Nota Técnica da Amigas da Terra Brasil

O Projeto de Lei 442/2023, que tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, quer declarar a aviação agrícola como de Relevante Interesse Social, Público e Econômico no estado. Em seu artigo 2º, o projeto diz que essa técnica é fundamental para a garantia da eficiência produtiva, abastecimento, segurança alimentar e proteção ambiental, e lista como atividades a semeadura, aplicação de fertilizantes e defensivos, repovoamento de águas, combate a pragas e incêndios. E ainda declara que a aviação agrícola seria livre, autorizada e garantida em todo o território gaúcho.

Pode parecer um projeto para valorizar uma atividade econômica, mas representa, na verdade, a pressão do agronegócio para continuar e expandir a pulverização aérea de agrotóxicos no RS. Essa prática vem sendo denunciada por seus impactos a comunidades e produções agrícolas próximas às fazendas que utilizam essa técnica de aplicação de venenos em lavouras.

Em 2020, a mídia mostrou a contaminação por deriva de agrotóxico em parreirais de uva na região da Campanha. Acompanhamos produtores agroecológicos de assentamentos da Reforma Agrária em Nova Santa Rita, Eldorado do Sul e Tapes, cidades próximas de Porto Alegre, que há 4 anos registram prejuízos econômicos e ambientais com as derivas pelo agronegócio na região. Também denunciam problemas na saúde e temem a contaminação de fontes de água, usadas para consumo humano e na criação de animais para alimentação.  

A pressão popular conseguiu alguns avanços na regulação da pulverização aérea de agrotóxico, mas são localizados e não garantem uma proteção efetiva às pessoas e à natureza. Também não viabilizam a produção agroecológica, sem respeitar o direito dos que querem produzir e de quem quer consumir comida sem veneno.

No Ceará, a mobilização popular resultou numa lei estadual de 2019 que proíbe a pulverização aérea de agrotóxico. O agronegócio tentou derrubar, mas o STF (Supremo Tribunal Federal) manteve a lei devido aos riscos do veneno para a saúde humana e o meio ambiente.

Em defesa da vida, a Amigas da Terra Brasil se soma à luta pelo arquivamento do PL 442/2023 e exige o fim da pulverização aérea de agrotóxicos no RS!

DIVULGAMOS, EM PDF, A NOTA TÉCNICA DA AMIGAS DA TERRA BRASIL QUE SUSTENTA O PEDIDO DO ARQUIVAMENTO DO PL 442/2023 E O FIM DA PULVERIZAÇÃO AÉREA.

BAIXE A NOTA TÉCNICA CLICANDO AQUI

Amigas da Terra Brasil

Amigas da Terra Brasil na Plenária do Bioma Pampa – Plano Clima Participativo: Pela soberania e autonomia fundiárias dos povos

Na segunda-feira (16/09), a Amigas da Terra Brasil esteve junto a movimentos sociais e construções de base levando demandas dos territórios de vida à Plenária do Bioma Pampa, que integra o Plano Clima Participativo, iniciativa do Governo Federal. No vídeo, Eduardo Raguse fala sobre o encontro, falsas soluções na emergência climática e a relação dos monocultivos de árvores (que avançam de Norte a Sul do Brasil) com a pauta. Aborda, ainda, quais são as reais soluções e caminhos para frear tragédias anunciadas.

Levando em consideração que não há justiça climática sem justiça para os povos, defendemos que o Plano Clima deverá servir de instrumento para promover a reparação histórica, centrada em soluções climáticas baseadas no direito dos povos ao território.

🚩 O Grupo Carta de Belém, da qual a Amigas da Terra faz parte, participa do processo com a proposta de que o Plano Clima destine recursos dos fundos de meio ambiente e clima, prioritariamente, para a garantia de soberania e autonomia fundiárias dos povos. Pelo direito dos povos aos territórios de vida e para que estes territórios sigam existindo, assim como toda diversidade que os coabita, a proposta demanda que sejam priorizadas:

👉🏽Demarcação de terras indígenas
👉🏽Titulações de territórios quilombolas
👉🏽Regularização de territórios tradicionais
👉🏽Reforma agrária
👉🏽Reforma urbana

Vote para esta proposta se tornar parte do Plano Clima: bit.ly/PovosNosTerritórios 

Conheça e vote em propostas feministas e populares :
bit.ly/4dcgj5x

Foto: ATBr
Foto: ATBr

O encontro ocorreu no auditório da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS). As reuniões têm o intuito de engajar a sociedade civil no envio de propostas, tirar dúvidas sobre o processo e informar sobre as etapas da elaboração da estratégia que vai guiar a política climática do país até 2035. A votação para as propostas ocorre até o dia 17/09, e cada pessoa pode votar em até 10 propostas. As mais votadas poderão ou não ser incorporadas ao texto após análise do Governo Federal. Participe!

#demarcaçãojá #titulaçãojá #reformaagráriapopular #reformaurbana #planoclimaparticipativo #povosnosterritórios

O grito Mineração Aqui Não mostra sua força em São José do Norte (RS)

Mineração: Projeto Retiro, iniciativa da empresa Rio Grande Mineração S.A. (RGM) para mineração de titânio, segue colocando em risco territórios de vida em São José do Norte (RS). A comunidade local segue mobilizada pela preservação da agricultura familiar, da pesca artesanal, da qualidade da água, do território quilombola, e pela garantia de seus direitos. 

Em abril deste ano, o Movimento Mineração Aqui Não organizou um ato histórico, narrado no vídeo acima. No momento, uma das pautas defendidas pelo povo em luta era que o Ibama, responsável pelo licenciamento do Projeto Retiro, não sentasse na mesa de negociações com a empresa sem ouvir a população. A organização e pressão popular garantiram uma primeira reunião e a abertura de um diálogo com o órgão federal. 

Apesar da chuva intensa a carreata realizada contou com mais de duas centenas de carros, caminhões e veículos agrícolas, percorrendo cerca de 100 km de extensão (área do município que seria impactada pela mineração em todas as suas fases), chegando na cidade foi realizada uma caminhada e um ato público no centro, onde as vozes da população e de organizações aliadas como Amigas da Terra, MAM – Movimento pela Soberania Popular na Mineração e Comitê de Combate à Megamineração no RS ecoaram em defesa da região e de sua diversidade de vida, dizendo não à mineração. O projeto representa forte ameaça à saúde das pessoas, águas, ar, solo, fauna e flora, para produção de alimentos, pesca e cultura local. Além disso, impacta diretamente comunidades tradicionais de pesca artesanal e o Quilombo Vila Nova.

Hoje, novas informações surgem para o povo em luta. A empresa australiana Sheffield Resources assinou contrato que permite a compra de 20% do projeto, de parte que não está em licenciamento, cabe lembrar que o Projeto Retiro é apenas uma parte de um projeto maior chamado Atlântico Sul. Este contrato é considerado pela australiana como parte de sua estratégia de “montar um portfólio” de ativos de projetos de areias de metais pesados. “Há tempos moradores relatam pessoas falando inglês andando por São José do Norte. Em geral, empresas juniores do setor atuam prospectando mercado e vendendo para empresas maiores (majors), que entram na parte de execução dos projetos, pois se desgastam menos no processo. No soslaio histórico de como atuam as empresas nos processos minerários, é possível que a RGM, responsável pelo projeto, fique com pequena fatia deste, vendendo a maior parte para corporações estrangeiras”, analisa o pesquisador Caio dos Santos, do Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambientais do Extremo Sul do Brasil. Novas ameaças aos territórios de vida surgem, que podem afetar a autonomia local e intensificar o cenário de dependência econômica vivida no Sul Global. 

Enquanto a mineração se entranha em comunidades levando a devastação e a morte, das entranhas destes territórios a mobilização popular segue gritando por suas águas e pela vida. Em São José do Norte, a resistência parte de uma coletividade organizada por meio do Movimento Mineração Aqui Não, e representa a voz da maior parte da população urbana e rural do município. Famílias que vivem das águas e do solo da região, do cultivo e da pesca artesanal. Manter estas formas de vida preservadas, assim como as condições que as sustentam, tem valor para todo conjunto da população. Garantir a produção de alimentos, a qualidade das águas, a saúde, e os territórios tradicionais deve ser uma luta de todas, todes e todos.

A luta contra o Projeto Retiro em São José do Norte representa não apenas a defesa de um território específico, mas também a resistência contra um modelo de desenvolvimento predatório, que coloca em risco a vida e os meios de subsistência de comunidades locais, e que afeta o conjunto da classe trabalhadora brasileira que é saqueada pelo atual modelo mineral do país. A mobilização popular é o recurso dos povos para a proteção dos bens comuns e dos direitos das gerações presentes e futuras. Seguimos!

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Água em risco: Projeto Retiro prevê a extração de titânio e outros minerais ameaçando territórios de vida em São José do Norte (RS)

 Em ato histórico, mobilização nortense faz ecoar o grito “não queremos mineração”. A comunidade exige preservação da agricultura familiar, da pesca artesanal, da qualidade da água e a garantia de seus direitos, como o de consulta livre, prévia e informada – que prevê que comunidades afetadas por megaprojetos sejam consultadas conforme suas regras antes que estes empreendimentos se instalem.

Com alto impacto socioambiental negativo, a primeira fase do projeto de iniciativa da empresa Rio Grande Mineração S.A. (RGM) está em fase de análise para emissão da Licença de Instalação pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). O órgão de licenciamento ambiental estará em reunião com a empresa nesta semana, visitando áreas que constam no projeto. A agenda do Ibama não prevê um momento de diálogo com a comunidade nortense. Moradores de São José do Norte se mobilizam para que o órgão inclua na agenda conversas com a população.

No dia 16 de abril, em mais um ato histórico, a mobilização popular fez ecoar o grito em defesa da região e de sua diversidade de vida, dizendo não à mineração. O ato contou com carreata composta por mais de duas centenas de carros, caminhões e veículos agrícolas, e percorreu cerca de 100 km de extensão, representando toda a área do município que seria impactada pela mineração em todas as suas fases (da localidade de Capão da Areia até a zona urbana). Após a carreata, a chuva ininterrupta não impediu a mobilização de seguir. A pé, em marcha pelas ruas do centro urbano de São José do Norte, manifestantes reivindicaram os seus direitos, denunciando os riscos do projeto para a saúde das pessoas, águas, ar, solo, fauna e flora, para produção de alimentos, pesca e cultura local. 

