Site da Amigas da Terra Brasil, organização ambiental anticapitalista, em defesa da soberania e dos direitos coletivos dos povos
Categoria: Justiça econômica e resistência ao neoliberalismo
Comércio e investimentos, desenvolvimento de fundos financeiros e pressão das corporações são as causas do atual modelo econômico. Este modelo se baseia na crença de que o crescimento econômico e das exportações fará desse mundo um lugar melhor. No entanto, enquanto isso tem sido muito benéfico para as grandes corporações, o modelo exclui e prejudica os mais pobre, além de fazer quase nada para proteger o meio ambiente. O Amigos da Terra se opõe a influência das grandes corporações nas políticas públicas. Questionamos e enfrentamos as políticas neoliberais e de comércio que não levam em consideração as necessidades do povo. Nossas campanhas apontam propostas alternativas de economia de uma forma construtiva, dinâmica e criativa
Pela televisão, ou de um vizinho que ouviu de alguém que ouviu no rádio. Assim as famílias da Vila Nazaré, comunidade na Zona Norte de Porto Alegre, sul do Brasil, descobriram que perderiam suas casas e seriam despejadas para outros cantos da cidade, distantes e longe de onde firmaram suas raízes. Tudo porque a Fraport, corporação alemã que opera dezenas de aeroportos pelo mundo, deseja ampliar a pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho, cujo funcionamento desde o início de 2018 foi cedido à empresa. O contrato vale por 25 anos. Nesse meio tempo, entre aviões e pessoas, a prioridade parece clara: os aviões.
O primeiro vídeo é de março de 2018; o segundo, de setembro de 2019. Nesse meio-tempo, Fraport e prefeitura de Porto Alegre criaram um cenário de guerra na Vila Nazaré, com muita desinformação e falsas promessas para moradoras e moradores.
A Vila Nazaré abriga hoje cerca de 2 mil famílias. São trabalhadoras e trabalhadores desassistidos pelo Estado e que, sem condições financeiras de arcar com os preços dos aluguéis e imóveis em outras partes, ocuparam áreas ociosas da cidade e ali fizeram a sua morada. Vieram, na maioria, de cidades do interior do Estado do Rio Grande do Sul, abandonando o campo devido à falta de oportunidades e perseguindo o sonho de uma vida melhor na capital. Durante mais de cinco décadas construíram casas, desenvolveram comércio local e consolidaram vínculos familiares, de amizade e de vizinhança.
Os planos de extensão da pista do aeroporto, porém, pretendem varrer do mapa a comunidade. E o pior: a remoção vem sendo planejada de forma arbitrária, autoritária e sem garantias de direitos às famílias afetadas. Não há nenhum plano de remoção e as famílias estão sendo divididas: parte das pessoas estão indo para o Loteamento Nosso Senhor do Bom Fim e outra parte para o Loteamento Irmãos Marista, no Timbaúva, longe de serviços básicos de saúde, educação e transporte. Crianças que vão à escola perto da Nazaré perderão o ano escolar; quem trabalha perto da vila poderá perder o trabalho, já que, na maioria, são empregos informais nos quais os empregadores não são obrigados a bancar pelo transporte da trabalhadora ou trabalhador; quem vai ao médico no posto de saúde ao lado da Nazaré poderá perder seu atendimento.
A falta de informação e transparência no processo é preocupante: em nenhum momento as lideranças locais foram ouvidas para que se saiba o que pensam aqueles que serão diretamente atingidos pelas obras. Em audiência pública convocada pelo então deputado estadual Pedro Ruas (PSOL), único momento em que todas as partes envolvidas no processo estiveram reunidas junto à comunidade, representantes da Fraport, ainda que presentes, recusaram-se a sentar na mesa e responder qualquer questionamento dos moradores – que se posicionaram de forma bastante clara: não querem ir para o Timbaúva, local mais distante da Nazaré, nos limites entre os municípios de Porto Alegre e Alvorada.
O que a maioria deseja é o seu direito de permanecer na região onde construíram suas moradias e vidas (e são criminalizados por isso). Não há, basicamente, informações disponíveis e claras para que as famílias que veem ameaçado o seu direito à moradia saibam o que se passa, ou para onde vão, ou para onde seus familiares, amigos e vizinhos vão: não se sabe quem vai para o Nosso Senhor do Bom Fim ou para o Timbaúva, e nem quando, e nem de que jeito. Há, supostamente, um sorteio – mas ninguém sabe dizer como ele ocorre. Uma das responsabilidades da Fraport era ajudar na mudança das famílias: das poucas que já foram removidas (todas para o Loteamento Nosso Senhor do Bom Fim), caminhões levaram apenas parte dos pertences, e os largaram em frente aos prédios sem nenhum auxílio extra; o dinheiro que seria pago para a compra de novos móveis foi pago apenas uma parte, como crédito de R$2 mil em uma loja específica.
A responsabilidade da Fraport, porém, é muito mais ampla: os Ministérios Públicos Federal e Estadual e as Defensorias Públicas da União e do Estado acionaram a empresa na Justiça, reconhecendo a responsabilidade total da empresa no realojamento das famílias, inclusive na construção de uma terceira alternativa para quem não estiver satisfeito com as duas opções dadas até agora – o que, considerando que 85% das famílias seriam despejadas para o Timbaúva, representa a maior parte das pessoas. O caso está na Justiça e, em sua primeira manifestação, a juíza reconheceu o direito das famílias à terceira opção. Contudo, disse que isso deve ser tratado mais tarde, individualmente com quem ficar para trás em meio aos escombros. A juíza sequer exigiu da prefeitura de Porto Alegre e da Fraport um plano de remoção, onde se mostre, com clareza, quem sai e para onde e quando e de que jeito. Com os limites do sistema judiciário local, parece-nos clara a importância de um tratado internacional que regule a atuação das empresas transnacionais, como o Tratado Vinculante a ser construído no âmbito da ONU. Muitas vezes mais ricas e poderosas que os próprios estados, empresas do Norte Global violam direitos dos povos do Sul e atacam seus territórios.
Governantes locais e a empresa Fraport tapam os ouvidos às propostas de urbanização da Vila Nazaré, de melhoria na qualidade de vida na região, o que garantiria que as famílias permaneçam no seu território de origem. Por anos a prefeitura de Porto Alegre abandonou o local, impossibilitando a vida ali, com o intuito de criar o desejo de saída nas famílias: o posto de saúde foi fechado, a escola infantil também; as ruas de barro são esburacados e à primeira chuva as casas inundam com esgoto.
Em seu website, a Fraport garante respeitar a diversidade cultural, ética, social, política e legal de todas as nações e comunidades. O que se vê é o contrário. Não há diálogo nem transparência, ao passo que sobram ameaças de remoções, autoritarismo e desinformação. A cada família removida da Vila Nazaré, tratores vêm logo derrubar as casas; ficam para trás os escombros. Um triste cenário de guerra. Tudo em nome dos aviões. Em nome dos lucros de uma empresa transnacional alemã.
Nos últimos dias, esteve em Porto Alegre uma equipe do canal de televisão europeu “Arte”. Eles estão preparando um documentário sobre a expansão da indústria da aviação no mundo (a aviação é o meio de transporte mais poluente que há!).
Um dos casos eleitos para ilustrar a violência dessa indústria contra as pessoas e o planeta é o das famílias da Vila Nazaré, que estão sendo expulsas da região onde vivem há mais de meio século devido à pressão da Fraport, empresa alemã concessionária do aeroporto Salgado Filho que quer expandir a pista de pouso, ignorando que ali ao lado estão cerca de 2 mil famílias. O objetivo da Fraport é ter uma pista mais ampla para receber, especialmente, grandes aviões de carga (o benefício não será para as pessoas!).
Organizada pela Amigos da Terra Brasil e pelo MTST, em parceria com a Amovin (Associação de Moradores da Vila Nazaré), a visita passou pela Vila Nazaré, onde moradoras e moradores foram ouvidos sobre as diversas violências que sofrem dos poderes privados e públicos interessados em tirá-los dali – recicladores que perderão seu sustento, famílias que serão divididas, crianças que perderão o ano escolar… as violações são muitas!
