Site da Amigas da Terra Brasil, organização ambiental anticapitalista, em defesa da soberania e dos direitos coletivos dos povos
Categoria: Justiça econômica e resistência ao neoliberalismo
Comércio e investimentos, desenvolvimento de fundos financeiros e pressão das corporações são as causas do atual modelo econômico. Este modelo se baseia na crença de que o crescimento econômico e das exportações fará desse mundo um lugar melhor. No entanto, enquanto isso tem sido muito benéfico para as grandes corporações, o modelo exclui e prejudica os mais pobre, além de fazer quase nada para proteger o meio ambiente. O Amigos da Terra se opõe a influência das grandes corporações nas políticas públicas. Questionamos e enfrentamos as políticas neoliberais e de comércio que não levam em consideração as necessidades do povo. Nossas campanhas apontam propostas alternativas de economia de uma forma construtiva, dinâmica e criativa
Retomada do debate para a aprovação de um tratado de livre comércio entre os países do Mercosul e da União Europeia (Mercosul-UE) expressa a reconfiguração do neoliberalismo, aprofundando as crises econômica, social e ambiental. No dia 21 de Outubro, às 14h, acontece a plenária da Frente Brasileira contra os Acordos Mercosul-UE e Mercosul-EFTA.
Nessa segunda-feira (20), das 9h30min às 15h30min, ocorreu virtualmente o “Aulão Mercosul-UE: o acordo da desigualdade”. A atividade é uma iniciativa da Frente Brasileira contra os Acordos Mercosul-UE e Mercosul-EFTA, composta por 106 entidades da sociedade civil brasileira que assinam um manifesto contra o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia e convoca o Congresso brasileiro a promover um amplo debate com a sociedade sobre os impactos do acordo.
Na parte da manhã, o grupo composto, principalmente, por militantes de movimentos sociais e representantes de organizações civis se aprofundou sobre os aspectos gerais do tratado e os reais impactos para a economia brasileira. Adhemar Mineiro, da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP), lembrou o histórico desse processo, que iniciou com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), sendo o Acordo-Quadro de Cooperação Mercosul-União Europeia assinado em 1995 como pontapé do processo, e avançou com o Acordo Marco em 1999, definindo os caminhos das negociações.
Adhemar ponderou que a discussão do Acordo Mercosul-UE vai muito além do comércio. Também envolve diálogo político e cooperação entre as partes, pontos que deveriam ter sido debatidos com mais rigor no fechamento da negociação em 2019 por trazerem cláusulas que reafirmam a democracia, sendo que “o Brasil, principal país do Mercosul do ponto de vista de importância geopolítica, tem um governo que não está de acordo com esses princípios democráticos”. Ele ainda destacou a “perspectiva colonial” trazida pelo tratado, em que os produtos primários enviados do Mercosul são trocados por produtos de alto valor agregado produzidos na Europa – mesma premissa que consta em outro acordo negociado entre Mercosul-EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre, ou European Free Trade Association/EFTA, em inglês).
O Acordo Mercosul-UE foi negociado, agora precisa ser ratificado, mas para isso seus defensores enfrentam dificuldades de aprovação por alguns governos e parlamentos tanto europeus quanto os da América Latina.
Marta Castillo, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez uma análise histórica para compreender os impactos que o tratado pode trazer para a indústria brasileira, setor que está entre os mais ameaçados por essa tentativa de abrir mercados. Entre 2005 e 2020, a participação dos produtos manufaturados na exportação reduziu de 80% para 55%, ao mesmo tempo em que se ampliou a participação de produtos agrícolas e minerais, ou seja, houve uma queda nas exportações de produtos com alto conteúdo tecnológico. Isso também se deve à diminuição da participação dos EUA e da América Latina como destino das exportações brasileiras e da ampliação da China – apenas três produtos responderam por 24,8% das exportações totais brasileiras. Embora a Europa tenha perdido espaço, ainda é destino de 15% da nossa produção.
Nesta relação desigual, as commodities agrícolas e agropecuárias representam 46% das exportações, enquanto 58,8% das nossas importações são de produtos mais sofisticados produzidos pelo bloco europeu. Castillo analisa que essa estrutura demonstra porque o Mercosul resistiu tanto tempo em firmar acordo e abrir o mercado industrial, reforçando a consideração anterior de Adhemar sobre a “perspectiva colonial”. “Esse acordo, por um lado, abre parcialmente o mercado para nossos produtos agrícolas e, por outro, dá acesso a um competidor muito mais poderoso do que as empresas do Mercosul no mercado industrial, além de limitar muito a capacidade dos governos do bloco fazerem políticas industrial e tecnológica”.
Acordo Mercosul-UE favorece agronegócio brasileiro e multinacionais
À tarde, a coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da FASE, Maureen Santos, destacou que o Acordo Mercosul-UE inova em relação a Acordos de Livre Comércio anteriores ao trazer a agenda do clima, determinando que os países dos blocos se comprometam em implementar o Acordo de Paris (de 2015). No entanto, ela pondera que não é descrito como será feito e nem quais serão as implicações para os países que não cumprirem suas metas, tornando essa medida pouco efetiva. “Só colocar um capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável sem dizer como será feito, baseando-se em outro acordo [Acordo de Paris] que ainda está bastante frágil do ponto de vista de sua implementação, é uma coisa muito vaga”, critica.
Maureen também salienta a ausência de compromisso com os princípios da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no acordo e os benefícios que o agronegócio terá neste tratado comercial com a eliminação de tarifas alfandegárias e com o aumento da quota de produtos que poderão ser exportados à Europa. Cadeias produtivas das principais commodities brasileiras, entre elas a de soja (também por meio da venda de óleos vegetais), café torrado, arroz, milho, cana de açúcar (via comércio de açúcar e etanol combustível e para uso industrial) e carnes bovina e de aves serão beneficiadas. A tendência é de que a expansão do agronegócio aumente o desmatamento de florestas e a degradação de outros biomas, emitindo ainda maior quantidade de gases de efeito estufa. A segurança e soberania alimentar dos brasileiros também pode estar em risco caso os produtores prefiram exportar produtos da alimentação básica, como o arroz, porque terão mais lucro no mercado externo do que abastecendo o mercado interno.
O interesse dos europeus é utilizar o acordo Mercosul-UE para expandir seus mercados e aumentar a competitividade das empresas multinacionais. Para isso, querem avançar sobre os setores de serviços públicos dos países da América do Sul, especialmente o postal, de telecomunicações e do sistema bancário. “Pensemos na discussão da privatização dos Correios e da Eletrobrás hoje no Brasil e como a agenda interna do nosso país também pode vir a ser respaldada pela assinatura desse tratado. Não dá para pensar, separadamente, a política nacional, governo, Congresso e interesses colocados, e o tratado Mercosul-UE. As agendas são semelhantes”, analisa Gabriel Casnati, assessor da Internacional de Serviços Públicos (ISP).
Outro ponto chave é que o Acordo quer garantir o fim das políticas de compras públicas empregadas pela União, estados e municípios. No Brasil, essas ferramentas são importantes para desenvolver cidades distantes e estimular a agricultura familiar (como o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos) e pequenas e médias empresas, principais geradoras de emprego e renda no país. As multinacionais e empresas europeias querem o fim dessas políticas para, assim, eliminar as concorrências nacionais. Casnati também apresentou estudos e dados de acordos de livre comércio semelhantes ao Mercosul-UE, como o NAFTA (entre EUA e México) e o UE-Colômbia, em que as promessas de gerar milhares de empregos não foram cumpridas e os salários médios prosseguem baixos ou tiveram reajustes ínfimos.
Direitos humanos não podem ser subordinados aos acordos de livre comércio
A presidenta da Amigos da Terra Brasil e integrante da Comissão do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) sobre violação de direitos dos povos por grandes empreendimentos, Lucia Ortiz, expôs como o Acordo Mercosul-UE irá impactar ainda mais os territórios das comunidades e povos tradicionais. Ela apontou a incoerência do tratado, que pretende promover melhorias na sustentabilidade produtiva de commodities agrícolas direcionada para o Mercosul, enquanto as empresas produtoras de agrotóxicos, muitas provenientes da Europa, como a Basf, Bayer e Syngenta, pressionam localmente para a liberação e venda desses químicos. Outra incoerência é que o Acordo se coloca como um “Acordo Verde” visando a sustentabilidade, porém prevê o aumento da exportação do etanol pelo Brasil, cuja produção é baseada na monocultura da cana-de-açúçar, cadeia marcada pela violação dos direitos humanos, recordes de trabalho escravo e de concentração de terras. Também abordou que o risco atual do fim das políticas de compras públicas, como o PAA e o PNAE (compra de alimentos da agricultura familiar para a merenda escolar) já ameaçadas neste governo, atingem diretamente as mulheres.
“Se os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, não podem ser subordinados aos interesses empresariais transnacionais, ou mesmo ser objeto de barganha ou interpretação na negociação de acordos comerciais”, defendeu Ortiz.
A Frente Brasileira contra os Acordos Mercosul-UE e Mercosul-EFTA está organizando atividades e articulando a resistência contra a ratificação deste tratado de livre comércio, que será prejudicial à população dos países latinoamericanos e ao meio ambiente. As entidades aguardam a realização da audiência pública sobre o tema, já pedida pela frente e aprovada no Congresso Nacional. A Frente Brasileira também está em contato com as organizações da sociedade civil europeia que estão reunidos na Campanha Transatlântica “Stop UE-MERCOSUL” e com a coalização suíça para discutir o Acordo Mercosul-EFTA.
