe. European
Attac Finland Finland
Friends of the Earth Finland Finland
Aitec France
Alofa Tuvalu France
Amis de la Terre France / Friends of the Earth France France
Attac France France
CADTM France France
Collectif Stop CETA-Mercosur France
Comité Pauvreté et Politique France
Committee in Solidarity with Indigenous Peoples of the Americas (CSIA-Nitassinan) France
Confédération paysanne France
Fédération syndicale SUD-Energie France
Fondation Copernic France
Fondation pour la Nature et l’Homme France
France Amérique Latine – FAL France
France Nature Environnement France
Générations Futures France
Les Ami.e.s de la Confédération paysanne France
Les Amis du Monde diplomatique France
Ligue des Droits de l’Homme (LDH) France
Peuples Solidaires Paris 15 France
Veblen Institute for Economic Reforms France
ZEA France
AbL Bayern Germany
Aktionsgemeinschaft Solidarische Welt (ASW) Germany
Arbeitsgemeinschaft bäuerliche Landwirtschaft (AbL) e.V. Germany
Armut und Umwelt in Amazonien Germany
ASW Aktionsgemeinschaft Solidarische Welt e.V. Germany
Attac Germany
Berliner Wassertisch Germany
Bund für Umwelt und Naturschutz BUND e.V. Germany
BUND/FoE Germany, Scientific Committee Germany
Bündnis für gerechten Welthandel Germany
Bündnis für gerechten Welthandel München Germany
Christ*innen für den Sozialismus Germany
Citizen´s Initiatiive “aufRECHT:FREIdenken Mittelbaden” Germany
Coordination gegen BAYER-Gefahren Germany
Dachverband der Kritischen Aktionär:innen Germany
Deutscher Tierschutzbund Germany
dgb germany
FDCL-Center for Research and Documentation Chile-Latin America Germany
FDN Germany
FIAN Germany Germany
GAL Staufenberg Germany
Gesellschaft für soziale Transformation Germany
Heidelberger Bündnis für einen gerechten Welthandel Germany
Humanistische Union Germany
Informationsstelle Peru e.V. Germany
KoBra-Kooperation Brasilien e.V. Germany
Kölner Bündnis für gerechten Welthandel Germany
Konstanzer Byrnes für gerechten Welthandel Germany
LAG Christ*innen DIE LINKE Bayern Germany
LBV Germany
Leuphana Germany
Mehr Demokratie e.V. Germany
Misereor Germany
Muenchner Friedensbuendnis Germany
NaturFreunde Deutschlands Germany
Netzwerk gerechter Welthandel Germany
ÖDP Germany
PowerShift e.V. Germany
Slow Food Deutschland Germany
Umweltinstitu München e.V. Germany
Verdi Germany
Weltläden Gießen Germany
Wuppertaler Aktionsbündnis Gerechter Welthandel Germany
ATTAC Hungary Association Hungary
Clean Air Action Group Hungary
Hungarian Climate Alliance Hungary
Magyar Természetvédők Szövetsége / Friends of the Earth Hungary Hungary
Reflex Environmental Association Hungary
Védegylet Egyesület Hungary
Friends of the Earth International International
GRAIN International
Greenpeace International
Institute for Agriculture and Trade Policy International
Parents For Future Global International
SumOfUs International
SumOfUs International
Global Legal Action Network Ireland
Green Party Ireland
No TTIP/CETA Clare Ireland
Wicklow Greens Ireland
Ambiente&Salute Italy
Attac Italy Italy
Campagna Stop EU-Mercosur Italia Italy
Comunità La Piazzetta di Pulicciano Italy
Coordinamento nord sud del mondo Italy
Fairwatch Italy
Greenpeace Italy
MAIS ngo Italy
Amigos de la Tierra América Latina y el Caribe (ATALC) Latin American
Plataforma América Latina mejor sin TLC Latin American
Klima-Bündnis Lëtzebuerg Luxembourg
Luxembourg, FoE Luxembourg Luxembourg
