Declaração da Campanha Global sobre a Sessão de Negociações por um Tratado Vinculante sobre Direitos Humanos e Empresas na ONU

 

TRATADO VINCULANTE SOBRE EMPRESAS TRANSNACIONAIS E DIREITOS HUMANOS: OS PAÍSES DO SUL GLOBAL BLOQUEIAM O MOVIMENTO DAS POTÊNCIAS FORTES CONTRA O PROCESSO!

 

 

Declaração da Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade

Novembro de 2023

 

A 9ª sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta (OEIGWG, por sua sigla em inglês) para elaborar um Tratado Vinculante da ONU sobre Empresas Transnacionais (ETNs) e outras empresas de caráter transnacional com relação aos direitos humanos foi realizada em Genebra de 23 a 27 de outubro de 2023. Essa rodada de negociações representou um marco importante na luta contra a impunidade das ETNs por violações dos direitos humanos e do meio ambiente e foi concluída com uma mensagem clara: movimentos sociais, sindicatos, povos indígenas, comunidades afetadas e organizações da sociedade civil, juntamente com muitos estados do Sul Global, estão comprometidos em proteger esse processo dos interesses daqueles que insistem em colocar os lucros das empresas acima dos direitos dos povos e do planeta.

Como todos os anos, a Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade (Campanha Global) organizou uma semana de mobilizações com atividades dentro e fora do prédio da ONU (veja a agenda abaixo). Com uma delegação de 73 pessoas vindas da Ásia, África, América Latina, Estados Unidos e Europa, os membros da Campanha Global participaram de sessões, organizaram eventos dentro da ONU, uma exposição de fotos e manifestações, comprometidos com a elaboração de um ambicioso Tratado Vinculante que reflita as necessidades e os interesses dos povos afetados pelas violações das ETNs.


Um novo bloco de países do Sul Global enfrenta a Presidência

A abertura da semana de negociações começou de forma combativa: por mais de quatro horas, um grupo de países do Sul Global rejeitou a tentativa da presidência de impor um texto ilegítimo como base para as negociações. Conforme destacado pelo Grupo Africano, que representa os 54 Estados africanos, a minuta atualizada do tratado emitida em julho de 2023 pelo Presidente do OEIGWG, o Embaixador do Equador, foi construída de forma não transparente e não inclusiva, adicionando e/ou excluindo elementos e disposições sem critérios ou argumentos claros. Por esses motivos, o Grupo Africano exigiu que a minuta atualizada fosse retirada da mesa e que a terceira minuta revisada anterior fosse retomada como base para as negociações. Além disso, conforme consistentemente contestado por países latino-americanos, como Cuba, Honduras, Venezuela, Colômbia e Bolívia, e estados asiáticos, como Paquistão e Indonésia, juntamente com o Grupo Africano, o novo rascunho proposto pelo presidente procurou impor ao Grupo de Trabalho um escopo de aplicação do Tratado Vinculante fundamentalmente diferente daquele determinado pela Resolução 26/9, o documento que estabelece o OEIGWG que rege esse processo desde 2014. Essa Resolução define que o escopo de aplicação desse Tratado deve se concentrar nas ETNs e em outras empresas de caráter transnacional.

A maior parte do Sul Global falou em alto e bom som: esse processo foi iniciado com o objetivo de preencher a lacuna na legislação internacional que permite que as empresas transnacionais violem os direitos humanos e ambientais com impunidade. A expansão do escopo do Tratado para regular “todas as empresas”, conforme proposto pelo presidente e defendido abertamente pelos estados do Norte Global e pelos representantes do setor corporativo, contradiz a intenção original do processo. Com base nessa proposta, o Tratado estabeleceria disposições comuns para regulamentar empresas com estruturas e atividades muito diferentes, o que não seria apenas injusto, mas também tornaria a implementação complexa e ineficaz.


As negociações sobre o texto avançam, fortalecendo a Resolução 26/9

No final, o Presidente conseguiu rejeitar a solicitação do Grupo Africano de voltar à minuta anterior; no entanto, a pressão dos Estados do Sul Global prevaleceu para, pelo menos, usar a minuta atualizada em sua versão com acompanhamento de alterações (que inclui os elementos que foram arbitrariamente removidos da versão do Presidente). Muitos estados do Sul Global, juntamente com as organizações e movimentos da Campanha Global, continuaram a denunciar essas manobras e a questionar as intenções por trás delas.