Os documentaristas também visitaram a Ocupação Povo Sem Medo/Porto Alegre, do MTST, vizinha à Vila Nazaré. Ali, fica explícito que há terra disponível para moradia popular na mesma área da cidade. A expulsão das famílias para longe, portanto, é um projeto político de higienização da região aeroportuária. O Loteamento Timbaúva, por exemplo, um dos locais que Fraport e prefeitura querem levar as pessoas, é na fronteira com Alvorada, município vizinho a Porto Alegre. O local foi visitado também, assim como o Loteamento Nosso Senhor do Bom Fim, outro dos destinos das famílias da Nazaré – ali, mais de uma centena já foi realocada, e falaram dos diversos problemas estruturais dos novos (e pequenos) apartamentos, além das várias promessas não cumpridas pela Fraport – creche, praça, ônibus escolar, pontos comerciais para todos os comerciantes, espaço para reciclagem: nada disso saiu do papel.
Antes, ainda na sexta-feira, foi feita uma entrevista com o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no MPF (Ministério Público Federal), Enrico Rodrigues de Freitas. O MPF, junto com o MP Estadual e as defensorias públicas da União e do Estado, levou a Fraport à Justiça frente às violações de direitos e descumprimento do contrato de concessão do aeroporto, que é bastante claro a respeito da responsabilização da empresa sobre o realojamento das famílias.
O canal Arte tem audiência média de cerca de 1,5 milhão de pessoas. O foco principal é política e sociedade e, por seu nível de aprofundamento nos assuntos, indo aos territórios para ouvir as histórias que contam in loco, o canal é muito respeitado na comunidade europeia. Pois que a história das violações da Fraport se espalhe mundo afora, até que a empresa não possa mais dar de ombros e dizer: “não tenho nada a ver com isso”!
Fotos de Heitor Jardim // Amigos da Terra Brasil. Veja o álbum completo AQUI.
Em audiência pública na Assembleia Legislativa do RS sobre o projeto Mina Guaíba/Copelmi, população gaúcha demonstrou seu descontentamento com a proposta de instalação da maior mina de carvão a céu aberto do Brasil ao lado do Delta do Jacuí, a apenas 16km do centro de Porto Alegre
Ontem à noite (30/09), o auditório Dante Barone, na Assembleia Legislativa do RS, lotou para que a população gaúcha debatesse um tema de grande impacto: a instalação da maior mina de carvão a céu aberto do país ao lado de Porto Alegre, entre os municípios de Charqueadas e de Eldorado do Sul. Essa é, ao menos, a intenção da mineradora Copelmi.
O megaprojeto traria danos socioambientais nefastos, comprometendo a segurança hídrica dos cerca de 4,5 milhões de habitantes da Região Metropolitana de Porto Alegre, com a possível contaminação das águas do Delta do Jacuí e o rebaixamento de dois lençóis freáticos – ao longo dos anos de extração de carvão, metade do volume de água do Rio Guaíba seria desperdiçado. Além disso, a pilha de carvão e de rejeitos elevaria ao ar substâncias tóxicas, levadas pelo vento para as cidades do entorno, alcançando Porto Alegre: ao todo, 30 mil toneladas de poeira seriam lançadas na atmosfera. O carvão é considerado um “lixão químico”, por conter muitos elementos da tabela periódica, inclusive metais pesados como chumbo, mercúrio e cádmio.
A Copelmi pretende extrair 166 milhões de toneladas de carvão (mineral, que não é o mesmo utilizado em churrascos!). Junto, extrairia 2,4 milhões de toneladas de enxofre: e as reações químicas decorrentes disso podem gerar chuva ácida.
Fim da produção agroecológica e desemprego
Na área onde a Copelmi quer instalar a mina está o assentamento da reforma agrária Apolônio de Carvalho, um dos maiores produtores de arroz orgânico da América Latina e de hortaliças agroecológicas que abastecem as feiras da capital. Somados com o condomínio Guaíba City, mais de uma centena de famílias perderiam suas terras produtivas para dar lugar ao carvão e à poluição. Como que por maldade, os despejos das famílias ainda ocorreriam apenas 7 anos após o início das operações da mina, obrigando as pessoas a conviver com a poluição e os tremores das explosões cotidianas – seriam cerca de mil explosões anuais.
Em 20 minutos de fala na audiência, a Copelmi até tentou, mas os argumentos levantados pela empresa não se sustentam. A promessa de criação de empregos, por exemplo, é ínfima: seriam pouco mais de mil postos criados ao longo dos 23 anos de exploração do solo; nos primeiros três anos, seriam apenas 331 vagas. Considerando-se as centenas de famílias de agricultoras e agricultores que perderiam suas formas de sustento, não é exagero dizer que, com a Mina Guaíba, o que se criaria seria desemprego.
Em um contexto de desmonte das leis trabalhistas, de previdência social e da saúde pública, cabe ainda pensarmos sobre a qualidade dos postos de trabalho que seriam criados na maior mina de carvão do Brasil: historicamente, o trabalho em minas causa diversos malefícios à saúde do trabalhador. Pesquisa da UFBA e do Ministério da Saúde revelam que mineiros estão sujeitos a, em nível muito maior que outros trabalhadores: poeiras que causam doenças respiratórias; substâncias químicas associadas ao câncer; e atuam em condições propícias para acidentes de trabalho, comumente graves e fatais. Em entrevita ao Nonada, um ex-mineiro fala: “Eu me aposentei por invalidez. Eu tive uma lesão no coração; arriou três milímetros e meio. Eu tenho carvão no pulmão; lá no hospital, querem me operar, mas se retirar o carvão, eles me matam”.
Mesmo o argumento econômico não se sustenta: fosse a mineração a salvação das contas do Estado, Minas Gerais não estaria na situação que está. Tais megaprojetos contam com investimentos estrangeiros (no caso da Copelmi, Estados Unidos e China) que, incentivados pelas práticas neoliberais do governo Bolsonaro e de seu ministro Paulo Guedes, julgam de seu direito a apropriação dos bens comuns do povo brasileiro. O lucro é para poucos; para a população, fica um território devastado, os hospitais lotados, a poluição e o desemprego.
Em relação à arrecadação de tributos, há uma forte conexão entre mineração e sonegação de impostos – além de um acordo entre governo estadual e Copelmi para desonerá-la do ICMS.
Quem tem medo da participação popular?
Ainda no contexto local, outros agravantes: nessa semana, Eduardo Leite, governador do RS, colocou para tramitação em regime de urgência 480 alterações na lei ambiental do estado. Tal tentativa está sendo convenientemente chamada de “Lei Copelmi”, devido às flexibilizações nas licenças ambientais e ao favorecimento de interesses da mineração e do agronegócio. O regime de urgência, medida que prejudica o debate público do tema, já foi utilizado anteriormente para aprovar a criação de um polo carboquímico no estado, exatamente na região onde hoje se discute a instalação da Mina Guaíba. Aliás, Cristiano Weber, diretor da Copelmi, já admitiu que, sem o polo carboquímico, a Mina Guaíba não se mantém, devido à baixa qualidade do carvão dali extraído: “Se o Polo não sair, essa mina não se paga. Para o mercado atual, nós não abrimos essa mina”, disse em entrevista ao ExtraClasse.
Pela óbvia interconexão entre Mina Guaíba e o polo carboquímico, soa absurdo discutir a licença para um sem falar do outro. Contudo, tal absurdo tem passado despercebido pela Fepam, órgão licenciador do estado. Ainda mais: por ter sido aprovado em urgência (ao apagar das luzes de 2017) e sem o devido debate com a sociedade, o Ministério Público entrou com uma ação para suspender a licença do polo.