No dia 21 de Outubro, às 14h, está prevista uma plenária da Frente Brasileira contra os acordos para seguir planejando e organizando a luta.
Para saber mais sobre os acordos Mercosul-UE e Mercosul-EFTA, acesse os vídeos e publicações das entidades da Frente Brasileira. Ajude a divulgar, junte-se a esta luta!
Vídeos da Amigos da Terra Brasil Acordo Mercosul – União Europeia: quem perde com isso? https://youtu.be/KQReZKYEZXc
Amigos da Terra participa de debate em 20 de Agosto, às 16h, pela plataforma Zoom, com a campanha global para recuperar a soberania dos povos, desmantelar o poder das corporações transnacionais e colocar um fim à sua impunidade. Organizações e movimentos sociais buscam apoio para estabelecer um instrumento jurídico internacional vinculativo na órbita da ONU (o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos), um primeiro passo para acabar com a impunidade das empresas transnacionais e mudar a correlação de forças – de direitos e obrigações – entre os povos do mundo, os Estados e as empresas transnacionais.
Campanha Regional para um Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos na ONU
As empresas transnacionais são uma engrenagem fundamental no sistema mundial capitalista contemporâneo organizado em torno de cadeias de produção globais que elas controlam para maximizar seus lucros em detrimento do meio ambiente e da exploração da força de trabalho e dos corpos de mulheres e homens em todo o planeta.
De pouco ou nada nos serve sonhar com utopias (que serão sempre a estrela do sul guiando nosso caminho) de um mundo sem explorados e exploradores, sem opressão, e com redes de solidariedade e poder popular e democracia direta para a satisfação das necessidades de todos, em vez de cadeias globais controladas por corporações transnacionais em benefício das elites e oligarquias do mundo inteiro, se não começarmos AGORA a acabar com seus privilégios e lucros excessivos, e para começar, com sua impunidade.
Isto é mais urgente do que nunca, pois lutamos para superar a crise sanitária da COVID-19, que se soma e exacerba as outras crises que logo ameaçam a vida humana no planeta – de fome, desigualdade, mudança climática, biodiversidade, cuidado e exclusão, e queremos fazê-lo sem voltar à normalidade pré-pandêmica e sem permitir que a normalidade do mundo durante a pandemia se torne a nova normalidade capitalista distópica, com gigantes tecnológicos como Amazon, Google e Microsoft subindo ao topo da pirâmide de acumulação de capital e cadeias de produção e destruição – e controle político – explorando não apenas a natureza e nosso poder de trabalho e nossos corpos, mas também os dados e informações que geramos em todas as nossas interações sociais mediadas pelas tecnologias digitais.
Para esta luta urgente e necessária, nós, as organizações que convocam esta discussão, o convidamos a somarem-se à Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo e à Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder das Corporações Transnacionais e Colocar um Fim à sua Impunidade, e à urgente tarefa de estabelecer um instrumento jurídico internacional vinculativo na órbita da ONU (o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos) como um dos primeiros passos para acabar com a impunidade das empresas transnacionais e mudar a correlação de forças – de direitos e obrigações – entre os povos do mundo, os Estados e as empresas transnacionais.
A discussão será uma instância informativa e formativa sobre as normas essenciais (mas, certamente, insuficiente se elas não forem acompanhadas por pressão social e mobilização popular, e Estados fortes para fazê-las valer contra o poder das empresas transnacionais) que devem ser incluídas no Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos (cuja 7ª sessão de negociação na ONU ocorrerá em outubro deste ano), explicado com base nas experiências de luta de movimentos sociais e advogados populares de destaque na região. Agradecemos sua participação e a divulgação desta atividade entre seus membros e aliados.
Além do Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC), participarão da atividade o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), do Brasil; Trama al Sur, TNI (Transnational Institute), UDAPT (Unión de Afectados y Afectadas por las Operaciones Petroleras de Texaco), Jornada Continental por la Democracia e contra el Neoliberalismo, HOMA (Centro de Direitos Humanos e Empresas) e CSA-Tuca (Confederación Sindical de Trabajadores y Trabajadoras de las Americas).
DEBATE: Nunca mais a velha normalidade – por um tratado vinculante na ONU sobre empresas transnacionais e direitos humanos 20 de Agosto (6ª feira) – Às 16h Pela Plataforma Zoom (pelo link https://us02web.zoom.us/j/84236491023 ID de reunião: 842 3649 1023)
O estudo foca nas implicações políticas e econômicas para o Sul global e na transformação da governança mundial
covid-19 deu origem a muitos desafios. O principal talvez seja encontrar uma solução para a distribuição global de vacinas.
A partir da perspectiva dos direitos humanos, significa como levar a
vacina contra a covid-19 às comunidades e pessoas nos países em
desenvolvimento rapidamente, em segurança, com pouco ou nenhum custo, e
sem discriminação política, de classe ou de gênero.
As entidades afirmam que para grandes empresas e entidades como o
Fórum Econômico Mundial (WEF) ou a Fundação Gates, o desafio é como
levar a vacina contra a covid-19 às comunidades e à população dos países
em desenvolvimento sem perturbar o mercado farmacêutico global, por
meio de um mecanismo que passa por cima dos sistemas de emergência
humanitária multilateral, ao mesmo tempo que direciona as vacinas para
parceiros preferenciais no mundo em desenvolvimento.
“Isto é Covax. E, portanto, a principal motivação para criá-la não
era ajudar a combater a covid-19 nos países do Sul global. A Covax foi
estabelecida como uma entidade global de múltiplas partes interessadas
que tem como objetivo servir como braço de entrega de vacinas de outro
organismo múltiplo chamado Accelerating Access to COVID-19 Tools (ACT). A
principal função da Covax é gerir o financiamento para a compra de
vacinas para combater a covid-19.”
O relatório alerta que o regime desta governança multiparticipativa
baseia-se na premissa de marginalizar os governos / Divulgação
O relatório alerta que o regime desta governança multiparticipativa
baseia-se na premissa de marginalizar os governos, inserindo os
interesses corporativos das transnacionais diretamente no processo
global de tomada de decisões e ignorando a responsabilidade delas. “Não
existem normas de responsabilidade ou de prestação de contas para as
entidades globais de múltiplas partes interessadas. A multiplicidade de
organismos estratificados ‘supervisionando’ o programa de múltiplos
intervenientes da Covax torna extremamente difícil saber quem tem mesmo
obrigações morais, embora a Covax tome as decisões mais importantes para
as vidas de centenas de milhões de pessoas.”
A coordenadora do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao
Neoliberalismo da Amigos da Terra Internacional e co-editora do
relatório, Letícia Paranhos de Oliveira, afirma que como todo órgão de
múltiplas partes interessadas, existem partes reais e partes ignoradas.
“No caso da Covax, a Fundação de Bill Gates e outros setores que
representam as empresas transnacionais e os setores farmacêuticos são as
partes reais e que de fato estão gestionando a entidade, desviando os
fundos públicos que são oriundos (78%) de governos para interesses
capitalistas. Enquanto que nas partes ignoradas figura a Organização
Mundial da Saúde que, de fato, não tem voz nem poder de decisão. Covax
não é solução real para a distribuição das vacinas, não é resposta para a
crise sanitária que atravessamos. Pelo contrário, além de representar
riscos sanitários por apenas resolver questões de mercado, também
representa um grande passo na captura da governança global, na tomada de
controle das empresas nos espaços de decisão sobre a vida das pessoas”,
avalia.
Quebra das patentes para salvar a vida da população mundial
A Amigos da Terra entende que a saúde é direito e não mercadoria e,
por isso, defende a quebra das patentes. Nesse momento tramita uma
proposta da Índia e da África do Sul no âmbito da Organização Mundial do
Comércio (OMC) para suspender a propriedade intelectual de maneira
temporária, enquanto vivemos a pandemia.
As patentes dão às transnacionais farmacêuticas o poder de determinar
quais os países recebem ou não as vacinas. Com a quebra das patentes,
muitos outros laboratórios poderiam produzir vacinas, aumentando a
disponibilidade desse insumo tão fundamental para evitar mortes
globalmente.
“Direito à saúde é um dos direitos humanos primordiais, por isso
lutamos por um tratado juridicamente vinculante em matéria de direitos
humanos e empresas transnacionais no âmbito das Nações Unidas, porque a
saúde, assim como outros direitos, deve prevalecer acima dos lucros das
transnacionais. Por isso, lutamos por regras para as empresas e direitos
para os povos”, defende Letícia Paranhos.
O relatório foi publicado originalmente por Friends of the Earth
International e Transnational Institute e adaptado por Amigos da Terra
Brasil (ATBr). O autor Harris Gleckman é membro sénior do Center for
Governance and Sustainability da Universidade de Massachusetts Boston e
director da Benchmark Environmental Consulting. Gleckman tem um
doutoramento em sociologia pela Universidade Brandeis. Serviu no Centro
das Nações Unidas sobre Empresas Transnacionais, foi chefe do escritório
de Nova Iorque da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento, e um dos primeiros membros do pessoal da Conferência de
Monterrey de 2002 sobre Financiamento para o Desenvolvimento.
Confira a íntegra da entrevista com a co-editora Letícia Paranhos de Oliveira e o editor Gonzalo Berrón.
Brasil de Fato RS – Como funciona uma entidade de múltiplas partes interessadas?