Apesar desse primeiro dia agitado, as negociações do rascunho revisado começaram com uma participação forte e construtiva, sem precedentes, de Estados comprometidos com o mandato da Resolução 26/9, tanto em número quanto em qualidade das intervenções. Graças a essa participação, disposições importantes foram reintroduzidas no texto da negociação, tais como: obrigações diretas para as empresas transnacionais; a primazia dos direitos humanos sobre os acordos de livre comércio e investimento; a importância de reconhecer e incluir o conceito de comunidades afetadas; a importância de estabelecer que as empresas transnacionais não apenas abusam dos direitos humanos, mas também os violam; e a necessidade de fortalecer as disposições para estabelecer a responsabilidade da empresa matriz ao longo das cadeias de valor e produção.

Durante os intensos dias de negociações que ocorreram nos últimos dias de outubro, esses Estados adotaram uma linha dura e se mantiveram firmes, se apropriando legitimamente de um processo do qual fazem parte e defendendo firmemente a Resolução 26/9.

Uma nova tentativa de golpe

Antes do final da semana de negociações, o presidente do Grupo de Trabalho colocou na mesa uma proposta que parecia uma manobra maliciosa: como conclusão da semana, ele propôs que o OEIGWG solicitasse uma nova resolução ao Conselho de Direitos Humanos com o objetivo de renegociar o mandato do processo, argumentando que havia falta de consenso e de recursos financeiros. Essa foi uma manobra com o único objetivo de inviabilizar o processo do Tratado Vinculante (vale a pena observar que, em julho de 2023, durante uma consulta do Grupo Ocidental, foi discutida uma proposta para “esclarecer” o mandato do OEIGWG por meio de uma nova resolução). A nova resolução proposta foi recebida primeiro com surpresa e depois com rejeição total pelos Estados presentes na sala, com exceção dos representantes dos Estados Unidos e da União Europeia. Graças a essa rejeição categórica de vários Estados, a proposta não foi aprovada.

O compromisso ativo do bloco de países do Sul Global, movimentos sociais, comunidades afetadas, povos indígenas, sindicatos e organizações da sociedade civil com o processo estabelecido pela Resolução 26/9 e com os direitos dos povos e do planeta pôs fim a essa tentativa de golpe do Presidente. A suposta “falta de consenso” que ele usou para justificar a necessidade de uma nova Resolução simplesmente não corresponde à realidade: mais de 60 Estados se manifestaram em uníssono sobre a clareza do escopo da Resolução 26/9, com foco nas ETNs e em outras empresas de caráter transnacional.

Após intensa negociação entre os Estados na manhã de sexta-feira, as conclusões oficiais da semana foram uma vitória retumbante para os defensores desse processo histórico. Não apenas a proposta de uma nova resolução, que durou pouco tempo, foi abandonada, como também foi reafirmada a importância de continuar as negociações de acordo com os objetivos e as disposições estabelecidos na Resolução 26/9. Além disso, os Estados concordaram com a importância de encontrar novos recursos financeiros para avançar nas negociações, inclusive por meio de consultas inter-sessões transparentes em que todos os Estados discutam e concordem democraticamente sobre como continuar o trabalho no Tratado. Pedimos que o Grupo de Trabalho se afaste dos debates e discussões informados por “especialistas”, dos quais já estamos fartos. Em vez disso, acreditamos que as vozes e experiências das pessoas e comunidades afetadas pelas violações das TNCs devem ser ouvidas e priorizadas, e que elas são os verdadeiros especialistas.

E agora?

Muitos desafios estão por vir. Sabemos que um Tratado Vinculante forte e eficaz mudará o desequilíbrio de poder predominante que permite que alguns lucrem com a desapropriação e a morte de outros. A rejeição inequívoca de uma nova resolução foi uma vitória retumbante para os estados do Sul Global e para a Campanha Global, e um verdadeiro desafio para as potências que buscam minar o Tratado e que não ficarão paradas diante desse resultado das negociações.

Essas tentativas constantes de boicotar e corroer o Tratado são a prova de que as ETNs e seus agentes usarão todas as suas forças para tentar impedir que esse processo avance. O setor corporativo, os Estados Unidos (que nunca ratificam tratados de direitos humanos) e a União Europeia (que ainda não tem mandato para negociar esse tratado) estão totalmente empenhados em destruir, ou pelo menos diluir, o processo. Outros países do Norte Global (Suíça, Israel, Japão, Austrália, Canadá), bem como alguns países do Sul Global subjugados aos interesses corporativos e imperiais do Norte, estão seguindo o mesmo caminho. A batalha por um Tratado Vinculante digno desse nome será, portanto, intensa.

