Estamos acompanhando as informações acerca das comunidades indígenas, quilombolas e de pesca artesanal que, como toda a população, enfrentam os impactos decorrentes deste último evento climático que bateu recordes no Rio Grande do Sul.
Ontem terminamos um mapeamento das comunidades indígenas que estão sendo mais impactadas pelas águas e identificando os casos mais graves, para posteriormente pensarmos em ações conjuntas de apoio e solidariedade, e subsidiar a tomada de ações pelo Poder Público.
De todas as comunidades indígenas, destacamos três casos Guarani emergenciais:
Comunidade Yjerê da Ponta do Arado, em Porto Alegre (bairro Belém Novo), onde o cacique Timóteo preferiu se manter na área após abandonarem suas casas às margens do Guaíba e se deslocarem para um terreno mais elevado.
Comunidade Pekuruty, em Eldorado do Sul, e Comunidade Pindó Poty, em Porto Alegre (bairro Lami), as quais precisaram deixar suas áreas com apoio da Defesa Civil. No entanto, após a saída das famílias Guarani da comunidade Pekuruty, o DNIT destruiu suas edificações às margens da BR-290, sem qualquer consulta ou justificativa.
As águas ainda seguem subindo na região de Porto Alegre. Nos municípios de Canoas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Guaíba e Eldorado do Sul, Cachoeirinha, além dos bairros de Porto Alegre, especialmente nas zonas Norte e Sul, a situação ainda é desesperadora.
Precisamos que as águas baixem para a gente poder atuar no sentido de assegurar habitação, alimentação e todo o apoio na reconstrução das comunidades indígenas.
Além das comunidades já citadas, realizamos um mapeamento preliminar para identificar as comunidades indígenas mais impactadas em decorrência deste evento climático extremo. O mapeamento foi realizado em conjunto pela Comissão Guarani Yvyrupa, Cimi-Sul, FLD/ Comin/Capa e CEPI, a partir do contato com a a diversas lideranças/representantes indígenas e acessando as informações da Funai e Sesai.
Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS):
Até o momento, constam as seguintes comunidades indígenas em situação de emergência:
Água Santa: Kaingang Acampamento Faxinal e TI Carreteiro.
Barra do Ribeiro: Mbyá-Guarani Passo Grande Ponte, Flor do Campo, Yvy Poty, Ka’aguy Porã, Guapo’y e Coxilha da Cruz, Tapé Porã.
Cruzeiro do Sul: Kaingang Acampamento TãnhMág (RS-453).
Eldorado do Sul: Mbya Guarani Pekuruty.
Engenho Velho: Kaingang TI Serrinha.
Erebango: Kaingang TI Ventarra, Guarani de Mato Preto.
Estrela Velha: Ka’aguy Poty.
Estrela: Kaingang Jamã Tý.
Farroupilha: Kaingang Pãnónh Mág.
Faxinalzinho: Kaingang TI Kandóia.
Iraí: Kaingang Goj Veso e Aeroporto.
Lajeado: Kaingang , Foxá.
Maquiné: Mbya Guarani Ka’aguy Porã, Yvy Ty e Guyra Nhendu.
Mato Castelhado: Kaingang Tijuco Preto.
Osório: Mbya Guarani Tekoa Sol Nascente.
Passo Fundo: Kaingang Goj Yur, Fág Nor.
Porto Alegre: Charrua Polidoro, Mbyá-Guarani Ponta do Arado e Pindó Poty, Mbya Anhatengua, Kaingang Gãh Ré (Morro Santana), Tupe Pan (Morro do Osso).
Riozinho: Ita Poty.
Rodeio Bonito e Liberato Salzano: TI Rio da Várzea (emergência na Linha Demétrio).
Salto do Jacuí: Kaingang Horto Florestal, Aeroporto e Júlio Borges, Mbyá-Guarani Tekoá Porã.
Santa Maria: Mbya Guarani Guaviraty Porã e Kaingang Kētƴjyg Tēgtū (Três Soitas).
Santo Ângelo: Mbya Guarani Yakã Ju.