Letícia Paranhos atua para a construção de um Tratado juridicamente
Vinculante em matéria de Direitos Humanos nas Nações Unidas para pôr fim
à impunidade das Empresas Transnacionais / Divulgação
Letícia Paranhos – Nós buscamos uma tradução para
uma palavra que vem do inglês, que já vem ganhando fama e espaço no
contexto internacional: a multistakeholders. Alguns chamam também de
multilateralismo privado na governância global. Mas para as pessoas
entenderem de fato o que significa é a captura corporativa nos espaços
de decisão, que nós estamos acostumados a lutar diariamente em todas as
esferas da micropolítica, nos espaços de governância global. Essa tem
sido uma batalha que a gente trava muito fortemente.
Quando a gente fala que o capital não faz quarentena, fica muito
explícito quando vemos que o setor que mais lucrou durante a pandemia
foi da saúde. Apesar de a gente entender que a saúde é um direito e não
uma mercadoria, seguem sendo alguns poucos milionários os que mais
lucraram.
Gonzali Berrón – O Covax não é mais do que uma outra
entidade internacional, como nós chamamos de múltiplas partes
interessadas. Ao invés de inventar ou de criar um órgão internacional
chefiado por estados ou entidades internacionais que nem a OMS ou outras
parecidas, a proposta da Fundação Gates, sobretudo, foi criar uma
entidade encarregada de distribuir vacinas no mundo, que seja múltiplas
partes interessadas.
Isso quer dizer com agentes financeiros e econômicos privados,
entidades filantrópicas privadas como a Fundação Bill e Melinda Gates,
tomando parte das decisões sobre um problema que é um problema de saúde
global. Esse é o principal problema.
O principal problema a isso não é que setores privados ou entidades
financeiras possam participar da solução, o problema é que eles são
colocados em um nível em que eles decidem, e quando eles decidem, ao
invés de apontar para o princípio da saúde pública, ou seja, do
interesse geral, eles sempre acabam promovendo soluções que favorecem em
última instância os agentes do mercado. E o Covax é um perfeito exemplo
disso.
BdFRS – Como as decisões da Covax afetam as populações dos países que necessitam das vacinas?
Letícia – Nós sabemos que a pandemia da covid-19 se
tornou uma grande oportunidade de negócios, especialmente para a
indústria farmacêutica. E a Covax é justamente essa entidade de
múltiplas partes interessadas para oficiar como um braço de distribuição
de vacinas de outro órgão que também funciona da mesma maneira, de
múltiplas partes interessadas que é o acelerador de acesso a ferramentas
contra a covid. A sua função é manejar o financiamento pra comprar as
vacinas contra a covid, e outros subcomponentes relacionados com
diagnósticos, terapias, apoio a sistemas de saúde nacional.
Mas o Covax se converte num órgão de tomada de decisão de setores
industriais da Medicina, onde empresas desses setores obtêm grandes
contratos, por exemplo, essas empresas têm direito de convidar para a
diretoria do Covax e também a seus comitês assessores. A governância da
democracia da instituição do Covax não é mais da Organização Mundial da
Saúde. A OMS é substituída pela Covax que harmoniza os interesses do
mercado financeiro e prioriza os interesses do mercado ao invés de
priorizar os interesses da saúde pública. Isso é a Covax.
Tem um ditado popular que diz: o pastor, o lobo e a ovelha se sentam
pra discutir como que o lobo vai comer a ovelha. Mas no caso da Covax,
como basicamente é inexistente o papel da sociedade civil dentro da
organização, inclusive do próprio Estado, o lobo está agenciando, está
decidindo como vai comer a ovelha de fato. É basicamente isso a Covax. E
a OMS apesar de figurar e de ser propagandeado que a OMS participa, ela
não tem um cargo de diretoria dentro da Covax.
O financiamento da Covax vem 78% de países que poderiam estar
disponibilizando recursos pra OMS, dá pra salientar bem fortemente esse
dado. Mas não, estão disponibilizando para um órgão de múltiplas partes
interessadas, e são 5 países principais, Canadá, Comissão Europeia,
Alemanha, França e Arábia Saudita. E o resto é 13% de fundações, 1,2% de
grandes empresas e 0,3% de órgãos sem fins lucrativos. Apesar disso, os
Estados dos países não têm papel de liderar as decisões sobre a Covax.
E agora, sabe quem são os líderes da Covax? Quem toma as decisões,
quem faz parte, quem fundou a Covax? A aliança mundial para vacinas e
imunização, uma sigla do inglês que é GAVI, a coalizão para inovações na
preparação para futuras epidemias, que na sigla inglês é CEPI, essas
duas são entidades público-privadas, e múltiplas partes interessadas têm
estreitos vínculos ao Fórum Econômico Mundial e à Fundação Bill e
Melinda Gates. E foram fundadas em Davos, no marco do Fórum Econômico
Mundial. Em 2017 já discutiam a necessidade de criar um plano para
solucionar epidemias futuras.
Dentro das múltiplas partes interessadas, existem partes reais e
partes ignoradas. Justamente nos altos níveis da Covax têm os membros da
GAVI, os membros da CEPI e tem apenas um membro de alto nível da
UNICEF. Além dos maiores interessados, um representante da indústria da
Federação Internacional da Indústria de Medicamentos, um membro da rede
de fabricantes de vacinas dos países em desenvolvimento, uma cadeira
apenas da sociedade civil, que é do Comitê Internacional de Resgate.
Falta representante de governo, principalmente dos países beneficiários,
falta representantes de pacientes, representantes de atenção à saúde,
faltam cientistas especializados em Medicina, faltam movimentos sociais,
faltam representantes de povos, principalmente dos mais afetados pela
covid. O que estamos alertando é que é uma grande tomada do controle e
cooptação empresarial do espaço de governância global.
Gonzalo – O grande problema no caso das vacinas é
que os estados e os laboratórios, sobretudo os estados poderosos,
fizeram uma aliança econômica, política, para garantir para as suas
populações vacinas. Então eles investiram pesado nos laboratórios deles,
para garantir a produção de vacinas para suas próprias populações.
Obviamente eles ganharam a maior parte das vacinas e sobraram algumas
migalhas para os que têm menos poder financeiro, econômico.
Por isso que você vai ver que toda hora tem um cancelamento de um
envio de vacina pro Brasil, pro Peru, pra Argentina, de um e outro
laboratório. Esse foi o principal problema. O Covax tentou entrar nessa
jogada e tentou regular esse mercado através de grandes compras, só que
chegou tarde, porque as grandes compras já tinham sido feitas pelos
estados. Então é como se fosse um mercado residual que é por sinal mais
da metade da população no mundo, ficou as migalhas das vacinas que
sobraram, ficaram para ser distribuídas supostamente pelo Covax, só que
afinal como não tem o mesmo poder que tem as outras entidades dos
países, acaba não dando certo.
BdFRS – Existe alguma forma da sociedade civil supervisionar as ações desse organismo?
Letícia – Então, essa reunião de coordenação da
Covax é copresidida pela presidência da CEPI e pelo diretório da GAVI. A
OMS é um integrante, participa da reunião de coordenação da Covax. O
próprio presidente da Assembleia Mundial da Saúde não tem nenhum cargo
diretivo da reunião de coordenação do Covax. E os fundos públicos mais
em versão privada vão pro mercado mundial da saúde, mas não atende o
interesse de saúde pública, mas sim um interesse capitalista.
É muito interessante perceber que dentro dos financiadores, no estudo
que conseguimos mapear, tem um meio de comunicação que é a TikTok, e aí
a gente se pergunta: por que a TikTok tá interessada em financiar a
Covax? E o que os meios de comunicação no geral estão comentando e estão
trabalhando pra dizer o que a Covax representa? O que eles estão
midiatizando sobre a Covax, de que ela é a melhor solução pra garantir a
equidade na distribuição das vacinas, como se as empresas pudessem
garantir uma distribuição equitativa, sem discriminação de classe, de
gênero, de raça, como se fosse realmente uma verdadeira solução.
Não querem falar sobre quebra de patentes, não querem falar sobre
propriedade intelectual, não querem falar que estão beneficiando algumas
empresas. Eles querem falar que estão salvando as pessoas do Sul global
contra o vírus da covid. Por isso que estão colocando dinheiro nesse
financiamento, porque estão em busca de um slogan, de um marketing de
responsabilidade social corporativa. Tão em busca daquilo que sempre
estiveram, aproveitando uma crise pra limpar a sua imagem.
O Bill Gates mesmo já está há mais de 20 anos metido nesse tema das
epidemias futuras, das vacinas, e há muito tempo ele também figura como
um protagonista não só na sua própria organização, que é a aliança
internacional pra vacinas e imunização, mas também se estabelece na
vanguarda de estabelecer entidades de múltiplas partes interessadas. Ele
tem interesse de estar à frente dessa cooptação também do imaginário de
que as empresas transnacionais que estão no nervo central do sistema
capitalista, elas não são a causa das nossas múltiplas crises
sistêmicas, mas ao contrário, elas são as soluções das crises
sistêmicas.
Eles trabalham para demonstrar que as Nações Unidas estão fracassando
para enfrentar todas as crises globais, e de que quem tem a solução são
as empresas transnacionais. Enquanto a gente luta, trabalha arduamente
nos movimentos sociais, para demonstrar que as soluções para as crises
sistêmicas é justamente desmercantilizar a vida e a política. É uma
disputa do imaginário, é uma disputa com os meios de comunicação, é uma
disputa na arena política, pela democracia.