Ontem, deputadas e deputados trouxeram a possibilidade da realização de um plebiscito sobre o projeto, com intuito de maximizar a participação popular. Também exige-se a realização de uma audiência pública em Porto Alegre convocada pela Fepam, única forma de que entre oficialmente no processo de licenciamento.
RS: nova fronteira minerária
Sobre outros argumentos de cunho ambiental, a Copelmi garante que utilizaria uma tecnologia capaz de extrair o carvão sem causar qualquer dano ao solo, à água, à qualidade do ar… Tal tecnologia jamais foi vista no mundo, simplesmente porque não é possível. Não à toa países do Norte Global estão deixando para trás o carvão, cujos impactos socioambientais são catastróficos em curto e longo prazo. Em meio a explosões e pilhas de carvão a céu aberto, a poucos quilômetros de áreas de preservação ambiental e da Região Metropolitana, os danos são garantidos. Exemplo disso são os IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) nas cidades carboníferas, que situam-se abaixo da média estadual.
Quem corrobora essa visão são os mais de 50 especialistas agrupados no Comitê de Combate à Megamineração no RS, grupo formado por 120 organizações e que aglutina a resistência ao ataque das mineradoras ao Rio Grande do Sul. Hoje, segundo dados do MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração), são 5.192 requerimentos para pesquisa mineral no estado, com 166 projetos já avançados. Destes, quatro megaprojetos preocupam por sua urgência, um deles a Mina Guaíba/Copelmi. Os outros são:
– em Lavras do Sul, o projeto Três Estradas, da empresa Águia, quer mineirar fosfato para suprir o agronegócio com fertilizantes – para tanto, vai construir uma imensa barragem de rejeitos logo acima de Dom Pedrito, pondo em risco vidas e a biodiversidade do Pampa;
– também no Pampa, em Caçapava do Sul, a Nexa pretende minerar chumbo e zinco ao lado da Bacia do Camaquã;
– em São José do Norte, entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, a empresa Rio Grande pretende minerar titânio e zircônio.
Com o avanço da mineração, toda a biodiversidade do estado estará em risco: povos, bacias hidrográficas inteiras, flora, fauna. Após os crimes de Mariana e Brumadinho, será que algum dia aprenderemos?
Comunidades indígenas não foram consultadas
Outro ponto importante ignorado pela Copelmi em seus estudos de impacto – recheado de erros metodológicos e analíticos – é sobre a questão indígena. As comunidades que seriam impactadas pelo projeto não foram consultadas pela empresa, em solene desrespeito aos povos originários e à convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que reconhece a soberania dos povos sobre seus territórios.
Recentemente, a terra Guadjayvi, que fica em Charqueadas, a pouco mais de um quilômetro da área disputada pela Mina Guaíba, foi atacada por homens armados que diziam ser seguranças da Copelmi – coincidentemente ou não, outras duas comunidades indígenas foram atacadas no mesmo período. Na audiência de ontem, Cristiano Weber ainda cometeu um grande disparate ao, em tom de deboche, tirar uma selfie com uma representante indígena que protestava contra a instalação da mina. O deboche foi logo desmascarado no palco:
Os poucos vereadores da região carbonífera que estiveram presentes à audiência eram vozes solitárias em apoio à mineradora. Em peso, a população gaúcha disse em alto e bom tom que não aceita a instalação de uma mina de carvão ao lado do Delta do Jacuí e a apenas 16km de Porto Alegre. Mostrou ainda a força que possui para combater o ataque do setor minerário que, após destruir Minas Gerais, pretende se enraizar no Rio Grande do Sul. No auditório Dante Barone lotado, frente à uma mesa repleta de autoridades, com deputadas e deputados estaduais e federais, representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública e da Fepam, o recado da sociedade gaúcha foi dado: não queremos a megamineração no estado! Não queremos a extração de carvão à beira do Delta do Jacuí!
Em decisão recente, Justiça reconhece direito à nova opção de moradia para famílias da Nazaré que não aceitarem a remoção para os loteamentos Timbaúva ou Nosso Senhor do Bom Fim. Apesar do reconhecimento de um direito básico, a decisão judicial retrocede em pontos importantes, dando aparência de legitimidade às violações de direitos promovidas por Fraport e prefeitura de Porto Alegre – são inúmeras as denúncias, tanto das famílias que ficaram na comunidade quanto das famílias que já foram removidas para o Nosso Senhor do Bom Fim: ali, falta estrutura, creche, transporte, praça, comércio. Para o Timbaúva, nenhuma família foi ainda, e dizem em alto e bom som que se recusam a ir. O desejo das cerca de 2 mil famílias da Nazaré é de permanecer na região onde construíram suas raízes há mais de 60 anos.
A Amigos da Terra tem acompanhado o processo de remoção da Vila Nazaré e em 2018 outros conteúdos foram produzidos com a situação a época. Confira:
Territórios são visados por projetos de megamineração (projeto Mina Guaíba/Copelmi, entre Charqueadas e Eldorado do Sul); de um condomínio de luxo, na Ponta do Arado, Zona Sul de Porto Alegre; e a outra área, em Terra de Areia, é pública e está ocupada há mais de dois anos.
Apenas no último final de semana, por exemplo, o Rio Grande do Sul registrou três ataques a comunidades indígenas. Os atos ocorreram nas retomadas Guarani Mbya da Ponta do Arado, na Zona Sul de Porto Alegre, e de Terra de Areia, localizada em município de mesmo nome. Também a terra Guadjayvi, em Charquedas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, sofreu ataque.
São territórios em disputa: em Charqueadas, a terra indígena está a pouco mais de um quilômetro da área onde a empresa Copelmi pretende instalar a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil, o projeto Mina Guaíba. O estudo de impactos ambientais da mineradora apresenta diversas falhas e, entre as mais evidentes, está o não-cumprimento da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esta regra internacional reconhece a soberania dos povos sobre seus territórios ancestrais e obriga os empreendimentos a fazerem uma consulta prévia e informada com as populações tradicionais atingidas por seus projetos – o que a Copelmi ignorou. A área é pública e foi concedida pelo Estado do RS para usufruto dos indígenas. Segundo o cacique Claudio Acosta, na sexta-feira (13/09), um grupo de homens se identificou como “seguranças da Copelmi” e proibiu a circulação dos indígenas em suas próprias terras, ameaçando que, se o fizessem, corriam o risco de serem alvejados por tiros de arma de fogo.
Já a retomada da Ponta do Arado, no bairro Belém Novo, zona sul de Porto Alegre, é uma área disputada pela Arado Empreendimentos, que pretende construir no local duas mil casas em três condomínios de luxo. O sítio arqueológico no local comprova que o território é ancestral indígena; o caso está na Justiça e, por ora, os Mbya Guarani permanecem ali – apesar das constantes ameaças: seguranças privados cercaram as famílias da retomada e mantém vigilância permanente, dificultando mesmo o acesso à água. Na tarde do último domingo (15/09), tiros foram dados em direção às barracas do acampamento, assustando as famílias, em especial as crianças: “Não atiraram contra pessoa, mas assim… por cima dos barracos, né, dos lados. Todo mundo fica assustado, as crianças tudo com medo e chorando”, relatou o cacique Timóteo Karai Mirim Guarani Mbya.
Em Terra de Areia, homens não identificados se apresentaram como policiais e disseram que receberam denúncia de invasão; a área, porém, é pública, e há cerca de dois anos os indígenas estão no local. O ataque ocorreu na madrugada de sábado (14/09) para domingo (15/09). Homens fortemente armados com fuzis e pistolas invadiram a comunidade, ameaçaram a todas e todos, ordenando o abandono da área. Ainda invadiram as casas e as reviraram. Mesmo se apresentando como policiais, nenhum deles apresentou identificação e não portavam mandado judicial para justificar a abordagem. Ao ser feito o Boletim de Ocorrência, as polícias Civil e Militar afirmaram não terem recebido qualquer ordem neste sentido em relação à comunidade indígena do local.