Essas constantes tentativas de boicotar e corroer o Tratado são a prova de que as ETNs e seus agentes usarão todas as suas forças para tentar impedir que esse processo avance. O setor corporativo, os Estados Unidos (que nunca ratificam tratados de direitos humanos) e a União Europeia (que ainda não tem mandato para negociar esse Tratado) estão totalmente comprometidos em destruir, ou pelo menos diluir, o processo. Outros países do Norte Global (Suíça, Israel, Japão, Austrália, Canadá), bem como alguns países do Sul Global subjugados aos interesses corporativos e imperiais do Norte, estão seguindo o mesmo caminho. A batalha por um Tratado Vinculante digno desse nome será, portanto, intrincada e não isenta de armadilhas e obstáculos.

Olhando para o futuro, a Campanha Global continua totalmente comprometida com o Tratado Vinculante, unindo as necessidades e aspirações dos movimentos, sindicatos e comunidades afetadas com a redação jurídica de um Tratado capaz de mudar o mundo como o conhecemos. Fazemos eco aos apelos dos Estados do Sul Global por transparência e por uma metodologia clara capaz de gerar consenso para as negociações, e não de impor caprichos.

Por fim, denunciamos a crescente securitização do espaço da ONU. De um fórum que supostamente busca proteger e promover os direitos humanos, ele se tornou, na prática, um espaço que criminaliza expressões de solidariedade e dissidência e exacerba vulnerabilidades. Agora é um espaço que ironicamente ignora as múltiplas estratégias que aqueles de nós que defendem os direitos humanos têm o direito de utilizar. As tentativas de silenciar o apoio à Palestina foram frequentes durante toda a semana, apesar do genocídio que se desenrola diante de nossos olhos.

A manifestação em frente à Broken Chair na segunda-feira, 23 de outubro, co-organizada pela Campanha Global, mostrou que o poder do povo pode ressoar na sala de negociações. Ela mostrou que não se pode brincar com a Resolução 26/9. Como Paula Goes, do Movimento dos Atingidos por Barragens do Brasil, declarou em nome da Campanha Global:

“A Resolução 26/9 é uma vitória histórica, resultado de anos de luta de milhões de pessoas cujos direitos humanos são sistematicamente violados por corporações transnacionais. Esse processo é, portanto, um mandato para aqueles que foram assassinados em Marikana por terem feito greve para exigir melhores condições de trabalho na Lonmin; para as crianças indígenas que estão morrendo de câncer no Equador por causa dos vazamentos de petróleo da Chevron; para as trabalhadoras assassinadas em Rana Plaza e para os milhões de pessoas atualmente presas em Gaza e submetidas a um genocídio diretamente auxiliado e incentivado por empresas transnacionais”.

As memórias dos nossos povos exigem responsabilidade e justiça para as violações dos direitos humanos cometidas pelas empresas e, graças aos esforços de muitos Estados, da Campanha Global e de seus aliados, essa possibilidade continua em nossas mãos. Ao marcarmos uma década dessa luta no próximo ano, estaremos marchando mais fortes e mais comprometidos do que nunca.

 

Atividades da Semana de Mobilizações 2023:

Segunda-feira, 23 de outubro

Evento paralelo: “Como o Tratado Vinculante pode apoiar o trabalho parlamentar para defender os Povos e o Planeta contra as violações das ETNs?”

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1155

Manifestação: Dance pela mudança, mova a cadeira

 

Terça-feira, 24 de outubro 

Evento paralelo: “Tribunal do Povo: Empresas transnacionais em julgamento”.

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1156

Exposição de foto-documentários da Assembleia de Mulheres Rurais

 

Quinta-feira, 26 de outubro

Evento paralelo: “Casos de violações de direitos humanos e destruição ecológica”.

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1157

 

Documentos úteis da Campanha Global:

 

Comunicado de Primeiras Impressões sobre o Projeto de Tratado Atualizado (setembro de 2023)

Fronteiras de um Tratado Efetivo (2023)

10 anos passados, 10 anos pela frente. A Campanha Global rumo a 2032 (2022)

Elementos-chave defendidos pela Campanha Global, com base nas experiências de resistência das comunidades afetadas pelas ETNs (2022)

Documento de elementos para um Tribunal Internacional sobre ETNs e Direitos Humanos (2022)

Proposta de Tratado sobre ETNs e Direitos Humanos (2017)

 

Para obter mais informações: https://www.stopcorporateimpunity.org/binding-treaty-un-process/

Negociações históricas na ONU revelam os vínculos entre a impunidade de empresas transnacionais e o imperialismo

O genocídio em Gaza marca a 9ª Sessão de Negociações nas Nações Unidas (ONU) em torno de um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos. 