DECA, EQUIPO PUEBLO Mexico
Project on Organizing, Development, Education, and Research (PODER) Mexico
Amigos de la Tierra México México
Centro de Promoción y Educación Profesionall “Vasco de Quiroga” México
DECA, EQUIPO PUEBLO México
Project on Organizing, Development, Education, and Research (PODER) Mexico / Latin America
Biodynamische Vereniniging Netherlands
Both ENDS Netherlands
Dierenbescherming Netherlands
Dutch Footprint Network Netherlands
FNV Netherlands
Handel Anders! Netherlands
Landbouwcoalitie voor Rechtvaardige Handel Netherlands
Platform Aarde Boer Consument Netherlands
Transnational Institute Netherlands
VOF van Egmond en ZN. Netherlands
WILPF NL Netherlands
Working group Food Justice Netherlands
World Animal Protection NL Netherlands
Environmental Rights Action/Friends of the Earth Nigeria Nigeria
Centro de Estudios HEÑÓI Paraguay
Iniciativa Amotocodie Paraguay
SOBREVIVENCIA Amigos de la Tierra PARAGUAY
APT Portugal
Associação Guardiões da Serra da Estrela Portugal
Associação Resistir.info Portugal
BIOPORTO Portugal
Campo Aberto – associação de defesa do ambiente Portugal
Climáximo Portugal
CNA – Confederação Nacional da Agricultura Portugal
Eco-Cartaxo Portugal
Ecomood Portugal Portugal
FERNANDA SILVA Portugal
GAIA – Grupo de Accao e Intervencao Ambiental Portugal
MARP Portugal
Movimento Cívico Ar Puro Portugal
Palombar – Associação de Conservação da Natureza e do Património Rural Portugal
Plataforma Transgenicos Fora Portugal
ProTejo Portugal
TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo Portugal
Znepokojené matky Slovakia
Focus Association for Sustainable Development Slovenia
Amigos de la Tierra Spain
Argentinos en España y ATTAC Spain
Asociación Entrepueblos/Entrepobles/Heriarte/Entrepobos Spain
ATTAC Spain Spain
COAG- Coordinadora de Organizaciones de Agricultores y Ganaderos Spain
Confederación Intersindical Spain
ECDD Spain
Ecologistas en Acción Spain
ELA Spain
Parque central sin especulación Spain
Permacultura ATTA Spain
UGT Spain
Movimiento por la Salud de los Pueblos Sub región Sur
Amazon Watch Sverige Sweden
Jordens Vänner Sweden
NOrdBruk Sweden
Environmental Justice Foundation United Kingdom
FRESH EYES United Kingdom
Global Justice Now United Kingdom
SEED: Strategies for Ethical and Environmental Development, Inc. United States
REDES – Amigos de la Tierra Uruguay Uruguay
Coalición de Tendencia Clasista (CTC-VZLA) Venezuela

* O texto da carta foi traduzido pelo DeepL e pode ser acessado originalmente em espanhol em http://s2bnetwork.org/209-organizaciones-de-la-sociedad-civil-dicen-los-acuerdos-comerciales-de-la-ue-no-pueden-socavar-los-derechos-democraticos209/

* Na foto: delegação brasileira denuncia impactos do Acordo Mercosul-UE em jornada pela Europa. Crédito: Audrey Lakshmi/ AT Europa

Saiba mais:
Integrante da Amigos da Terra Brasil (ATBr), Luana Hanauer, expôs o posicionamento compartilhado pela Frente Brasileira Contra os Acordos Mercosul-União Europeia e Mercosul-EFTA (European Free Trade Association, área de livre comércio formada pela Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein). As questões colocadas por Hanauer durante o debate público no Parlamento Europeu, que ocorreu em 8 de Novembro em Bruxelas, na Bélgica, são defendidas pela Frente, que desde 2019 articula mais de 200 organizações da sociedade civil brasileira.

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