Arado Velho: Muito dinheiro para os empresários. “Progresso e desenvolvimento” apenas para alguns

Passaram-se 10 anos desde a compra da Fazenda Arado Velho pela empreendedora, já foram feitas 17 mudanças no projeto e o Governo Melo está escrevendo o 3º projeto de lei para alterar o Plano Diretor e, assim, viabilizar a obra. O esforço em concretizar o bairro planejado é grande porque os lucros também tendem a ser. Se fizermos uma conta por baixo, apenas a venda dos lotes a um preço médio de R$ 150 mil totalizaria R$ 345 milhões. Tirando os custos da urbanização, em torno de R$ 100 milhões, tratamos de um lucro de mais de R$ 200 milhões e, somente, com a comercialização da terra, sem contar a locação dos espaços comerciais, entre outros.

No entanto, quem conhece o mercado imobiliário afirma que apenas a aprovação de um PL que flexibilize o Plano Diretor na região do Extremo Sul de Porto Alegre (RS) já acarretaria ganhos econômicos a empresários do ramo e a proprietários de terra e de imóveis para locação ou venda. “O projeto da Fazenda Arado está num contexto de avanço da especulação imobiliária na região Sul da cidade. Um empreendimento deste porte irá servir como motor para elevar o preço das terras e dos imóveis, e dos alugueis, abrindo as portas para que outros projetos habitacionais para pessoas com alto poder aquisitivo se instalem na região e gerando precedente para que, no futuro, sejam flexibilizadas mais legislações em detrimento do meio ambiente”, comenta Santiago.

Fernando Costa, da organização ambientalista Amigos da Terra Brasil, expõe que o avanço da especulação imobiliária na região é possível devido ao apoio do governo municipal. Em 2017, foi criada a CAUGE (Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento) para acompanhar os Projetos Especiais, que são os empreendimentos de maior impacto urbano, classificados em 2º e de 3º grau, como este da urbanização do Arado Velho. Este órgão da prefeitura é responsável pela análise técnica de EVUs (Estudos de Viabilidade Urbanística) e pelo monitoramento do processo de licenciamento urbano e ambiental até a carta de habitação. Fernando explica que, diferentemente de um cidadão comum, os empreendedores têm prioridade e contam com o esforço da prefeitura para “resolver questões” do Plano Diretor via flexibilização das leis. “Não é apenas neste governo [Melo], vem ocorrendo numa sequência de governos, em que são priorizados os empreendedores em detrimento da participação popular, dos projetos do OP [Orçamento Participativo], como outros que havia na cidade. Todas as regiões tinham estudos de desenvolvimento acordados com as comunidades e isso ficou no esquecimento”, diz. 

Em troca da alteração no Plano Diretor para viabilizar o negócio, a Arado Empreendimentos irá doar um lote para a construção da Estação de Tratamento de Água/ ETA da Ponta do Arado do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto) na região, fará o projeto urbanístico de articulação de espaços abertos na orla e irá proporcionar “alguma qualificação”, segundo a própria prefeitura, em equipamentos públicos comunitários já existentes na região, como um posto de saúde por exemplo. Também estão previstas medidas mitigatórias de impacto, como a duplicação de parte de avenidas e a doação de lotes para construção de praça, escola e posto de saúde. O projeto ainda prevê a implementação de uma via parque e a criação de uma reserva ambiental privada, que seria sustentada pelos moradores do empreendimento, com acesso ao público.

Mapa do projeto urbanístico apresentado pela Arado Empreendimentos Imobiliários. A parte totalmente verde (à esquerda) da fazenda se refere à Ponta do Arado e à área de preservação ambiental. Na parte colorida, ficariam os condomínios e lotes de casas, instalações comerciais, praças, escola e centro tecnológico. Foto: Reprodução Arado Empreendimentos Imobiliários

Embora possa parecer muita coisa, essas doações e pequenas melhorias custam muito pouco para a empreendedora em comparação ao lucro que terá com a urbanização da fazenda. Para se ter uma ideia, o preço da área que será doada para a ETA do DMAE representa menos de 1% do custo total do empreendimento do Arado. Além disso, grande parte das medidas são doações de lotes, dependendo da prefeitura ou de outras parcerias para implementar e manter os equipamentos públicos. Não há previsão de investimento privado na expansão das redes públicas de água ou de esgoto por exemplo, dois sérios problemas enfrentados pelos moradores locais e que pouco afetarão quem irá morar no projeto da Fazenda Arado.