Moradores de São José do Norte estão mobilizados para barrar projeto Retiro
No dia 16 de abril, moradores de São José do Norte voltaram a sair às ruas para denunciar impactos do projeto | Foto: Carolina Colorio, ATbr

Falas abordaram os impactos da mineração no RS e a devastação que a extração de Ilmenita (óxido de titânio e ferro), Rutilo (óxido de titânio) e Zirconita pode trazer. Também foi pontuada a importância da organização popular para barrar o projeto, assim como a necessidade de o Ibama escutar o posicionamento do povo.  Elisete dos Santos Amorim, integrante do Movimento Mineração Aqui Não, vive no interior de São José do Norte, e como ela mesma diz, é agricultora desde o ventre de sua mãe. Ela relata que a luta do Movimento começou em 2011, com marco em 2014 quando os primeiros documentos para barrar o Projeto Retiro foram encaminhados. “Nosso objetivo maior hoje é sensibilizar o Ibama para que ele não dê esse laudo favorável ao projeto de mineração. O povo tá contra. Estamos na defesa da nossa água, do nosso território, da nossa história, do nosso povo, da nossa cultura”, evidenciando a luta pela preservação do território. De acordo com a agricultora, até hoje a RGM não foi capaz de garantir que a água não vai ser contaminada e nem que o oceano não vai entrar. “Como é que a gente vai querer um projeto desses? Mineração para quem? Para nós não é. Nós não precisamos disso daí, a gente é feliz do jeito que é”, expôs. 

Eduardo Raguse, da Amigas da Terra Brasil e da Coordenação do Comitê de Combate à Megamineração do RS (CCM), pontuou que o que está acontecendo em São José do Norte faz parte de um projeto de expansão minerária no Rio Grande do Sul . Ele rememorou a importância da organização popular para frear megaprojetos, citando um caso que assolou a capital gaúcha e arredores anos atrás: A Mina Guaíba, que se instalada seria a maior mina de carvão do Brasil. “Assim como vocês, fizemos uma grande luta. Tenho certeza que com essa mobilização vocês vão mostrar para o Ibama e para as autoridades locais que São José do Norte não quer mineração”, mencionou. 

Após carreata, ato lotou ruas de São José do Norte, mesmo com chuvas intensas | Foto: Carolina Colorio

O projeto de mineração batizado de Atlântico Sul está dividido em três fases: 1- Projeto Retiro, 2- Projeto Estreito-Capão do Meio e 3- Projeto Bujuru. Os nomes de cada fase correspondem a uma das comunidades diretamente atingidas. Hoje, devido a uma autorização do Ibama, o projeto Atlântico Sul está sendo licenciado de forma “fatiada” por fase, o que mascara as populações diretamente atingidas e a avaliação ambiental dos impactos cumulativos. Em sua primeira fase, em licenciamento,  pretende explorar cerca de 600 mil toneladas de minerais pesados como Ilmenita, Rutilo e Zirconita. O impacto desta fase é numa área de aproximadamente 30 quilômetros de extensão e 1,6 quilômetros de largura, localizada entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico.

O ato evidenciou a força do Movimento Mineração Aqui NÃO, composto pelas famílias moradoras das zonas rurais e urbana do município, trabalhadores da agricultura, da pesca e de diferentes setores da economia local. Assim como do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São José do Norte, da Cooperativa dos Agricultores Familiares (Cooafan), do Quilombo Vila Nova, das Colônias de pescadores, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, Grupo de Agroecologia Econorte, Centro Comunitário da Várzea e de várias Associações de moradores, agricultores e pescadores. E tem apoio do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Comitê de Combate à Megamineração do RS (CCM),  Amigas da Terra Brasil, Instituto Preservar, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), grupos de pesquisa de universidades e entidades da sociedade civil gaúcha. A força da população pode ser evidenciada pelo fato de todas/os vereadoras/es e o executivo municipal se posicionarem atualmente contra a mineração.

Mineração aqui não! População em defesa da vida e da cultura local | Foto: Carolina Colorio, ATBr

“Viemos mostrar nosso repúdio a esse projeto nefasto que quer explorar minerais em São José do Norte para atender interesses externos e interesses da indústria bélica, da indústria aeroespacial e de setores da economia que não dialogam com a vida do povo de São José do Norte. Precisamos fortalecer muito a agricultura familiar, a pesca artesanal, o modo de vida tradicional. Precisamos garantir a soberania popular e garantir o direito e a voz”, contou o atualmente vereador do São José do Norte Luiz Gautério, que se mobiliza com o Movimento Mineração Aqui Não e estava presente no ato.

No dia 16 de abril, moradores de São José do Norte voltaram a sair às ruas para denunciar impactos do projeto |Foto: Carolina Colorio, ATBr

Água para vida! Mineração para morte!

Um dos principais aspectos levantados pelos moradores de São José do Norte na luta contra a mineração é a possibilidade de contaminação da água. Essa preocupação é de extrema importância, visto que o município é totalmente abastecido por água subterrânea e não possui outra alternativa para o consumo humano e para a dessedentação animal. No Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e nos estudos complementares apresentados pela empresa não fica comprovado que a água subterrânea do município terá a sua qualidade para o consumo mantida. Em quase todas as falas durante o ato esse aspecto foi levantado.

A insegurança com relação a qualidade e disponibilidade da água vem sendo apresentada pela população ao longo dessa última década de luta contra a mineração. E, durante todo esse tempo, não conseguem ter uma resposta satisfatória por parte do órgão ambiental licenciador e do empreendedor. A água é uma questão de vida para a população de São José do Norte, e a perda da sua qualidade pode significar a impossibilidade da continuidade em seu território. Fato que é indiferente ao empreendedor, mas que deveria ser ponto central na tomada de decisão do órgão ambiental licenciador.

Marcela de Avellar Mascarello e outros (2022), em pesquisa realizada, atestam que no “EIA apresentado pela empresa não traz a garantia de que não haverá prejuízo a esse recurso, tampouco houve qualquer interesse e esforço da empresa em cumprir parte do Termo de Referência para a sua elaboração, em que lhe imputava “caracterizar os principais usos na área de influência direta do projeto, suas demandas atuais e futuras em termos quantitativos e qualitativos”. Há, portanto, uma lacuna de informação que expõe a população nortense a riscos de escassez e de diminuição da qualidade do recurso hídrico. Então, perante a incerteza acerca da disponibilidade deste recurso em quantidade e qualidade adequadas ao consumo da população nortense, durante e após a exploração dos recursos minerários, deve-se usar o princípio da precaução e negar a instalação do empreendimento”.

Encontro no Quilombo Vila Nova, antes do ato | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Flávio Xavier Machado, coordenador e vice-presidente da Associação da Comunidade Quilombola Vila Nova, também agricultor, contou que ao longo dos anos, na propriedade em que vive com Vanuza, foram produzindo mais variedades, vencendo desafios e que, hoje, vão para além da subsistência, levando alimentos para outras famílias.  “A gente tá conseguindo produzir alimento com qualidade e respeitando a natureza, respeitando o meio ambiente. E essa é a nossa grande preocupação. A gente tá nessa luta para que a gente consiga continuar sobrevivendo dessa forma. Que os grandes empreendimentos que chegam aí não nos impactem tão forte. Hoje, olhando esse projeto da RGM, se ele não for alterado de algumas formas ele vai nos deixar sem condições de ter água de consumo humano e animal e por um bom período… A partir do momento que eles passarem pelo território, a gente não vai tá conseguindo produzir alimento”, afirmou.

Produção de alimentos do Quilombo Vila Nova, que será impactada em caso de implementação do Projeto Retiro | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Fato que vem sendo entoado desde 2014 pelos moradores de São José do Norte e desprezado até o presente momento pelo órgão ambiental licenciador, que se espera que nesse momento utilize o princípio da precaução e salvaguarde a vida da população nortense ao invés do lucro da empresa.

Territórios de vida e resistência ou uma zona de sacrifício? Os próximos atingidos

A mineração opera historicamente impondo a mudança de paisagem, impactos na produção de alimentos, violação de uma série de direitos, abusos e a constante ameaça às formas de ser e existir dos povos. Caso o Ibama dê a licença para o Projeto Retiro, o que conhecemos como São José do Norte se transformará em outra paisagem. E a gravidade vai além dessa alteração.

Com o projeto vem a contaminação de águas, lençol freático, solo e alimentos. Também são feridos os modos de viver de comunidades tradicionais que coabitam os territórios, conectadas pela vida pesqueira aos fluxos das águas entre o Oceano Pacífico e a Lagoa dos Patos. Ou vinculadas à terra, cultivando sementes que passam de geração em geração e que contam uma história ancestral.  Que crescem, no cuidado e trabalho árduo do dia a dia como alimentos saudáveis e sem veneno, que chegam à mesa de diversas famílias.

Vanuza da Silveira Machado é agricultora familiar e quilombola, integrante da Associação e Comunidade Quilombola Vila Nova, localizada em Capão do Meio, terceiro distrito de São José do Norte. Território que será diretamente atingido pela segunda fase do Projeto Atlântico Sul, mas que sofrerá alguns impactos negativos em caso da emissão da licença de instalação da Fase Retiro. “Nós aqui do Quilombo Vila Nova somos todos pequenos agricultores familiares. A gente vive da roça, plantamos um pouco de tudo. Aqui na nossa residência a gente planta arroz, feijão, milho, batata, cebola, tem uma pecuária também. A gente vende esse arroz para merenda escolar. Outros quilombolas também. No mais todo mundo vive da pecuária e da pesca”, contextualizou, explicando a importância da mobilização coletiva para frear a mineração no local, que atinge seu modo de vida, a produção de alimentos e afeta também culturas alimentares da região e o acesso à terra, outro direito que deveria ser assegurado.

Encontro entre Amigas da Terra Brasil, Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e Quilombo Vila Nova, que resiste ao Projeto Retiro | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Uma das preocupações dessa e outras comunidades que participaram do ato é de que o licenciamento ambiental das próximas fases se torne apenas um rito meramente protocolar. Sem que sejam escutados, fato que já ocorre no Licenciamento da Fase 1 visto os impactos negativos que serão imputados à comunidade.

Mobilizada na luta contra a mineração, pelo acesso à terra, assim como pelo reconhecimento e titulação de quilombos, Vanuza abordou a importância da população estar cada vez mais unida na luta, sem se desmobilizar. Em suas falas, mais de uma vez resgatou que os quilombolas têm raízes em São José do Norte, e que é preciso lutar com as raízes que se leva consigo. “Nós, quilombolas, queremos ficar aqui. Queremos o nosso lugar. Aqui estão as nossas raízes. Então a gente tá mobilizado, todos quilombolas juntos, para lutar contra a mineração. A gente não quer que essa empresa se instale, a gente tá lutando muito para isso, junto com os pescadores e toda a comunidade do Capão do Meio, todo interior de São José do Norte. Vamos dizer não à mineração. A gente não quer sair daqui. Se a gente sair daqui, o que é que a gente vai fazer? Para onde nós vamos?”, indagou.