A gente entende que o risco da Covax é sanitário sim, mas é também
político, porque faz avançar essa estratégia de colocar o
multilateralismo privado controlando e tomando as decisões sobre as
nossas vidas, sobre a vida dos povos em relação às questões tão
prioritárias como a saúde, sem a gente poder tomar parte disso, sem a
gente ter voz, sem termos se quer conhecimento sobre o que está
acontecendo, sem instâncias democráticas e de forma autoritária e
arbitrária. Isso também é um risco principal da Covax.
Gonzalo – Na verdade, não existem mecanismos formais
para monitorar as ações da Covax, porque como eu falei, é uma entidade
semiprivada. Ou seja, ninguém monitora isso e a sociedade civil não faz
parte como em muitos dos órgãos internacionais, como a OMS e alguns
desses outros órgãos que têm a participação obrigatória da sociedade
civil, a Covax não tem. Tem alguns representantes sim, das
universidades, da pesquisa, vamos dizer, mas ninguém monitora. O
monitoramento cabe à sociedade civil se organizar para fazer, e até
agora só alguns poucos, como o movimento dos povos pela saúde, o Pieten
ou o Pisai que têm feito algum monitoramento da Covax.
BdFRS – Qual seria a melhor maneira de garantir que todo
mundo tenha acesso às vacinas? Qual a opinião da campanha Liberem as
Patentes?
Letícia – É lógico que a Covax reduz as respostas de
necessidade de atenção à saúde, a capacidade de compra da vacina a seus
proprietários entendidos pela própria Covax como legítimo. Como
acreditamos que a saúde é um direito e não uma mercadoria, somos sempre
contrários a propriedade intelectual e favoráveis a quebra das patentes e
a quebra dos direitos de propriedade intelectual.
Nesse momento existe uma proposta no âmbito da organização mundial do
comércio vinda pelos países da Índia e da África do Sul, de suspender
os direitos de propriedade intelectual de maneira temporária enquanto
vivemos a pandemia. É extremamente importante que todos os países apoiem
essa proposta, porque as patentes dão às transnacionais farmacêuticas o
poder de determinar quais países recebem ou não as vacinas. Então com a
quebra das patentes muitos outros laboratórios poderiam produzir
vacinas, aumentando a disponibilidade desse insumo tão fundamental para
evitar mortes em nível global.
Desde a perspectiva dos direitos humanos, a estrutura para coordenar a
distribuição de um bem mundial deveria incluir os governos dos países
receptores, representantes de organizações, profissionais desses países,
representantes de movimentos sociais, e também os povos beneficiários.
Demais órgãos intergovernamentais chaves e relevantes e, principalmente,
deveria estar garantida uma distância segura de interesses comerciais
para que não passasse algo que está passando com a Covax. Ou seja,
fundos públicos e mesmo investimentos privados, se convertesse a atender
interesses capitalistas em prejuízo da saúde pública. Então essa é a
nossa máxima.
Gonzalo – A sociedade civil, e sobretudo os do Sul
global, dos países em desenvolvimento, todos brigamos. Por exemplo, aqui
no Brasil tem o GTPI da Rebrip, tem uma rede latino-americana de acesso
a medicamentos e tem várias redes internacionais, que brigam pelos
acessos aos medicamentos, e em particular esse acesso seria as vacinas.
Isso se garantiu de duas formas, primeiro com a quebra das patentes, ou
uma campanha que se chama Weiver, ou seja, uma suspensão temporária dos
direitos de propriedade intelectual sobre as patentes no contexto da
Organização Mundial do Comércio, para atender a emergência.
Uma coisa que por outro lado parece super razoável, mas não é, porque
tem claro os interesses das farmacêuticas ali no meio, por exemplo, o
próprio Bill Gates numa das últimas declarações chegou a dizer que era
contra a quebra de patentes, porque obviamente a própria indústria dele
se sustenta no direito de propriedade intelectual. Essa é uma dimensão, a
outra dimensão é que o sistema de governo internacional, ou seja, o
multilateralismo, os organismos pertencentes ao multilateralismo como a
OMC, eles mesmos decidem as políticas e o investimento, e as decisões
sobre investimentos, sobretudo público, é para a melhor produção e
distribuição de medicamentos e em particular da vacina para combater
essa que é indubitavelmente um problema de saúde de caráter global e por
isso é que tem que ser tratado por entidades internacionais, mas
comandadas por estados, não por companhias farmacêuticas que procuram o
lucro.
BdFRS – Como podemos garantir o direito à saúde, a soberania
sanitária, sem o controle de empresas transnacionais na governância dos
sistemas de saúde mundiais?
Gonzalo – Uma das coisas que a gente briga,
inclusive com os companheiros do GTPI da Rebrip, que tem sido muito
atuante agora nessa briga aqui no Brasil, é que você tem que garantir o
direito à saúde, acima do direito ao lucro, obviamente. Parece uma coisa
tão simples, mas muitas vezes não é assim que acontece. Então para nós,
obviamente, o direito da saúde é um dos direitos humanos primordiais, e
nós consideramos isso na luta por um tratado.
Não sobre empresas e direitos humanos, nós chamamos sempre de
direitos humanos empresas que é o que está sendo negociado nesse momento
na ONU, e onde nós colocamos que o direito à saúde deve ser colocado
acima dos direitos das empresas, nesse caso a farmacêutica. E nós
achamos que temos ali junto com o acesso a outros direitos humanos a
chance de ter o direito à saúde garantido de forma mais completa e
abrangente.
Obviamente nós entendemos também que o conhecimento, mesmo que sendo em alguns casos protegido, como o caso dos conhecimentos ancestrais dos indígenas e tal, são comuns e não devem ser, claro, produtos de políticas de negócios e lucros para as empresas. Sobretudo quando se trata de saúde pública e avanços, por exemplo, para a questão climática, e a defesa do planeta. #DireitosParaosPovosRegrasParaasEmpresas
Entrevista publicada originalmente pelo jornal Brasil de Fatoem 06 de Maio de 2021.
A “boiada” está passando sobre os povos que defendem a Terra. Precisamos pará-la!
Enquanto tenta abocanhar fundos com a retomada da agenda da Economia Verde em negociações a portas fechadas com o governo dos EUA, o governo Bolsonaro avança a passos largos na devastação dos bens comuns e de qualquer possibilidade de garantir o direito à terra e aos territórios aos que melhor os defendem e protegem: camponeses/as, comunidades quilombolas e povos indígenas.
O desmonte das políticas de reforma agrária e de demarcação de terras indígenas e quilombolas foi prometido e vem sendo cumprido por Jair Bolsonaro. Além do corte de verbas (ou baixa execução orçamentária) em órgãos como a Funai (Fundação Nacional do Índio), o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o ICMbio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), o governo Bolsonaro, junto a sua base no Congresso, vem trabalhando para desfigurar completamente a legislação que tem como objetivo garantir aquelas políticas.
Uma das mudanças recentes promovidas pelo governo federal é o programa Titula Brasil, regulamentado em fevereiro deste ano. Sob a desculpa de desburocratização e “modernização”, o programa permite a transferência de atribuições do Incra para as prefeituras, através da criação de Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRF).
Ao ser criado o programa em dezembro do ano passado pela Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf) e o Incra, a própria Cnasi (Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra), denunciou que “com essa decisão, toda a grilagem de terras do Brasil vai ser regularizada em pouco tempo”. A entidade alertou que a política “vai impedir novos projetos de assentamento da reforma agrária, novas regularizações de territórios quilombolas, novas áreas indígenas e novas áreas de preservação ambiental; um decisão inconsequente e desastrosa pra democratização de acesso a terra e pro meio ambiente”.
Uma das principais críticas está em que ao fragmentar o poder de decisão sobre a regularização da terra no país, as oligarquias contarão com maior poder para pressionar os governos municipais a regularizarem casos que não contam com os requisitos necessários para esse fim. Segundo o governo, até o momento 605 prefeituras pediram adesão ao programa. A meta, conforme o próprio Incra, é criar Núcleos Municipais de Regularização Fundiária em 2.428 municípios, que representam 83% do território brasileiro.
Ao lançar o Titula Brasil, a ministra Tereza Cristina disse que o programa “vai melhorar a qualidade de vida de muitos brasileiros (…) são cidadãos de baixa renda, que precisam do título fundiário até como garantia para sua sobrevivência”.
Em uma parte do enorme contingente de terras públicas não destinadas no país há pequenos posseiros e comunidades tradicionais que praticam agricultura familiar. Mas como a assessora da FASE e integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Julianna Malerba, alerta: “essas mesmas terras são disputadas por grileiros, madeireiros e estão sob pressão constante do avanço da pecuária, dos monocultivos de grãos, das mineradoras e da própria especulação fundiária, se a gente considerar que o preço da terra vem crescendo exponencialmente no Brasil”.
A pesquisadora também ressalta que se o objetivo fosse beneficiar “cidadãos de baixa renda” como defende a ministra, o governo poderia lançar mão de legislação já existente: “a Lei 11.952, depois foi modificada pela Lei nº 13.465, já prevê mecanismos que facilitam a regularização fundiária, e se houvesse vontade política, ela permitiria uma regularização fundiária das pequenas posses”.
Não só não parece haver vontade política, como é impossível acreditar na suposta priorização do governo da população de renda mais baixa do campo, quando, entre outros motivos, à frente da Seaf do MAPA está Nabhan Garcia, um histórico representante do agronegócio, com o nome ligado, inclusive, a conflitos no campo. Também é preciso destacar que, com o Incra sob o comando de Geraldo Melo Filho, um economista vinculado ao agronegócio, a Reforma Agrária no Brasil ficou completamente paralisada.