Felipe Viana, do Econsciência, aponta que a ausência do poder público na periferia e nos bairros mais distantes do centro da cidade, como Belém Novo e todo o Extremo Sul, faz as pessoas acreditarem que somente terão melhorias com o setor privado. “Este projeto de ausência do poder público, deixando tudo para a iniciativa privada, é perverso. As pessoas só conseguem enxergar esgoto na rua ou no bairro com o empreendimento privado vindo. Tem morador que é contrário à construção de habitações populares porque acha que não irá trazer compensação pro bairro”, diz. Segundo Fernando Costa, da Amigos da Terra, há anos a região Extremo Sul não recebe investimento de infraestrutura por parte da prefeitura, que justifica dizendo que não tem dinheiro e vende uma falsa ideia de que as contrapartidas dos empreendimentos ajudarão a resolver os problemas. “No discurso da prefeitura, quem tem feito obras são os empreendedores. É um processo bem difícil, pois vai aliciando as lideranças comunitárias da região a utilizarem também este caminho, a pensarem que aceitando os empreendimentos para receberem as contrapartidas é que conseguirão ter acesso ao que seria uma política pública, como obra de infraestrutura de água e esgoto, melhoria no transporte público e nas estradas”, diz

Um exemplo desta situação relatada por Fernando se confirma quando moradores pensam que ficarão sem a estação de tratamento de água do DMAE caso o projeto do Arado não saia do papel. O ambientalista ressalta que esta obra já está prevista no plano municipal de saneamento e precisa ser efetivada de qualquer jeito. Se o projeto do Arado não for implementado, o DMAE tem dinheiro para comprar o terreno que seria doado pela empresa. Outro argumento da prefeitura é questionado por Santiago, do Ambiente Crítico, que não acredita que o bairro planejado Fazenda Arado vá barrar a ocupação irregular. Ele avalia que como não há política pública para construção de habitações populares, com o aumento do custo do aluguel e dos imóveis, a tendência é que as famílias pobres e de trabalhadores com baixos salários ocupem áreas irregulares ou se mudem para bairros ainda mais distantes. O DEMHAB (Departamento Municipal de Habitação) tem mapeadas 479 vilas em Porto Alegre atualmente.

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A Fazenda do Arado Velho ocupa 426 hectares no bairro Belém Novo, Extremo Sul de Porto Alegre (RS), e pertencia ao falecido Breno Caldas, fundador do Grupo Jornalístico Caldas Jr. (engloba a Rádio Guaíba, o jornal Correio do Povo e a TV Guaíba – canal 2). Foi vendida em 2010 por seus herdeiros à Arado Empreendimentos Imobiliários Ltda, mais uma entre tantas empresas do milionário Iboty Ioschpe, que tenta, desde então, alterar o regime urbanístico da região para construir o megaempreendimento.

A fazenda abriga  uma das últimas áreas de mata nativa preservadas em Porto Alegre (quase metade do terreno, cerca de 200 hectares, constitui uma área de proteção ambiental), com fauna e flora específicas. A parte rural baixa, onde era criado gado, fica bastante úmida quando chove e, junto com a área de proteção, serve de refúgio para aves migratórias e animais, inclusive alguns ameaçados de extinção. Nos antigos canais de drenagem para produção de arroz aparecem peixes raros. A fazenda também conta com um sítio arqueológico indígena, ruínas dos séculos 19 e 20 e instalações e prédios construídos por Breno Caldas. Do ponto de vista ambiental e histórico, são muitos motivos para que a prefeitura de Porto Alegre adquirisse a fazenda para preservar a área de proteção e o bioma intactos e transformasse em um parque natural público, garantindo o acesso controlado à população, a exemplo do Parque Estadual de Itapuã, que fica próximo ao local.

Áreas mais baixas da Fazenda do Arado Velho constituem importantes banhados, que ajudam a evitar alagamentos na região e servem de refúgio para animais.

Mas tem uma questão ambiental e social que se destaca: a maior parte do Arado é formada por banhados, sendo uma importante área de inundação do Guaíba e, enquanto tal, possui a função de amortecer as cheias do rio na região do Extremo Sul. O Plano Diretor em vigor já permite a construção de até 1.323 unidades habitacionais na fazenda, mas para tornar o negócio mais lucrativo a empreendedora projeta construir 1.807 unidades para moradia e uma parte comercial, totalizando 2.357 lotes. São 1 mil terrenos a mais, representando um acréscimo de 77% no número de unidades, o que apenas será possível com a alteração no regime urbanístico da região e no Plano Diretor.