A socióloga e dirigente nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Iara Reis, denunciou as falsas promessas das empresas minerárias, tanto quanto à geração de trabalho e desenvolvimento local, quanto à garantia de moradia para quem é desalojado quando o projeto se instala. “Os que querem ir embora, que garantias têm? Lá na nossa região (Pará) a gente tem experiência de comunidades que foram expropriadas, remanejadas de forma cruel para outro território, outro assentamento. E depois tiveram que ser remanejadas de novo. A pessoa já tá ali desde novinha, cresceu e envelheceu ali, e daí foi mandada para outro lugar. Chegando lá não teve garantia que ia ficar”, contou, apontando a insegurança que a mineração traz neste aspecto.

A comunidade quilombola teve seu direito a consulta prévia, livre e informada violada nos processos de licenciamento ambiental dos Complexos de Geração Eólica Bojuru e Ventos do Atlântico, conforme pareceres técnicos e denúncia realizada ao Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Ainda, apesar de não estarem na área de lavra da Fase 1 do Projeto Atlântico Sul, vão sofrer alguns dos impactos negativos e vão ser diretamente atingidos durante a Fase 2. Sem consulta livre, prévia e informada a comunidades tradicionais que podem ser impactadas por seu avanço, os projetos ferem a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Reside aí um dos grandes motivos para que o Ibama considere a população local antes de emitir licença de instalação para a RGM.

Foto: Divulgação

“A gente já preserva. Tá preservando naturalmente esse nosso território.  E esses empreendimentos vão alterar e muito, tanto a RGM quanto a eólica. E aí eles não tão respeitando a 169 da OIT, que garante esses direitos de os povos tradicionais serem ouvidos, poderem ser consultados. A gente não foi consultado em nenhum momento, isso é uma das questões mais graves. Mesmo tendo a lei do nosso lado, e aí que a gente vê que a coisa é muito complexa, eles não obedecem. Só por estarmos aqui por muito tempo e termos o título da Fundação Palmares a gente deveria ser consultado e isso também não aconteceu. Então a gente tá reivindicando e questionando esses processos todos, que de uma certa forma não tá sendo feito da maneira correta”, evidenciou Flávio.

Flávio ressaltou a importância da titulação dos quilombos na garantia de direitos e reparação histórica do povo negro brasileiro, que segue sendo afrontado por diversas formas de violência, sobretudo com o avanço de projetos que não consideram os territórios e agem com uma lógica que reproduz o colonialismo. Pontuou como esses megaprojetos interferem na vida cotidiana, e que a titulação, assim como o  reconhecimento da história negra é fundamental para barrar a violência desses megaprojetos na sociedade. “Somos descendentes de escravos aqui, e aí a partir disso a gente começa a buscar um pouco da história, das pessoas que passaram bem antes de nós, nossos avós, bisavós… E gente começa a ter esses relatos das pessoas mais velhas, que o nosso bisavô foi descendente de escravo aqui na região, e isso que nos deu a titulação pela Fundação Palmares, essa comprovação. E agora a gente tá buscando que o Estado reconheça isso. Essa é a nossa luta, para poder garantir que esses grandes empreendimentos não interfiram no nosso modo de vida, que é isso que a gente quer fazer, é isso que a gente faz há muito tempo”, sintetizou.

Evidenciando o racismo estrutural, mencionou ainda a injustiça da questão da distribuição de terras em solo brasileiro: “Outros povos chegam no Brasil e têm direito à titulação de terra e nós nunca tivemos isso. Os números por si só já mostram. No Rio Grande do Sul a gente tem quatro comunidades tituladas. Parece que são 160 comunidades quilombolas no RS e só tem quatro tituladas. Isso mostra que o Estado tá ausente. E isso implica em bastante consequência para nós”.

Quilombolas em defesa da vida e contra a mineração | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Relacionando a necessidade da titulação de terras ao movimento contra a mineração em São José do Norte, Flávio expôs que o objetivo de ter começado essa luta na comunidade quilombola é para que possam ter direito a viver neste território onde seus antepassados viveram, por mais de cem anos. “Esse empreendimento vai afetar muito a nossa sobrevivência, o nosso modo de viver na verdade. Até hoje a gente não tem nenhum estudo e nenhuma informação técnica que garanta que esse impacto não seja tão forte como o empreendimento vem colocando. E para a gente poder se defender desse processo minerário que tá vindo se instalar em São José do Norte, a gente precisa ter a titulação da nossa área.”

O território quilombola Vila Nova vem sendo cercado por megaempreendimentos sem que os seus direitos sejam respeitados. Representando, dessa forma, mais um processo de espoliação do povo quilombola, reforçando o processo de racismo estrutural no processo de licenciamento ambiental, conforme denunciado por suas lideranças.

Impactos Socioambientais do avanço da mineração não são considerados em estudos apresentados pela empresa

Foto: Divulgação

Entre os impactos negativos do projeto de mineração em São José do Norte,  Caio dos Santos, Pesquisador do Observatório dos Conflitos do Extremo Sul do Brasil destaca os seguinte: possibilidade na piora da qualidade da água subterrânea que serve para o consumo humano e dessedentação animal; aumento do tráfego de veículos pesados e leves, aumento da poeira nas estradas e da exposição a metais pesados, aumento na pressão sobre os serviços públicos como saúde e educação, impacto nas atividades tradicionais de agricultura e pesca artesanal, risco a espécies endêmicas da fauna e flora, impactos na avifauna migratória, falta de consulta prévia, livre e informada às populações tradicionais, aumento do custo de vida, sobrecarga no na rede de abastecimento elétrico que já é deficitária.

Luiz Gautério, que tem formação em Gestão Ambiental , afirmou que o estudo de Impacto Ambiental apresentado pela RGM apresenta várias falhas.  “Diversas delas foram apontadas pelo Ministério Público como inconsistências do licenciamento ambiental. Temos uma fragilidade muito alta da nossa água subterrânea, a água de uso, para as pessoas beberem no campo, para os animais beberem, para a manutenção dessa condição dinâmica do ecossistema que dialoga com o oceano, como o berçário, os corpos d’água que são pequenos estuários de vida marinha, com as aves migratórias que passam por aqui. Mas principalmente, nós temos pessoas que dependem exclusivamente da água subterrânea para viver. Por isso que nós precisamos denunciar que o projeto de licenciamento ambiental da empresa RGM está colocando em risco todo esse modo de vida do campo, porque as pessoas podem ficar de uma hora para outra, num período curto de tempo, com a água contaminada. E pelo simples fato da mistura da estratigrafia do solo. E tem outros aspectos que não foram considerados, entre eles mudanças climáticas, que não está presente no estudo de impacto ambiental”, explicou.

Além disso, como aponta a Ação Civil Pública (ACP n. 5007290-39.2018.4.04.7101) ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), as comunidades de pescadores/as artesanais dentro da área de lavra não constam no Estudo de Impacto Ambiental e tiveram seu direito a consulta prévia, livre e informada violado, assim como os/as cebolicultores/as do município. Viviane Machado, do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), salientou no ato que: “É não para a mineração. É não para as eólicas. É não para qualquer processo que exclua as comunidades tradicionais de São José do Norte”.  Em parecer técnico, elaborado no ano de 2017, pesquisadores atestam que  “o órgão ambiental se exime de sua responsabilidade sobre o licenciamento ambiental, ignorando bases legais relevantes como a OIT 169, que versa sobre a necessidade de manifestação das populações tradicionais sobre projetos de desenvolvimento em seus territórios, dentre outros”. O que tornaria nula a Licença Prévia emitida pelo órgão ambiental, conforme pedido realizado pelo MPF na ACP e sustentado pelo movimento contra a mineração.

Uma luta coletiva

Nos últimos anos, crimes socioambientais de proporções catastróficas, ligados à expansão minerária, assolam o país. Recentemente, o caso da Braskem, em Maceió (AL), evidencia o descaso das empresas e para quem a mineração serve. O rompimento das barragens em Brumadinho e Mariana (MG), crimes ambientais pela qual a Vale, BHP Billiton e Samarco respondem judicialmente, também são feridas abertas em um povo que ainda não encontrou corpos de familiares, e que segue lutando para ter os seus direitos assegurados.

A mineração tem em sua genealogia a violência, a contaminação e a exploração da classe trabalhadora e da natureza. Diversos são os casos na América Latina em que cidades passaram por um ciclo de aparente riqueza, temporária, concentrada nas mãos de poucos e geradora de miséria para a maioria. Essas cidades, que em alguns casos se transformaram em grandes minas, vivenciaram um rastro de destruição, que ocasionou em perdas irrecuperáveis.

Enquanto a mineração se entranha em comunidades levando a devastação e a morte, das entranhas destes territórios a mobilização popular segue gritando por suas águas e pela vida. Em São José do Norte não é diferente. A resistência ao projeto parte de uma coletividade de gentes, que organizada por meio do Movimento Mineração Aqui Não, representa a voz da maior parte da população urbana e rural do município.  Famílias que, sobretudo, vivem das águas e do solo da região, do cultivo e da pesca artesanal. Manter estas formas de vida preservadas, assim como as condições que as sustentam, tem valor para todo conjunto da população, para além das fronteiras em que pode ser instalado o Projeto. Por isto, garantir a produção de alimentos, a qualidade das águas, a saúde, e os territórios tradicionais deve ser uma luta de todas, todes e todos.

A luta contra o Projeto Retiro em São José do Norte representa não apenas a defesa de um território específico, mas também a resistência contra um modelo de desenvolvimento predatório, que coloca em risco a vida e os meios de subsistência de comunidades locais, e que afeta o conjunto da classe trabalhadora brasileira que é saqueada pelo atual modelo mineral do país. A mobilização popular é o recurso dos povos para a proteção dos bens comuns e dos direitos das gerações presentes e futuras.

 Leia também em: 
Sul 21
Brasil de Fato

Amigas da Terra Brasil participa do 12º FIMA abordando Transição Energética Justa

 

Evento ocorre no auditório da FAMECOS, na PUCRS, em Porto Alegre (RS). Inscrições gratuitas neste link

Nos dias 12 e 13 de março, acontece, em Porto Alegre (RS), o 12º FIMA (Fórum Internacional do Meio Ambiente), com o tema Água e Energias Renováveis, busca possibilitar reflexões sobre as formas de produção de energia e o uso da água. O evento é promovido pela ARI (Associação Riograndense de Imprensa), em conjunto com o Ministério Público do Rio Grande do Sul, PPGCom da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e FAMECOS (Faculdade de Comunicação da PUCRS – Pontifícia Universidade Católica do RS).