Tanto Nabhan Garcia como Melo Filho e a bancada ruralista são defensores do PL 2633/20, que tenta ressuscitar a MP da Grilagem que caducou por falta de apoio na Câmara. Esse é um dos PLs da Grilagem em tramitação na Câmara: os outros são o PL 4348, aprovado pelo Senado na última quinta-feira (15) e o PL 510. Caso aprovados, Malerba afirma que os projetos “incentivarão o aumento dos conflitos fundiários, na medida que eles permitem que grileiros afirmem que são possuidores de área, que têm uma posse mansa e pacífica, usando apenas as próprias declarações e imagens de satélite”. O PL 4348, que voltou para a Câmara, permite que áreas de assentamentos da reforma agrária adquiridos por terceiros de forma ilegal, sejam simplesmente regularizados.
Ao fragmentar e enfraquecer ainda mais o poder do Incra em relação à regularização fundiária no Brasil, tanto o Titula Brasil quanto os projetos de lei mencionados, facilitam a apropriação das terras públicas por parte dos que exercem maior poder em cada região. Não por acaso todas essas propostas, com o mesmo espírito, são defendidas pela bancada ruralista. E como no caso, do PL 4348, vêm sendo tratadas em regime de urgência, quando as principais demandas da população neste momento passam, entre outras, pela liberação de auxílios com valor digno (inclusive para a agricultura familiar que foi excluída por Bolsonaro do benefício no ano passado), a aceleração do processo de imunização contra a covid-19 e o combate à fome.
Nenhum desses projetos foi construído em diálogo com a população a quem o governo diz que beneficiarão. Esses projetos são a “boiada” à qual fazia referência o ainda ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles há um ano atrás. Precisamos parar essa boiada, reconhecendo, valorizando e defendendo quem cuida e cultiva a Terra para a garantia do alimento saudável para a maioria da população – a agricultura familiar e camponesa – e quem de fato preserva o equilíbrio ecológico nos biomas do Brasil – os povos originários e tradicionais. Para isso é preciso, todo o dia e nesse dia, continuar fortalecendo a luta popular pelo #ForaSalles e #ForaBolsonaro!
Artigo veiculado pelo Brasil de Fato em 22 de abril de 2021.
O governo de Jair Bolsonaro, único responsável pelos níveis atingidos da pandemia no Brasil, conseguiu mais uma façanha negativa não só ao permitir, por ação e omissão, que a crise atingisse seu momento mais crítico mais de um ano após ter começado, como ao tornar o país o epicentro da doença no mundo e uma grave ameaça para a região.
A gestão de Bolsonaro da pandemia já é reconhecida internacionalmente como a pior do mundo, como mostrou a pesquisa do Lowy Institute, da Austrália, e como argumenta o editorial do jornal britânico The Guardian publicado no início desta semana: A visão do The Guardian sobre Jair Bolsonaro: um perigo para o Brasil e para o mundo. Entre a série de erros e problemas das ações governamentais está o posicionamento do país em relação ao processo de imunização.
O governo brasileiro não apenas desdenhou a importância das vacinas no ano passado, como chegou, de maneira insólita, a negar vacinas oferecidas por laboratórios.
Com a mudança recente do Executivo em relação à necessidade de aquisição de imunizantes, o problema ainda está longe de ser resolvido. Há duas décadas, o Brasil liderava, junto a outros países do Sul Global, como a África do Sul, um movimento de quebra de patentes abusivas, através de licenciamento compulsório, por exemplo, de medicamentos antirretrovirais para o tratamento de pessoas que vivem com HIV.
Hoje, mesmo em meio ao caos pandêmico que já tirou a vida de quase 337 mil pessoas no país, o Estado brasileiro abandonou a postura de defesa da saúde pública e da vida da população, deixando sozinhos países como Índia e África do Sul na luta pela quebra de patentes de vacinas e tratamentos contra a covid-19 no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Ao mesmo tempo, enquanto promete a imunização de toda sua população para junho deste ano, a União Europeia se mostra disposta a contribuir para que o cenário de imensa desigualdade mundial em relação à imunização se estenda durante anos, ao se mostrar relutante em relação à flexibilização ou quebra de patentes das vacinas contra a covid-19. A situação é a mesma com os Estados Unidos sob nova administração: “Vamos garantir que os estadunidenses sejam atendidos primeiro, mas depois tentaremos ajudar o restante do mundo”, disse o presidente estadunidense Joe Biden, há menos de um mês.
O modelo neoliberal custa vidas
A pandemia, em boa parte da América Latina, e principalmente no Brasil, vem sendo um exemplo cruel de como a lógica neoliberal e o desmonte de políticas públicas impactam na vida dos povos.
O estado do Amapá teve que enfrentar, em plena pandemia, uma crise energética por um problema gerado em uma subestação que é de responsabilidade de uma empresa privada: a Gemini Energy que, por sua vez, adquiriu a concessão em 2020 da espanhola Isolux. O problema provocou a oscilação de energia elétrica em unidades básicas de referência para o combate à covid-19, além de ter gerado falta de água potável e de alimentos durante mais de 20 dias em praticamente todo o estado.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) argumenta, em uma Nota Técnica de abril de 2020, que “fatores relativos às condições de vida (saneamento básico, acesso à água, educação, renda) são determinantes para a taxa de contaminação e para a velocidade de propagação” do coronavírus. Uma das regiões metropolitanas em que o Ipea constata essa relação é a da capital amazonense, Manaus, onde água e saneamento foram privatizados há 20 anos. Em levantamento divulgado no começo de 2020, a Ouvidoria da Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Município de Manaus (Ageman), mostrou que esses serviços são responsáveis por 91% das reclamações registradas na capital.
Por essas razões, também reafirmamos a necessidade de combater o Acordo União Europeia (UE) – Mercosul, e outros acordos comerciais neoliberais, como o Brasil-Chile, e o da Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA, na sigla em inglês) – Mercosul, agora impulsionados pelo novo presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Aécio Neves. Trata-se de acordos que pretendem transformar o direito ao acesso a serviços essenciais como água, energia, saneamento, saúde e educação, em mercadorias.
Além da possibilidade de impor regras que gerem vantagens para que empresas europeias se apropriem de serviços essenciais nos países do Mercosul, é necessário lembrar que o acordo promove a reprimarização nada saudável de suas economias – com mais exportação de gado e soja e importação de carros e agrotóxicos. Esse é o modelo que intensifica o desmonte das políticas ambientais e de direitos humanos, assim como a devastação dos biomas liderada pelo agronegócio brasileiro.
Acesso à alimentação saudável também é imunização!
O ano de 2021 será pior para a saúde do povo brasileiro também pela falta de compromisso do governo federal e do Congresso em garantir o auxílio emergencial com um valor básico de R$600 à população. A redução do valor do auxílio, que agora sequer garante o acesso à alimentação básica, e do número de beneficiários, agravará a crise econômica e social no país, como argumenta o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
E a situação em termos de Soberania Alimentar no país já é gravíssima. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mostrou que durante a pandemia em 2020, 117 milhões de pessoas no país ficaram sem acesso pleno e permanente a alimentos. O estudo publicado no começo desta semana, revelou ainda que 19,1 milhões de pessoas passaram fome nesse período.
Esse quadro coincide com o abandono completo de políticas fundamentais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE). Em 2012, o PAA chegou a comercializar 297 mil toneladas de alimentos da agricultura familiar. Em 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, a quantidade caiu para 14 mil toneladas. E as ameaças não param: a base do governo no Congresso quer modificar o PNAE para poder atender aos interesses de corporações da indústria alimentícia, colocando em risco a alimentação saudável de cerca de 41 milhões de estudantes.
Ao mesmo tempo, os movimentos populares do campo continuam lutando contra o veto de Bolsonaro ao auxílio emergencial à agricultura familiar, aprovado pelo Congresso no ano passado.
O Estado brasileiro se encontra totalmente cooptado pelos interesses empresariais. Às vésperas deste Dia Mundial da Saúde, o Congresso teve a coragem de pautar a votação de um projeto de lei que retirou a prioridade do Estado na compra de vacinas, permitindo agora que empresas possam competir por imunizantes contra o próprio Estado brasileiro.
Vacinas já!
O novo ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto Franco França começou mudando o tom de seu antecessor, Ernesto Araújo. Em seu discurso de inauguração falou na necessidade de que o Itamaraty promova uma “verdadeira diplomacia da saúde”, e chegou inclusive a mencionar uma “urgência climática”.
Mas sabemos que o povo brasileiro não pode depositar esperança alguma na troca de ministros deste governo. A principal medida para poder começar a recuperar o país da profunda crise em que foi colocado é pôr fim ao governo de Jair Bolsonaro.
E a saída de Bolsonaro do poder não basta, é preciso derrotar o modelo neoliberal que seu governo promove. Por isso, junto a todos os movimentos populares e organizações da sociedade civil reafirmamos que defendemos o SUS, a quebra de patentes, vacina para todes já e relações comerciais justas que atendam as necessidades dos povos, respeitem seus direitos e preservem seus territórios!
A publicação é uma transcrição editada do seminário web realizado no dia 30 de junho pela ATI, MMM Brasil e REMTE. A atividade fez parte do Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras e contou com duas convidadas principais. Foi aberta com uma apresentação da feminista Nalu Faria, da REMTE e do Comitê Internacional da MMM. Faria aparece agora como o autora do capítulo 1: “Economia Feminista: A sustentabilidade da vida como eixo central diante da crise da Covid-19”.