24 de outubro de 2023, Genebra: 

Esta semana (do 23 ao 27 de outubro) os Estados membros das Nações Unidas retomam negociações históricas na 9ª Sessão de Negociações nas Nações Unidas (ONU), em Genebra, com o intuito de elaborar um instrumento internacional juridicamente vinculante para regular, no direito internacional dos direitos humanos, as atividades de empresas transnacionais. 

A participação constante de membros de comunidades afetadas pelas atividades de empresas transnacionais, organizações da sociedade civil, sindicatos e movimentos sociais faz com que este seja um dos processos com maior respaldo social na história de negociações de tratados em direitos humanos da ONU. A Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade (Campanha Global | #StopCorporateImpunity), representando mais de 260 milhões de pessoas no mundo que sofrem abusos das empresas transnacionais, voltou a contribuir decisivamente nas negociações que estão ocorrendo em Genebra. 

Durante a abertura da sessão de negociações, um grande número de Estados bloqueou a adoção do programa de trabalho, devido às suas preocupações sobre o fracasso do novo documento em incorporar os seus pontos de vista e abordar o mandato central do tratado de se concentrar nas transnacionais. Esses estados também expressaram preocupações mais amplas em relação a metodologia nada democrática e pouco transparente do presidente do processo, o Equador. 

Especificamente, o grupo africano (representando os 54 estados africanos) tomou a iniciativa e foi apoiado por numerosos delegados de países do Sul Global, como Cuba, Bolívia, Venezuela, Paquistão, Irã e Arábia Saudita. A oposição foi tão forte que o presidente teve que suspender a sessão da manhã em busca de consenso, e só pode continuar depois de aceitar o uso de uma versão do texto com as mudanças que refletiam as propostas prévias dos Estados, que foram eliminadas de maneira injustificada. 

Os delegados da Campanha Global se somaram às preocupações de delegados governamentais durante a reunião. Leticia Oliveira, do Movimento de Atingidas por Barragens (MAB), do Brasil, e da Via Campesina, falando em nome do Instituto Transnacional representando a Campanha Global, disse: “É muito desanimador para todos na sala (e, acima de tudo, para todos que aqui representamos, tanto movimentos sociais quanto Estados), participar de um processo que não é transparente. Ontem, muitas delegações estaduais, que não por coincidência representam os territórios onde ocorre a maioria dos crimes corporativos, manifestaram preocupações sobre o processo e o conteúdo da minuta atualizada.” 

Mohammed Hakech, da Federação Nacional Marroquina de Sindicatos Agrícolas (FNSA), e da Vía Campesina, mencionou: “A presidência não tem autoridade para modificar o mandato deste Grupo de Trabalho se pretende alargar o âmbito de aplicação do projeto de tratado a qualquer tipo das empresa, quando deveria concentrar-se apenas nas empresas transnacionais. Mas, na verdade, foi isso que a Presidência fez. O documento apresentado não terá nenhum impacto na impunidade das empresas transnacionais ou da sua cadeia de valor. Também não contribuirá para a restauração da soberania popular e estatal, prejudicada pelo poder destas entidades, nem para o acesso à justiça para as vítimas.” 

7 delegados [lista abaixo] da Rede Interparlamentar Global (GIN) , uma rede de mais de 200 Membros do Parlamento que apoiam as negociações do Tratado Vinculante da ONU, participaram das negociações e organizaram um evento na ONU expondo os desafios que as empresas colocam ao seu trabalho como representantes eleitos e responsáveis políticos. Em uma declaração compartilhada, eles declararam:  

“O objetivo deste Tratado Vinculante é pôr fim às deficiências jurídicas globais existentes e garantir que as empresas transnacionais sejam responsabilizadas, e acabar com a impunidade que ocorre a nível global e local, direta ou indiretamente, com as suas empresas afiliadas e subsidiárias, que devem responder por atos que ameacem os direitos das pessoas, dos povos indígenas e das comunidades locais, dos territórios e do meio ambiente.”

Quando a sessão de segunda-feira (23) chegou ao fim, representantes das comunidades afetadas e ativistas de todo o mundo reuniram-se em frente ao Palácio da ONU, onde ativistas subiram ao topo do lendário monumento Broken Chair (Cadeira Quebrada) para erguer uma faixa gigante com o slogan: “Direitos dos Povos, Regras para Corporações”. Líderes de comunidades em África, Ásia, América Latina e Europa deram voz às suas experiências com empresas transnacionais que violam os direitos humanos, atacam defensores destes e sindicalistas e destroem meios de subsistência. Muitos ativistas expressaram a sua solidariedade com o povo palestino, usando bandeiras ou lenços (Keffiyeh), ligando a luta global contra a impunidade das empresas transnacionais com o genocídio em Gaza.