O 12ª FIMA será realizado de forma presencial no auditório da FAMECOS, na PUCRS (Avenida Ipiranga, 6681). No dia 12/03 (3ª feira que vem), no final da tarde, ocorre a abertura do evento e a conferência inicial com a participação de Junior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami no estado de Roraima. É a 1ª vez que Junior vem à capital gaúcha. Ele irá falar sobre os problemas enfrentados pelo Povo Yanomami em suas terras, entre eles o garimpo, e o papel do jornalismo nessas situações de confronto e de crise humanitária.

A 4ª feira (13/03) concentra os painéis de exposição e de debate, iniciando às 8h30min e encerrando às 18h30min, com a leitura da carta produzida pelo 12º FIMA. A Amigas da Terra Brasil participa do 3º painel, às 16h15min, na presença da conselheira e integrante do Comitê Executivo da Federação Internacional Friends of the Earth, Lúcia Ortiz, que irá abordar o tema da Transição Energética Justa.

A programação completa do 12º FIMA pode ser acessada AQUI. Para assistir a conferência de abertura e participar dos debates, basta se inscrever neste link. A inscrição é gratuita. Não haverá transmissão online do evento.

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Amigas da Terra Brasil

A ofensiva do carvão no RS: precisamos mudar o sistema

O carvão é uma ameaça aos nossos territórios, aos direitos humanos e dos povos. Meio a emergência climática e a acelerada exploração da natureza, que se dá por meio do avanço de fronteiras como a do agronegócio e da mineração, se faz urgente a justiça climática, assim como as soluções pensadas a partir da realidade dos povos e territórios em luta. Eduardo Raguse, do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul (RS), articulação de mais de 100 entidades da sociedade gaúcha, expõe a grande ofensiva da mineração no estado.

“A gente teve que se organizar para fazer frente a essa ofensiva e não permitir que o RS fosse a nova fronteira do atual modelo mineral do país. Dentro dessa luta, nos deparamos com a seguinte situação: 90% do carvão em território nacional existente, das jazidas de carvão, estão no RS. A gente tem essa responsabilidade num debate nacional a respeito do carvão. Entra na pauta energética e na pauta das mudanças climáticas. Parece absurdo a gente ter que falar em carvão ainda hoje, mas a gente tá tendo que fazer esse debate”, revelou.

O carvão é o modo de geração de energia mais poluente, também é uma das fontes de energia que mais gera gases de efeito estufa por unidade de energia gerada. “Comparando, por exemplo, com a energia fotovoltaica, apesar de todos os problemas da cadeia produtiva e dos resíduos, ainda assim a energia fotovoltaica vai liberar entre 30g e 80g de dióxido de carbono por quilowatt hora gerado. O carvão vai liberar entre 600g a 1600g. Só pra gente ter uma ideia da escala em que estamos falando”, explicou Raguse.

Contexto global

A nível global são mais de 4 mil usinas termelétricas movidas a carvão operando hoje, que são responsáveis por ⅓ das emissões globais de carbono. A contribuição do carvão a nível global para o aquecimento do planeta terra ainda é muito significativa. Para além disso, é consenso científico que as causas humanas (no caso, de alguns seres humanos que detém poder político, econômico e social – a classe capitalista/burguesia) estão levando o nosso planeta para um colapso iminente e urgente.

Para tentar limitar esse aquecimento planetário em 1,5 ou 2º, como propõe o Acordo de Paris, nenhum novo investimento em carvão poderia ser feito. Também deveria haver uma acelerada desativação das estruturas das minas e das termelétricas em todo mundo. Tudo isto até no máximo 2030. Mas, infelizmente, os dados demonstram que o cenário é justamente o oposto. “A demanda energética e o consumo de combustíveis fósseis tem crescido no mundo todo, a pandemia deu uma pequena retraída e aí a gente teve uma expectativa de que essa tendência fosse seguir. Mas 2021 já voltou com o carvão crescendo 9% no mundo e batendo o recorde histórico da produção, consumo e queima do carvão da nossa história”, evidenciou Raguse.

O aumento do  preço do gás, em função da guerra na Ucrânia que temos acompanhado, é um dos fatores que amplia o uso do carvão. Países como China, Indonésia, Tailândia e Japão seguem incrementando as suas unidades de geração de energia a partir do carvão. Alemanha e Áustria estão reativando unidades que já estavam desativadas. A Europa toda está importando muito carvão da África, da América do Sul, da Austrália. Aprofundando, também, o impacto da mineração nesses países exportadores de carvão. “Está bastante claro que a gente está longe de superar a dependência dos combustíveis fósseis e eu não estou falando nem de Petróleo, eu estou falando de carvão, que parece ainda mais possível de a gente avançar em ir acabando com essa indústria. Então a gente percebe que há um aumento na oferta de energia gerada a partir das eólicas, das solares a nível mundial, mas, ao mesmo tempo, não há uma retração das fósseis. Então, na prática, essa transição não está acontecendo, o que está acontecendo é uma nova oferta a partir de novas fontes energéticas, mas a nossa demanda energética a nível global só aumenta”, denunciou.

Para além do debate de transição na matriz energética, é imprescindível levar em conta que modelo de sociedade, de produção e de consumo defendemos. De acordo com Eduardo, estes fatores são  uma das chaves para puxar o freio de emergência do colapso da emergência climática – realidade que está cada vez mais escancarada no Brasil devido a fenômenos extremos, sejam secas históricas em algumas regiões ou chuvas sem precedentes em outras, que afetam de maneira desproporcional as populações marginalizadas, negras, indígenas, ribeirinhas, quilombolas, comunidades pesqueiras e os povos tradicionais, quem menos causa impacto socioambiental.   ” Para piorar a situação, ainda por cima, esses novos projetos de geração de energia a partir do vento e do sol têm demonstrado atuar a partir da mesma lógica predatória que os próprios investimentos em carvão, em gás e em petróleo. Atingindo as comunidades tanto em função da demanda dos minérios e dos locais das minas, quanto nos locais em que são instaladas essas estruturas”, expôs.

Carvão e o contexto brasileiro

Eduardo Raguse participou da mesa “Transição energética Justa” durante o Seminário Direitos Humanos e Emergência Climática, que ocorreu em dezembro de 2023, em Brasília.

No contexto do Brasil, o Anuário Estatístico da Energia Elétrica de 2023 revela que apenas 1% da nossa geração de energia elétrica veio do carvão. Em contraponto, o carvão foi responsável por 32% das emissões de gás de efeito estufa do setor elétrico brasileiro. Quanto a matriz energética brasileira, mais de 80% já vem das hidrelétricas, da solar e das eólicas. Ou seja, o Brasil tem condições em termos de segurança energética para abrir mão do carvão. Não é feito devido aos interesses das empresas ligadas ao setor, assim como pela ineficiência do governo de conseguir apresentar alternativas económicas para as regiões carboníferas. É preciso pautar a redução da demanda energética.

“Também trazendo os dados de energia do Brasil. A geração eólica já, desde 2015, ultrapassa a geração do carvão. No ano passado, a energia fotovoltaica já passou também o volume de energia gerada do carvão. Gerou o dobro do que o carvão gera. Então essa questão de energia de base, que sempre foi a desculpa do setor carvoeiro para o Brasil, hoje já está caindo por terra em função do efeito portfólio da distribuição das usinas eólicas e solares pelo país, que consegue superar essas variações sazonais que esse tipo de energia tem”, comentou. 

A baixa eficiência da geração de energia a partir do carvão, aliada as suas altas taxas de emissão de gás de efeito estufa, já são motivo suficiente para a perspectiva de ir encerrando essas cadeias.

Contexto do carvão no Rio Grande do Sul

Dois projetos emblemáticos foram propostos no Rio Grande do Sul nos dois últimos anos, e os grandes impactos locais que esse tipo de estrutura gera também ficam evidentes.  “Analisando do âmbito do Comitê de Combate à Megamineração, os estudos de impacto ambiental de uma grande mina de carvão que foi proposta a 15km de Porto Alegre, um projeto chamado Mina Guaíba, que seria a maior mina de carvão a céu aberto do país, a gente percebeu que os estudos ambientais deixavam muito a desejar. Não traziam nenhum pouco de segurança quanto aos impactos que geraram, bem como, um projeto de uma nova usina termelétrica em uma outra região do Rio Grande do Sul, na região de Candiota, que da mesma maneira, analisando os estudos, a gente percebeu uma série de impactos que estavam subdimensionados, lacunas, uma série de problemas nesses relatórios.  Também percebemos nas Audiências Públicas como as empresas vendem esses projetos de uma maneira que é um grande marketing. Há um cerceamento ao direitos das comunidades de entenderem, de fato, como funcionariam esses projetos no futuro. E aí, muitas vezes vendem a ilusão de que os impactos não vão vir, somente o desenvolvimento. E a gente percebe que é justamente o contrário. O desenvolvimento que eles tanto prometem parece que nunca chega, mas os impactos com certeza”, explicou Raguse. 

Para além disto, a questão do carvão também tem um outro ponto bastante sensível, que são os problemas relacionados aos impactos à saúde, seja  humana, seja ambiental. Há uma série de estudos que correlacionam o carvão a problemas de saúde em rebanhos bovinos, decorrentes do flúor. Também há análises quanto à minação de ovos de galinha com chumbo, cádmio e o flúor. A genotoxicidade em amostras de carqueja, uma planta que existe no Rio Grande do Sul muito utilizada como uma planta medicinal, também são alarmantes. “Se encontrou genotoxicidade em uma planta que a pessoa toma para de repente se curar da dor de barriga. Também se encontrou genotoxicidade em células sanguíneas, fígado e rim de roedores nativos, um pequeno roedor que existe no sul que se chama tuco-tuco. Se identificou em trabalhadores de Candiota  significativo aumento de danos em células linfócitas e bucais. Tem estudos que avaliam comunidades que vivem nos municípios da região de Candiota, e já se conseguiu correlacionar a influência do material particulado do carvão a problemas hematológicos entre os residentes, com alterações nos parâmetros hematológicos em 43% da população, e em função do fígado em 30% da população. Sendo que a população mais atingida, segundo esse estudo, é o município de Pedras Altas, que sequer tem a Mina e Termelétrica que geram esse dano para o município, ou seja, que sequer recebem os impostos e tudo mais que deveriam receber”, expôs Raguse. 