Mais de 100 pessoas de pelo menos 17 nacionalidades participaram ao vivo do debate de 30 de junho, e muitas tomaram a palavra para aprofundar as reflexões e contribuir com possíveis caminhos que nos levariam a uma recuperação justa. Algumas dessas possíveis saídas para as crises indicadas pelos movimentos sociais presentes no seminário podem agora ser encontradas nesta nova publicação. A convergência dos movimentos sociais, a solidariedade internacionalista e a construção da soberania alimentar através da agroecologia são alguns dos caminhos discutidos.
A produção traz uma perspectiva global de ação urgente para o contexto em que estamos atravessando. “Devemos pensar em como organizar a economia de acordo com um projeto político popular a partir de uma perspectiva local, mas que vá além do território e que integre os movimentos, com uma visão internacionalista, de classe, anti-racista e antipatriarcal”, diz o capítulo 3 do novo trabalho sob o título “A crise do Covid-19 e os desafios para os movimentos do Sul global: tecendo intercâmbios”.
“A recuperação justa requer uma ruptura total com este modelo hetero-patriarcal, capitalista, racista, colonialista e destrutivo da natureza. Portanto, nossa resposta também deve ser abrangente, propondo uma ruptura com a lógica do capital e a construção de outro modelo. Na economia feminista, propomos a necessidade de colocar a sustentabilidade da vida no centro. […] Temos que pensar sobre o que vamos produzir, como e para quem, a fim de responder às nossas necessidades, mas também tendo em mente a reprodução, que é tão importante com base no trabalho doméstico e de cuidado”, diz Nalu Faria da MMM.
Para a presidenta da Amigos da Terra Internacional, a uruguaia Karin Nansen o que se entende por Recuperação não pode ser a volta a uma convivência com vírus na forma a que se considerava como “normal”: porque essa é precisamente a origem da crise. […] Precisamos reverter isso e avançar em direção à justiça em todas as suas dimensões – ambiental, social, de gênero e econômica – e também em direção à construção e ao fortalecimento da soberania de nossos povos e do poder popular”.
A Amigos da Terra Brasil está lutando para manter sua sede, a CaSanAT, ameaçada de reintegração de posse pelo (des)governo #ForaBolsonaro. Hoje, o espaço é um Centro de referência em Tecnologias Populares para fazer e pensar a cidade. Articulados com organizações e movimentos, buscamos construir justiça ambiental na cidade, colocando os direitos dos povos acima dos interesses empresariais.
A iniciativa está representando o Brasil entre as finalistas na categoria Habitação do Prêmio Atlas da Utopia. O projeto valoriza práticas políticas transformadoras que ocorrem em nível municipal em todo o mundo. Votando na CaSanAT você ajuda a dar visibilidade internacional para essa luta e apoiar que projetos que constroem redes entre campo e cidade, como a Feira Frutos da Resistência, sigam florescendo.
Compartilhe com seus contatos e contribua para dar visibilidade internacional a essa luta! #VoteCaSanAT
Na publicação de Amigos da Terra Internacional (ATI) e Amigos da Terra Brasil (ATBr), lançada nesta quarta-feira, 30, são apresentadas algumas reflexões sobre o contexto amazônico e os incêndios ocorridos em 2019, como um alerta para as possíveis consequências da implementação do Acordo de Livre Comércio entre a União Europeia (UE ) e Mercosul, que ainda não ratificaram esses blocos e que constituem parte substancial do acordo de associação firmado no ano passado.
Durante décadas, as empresas transnacionais buscaram ampliar seu controle territorial na Amazônia. Ano após ano, avançam sobre a maior floresta tropical do mundo através da expansão da fronteira agrícola, da mineração e das falsas soluções do capitalismo verde, como grandes barragens e projetos de captura e armazenamento de carbono, com os quais se “compensam” emissões poluentes realizadas em outros locais, entre outras iniciativas.
O relatório salienta que os incêndios são uma das várias fases do ciclo de destruição da Amazônia pelo agronegócio, que começa com a venda ilegal de madeira, as queimadas e a grilagem de terras e água para pecuária industrial e exportação de commodities, que demandam a construção de estradas e portos que, por sua vez, são o caminho para a entrada do capital transnacional. Esta verdadeira devastação dos biomas brasileiros é comandada por uma “rede bem articulada” de cumplicidade entre o governo de extrema direita de Bolsonaro e as empresas transnacionais. Assim, o TLC entre o Mercosul e a UE será um poderoso combustível que deve agravar a situação, sustenta o relatório.
O acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia é um pilar da “arquitetura da impunidade” que dá luz verde às empresas transnacionais para devastar a Amazônia e seus povos e comunidades tradicionais. As florestas e outros biomas, assim como os direitos dos povos não podem suportar mais agressões. O Tratado foi acordado pelas partes que o negociaram, mas para entrar em vigor precisa ser ratificado pelos parlamentos dos 31 países envolvidos, sendo 4 do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai).
“Não há dúvida que o TLC UE-Mercosul, assim como todos os acordos de livre comércio, influencia fortemente as estruturas que moldam a vida das pessoas através de políticas internas orientadas para o mercado internacional, e reforça as estruturas de uma sociedade capitalista, com bases patriarcais e racistas, onde as mulheres são as mais afetadas. Na situação brasileira, onde a região amazônica é supostamente a mais impactada pelo acordo por ser a principal fronteira agrícola, serão sem dúvida as mulheres que estarão na linha da frente do confronto contra o TLC UE-Mercosul e seus efeitos nos territórios”, comenta Luana Hanauer, economista da Amigos da Terra Brasil e autora da publicação.
A consolidação da crise intensificaria a crise climática causada pela agricultura em larga escala. Estima-se que as emissões aumentariam em 8,7 milhões de toneladas de gases de efeito estufa por ano. Como parte de uma arquitetura de impunidade, o tratado pode significar para as empresas transnacionais que se impeça qualquer risco de perda de seus benefícios e lucros, bem como para os investidores estrangeiros, acarretando a ambos cada vez mais direitos às custas do desmantelamento das políticas públicas e da perda de direitos dos povos.
Bolsonaro já está colocando o aparelho estatal brasileiro ao serviço do capital transnacional através de uma “guerra legal”, eliminando medidas de proteção dos Povos Indígenas, comunidades tradicionais e do ambiente, atacando instituições sociais e ambientais, desmantelando políticas de monitoramento e gestão florestal e da biodiversidade, dando o controle de vastos territórios ao exército. Isso facilita o acesso de interesses comerciais à Amazônia, garantindo um fornecimento abundante de alimentos a baixo custo e recursos para o mercado internacional, particularmente para a Europa.
O TLC entre UE e o Mercosul, do qual o Brasil é parte, encurrala a Amazônia nesta trajetória. Os impactos serão devastadores para as pessoas que habitam o território, para a biodiversidade e para o clima do mundo.
“O que este acordo de livre comércio pode fazer é basicamente entregar as chaves da Amazônia às empresas transnacionais, onde o exército estará esperando na porta para as receber, com o encorajamento ativo de um governo neoliberal de extrema direita que deixa de lado todas as medidas para proteger as florestas e os seus povos. Se a classe política europeia e parlamentares dos países do Mercosul ratificarem este Tratado, os horrores dos incêndios de 2019 serão insignificantes em comparação com o que virá. Parar o Tratado é defender a Amazônia e defender a Amazônia é defender os povos, defender os povos é cuidar da vida”, aborda Leticia Paranhos Menna de Oliveira, da Amigos da Terra Internacional.
Acesse a publicação: Queimando a Amazônia: um crime corporativo global — um alerta para frear o Acordo de Livre Comércio Mercosul-União Européia – Download em português, em espanhol e em inglês.
Ação violenta do Estado impele a ação popular de solidariedade
[Español abajo // English below]
A Amigos da Terra Brasil expressa solidariedade ao Assentamento Quilombo Campo Grande, localizado no município de Campo do Meio, sul de Minas Gerais, e extremo repúdio às violências sofridas pelas cerca de 450 famílias na sexta-feira, 14 de agosto. A ação de reintegração de posse com uso da força policial comandada pelo governador do estado, Romeu Zema (Partido Novo), e respaldada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, demonstra a mais sórdida face da política de morte do Estado Neoliberal. Além de destruírem a Escola Popular Eduardo Galeano, o barracão coletivo onde moravam três famílias, as plantações de milho, café, pitaia e outros produtos que tornam o assentamento referência em agroecologia na região, a expulsão destas famílias da terra em que vivem há mais de 20 anos os coloca em risco iminente de contaminação pela pandemia de Coronavírus.
Antes da ação de reintegração de posse, nenhum caso de Covid-19 havia sido registrado no assentamento, apesar de o município de Campo do Meio ter 19 confirmações da doença. Como conceber a ideia de que, em meio a uma pandemia que já levou mais de 110 mil vidas no Brasil, o Estado articule uma ação violenta de expulsão de famílias de trabalhadoras/es que vivem nestas terras por não terem sido indenizadas/os com a falência da Usina Ariadnópolis, em 1996, e que por décadas trabalharam sem carteira assinada?
A ação movida por Jovane de Souza Moreira e seu filho, Jovane Jr. — que colecionam relatos de ameaças contra os assentados — tenta reativar a usina falida. A ofensiva começou quando o Governo de Minas Gerais publicou um decreto, em 2015, que atestava as terras da usina Ariadnópolis como interesse social para fins de reforma agrária. No ano passado, o governador Zema revogou o decreto.