O genocídio em curso em Gaza foi um tema recorrente e central das negociações da ONU, e tanto os oradores do Estado como da sociedade civil relacionaram as violações dos direitos humanos ocorridas em Gaza com o trabalho para responsabilizar as transnacionais em matéria de direitos humanos.  Wesam Ahmad, do Centro Al-Haq de Direito Internacional Aplicado, apontou durante o discurso de abertura que: “Aos defensores iniciais deste processo de tratado, incluindo muitos no grupo africano e latino-americano, não deve passar despercebido que as mesmas empresas historicamente envolvidas no sofrimento do seu povo, estão hoje desenvolvendo interesses nos campos de gás natural do Mar Mediterrâneo, enquanto os fabricantes de armas lutam para satisfazer a demanda e se desenvolvem novas rotas comerciais”. A devastação em Gaza não é isolada; é um sintoma de um problema maior – um sistema onde as corporações transnacionais se beneficiam da opressão, dos assassinatos e da destruição apoiando ambições imperiais.”

Associações empresariais, representando milhões de transnacionais e o seu poder de influência neste processo, também estiveram presentes nestas negociações.  

Representantes da Câmara de Comércio Internacional, da Organização Internacional de Empregadores e do Conselho dos EUA para Negócios Internacionais participaram nas negociações, apelando a uma abordagem “colaborativa”. No entanto, estas intervenções e participação da indústria no processo foram veementemente criticadas por representantes da sociedade civil que defendem o tratado. Como disse Erika Mendes da Ja!, Amigos da Terra Moçambique e Amigos da Terra Internacional (Foeint): “A interferência corporativa neste processo é um dos principais obstáculos à garantia de um tratado forte que defenda os direitos humanos e as comunidades em todo o mundo. A interferência constante de frentes corporativas neste processo faz parte de uma tentativa de normalizar a captura corporativa na elaboração de políticas – desde as nossas capitais nacionais até aos corredores das Nações Unidas. É por isso que a sociedade civil que apoia este tratado tem sido unânime desde o início do processo sobre devermos proteger estas negociações, e a implementação do tratado, da captura corporativa.”

O que está evidente desde os dois primeiros dias de negociações é que existe uma força crítica crescente, de governos e da sociedade civil, que está empenhada em garantir um tratado que defenda os direitos humanos, que acabe com a impunidade de empresas transnacionais, e que proporcione acesso à justiça às comunidades em todo o mundo.

Com a contínua violação de direitos humanos e destruição do meio ambiente, não há mais tempo a perder.

Confira fotos do ato na Broken Chair na galeria: 

Conteúdo originalmente publicado na página da Campanha Global, em: https://www.stopcorporateimpunity.org/press-release-historical-negotiations-in-the-un-unveil-linkages-between-transnational-corporate-impunity-and-imperialism/  

 

As negociações de um Tratado sobre empresas transnacionais e direitos humanos na ONU

 

Em 1972, Salvador Allende faz um discurso histórico na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o acúmulo de poder nas mãos de empresas transnacionais. Naquele momento, países reunidos no projeto político do Terceiro Mundo disputavam os sentidos políticos das Nações Unidas e contestavam a presença das desigualdades sociais e do colonialismo, permitindo o avanço de iniciativas para regulação das empresas transnacionais.

Assim como Allende caiu no golpe de 1973, os demais governos progressistas foram sufocados pelo avanço da onda neoliberal no mundo. Na América Latina, a crise da dívida externa foi asfixiando as economias nacionais e estrangulando governos. Com isso, os espaços do multilateralismo foram cada vez mais ocupados pelo imperialismo norte-americano.

Já em 1999, havia um consenso do papel que as corporações tinham no rumo do desenvolvimento, firmado no Pacto Global. Esse foi apenas o primeiro passo na colonização do imaginário das empresas como atores-chave do desenvolvimento. Dessa forma, expandiu-se a crença de que as empresas transnacionais já não seriam parte do problema das violações aos direitos humanos, mas que teriam as soluções a elas. Por isso, a aposta por mecanismos de voluntariedade ao invés de marcos normativos que responsabilizem as empresas.