Visado como novo setor minerário do Brasil, o estado do Rio Grande do Sul segue em mobilização e em luta para barrar as atrocidades minerárias e garantir direitos básicos, para além da preservação ecossistêmica. Através da atuação do Comitê de Combate à Megamineração, projetos como essa termelétrica e essa mina de carvão foram interrompidos até o momento.

“Nós estamos, literalmente, como dizemos no Sul, segurando o carvão a unha. Nesse entendimento de que já que insistem em propor esses projetos, nós vamos fazer um empate. A gente percebe que o lobby carvoeiro segue forte. Existem dois projetos de lei hoje tramitando no Congresso, um deles a gente tem chamado de PL do Carvão, que visa incluir o Rio Grande do Sul nesta lei de Santa Catarina, que se autointitula de Lei de Transição Energética Justa, mas que na nossa leitura está esvaziando esse conceito, porque ela basicamente aumenta a vida útil das termelétricas a carvão subsidiadas até 2040. E não estabelece metas para de fato uma transição, que por exemplo se vincule prazos ao acesso aos subsídios, por exemplo. E existe um outro PL, que é o PL das Eólicas Offshore, que também está buscando ser regulamentado. E tem um jabuti no artigo 23 que justamente inclui também, até lá, a priorização da energia do carvão até 2050 nesse projeto de lei que nós também precisamos debater. E só lembrando, o subsídio anual do carvão tá em 800 milhões por mês e isso quem paga somos nós né, porque encarece a nossa conta de luz”, denunciou Raguse. 

Como relata Eduardo: “Não tem saída dessa crise a partir de um sistema que está em crescimento infinito e que também então vai ter uma demanda energética infinita. Sem a redução na demanda, as energias ditas renováveis se tornam apenas mais um elemento de pressão sobre as comunidades. Temos que avançar com uma radicalidade e com um senso de urgência nesses próximos dez anos para buscar a descarbonização de nossa economia, um decrescimento também. Temos que falar sobre isso e superar esse paradigma do desenvolvimento sustentável. E isso tudo facilitado por uma distribuição de riquezas. As mudanças climáticas são inevitáveis, mas temos que atrasar, ou reduzir ao máximo o aquecimento da Terra. E que a gente possa caminhar o máximo possível na superação do capitalismo, afinal de contas, é disso que a gente tá falando: mudar o sistema e não o clima”.

Confira a fala de Eduardo Raguse, do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul (RS), sobre o carvão no Brasil e no RS:

O audiograma é registro de participação de Raguse durante o Seminário Direitos Humanos e Emergência Climática, que ocorreu em dezembro de 2023, em Brasília.

Conheça as pautas do Comitê de Combate à Megamineração: 

  • O  abandono do carvão como fonte de energia, já na próxima década, com o impedimento de novos empreendimentos de mineração e queima;
  • Que se estabeleçam prazos claros para a desativação gradual das estruturas existentes;
  • Que se cumpram tais prazos e que os mesmos sejam vinculantes ao acesso aos subsídios que o setor recebe, que parte desses subsídios bem como recursos desses países que se desenvolveram a partir das energias fósseis que nos colocam nesse colapso, possam ser justamente investidos nessa transição energética justa real que a gente quer ver para esses territórios;
  • A Política Nacional sobre Mudanças Climáticas precisa ser revista, visando colocar uma data para o fim do carvão;
  • O arquivamento por esse projeto de lei que quer incluir o Rio Grande do Sul nesta lei de Santa Catarina, bem como, tirar esse jabuti do PL das Offshore
  • Incluir nos licenciamentos ambientais de todos tipos de atividades que gerem gases de efeito estufa, esse critério de licenciamento, e que isso possa ser considerado para os deferimentos ou indeferimentos desses empreendimentos
  • Redução da demanda energética. Sem isso não tem saída. Mudar o sistema e não o clima.  

 

Comunidade Kilombola Morada da Paz articula ato por Solidariedade Real e Radical neste sábado (20/01)

 

A comunidade não foi consultada previamente sobre ampliação da BR-386, a menos de 500m do território.

A Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) realiza ato da “Parada da Légua” neste sábado (20/01), em defesa da autodeterminação dos povos e seu direito radical de ser e existir, internacionalmente garantidos pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A convenção determina a exigência da consulta prévia, livre, informada e de boa-fé a povos Originários, Tradicionais e Quilombolas, sempre que um projeto, público ou privado, afete os modos de ser e viver em seus territórios. A comunidade Kilombola está localizada no distrito de Vendinha – entre Montenegro e Triunfo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e está sendo diretamente afetada pelo empreendimento de ampliação da BR-386, a menos de 500 metros do seu território. O ato está agendado para às 18h.

Com o lema “Por uma Solidariedade Real e Radical em Território de Mãe Preta CoMPaz: povos tradicionais marcham em unidade pelo direito de ser e existir”, a comunidade articula uma manifestação pacífica, alertando vizinhança e autoridades. Além do Território de Mãe Preta, lideranças indígenas, quilombolas, ocupações, associações de imigrantes e refugiados e o Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, devem se somar ao ato em apoio ao direito de ser e existir de todos os povos. O ato prevê uma marcha poética-cultural, política-espiritual, que contará também com a distribuição de materiais informativos a motoristas no local.

Conforme a Comunidade, a ampliação no trecho 405-415km afeta diretamente o território, envolvendo, entre outros danos, a supressão de 300m2 da vegetação local e a aproximação perigosa de uma rodovia com alto fluxo de veículos pesados perto de suas porteiras, colocando em risco todas as vidas que compõem o território. Após Ação Civil Pública (Nº 5063160-33.2022.4.047100/RS) ajuizada pela comunidade no final de 2022, em consonância com a recomendação aprovada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a Justiça Federal no Rio Grande do Sul concedeu, em janeiro do ano passado, uma liminar histórica, suspendendo o andamento da obra no trecho até que fosse realizada a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé à comunidade, respeitando a já mencionada Convenção nº 169 da OIT. Mesmo após inúmeros recursos dos réus do processo – as empresas concessionárias e o Estado brasileiro, a partir dos órgãos Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) – a Comunidade saiu vitoriosa sustentando a decisão liminar. Contudo, esta foi derrubada ao final de 2023, quando a juíza designada para avaliar o mérito do processo decidiu extinguir a ação. O argumento utilizado foi o de que, ainda que tenha legitimidade em reivindicar esse direito, a comunidade estaria se adiantando em seu pedido, já que o cronograma da concessionária teria previsto para 2034 a execução das obras no trecho 358-444 KM, entre os municípios de Tabaí e Canoas, o que tiraria seu caráter de urgência. A Comunidade está aguardando o pronunciamento do juízo com relação à apelação que apresentou a essa sentença. O argumento disputa a noção de urgência, ao afirmar que o tempo para ingressar em juízo é aquele em que as ameaças e danos são sentidos em território kilombola e em que seus mais velhos ainda são capazes de lutar.

A Comunidade, além de não ter sido consultada no momento da concepção do projeto, nem devidamente considerada para fins do relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA), não teve acesso até o presente momento ao inteiro teor do projeto de ampliação e a seu cronograma atualizado, o que, por si só, vem afetando a paz e a tranquilidade dos mais velhos e mais novos do território.

As obras de ampliação da BR-386 foram iniciadas em 2010 pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). Desde a época, os impactos do empreendimento também têm afetado outros territórios tradicionais, quilombolas e indígenas. O empreendimento faz parte do programa de Concessão Federal no Rio Grande do Sul e é regulado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). “Em 2021 a nossa Comunidade também enfrentou as ameaças da instalação de um aterro industrial classe I para descarte de resíduos perigosos de alta toxicidade, patogenicidade, inflamabilidade, advindos da atividade industrial a 8 Km aos fundos do Território. A CoMPaZ detectou essa ameaça, acionou grupos de interesse – entre eles a União Protetora do Ambiente Natural (UPAN), o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Caí (CBH Caí) e a Amigas da Terra Brasil (ATBR) – e iniciou a mobilização popular que culminou em uma audiência pública híbrida. Essa audiência, que teve ponto focal presencial na Comunidade do Pesqueiro/Montenegro, contou com participação virtual massiva da CoMPaZ e de seus aliados, demonstrando força e articulação capazes de barrar o projeto, ainda que temporariamente, junto ao poder público.

Essas não são as únicas ameaças territoriais detectadas pela Comunidade. Estamos cercados pelo monocultivo com forte uso de agrotóxicos de acácia e eucalipto e num raio de 12 km em relação ao Polo Petroquímico de Triunfo. Tudo isso impacta as águas, o ar, a terra e todos os Seres Sencientes que zelam e protegem o nosso Território. Diante de tantos ataques aos territórios de vida, da intensificação das guerras no mundo, da emergência climática que atinge os povos nas cidades, no campo, nas florestas e nas águas, a Solidariedade Real e Radical é o que nos une e nos fortalece para Parar e Avançar, que nos permite esperançar”, afirma Baogan Bàbá Kínní, do Conselho de Ìyás de Bàbás da Nação Muzunguê.

Diante das ameaças impostas pela obra da rodovia, a comunidade tornou público, em 2022, seu Protocolo autônomo e comunitário de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé: O Dossiê Kilombo – Proteger, Defender e Vigiar, que contém também o Estatuto Comunitário Igbesi Alaafia e a cartografia da ComumUnidade do Território Kilombola Morada da Paz. O Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS afirmou que se trata do primeiro Protocolo desse tipo realizado por uma comunidade quilombola no estado, e pode servir, portanto, como inspiração para lutas semelhantes vivenciadas por outras comunidades tradicionais.

A Comunidade Kilombola Morada da Paz foi certificada pela Fundação Cultural Palmares como quilombo em 2016 (Portaria n° 104/2016, de 20/05/2016). Também conhecida como Território de Mãe Preta, a comunidade se define como kilombola, espiritual e ecológica e se constitui predominantemente por mulheres negras, com o intuito de resistir, preservar e aplicar sobretudo os saberes da Nação Muzunguê, de matriz espiritual afrobudígena.

Segundo o Censo Demográfico 2022 (IBGE), o Rio Grande do Sul tem 17.496 habitantes que se declaram quilombolas. Dados do Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul apontam que o estado possui ao menos 146 comunidades quilombolas.

“Por uma Solidariedade Real e Radical em Território de Mãe Preta CoMPaz: povos tradicionais marcham em unidade pelo direito de ser e existir. Nós existimos e estamos aqui. ‘Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes.’”