Santiago Costa, integrante do Coletivo Ambiente Crítico, explica que será necessário muito aterro para viabilizar o empreendimento no local, podendo gerar problemas de alagamento em outras áreas de Belém Novo ou, até mesmo, em bairros vizinhos. O projeto vem sofrendo sucessivas mudanças devido à resistência de organizações ambientalistas e da comunidade local mas, para se ter uma ideia, na versão de 2015 estava previsto o emprego de cerca de 140 mil caçambas de aterro. Agora em 2021, em sua 17ª versão, a empreendedora afirma ter deixado de fora do projeto uma parte baixa que está mais próxima da área de proteção ambiental, o que reduziria um pouco o tamanho do terreno a ser aterrado para habitação. Ainda assim, prevê-se um grande impacto. “Como a fazenda tem uma cota muito baixa por estar às margens do Guaíba, ela tem a função de receber as águas do rio e, ao mesmo tempo, cumpre a função biológica de equilíbrio na região. As consequências do aterramento estimado para um empreendimento deste porte na área são imprevisíveis, mas com certeza terão impacto para o bairro e para as localidades próximas. É o pagar para ver”, argumenta.

O projeto de urbanização do Arado prevê bacias de contenção, mas Santiago avalia que, na prática, servirão somente para evitar alagamentos no empreendimento. “As bacias servem apenas para viabilizar o empreendimento, pois uma vez que a área é aterrada, não há medida mitigatória que possa compensar os danos no entorno ou na região”, afirma.

Outro impacto social pouco divulgado pela Arado Empreendimentos e a prefeitura é em relação à infraestrutura viária. Nos estudos apresentados pela empresa, a estimativa é de alcançar 10.635 novos moradores à medida que o projeto for implementado e mais outros 8 mil nos 10 anos posteriores, chegando a 18 mil pessoas, um aumento de 70% na população de Belém Novo. Como é um empreendimento para classe média e alta, a previsão apontada no EIA-RIMA é de que o fluxo diário para o centro da Capital nos horários de pico aumente em mais 1.500 carros na ida e 1.200 na volta – cerca de 4,5 km de uma fila de automóveis.
Para reduzir os impactos, a empreendedora propõe duplicar apenas algumas partes das principais avenidas na região, aumentar o recuo em paradas de ônibus na tentativa de evitar congestionamento e expandir o transporte fluvial de barco com o  Catamarã. Não há nenhum comprometimento da empresa ou da prefeitura para melhorar o transporte público. “O Catamarã hoje não é um transporte popular, que a massa possa usar diariamente ou mais seguido. Uma viagem de Porto Alegre a Guaíba custa R$ 12,50, pense quanto vai sair a passagem do Gasômetro a Belém Novo, em que a distância é 3x maior. Além disso, a opção do Catamarã é apenas uma vaga promessa pois, até onde sabemos, não existe um projeto concreto do governo para construir estações ao longo da orla do Guaíba que interligue o centro e o bairro”, questiona  Felipe Viana, morador do Lami e integrante do Econsciência.

Ainda tem a questão dos pequenos agricultores e criadores de animais. Até pouco tempo atrás, o Extremo Sul, incluído o Belém Novo, constituía a Zona Rural de Porto Alegre. Esta classificação foi alterada para uma zona intermediária, chamada de rururbana, aliando a urbanização com a atividade econômica da população local. Fernando Costa, da organização ambientalista Amigos da Terra Brasil, relata que organizações ambientalistas e moradores fizeram um movimento para que a região retornasse a ser rural, mas a prefeitura não efetuou os estudos para localizar os produtores e os locais de acesso à água para a produção. “A prefeitura usou um estudo antigo, de mais de 30 anos atrás, que não reflete a realidade, e reduziu as áreas rurais. É uma gestão que se opõe às tentativas das cidades mais avançadas de viabilizarem  cordões de produção de alimentos em torno das capitais ou grandes localidades”, pondera. À medida que a região é urbanizada sem planejamento e vislumbrando a exploração econômica de terras e imóveis, a atividade agrícola e pecuária de pequenos produtores são ameaçadas.

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