São Francisco de Paula: Xokleng Konglui.
São Leopoldo: Kaingang Por Fi Gá.
São Gabriel: Mbya Guarani Jekupe Amba.
São Miguel das Missões: Mbyá-Guarani Koenju.
Tabaí: Kaingang PoMag.
Terra de Areia: Mbya Guarani Yy Rupa.
Torres: Mbya Guarani Nhu Porã.
Palmares do Sul: Mbya Guarani da Granja Vargas.
Viamão: Mbya Guarani Nhe’engatu (Fepagro), Pindó Mirim, Mbya Guarani Jatai’ty TI Cantagalo e Takua Hovy.
Vicente Dutra: Kaingang TI Rio dos Índios.
As Organizações encaminham essa relação, que não é definitiva, pois ainda há informações necessárias a serem acrescentadas, mas através da qual se pede ao Poder Público atenção no sentido de garantir assistência adequada neste tempo de tantas adversidades.
Pede-se também apoio às organizações e entidades da sociedade no sentido de auxiliarem, através de apoios e ações solidárias às comunidades que necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.
Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS):
Assinam esse documento a Comissão Guarani Yvyrupa, o Cepi, Cimi Sul e FLD/Comin/Capa.
Apoios e ações solidárias às aldeias indígenas:
Aldeias necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.
👉🏽 Ponto de coleta de doações para as comunidades indígenas:
📍Paróquia Menino Jesus de Praga, Rua Dr. Pitrez, 61, bairro Aberta dos Morros, Porto Alegre/RS
Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) realizou o ato ‘Parada da Légua’, em Triunfo (RS). Por uma Solidariedade Real e Radical, Povos da Terra marcharam em unidade pelo direito de ser e existir. “Aqui nós estamos mais um dia lutando pelo nosso direito de ser e existir. Ouçam o nosso grito. O nosso grito, ele não é só hoje, ele é todo dia. E quero dizer que a gente é pessoas, como vocês. A gente luta pelo que a gente ama, a gente vive o cotidiano. Mas nós estamos sendo atacados. Isso sim é uma denúncia. Quando a gente é atacado naquilo que a gente ama no nosso íntimo, a gente sente e a gente sofre também. Mas a gente escolheu lutar com alegria, cantar e chorar ao mesmo tempo. Porque é assim que é a vida no Kilombo de Mãe Preta. Eu queria que vocês ouvissem, realmente: que o aqui e o agora é que a gente preserva o amanhã”. Fala de Nishtha, Ekedi Khan da Nação Muzunguê, da Comunidade Kilombola Morada da Paz, durante a Parada da Légua 2024
No sábado (20), o típico som do trânsito que corre desproporcionalmente veloz pela BR 386 foi abafado. Maracás, tambores e múltiplas vozes irromperam o asfalto num ato que trazia uma mensagem de coletividade e de vida. Povos do campo, das águas, das florestas, das ocupações urbanas, das periferias, dos assentamentos da reforma agrária, das retomadas indígenas, da comunidade LGBTQIAP+, de quilombos do Pampa à Amazônia, refugiados e imigrantes de outros países e movimentos sociais faziam coro. No mesmo ritmo de um batimento cardíaco, anunciavam: avançaremos.
Em defesa da autodeterminação dos povos e de seu direito radical de ser e existir, a Comunidade Kilombola Morada da Paz realizou o ato “Parada da Légua”, denunciando a ampliação da BR-386, a menos de 500 metros da comunidade. Um projeto que já perturba o sonho das crianças e ameaça o território, intimidando gentes, bichos, árvores anciãs, o tempo e a terra que ali coabitam. Conforme relato de Yashodhan Abya Yala, Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da Comunidade Kilombola Morada da Paz, a ampliação da BR é mais uma ameaça dos mega empreendimentos. “Até hoje nunca vimos o projeto, não fomos consultados”, relatou. Ponto que fere a Convenção n.169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé às comunidades tradicionais que são impactadas por projetos, políticas ou empreendimentos.