Link do Dossiê Kilombo: Proteger, Defender e Vigiar:
http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/acervo/compaz/dossiekilombo/index.html

Mais informações:
Contato
compaz.consultaprevia@gmail.com

 

Encontro de atingidos por agrotóxicos debate vitórias conquistadas e próximos passos em defesa dos territórios e da agroecologia

Meio a invasão da fronteira agrícola e a mercantilização da vida, que dilacera o bioma Pampa e traz uma série de violações de direitos, povos e territórios resistem. Organizado por produtores agroecológicos e assentados do Movimento Sem Terra (MST RS) atingidos pela pulverização aérea de agrotóxicos, com a solidariedade de parceiros urbanos, encontro em Nova Santa Rita (RS) pauta estratégias e alianças da luta por agroecologia, direitos humanos e soberania alimentar

O domingo do dia 17 de dezembro foi marcado por confraternização entre famílias gaúchas atingidas pela deriva de agrotóxicos de Nova Santa Rita, Eldorado do Sul e Tapes, e apoiadores. Com o intuito de revisitar o histórico de luta das pessoas atingidas pelo crime de deriva (pulverização aérea de agrotóxicos), a atividade contou com roda de conversa, relatos diversos e levantamento tanto de violações de direitos como das vitórias dos atingidos. Também foram debatidos os caminhos traçados pela resistência ao modelo do agronegócio (de coexistência impossível) além de estratégias e táticas contra a pulverização de veneno, que incide violentamente no cotidiano de indígenas, quilombolas, comunidades periféricas, pessoas assentadas, pequenas produtoras de alimentos e se estende para além do rural, afetando todos ecossistemas e quem vive no meio urbano. Seja no corpo, na água, no ar ou nos alimentos contaminados por agrotóxicos, venenos, pesticidas, fungicidas e defensivos. Nomes tantos que descrevem verdadeiras armas químicas. Nomes que impactam, mas que importam menos do que o seu efeito na realidade: matam uma morte lenta, silenciosa e perversa, que conta com a impunidade corporativa e com a captura do estado, que é conivente com este modelo de aniquilação. 

Para além das articulações da luta, o momento foi importante por ser uma confraternização das famílias que sofrem tantas violências por parte do agronegócio. Um modelo que avança nas vidas carregando uma forma de ação criminosa, que gera impactos para além do envenenamento. “O agronegócio faz todo o contrário do que a reforma agrária faz, e não deixa acontecer o trabalho na terra. Tira e expulsa as pessoas do campo”, salientou Graciela de Almeida, assentada do MST RS,  que produz sem agrotóxicos e de forma agroecológica¹. A assentada contou que por anos as famílias da região vêm sendo afetadas por verdadeiras chuvas de veneno, utilizado pelo agronegócio. Destacou, ainda, a importância de parceiros urbanos e de organizações socioambientais, que também tornam possível que o trabalho de quem vive o rural, assim como as suas lutas, sejam exemplo em outros lugares. 

“Precisamos continuar nessa luta. Resistir para existir, como o povo da Palestina. Não posso deixar de dizer que viva o povo da Palestina”, comentou em solidariedade, trazendo a conexão das lutas para além de fronteiras impostas pelo capital. Graciela defendeu que é preciso disputar espaços e incidir na esfera internacional, como foi realizado em novembro de 2022, quando uma delegação brasileira e a Frente Contra o Acordo Mercosul União Europeia levaram denúncias a cinco países do continente Europeu. “Fomos  para denunciar precisamente a questão dos agrotóxicos no Brasil e como isso impacta nas comunidades, barrando um desenvolvimento realmente sustentável”, explicou.

Jornada na Europa, em 2022.

Na ocasião, a delegação brasileira, composta por representantes da Amigos da Terra Brasil, da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e do MST realizou uma Jornada pela Europa. Além de denúncias, foram feitas reivindicações em debates que ocorreram com parlamentares, jornalistas, acadêmicos e organizações da sociedade civil. O foco foi apresentar os impactos do Acordo Mercosul – União Europeia sob os povos indígenas, comunidades camponesas e produtoras agroecológicas, ecossistemas e populações atingidas pela mineração e pelos agrotóxicos no Brasil. Colonial e violento, o acordo comercial daria lastro ao avanço do agronegócio, ampliando a liberação de agrotóxicos (proibidos em seus países de origem) na América Latina. Aprofundaria, ainda, a relação de dependência econômica do sul global em relação ao norte, intensificando a superexploração da natureza, dos povos e dos territórios na periferia do sistema, onde estamos situados. 

Acesse todos os depoimentos da Campanha Parem o Acordo UE-Mercosul na nossa playlist no Youtube: embedar link

Confira o Posicionamento da Frente Brasileira Contra Acordo Mercosul-UE, que foi apresentado no Parlamento Europeu

¹ A produção de alimentos de forma agroecológica vai além de um método de produção de alimentos, e se conecta ao todo. É muito mais do que produzir sem veneno, embora englobe este quesito. É uma forma de produção alimentar, mas é uma forma de ser e agir no mundo, que constrói outros horizontes de mundos, com base em valores éticos centrados na vida, e não na lógica de lucro, dos negócios, do mercado ou da mercantilização de tudo. É uma luta permanente, e uma construção permanente que está enraizada na luta pela terra, na consciência e luta de classes, na luta contra o patriarcado, anticolonialista, anti-imperialista, anticapitalista e contra qualquer forma de exploração e dominação. Saiba mais aqui 

 

A luta por alimentos, pessoas e ambientes saudáveis pulsa da semeadura à colheita nos assentamentos do MST, que resistem ao envenenamento da vida

Confraternização em Nova Santa Rita (RS), em dezembro de 2023 | CNDH

A região de Santa Rita é reconhecida pelos assentamentos da reforma agrária que produzem alimentos sem veneno, onde se concentram algumas das áreas de maior produção de arroz agroecológico da América Latina. Também é marcada por um conflito que compromete as formas de vida e de produção econômica de inúmeras famílias da agricultura agroecológica – a pulverização aérea de agrotóxicos em fazendas das proximidades. 

O veneno, aliado ao monocultivo e a uma forma única de compreender a relação com a terra – a da mercantilização, contamina solos, águas, ar, gentes, e bichos, e causa impactos irreversíveis na saúde ecossistêmica. Quem trabalha na terra de uma forma justa e harmônica, garantindo alimentos saudáveis de verdade, que abastecem diversas cidades, acaba sofrendo na pele os efeitos das pulverizações. Queimaduras, feridas, alergias, enjoos, mal súbito, câncer, depressão e sufocamento são alguns dos sintomas da exposição aos agrotóxicos. Sintomas, também, de um sistema nefasto que entende que mais importante que alimentar o país, é produzir commodities para o capital estrangeiro. O lucro do agronegócio significa  contaminação. É o empobrecimento das famílias, o empobrecimento geral. 

Fernando Campos, da Amigas da Terra Brasil, expôs:Para nós é muito importante essa virada de ano com uma perspectiva de alguma forma positiva. O que acontece aqui acontece, de alguma forma, em vários lugares. A grande diferença é a gente reunir forças para conseguir enfrentar esse grande setor que é o agronegócio, que tem por trás de si empresas, corporações que estão no mundo inteiro tomando territórios. Expulsando pessoas do campo e levando para a cidade, empobrecendo o nosso povo. Seja com as doenças, seja com a ação permanente de uso dos agrotóxicos como arma química na expansão do território,  impossibilitando quem está na sua volta e que tem outra relação com a agricultura (sem veneno, sem transgênico) de sobreviver.  A decisão do uso destas tecnologias de morte não param na cerca, elas vão para o mundo”. 

Confraternização em Nova Santa Rita (RS), em dezembro de 2023 | CNDH

Tendo isso tudo em vista, os presentes no encontro debateram quais foram os desafios e conquistas de 2023, se posicionando contra o modelo de produção do agronegócio e traçando um horizonte de construção para a soberania alimentar. Foram discutidos aspectos como ferramentas de luta, ferramentas legais, com marcos como a assessoria jurídica aos afetados, além da lei que restringe as pulverizações aéreas na região metropolitana, mais especificamente na zona de amortecimento do Parque do Delta do Jacuí. 

Fernando ressaltou que para avançar na luta contra o veneno é preciso de ferramentas e se instrumentalizar, até mesmo para que seja possível reunir provas e realizar denúncias de forma concisa. A recente garantia de estações climatológicas em cidades que sofrem com a deriva de agrotóxicos foi um dos passos fundamentais nessa direção. “Conseguimos, a partir das conversas e diálogo, garantir para famílias de Nova Santa Rita, do assentamento Santa Rita de Cássia, assim como de Tapes e Eldorado, cada um ter uma estação climatológica para poderem eles mesmos terem seus dados das medições de vento, velocidade, temperatura. Aqui em Santa Rita há uma no parque mesmo, iniciativa muito importante da prefeitura. Mas é importante que as famílias tenham as suas próprias  informações, os seus dados, para bater com os dados do Estado”, analisou. 

A instalação das estações citadas está prevista para janeiro de 2024, junto a um conjunto de iniciativas e ações para fortalecer a luta das famílias afetadas pela deriva. Entre elas, formas para monitorar e documentar violações de direitos. “A gente sabe que ter uma vida, que viver do lado do agronegócio não é possível produzindo agroecologia. A gente precisa de fato mudar essa realidade. Por isso, também, que a ideia da poligonal, de uma área livre de agrotóxicos aqui na região, importa muito”, frisou Fernando. 

Confraternização em Nova Santa Rita (RS), em dezembro de 2023 | CNDH

Emerson José Giacomelli, militante do MST, assentado do Assentamento Capela e Secretário de Agricultura de Nova Santa Rita, destacou a Lei da Deriva e a importância de ferramentas de luta construídas coletivamente.  Mencionou, também, as políticas públicas do município voltadas para a agroecologia, para produtores de melão, pequenos produtores e quanto ao meio ambiente e educação, afirmando que uma diversidade de programas chegam nas propriedades. Citou, ainda, convênio com laboratório de São Paulo, responsável pela análise de amostras para detectar agrotóxicos, que já vem sendo utilizado e será posto à disposição dos assentados. “Começaremos o ano na Secretaria da Agricultura com orçamento de mais de 11 milhões. Poucos municípios têm investimento e prioridade tão fortes para a agricultura familiar como Santa Rita. Mas não podemos nos acomodar, mesmo com novos projetos e parcerias”, destacou, se comprometendo a buscar parceria com o Governo Federal para ampliar o atendimento aos atingidos.