Em um único final de semana, em um intervalo de poucas horas, três comunidades indígenas são atacadas no Rio Grande do Sul. Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), fatos semelhantes foram denunciados em outras regiões do Brasil. Já não é mero discurso de ódio: este está materializado. São ações de ódio, violência e intimidação que não podem passar incólumes. Cabe às autoridades a investigação dos responsáveis diretos e de seus mandantes, além, claro, da garantia da segurança das famílias indígenas.
Ontem (17/09) a Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha (PR) teve seu processo de reintegração de posse barrado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) em Porto Alegre. Outro recurso votado trata da decisão que obriga o Estado brasileiro a destinar recursos ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a titulação da integralidade do território, que foi parcialmente titulado em maio desse ano – apenas 225 dos 2,9 mil hectares foram reconhecidos pelo Incra como de direito da comunidade. A vitória de ontem é parcial, pois cabem ainda recursos, e o Quilombo segue resistindo. Estiveram presentes, somando forças, os 7 Quilombos Urbanos de Porto Alegre e a Frente Quilombola RS, além de organizações como Terra de Direitos, CIMI e Conaq.
Aqui, links de matérias que a Terra de Direitos já produziu sobre a situação da comunidade:
Como o agronegócio e o mercado financeiro lucram com a devastação da maior floresta tropical do mundo
Texto, fotos e vídeos: Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil
Com os pés sobre a cinza do que antes era floresta, o Pajé Isaka Huni Kuin expressa sua tristeza. “Eles não sabem a medicina que tem dentro da mata. Pensam que não serve, que é floresta só, mas tem muito valor. Dela tiramos a madeira de lei que a gente constrói a nossa casa. Quando algum filho fica doente, eu já sei como vou tratar, sei qual medicina devo buscar. É a nossa farmácia viva. Se acabar com a floresta, a riqueza que eu tenho conhecimento se acaba, por isso que é triste para mim todo esse fogo”.
O Pajé Isaka, 80 anos, estava almoçando com sua família quando sua esposa ouviu os estalos das folhas queimando. Saíram correndo com os facões para tentar impedir o avanço do fogo sobre a mata, mas não tiveram sucesso. Com a chegada dos bombeiros, conseguiram evitar que as casas fossem destruídas. A plantação de mamão, banana, açaí, entre outras plantas foram consumidas. Tatus, tartarugas e macacos foram atingidos.
Queimaram a floresta que é farmácia dos Huni Kuin. Suspeitam de fogo criminoso, ação que compromete a vida do pajé Isaka e de sua família. Para ele, Isaka, um feito de maldade.
A 250 km dali, já no Estado do Amazonas, no município de Boca do Acre, a floresta do povo Apurinã também ardeu. Dia 13 de agosto, o Dia do Fogo, 600 hectares da Terra Indígena Val Paraíso foram queimados. No territórios dos Apurinãs, o fogo, além de maldade, é uma das etapas de um processo muito bem articulado de grilagem de terras da união. O Cacique Antônio José denuncia este esquema que, na Amazônia Legal, não é exclusivo da terra do seu povo. Atinge diversos povos indígenas e terras da União. Em um roteiro de destruição e lucro, os invasores desmatam, vendem as madeiras de lei, tocam fogo na mata que resta, cercam, passam a criar gado na área, vendem a carne e depois, ainda, plantam soja, milho ou arroz. Se não bastasse, após as queimadas, este mesmo setor do agronegócio que lucra com um mercado internacional ainda tem a possibilidade de seguir ganhando dinheiro com as campanhas ambientais que pretendem “salvar” a Amazônia.
A luta dos caciques Apurinã contra a grilagem e pela demarcação de suas terras
Foram 45.256 focos de fogo detectados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) na Amazônia de janeiro a agosto de 2019. 20% desse fogo aconteceram em florestas públicas que ainda não foram destinadas a nenhum uso: parque, reserva, território indígena. Entre elas, a Terra Indígena Val Paraíso. Em 13 de agosto, o Dia do Fogo, conforme denuncia o Cacique Antonio José, um grupo de grileiros queimou 600 hectares de florestas da área reivindicada pelos Apurinãs.
Ao cruzar a quinta porteira, finalmente estamos perto da entrada da mata da Terra Indígena Val Paraíso, à beira do Igarapé Retiro. O Cacique Kaxuqui, que é primo e companheiro de luta de Antônio José, desce da moto. Antônio nos convida a descer do carro, porque eles gostariam de falar. De um lado da cerca estamos nós, do outro, incontáveis cabeças de gado, que se espalham pelos cinco lotes que acabamos de atravessar. Os caciques nos explicam o que vemos ali. “Devastaram nossas terras, coisas que nós vínhamos preservando de 100 anos atrás. Onde nasceu vovô, meu bisavô, meus tios tudo”, lamenta Kaxuqui, 58. Antônio José continua: “Eu tenho 54 anos, nunca sai daqui. Esse pessoal, esse que se diz dono daqui onde estamos pisando agora, não é daqui não, é descendente de português. E nós que somos indígenas, que moramos aqui desde sempre, que comprovamos, estamos assim sem direito à terra”.
Escute a denúncia dos caciques Apurinãs:
Os Apurinãs reivindicam a demarcação da Terra Indígena Val Paraíso desde 1991. O processo se encontra nas mãos da FUNAI. Os indígenas aguardam há anos a finalização dos estudos de identificação e delimitação da área, onde vivem 46 pessoas de 7 famílias. No início do processo, os Apurinãs reclamavam a demarcação de 57 mil hectares. Mesmo com o processo correndo na Justiça, suas terras passaram a ser invadidas, terem a mata derrubada, transformadas em campo e, posteriormente, fazenda de criação de gado. Há um tempo atrás, reduziram a reivindicação para 26 mil hectares, em uma tentativa de facilitar a demarcação. “Fizemos um acordo com os fazendeiros. O que já é campo é deles, o que é mata é nosso. Mas mesmo assim eles continuam invadindo e brocando a floresta”, conta Antônio José. Brocar é o verbo que os Apurinãs usam para descrever a ação de quem derruba a mata. “Não é por falta de informação não. A gente tem tudo documentado. O IBAMA(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), o Ministério Público, o Terra Legal tem o conhecimento que isso aqui foi reivindicado enquanto tinha mata, enquanto estava intacto. Só existe essa mata que vocês estão vendo aí na beira do igarapé porque a gente vem tentando preservar ela de 91 até agora”.
Para Lindomar Dias, do Conselho Missionário Indigenista, estas articulações de tomada de território se dão há muito tempo. No caso dos indígenas, acontece desde sempre. “Efetivamente o Brasil, como país, nasce espoliando e roubando território dos povos originários. E trata esses povos como se não fossem originários. Tratam essa gente como se fossem estrangeiros, quando na verdade são donos. Adquiriram esses direitos não comprando os territórios, mas apenas vivendo, se confundindo com o território, se fundindo com ele”. Para Dercy Teles, tradicional seringueira do município de Xapuri, quem também escutamos na passagem pelo Acre, os ataques são movimentos de extinção das populações que dependem da floresta. “Para quem não contribui para o desenvolvimento do capitalismo, não é de interesse a existência sobre um território”, defende.
Indignados, os caciques apontam para a direção de cada área desmatada ou terra grilada. Antônio José assinala cada responsável. “O Joaquim derrubou 500 hectares por 2 mil, mais 500 por outros 2 mil e venderam para o Brana. Isso atrás do Igarapé Preto, dentro da nossa reivindicação. Tudo isso eles sabendo que é uma Terra Indígena. E hoje quem é o dono é o Brana, um cara lá de Rio Branco. O Bezinho derrubou 392 hectares da Fazenda Riachão extremando com a fazenda Cruzeiro, à beira do Igarapé Preto, onde também é dentro da nossa reivindicação. O Júnior do Betão já comprou. Isso nós temos tudo no mapa”.