Ainda em 2017, Jovane pode quitar as dívidas trabalhistas, após firmar contrato com a empresa Jodil Agropecuária e Participações Ltda., prevendo a recuperação judicial da empresa para produção de café. Contudo, ele ainda deve cerca de R$ 400 milhões para a União referentes à contribuições previdenciárias, FGTS e impostos federais. O argumento é de que, se reativada, a usina poderia gerar até 400 empregos. Agora, a decisão judicial favorece os empresários, apesar de o governo do estado negar que a ação fosse ocorrer. Quando expulsam essas pessoas da terra em que vivem sob essa lógica, o Estado fortalece a ideia de que populações campesinas devem ser subordinadas e não autônomas.
Conforme denúncia do MST, a ação violenta extrapola os caminhos legais, uma vez que a área de 26 hectares inicialmente constatadas no processo judicial n. 6105218 78.2015.8.13.0024, que já estavam desocupados, foi ampliada para 52 ha no último despacho da Vara Agrária e a operação policial foi além da determinada pela liminar, destruindo a casa e lavouras de sete famílias.
A política é de morte, pois ceifa vidas, ceifa sonhos, ceifa a possibilidade de outros futuros possíveis para além da lógica coronelista e colonial de concentração de terras histórica no país. Em meio a uma crise de saúde e economia, ao invés de buscar soluções baseadas na solidariedade e na inclusão popular, o governo de Zema comete crime ao comandar a expulsão das famílias com violência, sem nem ao menos preocupar-se com possibilidades de destinos que não sejam a migração para as cidades com a perpetuação e aprofundamento do ciclo de pobreza e desigualdade.
Neste momento as famílias estão se reorganizando. A reconstrução da escola é a prioridade. Para além de um espaço de educação, a importância simbólica de não abrir mão da organização e coletividade se fazem absolutamente necessárias neste momento. Reocupar o espaço, cumprindo a função social da terra e garantindo que a comunidade continue seu caminho de resistência, com organização e produção agroecológica, reafirma a luta pela vida.
Viemos a público reforçar nosso repúdio e responsabilizar o governo do estado de Minas Gerais e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais com o que venha a ocorrer com estas famílias. Estamos juntas e juntos na defesa destas famílias e para que outras comunidades não sofram este tipo de violência. A ação violenta do Estado impele a ação popular de solidariedade, como medida de apoio em caráter de urgência. Salientamos a importância de mobilização na denúncia nacional e internacional, e no apoio financeiro para que possam reconstruir a escola e estar em segurança neste momento delicado da pandemia que atravessamos.
Apoie a Campanha de Solidariedade para o Assentamento Quilombo Grande!
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Amigos de la Tierra Brasil se solidariza con el Asentamiento “Quilombo Campo Grande”
Acción violenta del Estado impulsa la acción solidaria popular
Amigos de la Tierra Brasil expresa solidaridad con el Asentamiento Quilombo Campo Grande, ubicado en el municipio de Campo do Meio, al sur de Minas Gerais, y rechazo extremo a las violencias sufridas por unas 450 familias en el viernes, 14 de agosto. La acción de recuperación de propriedade con el uso de la fuerza policial comandada por el gobernador del estado, Romeu Zema (Partido Nuevo), y respaldada por el Tribunal de Justicia del estado de Minas Gerais, demuestra la cara más sórdida de la política de muerte del Estado Neoliberal. Además de destruir la “Escola Popular Eduardo Galeano”, la choza colectiva donde vivían tres familias, las plantaciones de maíz, café, pitaya y otros productos que hacen del asentamiento referencia en agroecología en la región, la expulsión de estas familias de la tierra donde han vivido durante más de 20 años los pone en riesgo inminente de contaminación por la pandemia del Coronavirus
Antes de la acción de recuperación de la propiedad, no se había registrado ningún caso de COVID 19 en el asentamiento, aunque el municipio de Campo do Meio tenía 19 confirmaciones de la enfermedad. Cómo concebir la idea que, en medio de una pandemia que ya se ha cobrado más de 110 mil vidas en Brasil, el Estado articule una acción violenta de expulsión de las familias de trabajadores que viven en estas tierras por no haber sido indemnizados con el quiebre de Usina Ariadnópolis, en 1996, y que han trabajado durante décadas sin derechos laborales?
La acción jurídica interpuesta por Jovane de Souza Moreira y su hijo, Jovane Jr., quienes recopilan denuncias de amenazas contra los campesinos, intenta reactivar la planta fallida. La ofensiva comenzó cuando el Gobierno de Minas Gerais publicó un decreto, en 2015, que certifica las tierras de la planta de Ariadnópolis como de interés social a efectos de la reforma agraria. El año pasado, el gobernador Zema revocó el decreto.
Aún en 2017, Jovane puede saldar deudas laborales, después de firmar un contrato con la empresa Jodil Agropecuária e Participações Ltda., con una previción de la recuperación judicial de la empresa para la producción de café. Sin embargo, todavía debe alrededor de 400 millones de reales al Gobierno Federal en concepto de cotizaciones a la seguridad social, derechos laborales e impuestos federales. El argumento es que, de reactivarse, la planta podría generar hasta 400 puestos de trabajo. Ahora, la decisión judicial favorece a los empresarios, a pesar de que el gobierno estatal niega que la acción se lleve a cabo. Al expulsar a estas personas de la tierra donde viven bajo esta lógica, el Estado fortalece la idea de que las poblaciones campesinas deben ser subordinadas y no autónomas.
Según denunció el Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST), la acción violenta va más allá de los caminos legales, ya que el área de 26 hectáreas inicialmente encontrada en el proceso judicial núm. 6105218 78.2015.8.13.0024, que ya estaban desocupadas, se amplió a 52 ha en la última orden del Juzgado Agrario y el operativo policial fue más allá de lo determinado por el amparo, destruyendo la casa y cultivos de siete familias.
La política es de muerte, porque extirpa vidas, extirpa sueños, extirpa la posibilidad de otros futuros posibles además de la lógica coronelista y colonial de la concentración histórica de tierras en el país. En medio de una crisis sanitaria y económica, en lugar de buscar soluciones basadas en la solidaridad y la inclusión popular, el gobierno de Zema comete un delito al ordenar la expulsión de familias con violencia, sin siquiera preocuparse por las posibilidades de destinos que no sea la migración a las ciudades con la perpetuación y profundización del ciclo de pobreza y desigualdad.
En este momento, las familias se están reorganizando. La reconstrucción de la escuela es la prioridad. Además de un espacio educativo, la importancia simbólica de no renunciar a la organización y la colectividad es absolutamente necesaria en este momento. Volver a ocupar el espacio, cumplir la función social de la tierra y hacer que la comunidad continúe su camino de resistencia, con organización y producción agroecológica, reafirma la lucha por la vida.
Vinimos a público para reforzar nuestro repudio y responsabilizar al gobierno del estado de Minas Gerais y al Tribunal de Justicia de Minas Gerais por lo que les ocurra a estas familias. Estamos juntas y juntos en la defensa de estas familias y para que otras comunidades no sufran este tipo de violencia. La acción violenta del Estado impulsa la acción popular de solidaridad, como medida de apoyo de forma urgente. Destacamos la importancia de movilizar denuncias nacionales e internacionales, y brindar apoyo económico para que puedan reconstruir la escuela y estar seguros en este delicado momento de la pandemia que atravesamos.
Apoya la Campaña Solidaria para el Assentamento Quilombo Campo Grande!
Lea más.
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Friends of the Earth Brazil stands in solidarity with the settlement “Quilombo Campo Grande”
We come to public to reinforce our repudiation and hold the government of the state of Minas Gerais and the Court of Justice of Minas Gerais responsible for whatever happens to the families. The violent action of the State impels the popular action of solidarity, as a measure of support on an urgent basis. We emphasize the importance of mobilizing national and international complaints, and financial support so that they can rebuild the school and be safe in this delicate moment of the pandemic that we are going through. Support the Solidarity Campaign for the Quilombo Grande Settlement
Friends of the Earth Brazil stands in solidarity with the Landless Workers Settlement “Quilombo Campo Grande”, located in the municipality of Campo do Meio, south of the state of Minas Gerais, and shows extreme repudiation to the violence suffered by about 450 families on August 14th. The eviction of families with use of the police force – commanded by the state governor, Romeu Zema (of the neoliberal “New Party”) – and supported by the Court of Justice of Minas Gerais, demonstrates the most sordid face of the death policy of the Neoliberal State. In addition to destroying the “Eduardo Galeano Popular School”, the collective shack where three families lived, the plantations of corn, coffee, pitaia and other products that make the settlement a reference in agroecology in the region, the expulsion of these families from the land where they have lived for over 20 years puts them at imminent risk of contamination by the Coronavirus pandemic.
Before the evictions, no case of Covid-19 had been registered in the settlement, although the municipality of Campo do Meio had 19 confirmations of the disease. How to conceive the idea that, in the midst of a pandemic that has already taken more than 110 thousand lives in Brazil, the State articulates a violent action to expel families of workers who lived in these lands for not having been compensated with the bankruptcy of Usina Ariadnópolis, in 1996, and who worked for decades without a formal contract?
The lawsuit filed by Jovane de Souza Moreira and his son, Jovane Jr. – who have several reports of threats against the settlers – tries to reactivate the failed plant of Usina Ariadnópolis. The offensive began when the former Government of Minas Gerais published a decree, in 2015, which attested the lands of the Ariadnópolis plant as a social interest for the purposes of agrarian reform. Last year Governor Zema revoked the decree.