Álvaro Dellatorre, da Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), definiu a confraternização e o momento trazendo o conceito de agroecologia. “Achávamos que a técnica pela técnica resolvia as questões, mas chegamos no conceito de agroecologia. O que acontece aqui nessa roda de conversa é exatamente essa dimensão, porque percebemos que atrás da técnica há sociologia, antropologia, outras dimensões da vida que explicam a agroecologia, que permitem que entidades e pessoas que não estão produzindo somem nesse processo. Isso é o que vemos aqui”.  

A agroecologia, presente no trabalho do MST e de atingidos pela pulverização de agrotóxicos de Nova Santa Rita, é um exemplo de realização do direito humano à alimentação. Este direito deve tratar da alimentação saudável considerando quantidades adequadas, qualidade dos alimentos, serem livres de substâncias tóxicas e adversas, serem ambientalmente sustentáveis, acessíveis e disponíveis para todos.  A Promotora de Justiça aposentada do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP RS) e  especialista em Direito Humano à Alimentação Adequada, Miriam Balestro, incidiu na conversa destacando que o direito humano à alimentação adequada tem que ser cada vez mais mobilizado e utilizado como instrumento de luta. 

“O que ocorre hoje no Congresso Nacional é que o agronegócio, por suas curvas, está atacando o direito humano à alimentação adequada previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Eles querem trocar a palavra por segurança alimentar. Segurança alimentar não é o direito, é a política. É como dizermos que direito a remédio de hospital é direito à saúde, não é. A construção internacional fala de direito à alimentação”, denunciou. De acordo com Miriam, o Brasil tem a melhor legislação do mundo quanto a direito à alimentação, o problema é que ela é pouco utilizada. 

 

O agro é morte, o agro é emergência climática

Confraternização em Nova Santa Rita (RS), em dezembro de 2023 | CNDH

Para além do agronegócio e da violência do uso de agrotóxicos, assentadas e produtoras rurais enfrentam ainda questões da emergência climática.  Esta, intensificada justamente pela sanha de poder de corporações e empresas, especialmente do setor minerário e do agronegócio, este segundo que impõe o avanço da fronteira agrícola. A consequência é o desmatamento e perda de biomas, para além do extermínio de povos tradicionais e uma série de violações de direitos. No Brasil, sexto maior emissor de dióxido de carbono (CO2), gás poluente que mais tem impacto no aquecimento global, o principal fator de emissão está conectado ao desmatamento, que provém da alteração de uso de solo liderada pelo agronegócio. 

“A questão ambiental é uma questão de direito humano. O que acontece com o problema da deriva, das enchentes, catástrofes ambientais, é problema de direito humano. Estamos vivendo um novo momento histórico. Não existe pensar um mundo diferente se a gente não incorporar a dimensão ambiental no que faz. E o componente carbonero é um componente fundamental da nossa estratégia, a luta só começou”, contextualizou Dellatorre. 

Marina Dermmam, presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), relatou como este vem trabalhando dentro da temática:  “O CNDH começou atividades hoje cedo nos assentamentos para verificar como a emergência climática têm atravessado a realização dos direitos humanos de vocês. A maioria aqui foi vítima, também, das últimas enchentes. Perderam novamente suas produções. Não bastasse o agronegócio e o veneno, agora vem as questões climáticas. Junto com o Conselho viemos com equipe de relatores aqui para monitorar as violações e conhecer a realidade”. 

Leia também a reportagem do Jornal Brasil de Fato:  Missão do Conselho Nacional de Direitos Humanos visita assentamentos inundados – Objetivo do conselho é elaborar um diagnóstico sobre os impactos das emergências climáticas no direito à alimentação

Fé na luta

Embora a ofensiva do capital e do agronegócio sigam ameaçando a vida, é na organização da luta coletiva que se faz caminho para garantir uma alimentação que considere a potência da sociobiodiversidade, saudável para os povos e para os ecossistemas

“O agronegócio é um setor tóxico, que vive do empobrecimento das pessoas. É muito triste ver pessoas que lutaram pela terra, que buscam os seus direitos, que estão em luta para garantir um ambiente saudável, sendo atacadas permanentemente pelo agronegócio”, expôs Fernando Campos. Apesar de abordar a realidade brutal no campo, Fernando destacou que ao mesmo tempo há muita esperança, e que encontros como este emanam força pois reforçam que não há como defender o indefensável, ou naturalizar o envenenamento massivo. Como retratou: “Estamos do lado certo da história. Não é mais admissível o uso do agrotóxico. O agronegócio é um setor criminoso, formado por pessoas sem escrúpulos, sem ética, que realmente fazem de tudo pelo lucro. A gente lida com questões éticas, ambientais, de cuidado. Eles não” 

Além das iniciativas previstas para 2024, que dão chão para que a luta travada pelos atingidos pela deriva seja mais justa, a sociedade vem se organizando. O próprio PL do Veneno vem sendo acusado. “Todo mundo que tem consciência do mal dos agrotóxicos deve se unir, somar e fazer a sua parte para que a gente possa derrotar esse projeto de morte, que tem matado no meio urbano e no meio rural. Com uma situação muito crítica de contaminação real de químicos”, mencionou Fernando. 

Apesar das dificuldades e do tamanho do inimigo, encoberto em dinheiro marcado à sangue, há uma boa perspectiva de avanços das lutas dos povos. Há um vasto somatório de esforços, de organizações que estão juntas pelo fim da contaminação, para enfrentar o terror. Meio a políticas de morte emergem potências de vida, que vêm dos esforços coletivos, do trabalho árduo no campo e do suor cotidiano de quem produz para alimentar gentes, para correrem livres os rios e os ventos, para crescerem as matas em toda sua diversidade. E neste cuidado com a terra, com os biomas, uns com os outros, que a luta dos assentados contra os agrotóxicos se apresenta também como uma luta pela possibilidade de mundos socialmente justos e ecologicamente equilibrados. 

 

Nota de solidariedade: Pela autogestão e autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre, dizemos NÃO ao PL 037/2023

O Projeto de Lei 037/2023 reflete exponencialmente o que tem sido a gestão  na prefeitura de Porto Alegre (RS) neste último período, durante o governo de Sebastião Melo (MDB). Uma prefeitura que demonstra uma aliança mais que evidente com o empresariado, governando para manter os privilégios e consequentemente o acúmulo de capital destes, às custas dos territórios e iniciativa dos povos, da classe trabalhadora, dos direitos humanos e da natureza. 

Para a prefeitura e para os ricos da cidade, assim como para o modelo neoliberal a qual ela governa, não é interessante que exista um processo auto-organizado, autogestionado da sociedade civil, que garanta os alimentos sadios pelas agricultoras e consumidoras por meio de laços de confiança que existem e se mantém ao menos há 30 anos – este exemplo não é bom para o projeto neoliberal de Melo e do empresariado. Por isso, existe a tentativa de eliminar a autonomia das feiras ecológicas. Feiras que há décadas realizam um trabalho que o Estado deveria dar apoio. Mas não, ele faz de tudo para atrapalhar. 

Este processo de interferência, de mercantilização da vida e fragmentação de espaços coletivos, infelizmente, se reflete em relação a cidade toda. Está presente quanto à moradia, a questão do saneamento, na lógica de privatizar o transporte público, água, saúde, educação e a economia. E esta mesma dinâmica violenta incide na questão das feiras ecológicas, que tem um histórico e uma característica importante de auto organização que perdura há décadas.  

No caso das feiras ecológicas de Porto Alegre, a sociedade civil se organiza a partir dos consumidores, dos produtores e de parceiros urbanos, em uma diversidade coletiva que torna a experiência não só uma das pioneiras na América Latina, como um espaço que pauta outras possibilidades de refletir sobre a alimentação, a cultura, o comum e a própria cidade.

Iniciativas assim, que trazem a imaginação política de que outros mundos são possíveis para além do reducionismo de “compra e venda” (numa lógica do cliente tem sempre razão ou de que “não tem almoço grátis, narrativas neoliberais), incomodam quem detém o poder político e econômico. O incômodo se deve, principalmente, ao fato de que são essas forças coletivas que  evidenciam o exemplo de que há como se organizar. De que é possível trilhar outros caminhos. E o Estado, que deveria apoiar essas construções, na verdade se empenha em criar barreiras para que essa coletividade aconteça.

Como apontou Fernando Campos, coordenador do Programa Soberania Alimentar e Biodiversidade da Amigas da Terra Brasil: “O PL 037/2023  diz muito sobre esse governo que privilegia o empresariado e desorganiza a sociedade civil em relação à incidência na auto organização, no processo organizativo. É importante para eles que não exista um bom exemplo para mostrar que a sociedade civil pode tomar iniciativas e ter as suas próprias soluções, e que o Estado tem que apoiá-la”. 

A Amigas da Terra Brasil apoia as pessoas produtoras de alimentos da zona rural e do urbano. Estamos ao lado do Conselho de Feiras, das feiras ecológicas de Porto Alegre e das iniciativas coletivas que rompem com o imperativo capitalista de reduzir todas as relações a práticas mercadológicas. 

Que a autonomia dos espaços coletivos seja preservada, para que alimentos saudáveis para as pessoas, territórios e planeta sejam uma realidade que se amplie a cada dia. 

Seguimos na luta construída nas bases, pela agroecologia, pelo fim da fome e pela soberania alimentar. 

Leia também: Audiência pública debateu projeto de lei da prefeitura que regulamenta e ameaça autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Audiência pública debateu projeto de lei da prefeitura que regulamenta e ameaça autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Maioria dos agricultores expõe que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras, ameaçando a construção coletiva dos espaços, a autogestão dos feirantes e a produção ecológica de alimentos

A última terça-feira (14) foi marcada pela Audiência Pública virtual sobre o Projeto de Lei 037/2023, que ocorreu na Câmara de Vereadores de Porto Alegre (RS). O PL, proposto pela prefeitura, não está de acordo com o Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre (CFEPOA) e fere a cultura, autogestão, identidade e o acúmulo histórico das feiras, construído com esforços para garantir uma alimentação saudável para as pessoas e para os territórios. 

Na ocasião estiveram presentes presencialmente cerca de 90 pessoas, além de 160 pessoas por videoconferência. A presença física no espaço se deu via articulação de entidades ambientalistas, organizações da sociedade civil, parlamentares, movimentos sociais, produtores ecológicos/agricultores e parceiros urbanos. Isto devido a audiência ter sido marcada apenas de forma online pelas autoridades públicas – formato que inviabiliza a participação de agricultores e agricultoras do interior do estado, que ainda enfrentam dificuldades de acesso à internet. 