Pecuária ostensiva em terras da união
São muitos nomes na ponta da língua, um vinculado ao outro. Uns são responsáveis por entrar e cortar as árvores. Outros por grilar a terra, cercar, encaminhar alguns papéis. Quando baixa o “banzeiro”, como chama Antônio José o burburinho pela invasão da terra, outro vem e compra. E aí coloca gado, o negócio mais comum da região. Segundo o IBGE, Boca do Acre tem o segundo maior rebanho de gado do estado do Amazonas. Perde apenas para o de seu vizinho, Lábrea. Juntos, os municípios contam com 510 mil cabeças de gado, 38% do rebanho da Amazonas. São 6,4 bois para cada habitante.
O principal destino desse gado é o frigorifico Frizam/Agropam, em Boca do Acre. De acordo um levantamento do Idesam, de 2013, o matadouro respondia por 31,3% do total do abate no estado do Amazonas.
Boca do Acre faz parte do Arco do Desmatamento, região que a fronteira agrícola avança sobre a mata nativa da Amazônia. O município possui 372 áreas embargadas pelo IBAMA. Isso acontece quando o fiscal do órgão constata que um pecuarista derrubou floresta sem autorização ou não está respeitando a área de reserva legal da propriedade. Com a fazenda embargada, fica proibida a criação de gado. A pecuária ocupa 80% da área desmatada da Amazônia Legal, segundo o relatório de 2015 da Procuradoria do Meio Ambiente do Ministério Público Federal. Quase 40% das 215 milhões de cabeça de gado do país pastam na região amazônica.
Em Boca do Acre, mesmo com o número significativo de propriedades embargadas, o movimento no Frizam/Agropam não reduziu nos últimos anos. Isso porque o gado de fazendas notificadas chegava ao estabelecimento com documentado falsos. Os animais são registrados como originário de propriedade que não estavam proibidas de comercializar. Segundo o gerente do frigorífico, nada pode fazer para fiscalizar estas fraudes.
Acontece que o Frizam/Agropam tem como acionista principal o pecuarista amazonense José Lopes, que possui nove fazendas embargadas em Boca do Acre. Segundo o jornalista Leonildo Rosas, do Blog do Rosas, José Lopes é o maior pecuarista do Amazonas, dono de mais de cem mil cabeças de gado. O “rei do gado”, como é conhecido, já foi tesoureiro de campanhas eleitorais e o dinheiro público tem forte influência no crescimento do seu império da carne. Lopes trabalhou nas campanhas do Senador Eduardo Braga (PMDB) e do governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD). Também atuou na campanha do governador Amazonino Mendes (PFL), que administrou o Estado de 1999 a 2002. Dentro desse período, no ano 2000, a Ciama (Companhia de Desenvolvimento do Estado do Amazonas), empresa pública do Governo do Amazonas, que tem entre suas finalidades promover o desenvolvimento ambiental no âmbito estadual, investiu mais de R$ 14 milhões na sociedade com o frigorífico Frisam/Agropam. Assim, a Ciama se converteu em uma das quatro sócias do frigorífico.
Não para por aí: na ata da assembleia geral ordinária do Frisam/Agropam de 03/06/2013, da qual o portal Amazônia Real teve acesso, consta que o frigorífico tem quatro sócios: além de José Lopes e a Ciama, completam a lista José Lopes Júnior e Alessandra Lopes.
Estes últimos, filhos de José Lopes, tem em seus nomes as terras com gado, cercas e porteiras, sem mata, que ultrapassamos para entrar na Terra Indígena Val Paraíso, do povo Apurinã. “O José Lopes registrou uma terra aqui que nós vinha vovô mais eu lá do Bom Lugar até aqui buscar peixe no Poção do Arroz”, lembra Antônio José. “Aí era bom de peixe. Em 2010 o Lopes registrou esta área como Porão do Arroz, ficou como dono. Nós que abrimos isso aí, o avô do Kaxuqui que morava aí na beira. E nós morando aqui há tantos anos e ninguém nos reconhece”. Kaxuqui completa: “Nunca vendemos um pedaço de terra. Pelo contrário. Queremos morar, dar o direito para nossos filhos, para os nossos netos. O que queremos é o que é nosso. O que queremos é que respeite a nossa cultura, o nosso direito e o nosso modo de viver. A gente não quer fazenda, não quer gado, para nós sermos reconhecidos a gente não precisa ser fazendeiro”.
Em um dado de 2013 do IBAMA, as multas para os crimes ambientais expedidas em nome de José Lopes somam mais de R$ 3 milhões, resultado da destruição de 955,14 hectares de floresta nativa da Amazônia Legal. Recentemente, o pecuarista foi preso em três operações da Polícia Federal. Em maio, na operação Ojuara, foi denunciado pelo Ministério Público Federal, acusado de ser uma entre 22 pessoas envolvidas em crimes ambientais. Os acusados invadiam terras da União, comandavam desmatamentos e contratavam policiais militares para fazer a proteção das máquinas e das áreas de desmatamento. Entre as ilegalidades, uma diligência falsa do IBAMA do Acre em setembro de 2017, serviu para alertar os fazendeiros sobre uma operação nacional do IBAMA no mês seguinte. Nesta época, o superintendente do órgão era Carlos Gadelha, que também foi denunciado pelo MPF de estruturar empresa para oferecer defesas administrativas e judiciais para os desmatadores do sul do Amazonas contra ações do próprio IBAMA. Em 25 de junho, José Lopes foi solto por decisão da desembargadora Mônica Sifuentes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que substituiu a prisão preventiva por medidas cautelares. Ele voltou a ser preso em 30 de julho na operação Maus Caminhos. José Lopes é acusado de receber R$ 1 milhão em propina do médico Mouhamad Moustafá, apontado como líder da organização criminosa que desviava recursos da saúde do Amazonas através do Instituto Novos Caminhos (INC). Além da Maus Caminhos, o pecuarista ainda responde por crimes ambientais no comércio ilegal de madeira detectados pela operação Arquimedes. “O cara é preso e ainda tem todo o direito de criar o gado e vender, de dentro de uma terra da União. E continua derrubando e mandando derrubar. E nós que estamos aqui preservando não temos o direito à nossa terra”, desabafa Antônio José.
Para completar, a grande parte da carne de gado que passa pelo Frizam/Agropam sequer é usufruída pela população da região. Funcionários do frigorífico revelam que cerca de 20 carretas por mês partem com destino a outros países. China, Japão, Estados Unidos são alguns citados. “Aqui no Amazonas a gente não come carne do boi macho, só da vaca. Os garrote bom, a carne boa tudo vai para fora. Todo esse gado que causa esse prejuízo aqui no Amazonas não é para consumo dos amazonenses. Sim para estrangeiros, que acabam fornecendo o recurso para esse desmatamento”, reclama o Cacique Antônio José.
José Lopes e sua família é um sobrenome a quem os Apurinã resistem. São vários outros. A disputa é desleal, além dos fazendeiros, os indígenas enfrentam a omissão do estado. Seja na negação de direitos básicos, como saúde, energia, educação, um dos fatores que faz com que parentes tenham que se afastar da vida na mata. Seja pela ineficiência das instituições públicas impedirem e punirem os invasores de terra. Seja por aqueles que usam indevidamente o Estado para propagar o seu discurso. Ou usam seu discurso para chegarem até o Estado. É o caso do presidente Bolsonaro, mas também é caso do Francisco Sales de França, o Mapará. Vereador de Boca do Acre, é um dos grileiros e desmatadores da Terra Indígena Val Paraíso. Mandou derrubar árvores em 2017 e 2018. Segundo Antônio José, são 200 hectares desmatados por Mapará. O político assume a ação. “Ele se sente fortalecido por ser vereador”.
No dia 19 de agosto, o cacique Apurinã gravou vídeos de denúncias na margem do Igarapé Preto. No outro lado da água, o barulho da motossera e dos troncos caindo. Antônio José narra. “Você pode ouvir a zuada do motor dele. Só queria mostrar isso ao MP, à Funai, de como está sendo destruída a mata da TI Val Paraíso”.