Still in 2017, Jovane could settle labor debts after signing a contract with the company “Jodil Agropecuária e Participações Ltda.”, predicting the judicial recovery of the company for coffee production. However, he still owes around 400 million reais (Brazilian money) to the Federal Government regarding social security contributions and federal taxes. The argument is that, if reactivated, the plant could generate up to 400 jobs. Now, the court decision favors businessmen, despite the state government denying that the eviction would take place. When they expel these people from the land where they live under this logic, the State strengthens the idea that peasant populations should be subordinate and not autonomous.
As denounced by the Landless Workers Movement (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; MST), the violent action goes beyond legal paths, since the area of 26 hectares initially found in the judicial process no. 6105218 78.2015.8.13.0024, which were already unoccupied, was expanded to 52 ha in the last order of the Agrarian Court and the police operation went beyond that determined by the injunction, destroying houses and crops of seven families.
It is a death policy, because it mows lives, mows dreams, mows the possibility of other possible futures besides the colonial logic of historical land concentration in Brazil. In the midst of a health and economic crisis, instead of seeking solutions based on solidarity and popular inclusion, the Zema government commits a crime by commanding the expulsion of families with violence, without even worrying about the possibilities of destinations that let it not be migration to cities with the perpetuation and deepening of the cycle of poverty and inequality.
Right now, families are reorganizing. School reconstruction is the priority. In addition to an educational space, the symbolic importance of not giving up organization and collectivity is absolutely necessary at this time. Reoccupying space, fulfilling the social function of the land and ensuring that the community continues its path of resistance, with organization and agroecological production, reaffirms the struggle for life.
We come to public to reinforce our repudiation and hold the government of the state of Minas Gerais and the Court of Justice of Minas Gerais responsible for whatever happens to these families. We are together in the defense of these families and so that other communities do not suffer this type of violence. The violent action of the State impels the popular action of solidarity, as a measure of support on an urgent basis. We emphasize the importance of mobilizing national and international complaints, and financial support so that they can rebuild the school and be safe in this delicate moment of the pandemic that we are going through.
Support the Solidarity Campaign for the Quilombo Grande Settlement!
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– Visagem? Não tem aparecido visagem na mata, não, moça; é na água, e a visagem toma outras formas, dá sempre jeito de assustar. (Visagem significa, em vocabulário local, “assombração”). Na região do Maicá, sudeste de Santarém, a visagem tem tomado formas bastante concretas, todo mundo vê e se preocupa: é a forma de um porto.
A Embraps (Empresa Brasileira de Portos de Santarém) pretende instalar um porto na Boca do Maicá, entrada do rio que se estica por um braço a partir do Rio Amazonas, retornando ao mesmo rio para então seguir seu fluxo em direção a Macapá (AP) e ao Oceano Atlântico. Suas águas têm rica biodiversidade e banham cerca de 50 comunidades, todas postas em risco caso o projeto do porto avance.
Essa história faz parte da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:
Pois então não é visagem: é a realidade que assombra; e é entre contações de histórias e risadas que Narivaldo dos Santos fala do Estudo de Impacto Ambiental da Embraps – Sabe, eu pesco aqui pirarucu, tambaqui, surubim, pacu, acará, pescada, aracu, carauaci, arauanã, acari, fura-calça, mapará, que é branquinho né… e tem bem mais, porque quando eu falo em acará, tem umas oito espécies só aqui na nossa região: o roxo, o bararuá, o boca-de-pote, o escama-grossa, o tinga, o açu… O tucunaré também: tem o açu, o pinima e o comum, e o surubi cabeça-chata, pinima e pintado e assim por diante. É tanto que a gente pode dizer – Hoje eu não quero esse, aí solta e pega o próximo, é um cardápio rico. Aí no estudo da empresa aparece quase nada de tipos de peixes, e nem de pássaros, jacarés, capivaras, tatus, nem o peixe-boi, que tá em extinção e a gente acha aqui no nosso rio... É, talvez os pesquisadores da Embraps não saibam pescar.
Narivaldo é líder da comunidade quilombola de Bom Jardim, tem 42 anos e não parece: corre rápido pelos troncos de palmeira caídos que servem como caminho até a área onde descansam as canoas e embarcações da comunidade pesqueira – das cerca de 120 famílias, pelo menos 90 pescam no Maicá, algumas para o comércio, outras apenas para a subsistência. Com os passos ágeis, ele faz parecer fácil o que definitivamente não é: mas embora tortuoso, as toras são ainda um caminho, e após cerca de dez minutos de frágil equilíbrio sobre as madeiras chegamos a uma bonita enseada, onde a grama verde encontra as calmas águas do rio, e ali agitam-se com leveza as canoas. A remo, o centro de Santarém está horas distante.
Vez que outra um peixe se aventura num salto, como que a exibir a riqueza do rio – Não precisa nem ir longe pra achar mais que dois tipo de peixe, ri de novo o Narivaldo, antes de voltar a falar sério – Do governo a gente percebe que não estão nem aí pra Amazônia, pros nossos rios. De certa forma, já foi dada a ordem para a construção do porto. Só parou pela ação da FOQS [Federação das Organizações Quilombolas de Santarém], que protocolou o pedido pela consulta prévia junto ao MPF [Ministério Público Federal]. Se depender do governo o porto sai, as comunidades quilombolas querendo ou não: mas o que a gente puder fazer para evitar, vamos fazer. Eles dizem que os impactos podem ser compensados, mas isso não existe: a gente quer viver como vivemos hoje.
A instalação de um porto no Maicá (não só um: existem projetos para cinco portos no rio) vai significar a destruição daquele modo de vida e é um ataque direto às 12 comunidades quilombolas do entorno, a do Bom Jardim entre elas. Em testamento, os antigos donos de escravizados da fazenda local, que não tinham herdeiros, deixaram a terra para as seis famílias que eram exploradas ali. Isso há 142 anos: são quase dois séculos de pertencimento e luta naquele espaço. Agora, em nome do lucro de poucos, tudo pode desaparecer.
Consulta prévia e a Convenção 169 da OIT Contudo, a mobilização popular e jurídica, com o apoio da Terra de Direitos, surtiu efeito e o licenciamento do projeto foi suspenso. A empresa deverá realizar consulta prévia, livre e informada a todas as comunidades atingidas – quilombos, indígenas e pescadores -, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Os estudos da Embraps eram tão rasos que sequer consideravam o componente quilombola, tão relevante naquela área, o que também deverá ser acrescentado em um novo estudo a ser apresentado pela empresa. Embora não tenha poder de veto, a obrigatoriedade da consulta às comunidades atingidas pode ser considerada uma vitória: após a decisão judicial favorável, as 12 comunidades organizadas na FOQS apressaram-se para construir seu próprio Protocolo de Consulta, o que também foi feito pelas comunidades indígenas e pesqueiras impactadas.
A suspensão do licenciamento também atrasa o cronograma do projeto, que é de alto impacto, permitindo maior tempo para a disseminação de informação na região. A previsão da Embraps era de que, somente no primeiro ano de funcionamento, 4,8 milhões de toneladas de grãos de soja poderiam ser exportadas pelo porto instalado no Maicá, grande parte vinda da região Centro-Oeste do Brasil por meio da BR-163. Vejam que também a infraestrutura de escoamento causa impactos aos territórios: caso semelhante ao da rodovia BR-163 é o da Ferrogrão, projeto de ferrovia que ligará a cidade de Sinop (MT) até Itaituba (PA) e que também causará danos ao longo de seu trajeto, em especial em unidades de conservação e em terras indígenas.
Um porto onde não pode haver porto Um fato estranho, porém: no mesmo local onde seria instalado o porto da Embraps, um outro empreendimento surgiu – um posto de combustível para embarcações, à revelia de estudos de impacto ou da participação da comunidade. A empresa responsável é a Atem’s, distribuidora de petróleo que opera no Norte do país. Os danos já são sentidos, em especial na pesca, com o derramamento de combustível e o aterramento da área, que mudaram o fluxo de correntes d’água e de peixes. Em março deste ano, o Ministério Público paraense denunciou a empresa, seu sócio administrador e o engenheiro responsável pelo projeto pela prática de crimes ambientais. Para o órgão, a obra avançava sem a licença do órgão ambiental competente, além de ter sido apresentado um licenciamento divergente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará, que se referia a cargas não perigosas – quando era sabido, desde o princípio, o objetivo de construção e instalação portuária para distribuição de combustível (carga perigosa).
Em resumo, esse é o desenho do cerco do agronegócio aos territórios: expulsão de famílias de suas terras para o plantio da soja, contaminação das terras vizinhas pelo uso do agrotóxico, o transporte dos grãos rasgando territórios – seja via caminhão ou via trem -, sua chegada em portos que destroem os modos de vida tradicionais das redondezas, a exportação para que gere riquezas ao capital internacional. Para resistir a essa engrenagem, é necessária muita união e força. O andamento do projeto da Embraps representa ainda a remoção de famílias e a demolição de casas para a ampliação de vias, a chegada de centenas de trabalhadores de outros estados, uma mudança completa no cotidiano da região: a estimativa é que cerca de 900 carretas diárias passem pelas ruas do bairro Pérola do Maicá no percurso até o porto.
A luta contra a Embraps se dá desde 2013 (nessa linha do tempo, organizada pela Terra de Direitos, veja a cronologia das resistências à construção de portos no Maicá). São ao todo cinco portos planejados para a região, de três empresas – todos voltados para a exportação de grãos e commodities, em especial a soja. Além da Embraps, a construção de outros portos visa favorecer as atividades do Grupo Cevital, da Argélia, que atua no ramo agroalimentar e está envolvido com plantações da região Centro-Oeste do Brasil, e a empresa Ceagro.