Em 2011, esse ideal se consolidou com a edição dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, o chamado Marco Ruggie. Somente em 2014, com a presença de governos progressistas na América Latina no Equador, Bolívia, Venezuela, e na África, especialmente na África do Sul, retoma-se as críticas à atuação das empresas transnacionais. O resultado foi a aprovação da Resolução 26/9 que cria o Grupo Intergovernamental para a construção de um Tratado Juridicamente Vinculante sobre Empresas Transnacionais.

Entre as várias sessões, incluindo ofensivas de boicote, chegamos na 9ª reunião do Grupo de Trabalho, que acontece nesta semana. Dessa vez, é a presidência do grupo, o Equador, que conduz, de maneira arbitrária e sem transparência, para o esvaziamento do conteúdo do texto. Nos últimos anos, o Equador tem cumprindo o papel de retirar conteúdos considerados pelos movimentos sociais e comunidades atingidas como fundamentais para a proposta, tais como a previsão de obrigações diretas às empresas transnacionais pelas violações aos direitos humanos; o foco nas empresas transnacionais; a previsão de uma Corte Internacional. Em sua última movimentação, apresentou um novo borrador para a negociação no qual, de forma antidemocrática, aceita sugestões de determinados países e exclui de outros, sem qualquer justificativa.

Segundo a Campanha Global pelo Desmantelamento do Poder Corporativo e pela Soberania dos Povos, é preciso focar na atuação das empresas transnacionais, as quais são responsáveis por gerir uma escala global de impunidade, não havendo normas internacionais que as responsabilize. Essas empresas se beneficiam da falta de normativas para promover uma violação estrutural aos direitos humanos. Para a Campanha, é importante inverter a lógica atual do lucro sobre a vida, afirmando a primazia dos direitos humanos frente aos acordos comerciais e de investimento e ao direito econômico. Os anos de voluntariedade não produziram modificações na efetivação dos direitos humanos. Empresas seguem violando, mesmo com suas certificações, relatórios de sustentabilidade, diretrizes e mecanismos de devida diligência. Assim, é preciso equiparar as forças, por isso, avançar para regras para empresas transnacionais.

Movimentos populares e a sociedade civil brasileira estão interessados em visualizar as posições do governo brasileiro. Até agora, o Brasil compôs o Grupo sem apresentar contribuições relevantes às negociações. Inclusive, nos anos pós-golpe e de governo Bolsonaro, a postura foi de cerceamento da presença e atuação da sociedade civil durante as negociações. Além de comentários vexatórios sobre aspectos de gênero no texto. Existem altas expectativas, que durante o Governo Lula, o país possa ter uma postura mais atuante, tanto na abertura para construção com a sociedade civil como num texto que supere a arquitetura da impunidade corporativa efetivamente.

Recentemente, o Ministério das Relações Exteriores recebeu lideranças da Campanha Global e suas propostas para o Tratado. Continua, em aberto, quais delas serão incorporadas nas negociações, e como o ministério dará continuidade aos diálogos com as comunidades, a sociedade civil e os movimentos populares.

No cenário nacional, o Ministério dos Direitos Humanos tem realizado debates sobre o PL nº.572/2022, que versa sobre direitos humanos e empresas, sinalizando a importância de avançar em marcos normativos. Muito embora sua gestão ainda seja marcada por um intenso diálogo com mecanismos como o Pacto Global e empresas. Resta saber qual será a postura do ministério e como influenciará nas negociações do Tratado.

As atuações do governo em espaços internacionais repercute com falas históricas sobre o combate às desigualdades, a preservação do meio ambiente, a proteção dos povos indígenas e comunidades tradicionais, bem como a aproximação Sul-Sul. Vale ressaltar, nas últimas semanas, o papel desempenhado pelo Brasil na busca por um cessar-fogo na faixa de Gaza, dentro do Conselho de Segurança da ONU.

E sobre esse tema, não podemos deixar de mencionar que dentre as principais empresas transnacionais está a indústria armamentista, uma das maiores consumidoras de minerais, por exemplo. Há tempos, campanhas como a do Movimento BDS denunciam a atuação dessas corporações nos territórios ocupados. No caso da Palestina, empresas como G4S, de Israel, utilizam o conflito como laboratório de práticas, que depois serão vendidas para gestão de presídios, construção de muros e empresas de segurança privada. Dificilmente, essas empresas são responsabilizadas pelo seu papel nos conflitos.

Inclusive, a Palestina é uma das nações mais aguerridas na defesa dos direitos dos povos nas negociações do Tratado. Em 2022, a representação Palestina defendeu firmemente a participação da sociedade civil e a continuidade das negociações sobre o texto acumulado ao longo dos anos. Em meio à grave situação de violência humanitária de Israel contra a Palestina, certamente este será um tema que virá à mesa na 9ª Sessão; esperam-se manifestações de solidariedade internacionalista das organizações presentes, assim como as discussões das transnacionais de segurança na Palestina.