Segundo o Cacique, a maior derrubada do ano na Terra Indígena, 600 hectares, teve o incentivo do parlamentar de Boca do Acre. Mapará se elegeu dizendo que vai legalizar as terras invadidas, como as de Val Paraíso. “Todo mundo sabe que vereador não tem capacidade de regularizar terras federais”, rebate Antônio José. Mas a gente também sabe que os discursos forjam legalidades.
Nossa intenção ao visitar os Apurinãs, além de escutar os caciques e prestar solidariedade, era registrar essa “brocada” de 600 hectares. No dia seguinte, sairíamos ao amanhecer. Antes de deitarmos nas redes recém penduradas, Antônio José pega a pasta que carrega consigo. Nela, folhas de ofício com imagens de satélite dos últimos anos da área reivindicada pelos Apurinãs. Aproxima-se da lamparina de querosene, com os mapas na mão. O cacique Antônio José vai descrevendo a localidade e quantos hectares foram desmatados no último ano, repetindo o gesto de horas antes, ao lado da cerca. Desta vez, aponta as derrubadas no mapa. Também indica, indignado, quem é o responsável por cada “brocada”. Já são milhares de hectares desmatados dentro dos 26 mil reivindicados pelos Apurinãs.
O INPE é a fonte de informações dos mapas, elaboradoras com o auxílio da FUNAI. Na parede da OPIAJBAM (Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Boca do Acre), local em que encontramos Antônio José, cartazes afixados indicam o legado de um curso recente. Os indígenas estão estudando o uso de um software de cartografia, a fim de emitirem os mapas de forma autônoma.
A cartografia é uma ferramenta de luta pelo direito fundiário e também contra o desmatamento. Vale lembrar que quando o tema das queimadas veio à tona, o Presidente Bolsonaro sinalizou como seu governo lida com a ciência ao demitir o diretor do INPE, Ricardo Galvão, no dia 2 de agosto. Quando divulgado um estudo do aumento das queimadas na Amazônia (68% em relação a julho de 2018), Bolsonaro declarou que o Instituto estaria a serviço de alguma ONG e que os dados não estariam corretos. Após Ricardo rebater as declarações de Bolsonaro, foi exonerado do cargo. A demissão foi alarmante para o meio científico e para os que trabalhavam na situação das queimadas na Amazônia. Alguns dias depois, questionado sobre a exoneração e a relação com o Ricardo Galvão, respondeu: “Não peço, eu mando”.
O comércio de madeira ilegal
No dia seguinte, partimos para quase 3 horas de caminhada. Nosso destino: os 600 hectares queimados no Dia do Fogo, 13 de agosto.
Atravessamos várias vezes o igarapé, passamos por locais que já são campos e por dentro da mata. No meio do caminho, uma pausa. De cima do que resta do tronco de um cedro recém cortado, Antônio José relata: “dia 19 de agosto passamos aqui para ver esta derrubada de 600 hectares que estamos indo ver e isso daqui estava intacto”. Segundo o Cacique, os madeireiros entram na mata bruta, derrubam, tiram a madeira de lei, como o Cedro, a Itaúba. Depois derrubam a mata por cima dos troncos. “Para a gente não ver o tipo de madeira que eles tiraram”. No próximo ano, eles vão queimar com a intenção de limpar e aproveitar o restante da madeira que ficou. A partir daí, começam a formar o pasto para a criação de gado. “Este é o modelo que eles usam para invadir e grilar as terras indígenas que a gente protege. Isso aqui faz 5 dias, está tudo derrubado, e o IBAMA está aí em Boca do Acre, mas eles continuam derrubando”, denuncia o cacique.
As madeiras que saem desta área são cortadas com motosserra no verão, segundo Antônio José. No inverno, os madeireiros entram pelo igarapé, de balsa, carregam a embarcação e levam até o porto de Boca do Acre no entardecer. Ali, como relata o cacique, os criminosos tem um esquema para colocar as madeiras em um caminhão baú, que viaja já à noitinha até Rio Branco. A carga passa pela estrada como se fosse um frete qualquer. Na capital do Acre, a madeira é “esquentada”. Essa é a expressão usada para designar o ato da madeira ser selada como se fosse oriunda do sistema de manejo florestal acreano. “É assim que eles fazem a retirada de madeira indígenas para exportação dentro da terra indígena, dentro das terras da união. Toda madeira que é tirada do Amazonas é ilegal”.
Assista a denúncia de Antônio José:
Após o relato de Antônio José, seguimos pela mata, escutando ao fundo o ronco do motor da motossera. Caminhamos mais um tanto e, com dificuldade, o mato derrubado vazia uma barreira complicada de atravessar, chegamos à área queimada. Assim como no território Huni Kuin, onde havia verde, há cinza. Troncos pretos caídos. Tocos serrados, também carbonizados.
Alguns pequenos arbustos de áreas que resistiram ao fogo e a macega de mato derrubado dificultam a visão no horizonte. No entanto, subindo em algum tronco, olhando para um lado e para o outro, não se vê copa de árvores em pé nas imediações. Uma faixa de destruição. Antônio José denuncia: “Eles pagam a queimada e depois assumem, dão prosseguimento na retirada de madeira, semeando planta e criando gado. Está é a forma de eles grilarem as terras da união da Amazônia. Aqui em Boca do Acre funciona desse jeito. Ninguém tem documento de assentamento de INCRA. E todo mundo se apossa, todo mundo diz que tem. Faz financiamento, faz Cadastro Ambiental Rural e ficam como proprietário”. Os caciques falam indignados, focados na oportunidade de denúncia.
Tanto na estrada para os Huni Kuin (Rodovia AC-90, a Transacreana) quanto para os Apurinã (BR-317) e para Xapuri (a mesma BR-317) impressiona a quantidade e extensão dos latifúndios de criação de gado. Onde antes era floresta, é campo. Uma imensidão de capim. Restam em pé somente algumas castanheiras, árvores protegidas por lei. Algumas esplendorosas, vivas. Mas muitas já mortas, aniquiladas pouco a pouco pelas diversas queimadas que foram submetidas. Se mantém em pé porque, mesmo mortas, resistem por anos.
Nos últimos 600 hectares desmatados na Terra Indígena Val Paraíso, nem as castanheiras escaparam. Segundo Antônio José e Kaxuqui, derrubaram 150 exemplares da espécie. Sentado no que resta do tronco de uma das que ainda não foi removida, Kaxuqui conta que os Apurinãs coletavam cerca de 500 latas de castanhas naquele local. Uma de suas principais fontes de renda. “Essa aqui é uma castanheira que nós tirávamos o sustento da nossa família. Hoje ela está aqui queimada. Essa aqui não volta mais para esta terra. A terra que nós preservava, a terra que nós precisava está desse jeito, destruída pelos fazendeiros”, lamenta Kaxuqui.
Na estrada, vimos carcaças sendo consumidas por urubus. Troncos de vários metros de diâmetros em cima de caminhões. Escutamos sobre a ameaça que os caciques sofrem. No entanto, as castanheiras fossilizadas pelo fogo foram o símbolo, os monumentos mais melancólicos da destruição que assola estes territórios.
Os Apurinãs resistem, cercados pelo olhar ganancioso de jagunços, fazendeiros e do mercado internacional. Kaxuqui já recebeu propostas para deixar a área. Ao rejeitar, passou a ter um drone sobrevoando por dias em volta da sua casa na mata. Antônio José já teve a sua morada queimada e não anda mais por qualquer lugar. “Sou ameaçado, sou mal visto por defender minha terra. Não vivo mais como vivia antes. Na cidade, me olham como se eu fosse mau para o povo, mau para o mundo. Não entendo isso”. São 54 anos vivendo no mesmo lugar, mas o respeito não é regra. “Nasci aqui no Bananal, continuo vivendo, defendendo as mesmas terras. Os que me consideram são os meus amigos antigos, de 50 anos para frente. Esta meninada nova de 20 anos, 35 anos acha que eu estou atrapalhando o desenvolvimento. Porque eles querem estar aqui derrubando, ganhando dinheiro. Não é isso que a gente quer, a gente quer que todo mundo cresça, mas respeitando o direito de cada cal”. Já solicitou na 6ª Câmara Federal de Brasília escolta policial, que foi concedida. Mas a polícia local não possuía contingente para suprir a demanda. Sugeriu que ele deixasse o local. “Não tenho como sair daqui, meu conhecimento está aqui”.