Mesmo com solicitação à presidência da Câmara para audiência híbrida, que permite a participação presencial da sociedade, as entidades não tiveram de pronto o retorno. Fato que também demonstra os reais interesses por trás do PL e a forma com que o debate vem sendo conduzido.  Mesmo assim, as articulações em defesa da autogestão e da autonomia das feiras ecológicas estiveram fisicamente presentes, ocupando o espaço.

A Audiência reuniu agricultores agroecológicos de diversos municípios, frequentadores das feiras, representantes de entidades e vereadores. Foi presidida pela vereadora Lourdes Sprenger (MDB), que fez a abertura dos trabalhos e passou a palavra ao secretário de Governança Local e Coordenação Política, Cássio Trogildo, que apresentou detalhes do projeto. Foram ouvidas cinco pessoas contrárias e cinco favoráveis ao PL 037/23. 

Em maioria, as pessoas presentes se posicionaram evidenciando que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras. O Conselho de Feiras Ecológicas é uma entidade que representa os produtores ecologistas do Rio Grande do Sul, o qual é constituído por produtores, consumidores, entidades da sociedade civil e órgãos públicos, como o Ministério da Agricultura, Associação Agroecológica do RS, entre outros.

Capital gaúcha tem as feiras ecológicas mais antigas do país – Foto: Elson Schroeder

Embora o Executivo afirme que o projeto foi construído com participação popular, grande parte dos participantes da Audiência criticaram o PL 037/23, sublinhando que ele é imposto sem diálogo com quem torna as feiras possíveis há décadas. Contrária ao PL, a agricultora familiar Franciele Bellé, cuja a família está na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) há 29 anos, evidenciou: “As feiras foram criadas pelos movimentos sociais, pela necessidade que a população de Porto Alegre tinha de consumir alimentos saudáveis”. Para ela, as feiras da Capital são referência pela relação produtor consumidor e o referido projeto vai contra isto, no intuito de instituir “uma norma de cima para baixo”.

Os participantes contra o PL da prefeitura estavam mobilizados reivindicando mais tempo para discussão e ao menos um novo encontro, em outra audiência pública de formato presencial, que ainda não teve data definida. 

Durante o encontro, foram salientados aspectos como a relevância da participação popular como parte da construção da agroecologia. Ponto que desembocou na reivindicação de mais espaço para participação de produtores que integram as feiras ecológicas na construção do PL. No sentido de levar em consideração os acúmulos, história e lutas por uma cultura que dissemine uma alimentação saudável para pessoas, meio ambiente e planeta.

 A pesquisadora em sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e conselheira do Conselho de Segurança Alimentar do RS, Potira Price, comentou que o poder público sempre teve uma participação muito tímida no fomento das feiras ecológicas. “As feiras são uma conquista social”, sintetizou. 

As feiras ecológicas resistem em meio às pressões do setor imobiliário, tanto na zona rural (com o avanço dos condomínios fechados, com a perda de área de plantio e a contaminação das águas), como no urbano, que privatiza os espaços públicos e avança sobre a cidade na lógica da especulação imobiliária e de transformar Porto Alegre em uma cidade “ctrl C+ ctrl V” de outras cidades, retirando a construção cultural e histórica das ruas e da memória do povo porto-alegrense. 

O desafio vai além de resistir a uma hegemonia marcada pela mercantilização da vida, pela redução dos espaços coletivos à ideia de compra e venda, pela fragmentação das coletividades e espaços dos comuns. Também é sobre pautar outras possibilidades e caminhos, o que as feiras ecológicas de Porto Alegre vem ensinando há décadas, sem se descaracterizar.  

Feiras ecológicas promovem debate sobre PL 037/23 e contam com abaixo assinado em defesa da autogestão das feiras. Crédito: Comunicação da FAE

Quanto ao PL 037/23, que em breve pode ser votado na Câmara Municipal, a base do governo tem maioria, podendo aprovar o projeto. Porém, entre feirantes e parceiros urbanos, é mínimo o setor que está de acordo com a proposta da prefeitura. O argumento contra o PL, advindo da maioria de feirantes/produtores, é de que o autocontrole, organização e consensos das feiras ecológicas sejam debatidos como vem sendo feitos desde o início: com autonomia, participação popular e na coletividade de quem constrói, de fato, os espaços. Hoje, da instalação de luz elétrica e das lonas para cada tenda, até toda a organização da feira, são afazeres realizados por feirantes. As pessoas produtoras que fazem tudo, a prefeitura só tem que ceder a rua. 

Parceiros urbanos se aliam aos feirantes, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que para além da luta por moradia constrói o sonho da soberania alimentar e do fim da fome no Brasil. Em 2021, na pandemia de Covid-19 e auge da fome, o movimento implementou um projeto nacional para garantir a alimentação de quem precisa: as Cozinhas Solidárias. Hoje, a Cozinha Solidária da Azenha, de Porto Alegre (RS), garante por dia em torno de 350 a 400 marmitas para a população, fazendo o que o Estado não faz.  

Unindo a produção de alimentos ecológicos com a distribuição de quentinhas, o MTST e a FAE se encontram na luta. E quanto ao PL 037/23, Eduardo Osório, da coordenação estadual do MTST, expôs: “O que está em jogo é uma disputa de modelo, uma disputa pela cidade. E a FAE, as feiras, sintetizam um sonho de uma outra sociedade, que aqui na cidade junta os urbanos e a turma do rural para garantir saúde, alimentação digna, dignidade do nosso povo. Nós do MTST estamos nessa disputa da cidade, pelo direito à cidade. Vivendo as expulsões do dia a dia nas ocupações, a negação do acesso aos serviços, com despejos administrativos e forçados, com a criação da periferia da periferia. E sempre contamos com a solidariedade e o apoio dos trabalhadores e trabalhadoras do rural, visionários, que há mais de trinta anos apostaram num modelo de agroecologia, sem uso de venenos, com uma outra relação com a natureza. E vem se provando que esse é um modelo de saúde, de futuro”.

Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), defendeu que as feiras não podem ter interferência da prefeitura. Apontou, ainda, o erro do PL em confundir os conceitos de orgânico e ecológico. “Temos que falar o que é ecologia, sobre a relação da vida com todas espécies e meios. E nesse sentido, já achamos que a lei tem que ser regulada. Precisamos de uma lei para as feiras, mas não essa da prefeitura”, mencionou. 

Finalizando a Audiência, foram debatidas as tentativas da prefeitura, fechada com empresários, de mercantilizar e privatizar os espaços coletivos. Além disso, o governo atua para dividir feirantes, incentivando a ideia da mercadoria como valor central, quando na agroecologia o valor está na vida e na diversidade das relações –  vai muito além do simples ato de comprar e vender. Foi pontuada também a necessidade de atenção a esses processos de fragmentação das lutas e coletividades, botando em prática uma ecologia da ação que paute outros horizontes de mundos. 

Leia também a matéria “Agricultores ecológicos criticam esvaziamento da autogestão em projeto de regulamentação do governo Melo”

O PL 037/2023 fere de morte as feiras ecológicas de Porto Alegre

Saiba o que é o PL 037/23 e quais são os pontos abordados em sua construção

Ato em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre, que ocorreu no dia 28 de outubro de 2023. Crédito: MTST RS

Ferindo as feiras ecológicas, e até mesmo os princípios da ecologia, que se propõe a construções democráticas, diversas e plurais, o PL 037/2023 não contempla demandas importantes dos coletivos que compõem as feiras

Uma das principais críticas ao projeto de lei da prefeitura é o esvaziamento do protagonismo do Conselho de Feiras, que tem em si um acúmulo de décadas de organização coletiva e gestão. Da forma que as feiras funcionam hoje, tudo é debatido entre entidades e pessoas produtoras. Conforme a proposta do PL 037/23, as feiras ecológicas acontecerão em logradouros públicos municipais definidos pelo Executivo. E a ocupação das vagas disponíveis nas feiras ecológicas existentes, assim como nas futuras, serão preenchidas mediante edital de seleção publicado pela administração municipal. 

A proposta da prefeitura retira a autonomia da gestão de sete Feiras Ecológicas: Feira de Agricultores Ecologistas (FAE) José Bonifácio, quadra 1, Feira Ecológica do Bom Fim, José Bonifácio quadra 2, Tristeza, Três Figueiras, Auxiliadora, Rômulo Telles e Park Lindóia. Houveram várias tentativas de diálogo com a Secretaria de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV). Os participantes do Conselho das Feiras se reuniram com o prefeito Sebastião Melo e saíram com a promessa de avaliação e de participação para os próximos passos do PL. Só que a proposta acabou indo para o legislativo sem considerar o que havia sido acordado. O PL do Executivo foi protocolado em 19 de outubro, na Câmara Municipal de Porto Alegre (RS). 

O Projeto de Lei 037/23 está tramitando na Câmara de Vereadores e prevê que a SMGOV regule as Feiras Ecológicas realizadas nos espaços públicos do município. O que pode acarretar, ainda, em feiras menos ecológicas e mais voltadas para o mercado convencional de hortigranjeiros. 

Com esse PL, a atual administração do município pretende alterar vários pontos do funcionamento desses espaços, privilegiando produtores e fornecedores de Porto Alegre. Fator que implica na quebra da diversidade de alimentos da feira, tendo em vista que os produtores aqui da região não tem uma produção diversificada. 

“A gente quer muito que a prefeitura abra espaço. Mais uma vez a gente pede diálogo.  São 34 anos de construção de um trabalho que é reconhecido hoje nacionalmente, mundialmente, por ser berço de um movimento ecológico, um movimento de luta em defesa da agricultura sustentável e da agricultura saudável. Nós somos um pilar dessa força. Que permita que a nossa identidade seja preservada e essa gestão seja compartilhada de fato”, assinalou Ezequiel Cardoso Martins, agricultor do litoral norte gaúcho, da Banca das Raízes, que faz parte da FAE.

O PL segue para análise da Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul (CEFOR). A relatoria ficará a cargo da vereadora Biga Pereira (PCdoB).

Confira o relato do agricultor Ezequiel, em defesa da autogestão das feiras. A entrevista foi realizada durante o ato do dia 28 de outubro, que ocorreu na FAE

Clique aqui e saiba mais sobre como foi a Audiência Pública 

Assine o abaixo-assinado em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Leia também a nota da Amigas da Terra Brasil sobre o PL 037/2023. Que defende a sociobiodiversidade e a autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

 

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