Recordamos a Resolução 31/36 do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que determinou um estudo sobre a atuação de empresas na faixa de Gaza, e os resultados corroboram com sua cumplicidade com esse crime contra o povo palestino. No entanto, o sistema internacional de proteção aos direitos humanos segue fazendo vista grossa à Israel, por pressão dos EUA (Estados Unidos).

Regular o poder corporativo é uma necessidade para continuidade das formas de vida na Terra, sejam humana, animal, vegetal. As corporações, em sua regulação privada, não conseguiram superar os problemas que elas mesmas causam. Esse caminho já foi experimentado e não deu resultados. É hora e momento de experimentarmos uma via de controle e de responsabilização, sob pena de nos aprofundarmos ainda mais nas mazelas do capitalismo.

Direitos para os povos, regras para as empresas!

Edição: Rodrigo Durão Coelho

* Artigo publicado originalmente em https://www.brasildefato.com.br/2023/10/25/as-negociacoes-de-um-tratado-sobre-empresas-transnacionais-e-direitos-humanos-na-onu

Tratado Vinculante internacional na ONU e PL 572/2022 no Brasil: a luta para responsabilizar empresas transnacionais por seus crimes


Nas últimas décadas, o neoliberalismo impôs ao mundo uma profunda desregulamentação,
promovendo o desmonte de políticas públicas sociais gestadas pelo Estado para as populações mais empobrecidas, e a ampliação dos negócios das empresas transnacionais do centro do sistema capitalista, no Norte global, para todos os continentes. Comunidades, as populações nos países e trabalhadores tiveram direitos retirados e são constantemente desrespeitados; territórios e meio ambiente foram e ainda são explorados e, muitas vezes, destruídos. Tudo para que as grandes corporações continuem lucrando muito.

Esse processo foi intenso em países da periferia do sistema capitalista, os do Sul Global, onde está o Brasil, que sofre com a superexploração e genocídios em larga escala, enquanto os países centrais seguem enriquecendo. Para atender aos interesses das transnacionais, criou-se uma série de mecanismos econômicos, jurídicos e governamentais que protegem as operações dos investidores. Entre eles estão os acordos de livre comércio, tratados de proteção ao investimento e mecanismos de resolução de litígios entre investidores e Estados. Ao mesmo tempo, não existem marcos normativos internacionais e nem no Brasil que responsabilizem as grandes corporações pelos crimes e violações que cometem. Essa engrenagem é o que chamamos de arquitetura da impunidade, criada para proteger os lucros das empresas transnacionais (ao custo da vida das pessoas e do meio ambiente saudável) e evitar que as corporações sejam punidas em sua busca incessante por dinheiro e poder.

Por isso se discute, desde os anos 1970, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), a proposta de um Tratado Vinculante de Direitos Humanos e Empresas que responsabilize as empresas transnacionais, faça a reparação integral às comunidades e povos atingidos e promova garantias para evitar que as corporações repitam seus crimes. Mas somente em 2014, após décadas de luta da sociedade civil articulada na Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo, Reivindicar a Soberania dos Povos e Pôr fim à Impunidade, conseguimos que o Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) criasse um Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta (OEIGWG) para negociar e redigir um Tratado Vinculante internacional para responsabilizar, de fato, as empresas transnacionais.

É verdade que a ONU já tinha dado alguns passos nesse debate sobre Direitos Humanos e Empresas três anos antes, em 2011, quando adotou os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, mas consideramos insuficientes. Essa diretiva é baseada no voluntarismo empresarial. Ao longo dos anos, foram se consolidando, nos países, marcos baseados nesses princípios, como os Planos Nacionais de Ação e, mais recentemente, a devida diligência, processo em que as próprias empresas devem tomar medidas para evitar (e, caso ocorram, para mitigar) danos ambientais e às comunidades em consequência de suas atividades econômicas. O que não acontece, e quando ocorre, é de forma injusta, sem reparar os prejuízos das populações e dos países atingidos.