O que acontece com os Apurinãs não é caso isolado. Pelo contrário, é um ataque sistemático que acontece contra os povos indígenas e seus territórios em toda Amazônia e pelo Brasil. Nesta ofensiva, são diversos os atores.
Estes são alguns exemplos dos que os indígenas e outras comunidades tradicionais enfrentam no Brasil. Abaixo, alguns acontecimentos de violência direta, só dos últimos dias, em setembro:
No dia 4 de julho, três casas foram arbitrariamente demolidas no Território Tradicional Caiçara do Rio Verde/Grajaúna, localizado na região do Vale do Ribeira, entre São Paulo e Paraná. Sob ordem do governo do Estado de São Paulo, as famílias caiçara foram despejadas de seus territórios, sem oferta de qualquer alternativa habitacional pelo Estado.
As autoridades justificam as demolições e a expulsão da comunidade pelo fato de as famílias estarem vivendo em uma área de Unidade de Conservação de Proteção Integral. Contudo, as famílias tradicionais caiçaras, ancestralmente presentes na região, são as responsáveis pela conservação da rica biodiversidade existente ali. O local em que vivem foi estabelecido como “Estação Ecológica Jureia-Itatins” e há anos é alvo de inúmeros conflitos socioambientais, que injustamente recaem sobre as famílias.
Caiçaras são povos tradicionais remanescentes de indígenas, negros e colonizadores europeus, que habitam a costa do sudeste do Brasil
Este modelo dos parques estaduais, que foi implementado de maneira autoritária pelo governo do Estado, ocorre sem diálogos com as comunidades tradicionais caiçaras, negando a existência dos povos no local. Cabe destacar que a ordem de expulsão promovida pelo governo de São Paulo viola princípios e direitos constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos consolidados nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, na Convenção 169 da OIT, no Decreto 6.040/2007, no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, na Lei da Mata Atlântica – que prevê a utilização de recursos naturais por comunidades tradicionais – e na Lei Estadual nº 14.982/2013, que garante expressamente o direito de permanência e existência digna das famílias caiçaras em qualquer área da Jureia, inclusive no Rio Verde/Grajaúna, região em disputa.
Modos de vida tradicionais ameaçados
As famílias destas comunidades estão na região há várias décadas, mantendo uma relação de convivência coletiva, incluindo a obtenção do sustento material com práticas tradicionais de preservação e sustentabilidade ambiental. A violação de direitos coletivos e dos povos contra as comunidades caiçaras ocorre há muitos anos: muitas famílias estiveram reféns da sobreposição de Unidades de Conservação de Proteção Integral, sendo proibidas de manter seu modo tradicional de vida. As dificuldades para continuar vivendo na região, advindas das medidas restritivas para proteção ambiental, levaram e ainda levam muitos moradores a saírem de suas comunidades e irem para os centros urbanos mais próximos, ocupando a periferia das cidades.
As famílias expropriadas de seus territórios relatam que “o que está em risco são as nossas famílias, a nossa cultura caiçara, o nosso modo de vida, rico em etnoconhecimento e, além de tudo, a natureza, com a qual a nossa tradição se formou. Natureza que mais uma vez volta a estar sob a sombra dos grandes interesses econômicos e políticos”.
Ainda é possível encontrá-los; ação predatória de empresas e governos, porém, ataca diretamente seu modo de vida e subsistência. Resultado transformará – em um futuro não tão distante e não tão distópico – a pesca artesanal em prática esquecida de um outro tempo. É mesmo verdade: o que o capitalismo não engole ele destrói.
Um outro tempo de fato, e sobre isso algumas explicações são possíveis: o barco não vai rápido, desapressado riscando a superfície líquida; e há o horizonte, veja que o homem não soube ainda destrui-lo sobre as águas: e o horizonte permite que se veja de longe o destino a chegar; efetua-se então uma lenta e respeitosa aproximação, onde também aquilo que é destino vê o visitante se acercar, em um balanço que deseducadamente ignora o enjoo causado ao tripulante inexperiente – tum tum tum – tum tum tum martela o motor em seu esforço de empurrar a embarcação água afora. Ora! Afronta absoluta às regras máximas do Tempo Vigente a comandar as engrenagens dos relógios do Agora que grita – Sempre mais rápido! – Sempre mais intenso! – Sempre mais! E ergue-se firme a voz da pescadora – Não no mar e não nos rios, responde – E acalme-se, respire fundo se ainda souber como, não espante você meus peixes com a sua pressa e a sua sujeira.
Flutuando, o tempo se expande, dilata-se o espaço: a relação com o que há na volta e com o que há dentro não é de mero uso, mas de pertencimento: e já não falamos de coisas, de objetos, de um algo qualquer palpável e possível de delimitar por cercas e arames farpados. Que não é terra sabemos, é água; contudo é mais: é território. Pescadora-pescador-peixe-marisco-lula-camarão-profundeza-água-alga-e algo mais que havia já ali antes dos tubos e dutos enferrujados, antes do óleo sugado e derramado, antes das plataformas cuspidoras de chamas, antes dos desajeitados navios estacionados: um ancestral equilíbrio estabelecido desde Tempos Desmemoriados e exatamente por isso não manipulável por quem se alimenta da urgência: não haverá medida de compensação possível quando o desequilíbrio imposto pela avidez do lucro arruinar o futuro da paz. E diz-se isso não só por teimosia, não, e nem é mágica ou profecia clarividente: é apenas que não há maneira de o homem, pequena parte de um universo complexo, rebalancear a multiplicidade das vidas que são bem mais amplas que a sua sozinha. Simplesmente foge às suas capacidades, embora saibamos não ser a humildade um ponto forte seu, e assim repetem-se e repetem-se as promessas vazias de pretensas indenizações pelos estragos causados, como se de alguma forma fosse possível compensar a morte. O homem se vê fora de seu ambiente, supremo, quando na verdade está dentro e é parte – constatação que parece óbvia se aqui estamos em meio a tudo mais o que há: e faz-se parte importante quando é ele – e falamos deste tipo específico de homem – quem espanta o peixe, impossibilita e proíbe a pesca e assim extingue, ou quase extingue porque se resiste, a pescadora e o pescador artesanal. Talvez seja mesmo da essência do maior se alimentar do menor: pois mostre-se a estes homens toda a sua pequeneza.
Ora: o capital não deixa nunca de correr e de usar e de gastar e de desperdiçar para que possa fazer sempre mais e gastar e usar sempre mais e desperdiçar tudo outra vez para então recomeçar seu ciclo doente, e o que produz em sua sede insaciável de ter sede é nada além da morte: talvez a prestações, talvez fantasiada de vida quando apela às paixões rápidas – e ainda assim a morte. Um sistema que não deixa de reproduzir a si jamais, canibal viciado em seu próprio consumo, engole tudo a sua volta para depois vomitar a mesma pasta acinzentada que constrói os horizontes das cidades modernas – não no mar, já disse! – e nem nos rios!, retumba forte a voz das águas: outro tempo e outro espaço se estabelecem ali, sublime resistência. Desafia-se o apocalipse neoliberal lembrando a vida de outra alternativa, dá-se outra chance: há nelas e neles, nas mulheres e nos homens do mar, outra forma de existir. Portanto escute! – antes dos mares terminantemente contaminados e dos rios secos, antes que restem só as pedras e os minérios e os óleos e os gases e a ferrugem e a poeira e as doenças, antes que já não tenha volta: olhe ao redor. Que o sol vai se pondo já, mas logo amanhece. Veja os peixes que ainda saltam e as redes que costuradas à mão ainda os agarram – e nunca em excesso, apenas o suficiente para que ambos sigam o ancestral jogo da fuga e da captura. Veja a vida que insiste em permanecer viva e as pescadoras e os pescadores que não aceitam uma extinção imposta e que lutam ainda – e de forma simples até: pescando em seus barcos desapressados que navegam até um novo horizonte; sentando-se sobre plataformas desconvidadas até que estas percebam a inconveniência de suas presenças sobre e sob as águas; insistindo em contar as histórias que fazem de seus feitos exemplos.