Aqui no Brasil, vivenciamos situações que comprovam que o voluntarismo empresarial não funciona. Em Novembro, completará 8 anos do rompimento da barragem de rejeitos de mineração em Mariana, em Minas Gerais, e os atingidos brigam até hoje pela devida responsabilização das mineradoras e empresas envolvidas na atividade. Além disso, as mineradoras não revisaram suas medidas de prevenção e de segurança, e a tragédia de Mariana, em 2015, repetiu-se quatro anos depois com o rompimento da barragem de rejeitos na cidade de Brumadinho (MG), que teve impacto ainda maior. Os dois crimes envolvendo as empresas VALE, Samarco e BHP Billiton resultaram em quase 300 pessoas mortas e comunidades e meio ambiente destruídos. Outras situações também são marcadas pela impunidade, como o despejo forçado de moradores para a ampliação do aeroporto em Porto Alegre (RS) pela empresa alemã Fraport e os inúmeros casos de trabalho precarizado em todo o país praticado por empresas que, inclusive, integram o Pacto Global da ONU no Brasil.

A Campanha Global e nós, Amigas da Terra Brasil, apostamos no Tratado Vinculante internacional junto à ONU para responsabilizar as empresas transnacionais por seus crimes socioambientais, garantindo as indenizações necessárias e resguardando os direitos das comunidades atingidas em todo o mundo. Apenas um mecanismo sério e efetivo de cobrança, que convoque as partes envolvidas a responder por seus atos, pode impedir que os direitos dos povos sejam desrespeitados, promovendo a vida.

A Campanha Global construiu uma proposta de texto para o Tratado Vinculante, o Tratado Azul, que foi entregue ao GT Intergovernamental da ONU em 2017, o qual se contrapõe aos marcos voluntaristas por priorizar os direitos humanos acima de qualquer acordo de comércio ou de investimento (o que se chama de primazia no Direito Internacional). A proposta da sociedade civil aborda essa questão diretamente na economia, no que se refere às cadeias globais de produção das indústrias e empresas, e na Justiça nos tribunais dos países, sugerindo até mesmo a instituição de um Tribunal Internacional de Corporações Transnacionais e Direitos Humanos com a competência para receber, investigar, julgar e executar decisões.

As organizações da Campanha Global também buscam o apoio de parlamentares de seus países para o estabelecimento do Tratado Vinculativo junto à ONU. Até o momento, conseguiram a adesão de 246 parlamentares; desses, 14 são brasileiros.

No final de Outubro, entre os dias 23 a 27, estaremos participando da 9ª Sessão de Negociações na sede da ONU em Genebra, pressionando para que o tratado avance realmente. Acompanhe o site e as redes sociais da Amigas da Terra Brasil para mais informações 

Um Tratado Vinculante internacional poderia até mesmo contribuir em responsabilizar as empresas transnacionais que financiam e acabam perpetuando a violação de direitos humanos em território palestino, como explica Andressa Soares, do Movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções):


PL 572/2022 quer responsabilizar empresas nacionais e estrangeiras por direitos violados no Brasil 

Ao mesmo tempo em que pressionam pelo Tratado Vinculante em nível internacional, as organizações que compõem a Campanha Global articulam a criação de leis nacionais para reforçar o tratado junto à ONU. No Brasil, foi protocolado, no ano passado, o Projeto de Lei 572/2022, que cria a lei marco nacional sobre Direitos Humanos e Empresas e estabelece as diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o assunto. O PL foi apresentado pelos deputados federais na época Helder Salomão (PT/ES), Áurea Carolina (PSOL/MG) e Fernanda Melchionna (PSOL/RS), articulado com organizações e movimentos sociais, pesquisadores, universidades, assessores jurídicos populares, ambientalistas e comunidades atingidas, especialmente de Mariana e Brumadinho (MG). 

Atualmente, o PL 572/22 tramita na Câmara dos Deputados. Se aprovado no Congresso Nacional, será a primeira lei com este teor em todo o mundo. A lei marco avança para a responsabilização de empresas nacionais e estrangeiras com atuação no país por violações aos direitos humanos, reconhecendo obrigações ao Estado e às mesmas, e estabelecendo, ainda, medidas de prevenção, monitoramento e reparação, bem como direitos às populações atingidas.

A aprovação do PL 572/22, um projeto constituído a partir dos atingidos pelas violações de direitos, também questionaria a arquitetura da impunidade e o poder corporativo das grandes empresas, que precisam urgentemente ser desmantelados.

A presidenta da Amigas da Terra Brasil, Letícia Paranhos, participou de um seminário virtual promovido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) sobre o PL. E em breve estará nas negociações da ONU, em Genebra, sobre o Tratado Vinculante. Confira sua manifestação no seminário no vídeo abaixo e saiba mais sobre a importância do projeto de lei e de um Tratado Vinculante para garantir direitos para os povos e regras para as empresas: 

Amigas da Terra Brasil

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