Não há como resistir a quem da água é cúmplice: no fluxo indomável dos ribeirões e dos riachos e das cachoeiras e dos lagos que desembocam nas baías e nos mares, desfazem-se as impurezas corporativas atiradas e despejadas em seus corpos; purifica-se, ainda que leve gerações, e volta sempre à vida: verdadeiro milagre da ressurreição em cada canto que flor e água insistem em brotar. Apesar de todos os ataques dos homens que querem lucros, diretores e governadores e investidores que falam outras línguas e que nunca entenderão a língua da pesca e a língua dos territórios, confusos e perdidos no tempo-espaço de um desenvolvimentismo que anda pra trás; apesar da raiva capitalista que tem sede pelo sangue de quem ousa defender os direitos dos povos: segue em pé a gente acostumada a se equilibrar sobre as tábuas gastas das velhas embarcações, que muito já navegaram, independente do mau tempo, partindo e chegando, atentos sempre aos sinais da maré, velha parceira, seguem firmes – tum tum tum – tum tum tum repete o motor em ritmo constante como a dizer, teimoso – Não vou parar ainda, nós não vamos sumir…
Visita às comunidades que serão atingidas pelo projeto da Mina Guaíba – que pretende ser a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil -, comprova os impactos socioambientais do empreendimento. Plano é instalar mina a cerca de 15km do centro de Porto Alegre, à beira do Delta do Jacuí. Narrativa que Copelmi, empresa responsável pelo projeto, tenta construir é a de que as pessoas destas comunidades vivem sem “dignidade humana” e que a empresa melhoraria suas vidas. Ora, fomos até lá fazer o que a Copelmi não fez: ouvi-las.
Sordidamente, a proposta da empresa prevê que as pessoas só seriam retiradas de suas casas e terras após 5 anos de extração do mineral. Ou seja: seriam 5 anos convivendo dia e noite com perfurações, detonações com dinamite, alto fluxo de veículos pesados e ainda a operação das plantas de beneficiamento dos minerais extraídos. Tais atividades trariam impactos como piora da qualidade do ar, ruído e rebaixamento do lençol freático, de onde as comunidades captam sua água para abastecimento. Um dos argumentos que a Copelmi utiliza em seu favor é a geração de empregos. Contudo, a promessa é vazia: serão apenas 331 postos de trabalho criados nestes primeiros anos, durante a fase de implementação; e até 2042, prometem-se outros 823. Deve-se ainda questionar a qualidade dos empregos ofertados; a saúde de trabalhadoras e trabalhadores na extração mineira é extremamente danosa à saúde e uma atividade perigosa: a mineração é a maior responsável por mortes no trabalho ao redor do mundo.
A narrativa que a Copelmi tenta construir é a de que as pessoas destas comunidades vivem sem “dignidade humana” e que a empresa iria melhorar suas vidas. Ora, fomos até estas comunidades fazer o que a Copelmi não fez: ouvi-las. E o que vimos e ouvimos é o oposto do que o engenheiro Cristiano Weber, principal porta-voz da empresa (o nome bonito dado a seu cargo é de gerente de Sustentabilidade Corporativa), declara, com certa arrogância, nos solenes debates em que participa.
É bem verdade que há uma evidente negligência dos poderes públicos municipais, principalmente quanto à qualidade das estradas e ao posto de saúde fechado há mais de dez anos; porém, estes foram os únicos aspectos negativos nas falas de moradoras e moradores. O que vimos foram duas comunidades angustiadas pela incerteza e pela possibilidade de perderem seu “paraíso” (palavra usada por mais de uma das pessoas ouvidas); e indignadas pelas afirmações da empresa, que as trata como indignas, claramente uma mentira. Há muita vontade de lutar pela permanência na área. No dia 11 de junho, haverá uma assembleia popular para tratar do tema; no final do mês, 27 de junho, uma nova audiência pública acontecerá.
O Loteamento Guaíba City é o lar de muitas famílias: algumas já vivem ali há 3 gerações. Há aquelas pessoas que vão somente aos finais de semana pois ainda têm que trabalhar na cidade, mas que pretendem ir para lá definitivamente ao se aposentarem: é seu plano de vida. Outras já conseguiram este feito de “fugir” da cidade. Nos lotes, que são pequenas chácaras, construíram suas casas, perfuraram seus poços, criam galinhas, vacas leiteiras, cavalos, têm pequenas roças e hortas, além de pescarem nos arroios locais (que serão desviados pela mina) e no Rio Jacuí. As crianças vão a pé ou de bicicleta para a escola Osmar Hoff Pacheco, ou de transporte escolar (que, segundo os relatos, funciona bem) para as escolas das cidades do entorno.
Em um abaixo-assinado que percorre o loteamento, uma derrota acachapante da Copelmi: em 82 assinaturas, 77 são contrárias ao projeto – apenas 5 estão ao lado da empresa, que não se cansa de tentar ludibriar a comunidade (no mesmo dia da nossa visita, um micro-ônibus alugado pela Copelmi levou alguns moradores para uma “churrascada”; segundo relatos, já não era a primeira vez que isso acontecia). Cada assinatura representa um lote, correspondendo à quase 250 pessoas; nem todos os lotes assinaram ainda. A maioria das pessoas não cogita sair de lá “nem morto”, até por que lá existe um cemitério que guarda muitos de seus entes queridos.
O Assentamento Apolônio de Carvalho, apesar de ser relativamente novo (foi criado em 2007) e de todas as dificuldades para se implantar um assentamento, está em pleno funcionamento. Abriga 72 famílias, com grande sentimento de pertença ao território conquistado (que antes era um “haras” de um poderoso traficante). O carro-chefe do Apolônio é a produção do arroz orgânico, o terceiro maior produtor do país, que em conjunto aos demais assentamentos do RS forma nada menos que a maior produção de arroz orgânico da América Latina. Mas a produção vai além do arroz: o assentamento produz “de tudo” – e sem veneno: hortaliças, tubérculos, frutas, chás, temperos, leite, queijo, ovos, carne, peixes, sementes, compotas. Quase tudo necessário à subsistência, e o excedente é comercializado em dezenas de feiras ecológicas em Porto Alegre e Região Metropolitana (ainda atende locais específicos, como, por exemplo, uma clínica oncológica – e por que será?). Produzem também conhecimento e tecnologia, que tem muitos nomes: agricultura orgânica de base agroecológica, controle biológico de enfermidades nos cultivos, permacultura, agrofloresta, bioconstrução. Enfim, mostram na prática uma alternativa viável, que constrói vidas simples mas abundantes e em harmonia com o ambiente. Não seria esta a verdadeira sustentabilidade?
Após algumas tentativas da Copelmi de fingir que as comunidades, tanto do Guaíba City quanto do Apolônio, estariam dispostas a deixar o local onde vivem, foi necessário demarcar suas posições de maneira clara: “Somos contra, porque somos a favor da vida”. Além do que já conseguiram alcançar (terra para plantar, casa para morar, luz, água, o sustento garantido pelo lote), todos tem ainda muitos sonhos: aumentar a produtividade do arroz, ter demanda mais garantida (além das feiras e clientes específicos, faz falta o fornecimento antes feito a escolas através do PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], praticamente acabado no contexto atual), que a cidade valorize mais o alimento produzido sem veneno no campo. Ficam a imaginar o quanto de alimentos sem veneno pode ser produzido e posto na mesa de famílias no campo e na cidade ao longo dos 23 anos que a mina pretende operar…