Com o lema “Por uma Solidariedade Real e Radical em Território de Mãe Preta CoMPaz: povos tradicionais marcham em unidade pelo direito de ser e existir”, a comunidade articulou a manifestação pacífica, alertando a vizinhança e autoridades sobre os impactos do empreendimento no local. Assim como comunicando a sua luta para barrar a légua, uma rodovia também conhecida como o concreto dum processo extrativo que dilacera a sociobiodiversidade. Durante a marcha poética-cultural, política-espiritual, a légua parou, abrindo espaço para o movimento dos pés no asfalto. E o diálogo se deu com quem estava parado no trânsito e moradores das beiras da BR, contando também com a distribuição de materiais informativos.
Para além da denúncia, o ato trouxe a vivacidade da memória e do tempo. Entre falas, batucadas, espadas de São Jorge ao alto, som da concha e do berrante, no caminho se narrava a história do Kilombo Morada da Paz, que existe em Triunfo há 21 anos. Uma comunidade de remanescentes, aqueles que lembram e mantêm viva a memória do seu povo. Uma história que também é de luta, e que se conecta à realidade de tantos outros territórios que resistem. Que em meio a um Estado racista e colonial, ao poder das corporações e as decorrentes políticas de morte ditadas por um projeto político que entende o valor no lucro, até podem sentir medo, mas não ousam vestir. E insistem, com ganas de transformar a realidade, em anunciar a sua existência.
Viemos de nossas terras fazer barulho na terra inteira
Tempo é memória. A solidariedade entre territórios que lutam para preservar a existência e o amanhã
Na concentração, na rótula há 1,6 km da Comunidade em direção à Porto Alegre, um arco-íris abriu os trabalhos. Na marcha, que ocupou por mais de uma hora as duas pistas da BR no sentido da região metropolitana ao interior do estado, a lua imensa, quase cheia, refletia do céu no rosto de uma multidão. Carros parados ao longo da rodovia indicavam algum tipo de silêncio, como uma espera por uma mensagem que quebrasse o som de motores. Ao longo de quilômetros de caminhada, marchavam em defesa do Kilombo povos articulados em luta, munidos com a memória de seus territórios e um amor transbordante. Foram mais de cem pessoas presentes, com a força de uma caminhada daqueles que vem de muito antes, e que seguirá nas gerações futuras.
Entre pontos para Ogum, Iansã, Esù e Xangô, ecoavam do começo ao fim da Parada da Légua frases como: “Essa luta é nossa, essa luta é do povo, é akilombando que se faz um Brasil novo” e “Pelo direito de ser e existir: solidariedade real e radical”. A radicalidade dos cantos contava sobre o amor das existências diversas, multiétnicas. Sobre aqueles que tombaram, mas fazem presença a cada passo dado. Sobre a confluência do encontro de norte a sul do Brasil, de retomada a retomada indígena, de quilombo em quilombo, das ocupações de luta por moradia e por reforma agrária.
“A nossa luta é a luta deles também. Em busca de moradia, em busca de espaço, para a continuação de sua resistência. É importante para nossos parentes kilombolas. Eles estão colocando lixão aqui, as empresas querendo tirar eles para colocar lixão, que tem químicas que prejudicam a vida. É muito importante fazer a nossa parte apoiando. Tão querendo ampliar a BR também, tomando o espaço dos moradores daqui. Principalmente dos parentes quilombolas, que também defendem a terra, assim como nós, indígenas, originários da terra”, manifestou em apoio a cacica Iracema Gãh Té Nascimento, da Retomada Multiétnica Gãh Ré, localizada no Morro Santana, em Porto Alegre (RS). Gãh Te mencionou ainda a importância de valorizar as mulheres na luta, e que sua aliança com a Morada da Paz já percorreu Brumadinho (MG) e Brasília (DF), numa solidariedade que vem de outros trilhares.
Para Claudia Dutra, do Movimento Negro Unificado, participar da Parada da Légua foi gratificante. “Nos sentimos agradecidos com o convite e em apoiar a luta aqui da comunidade frente a ampliação da BR, também frente a pauta territorial. O nosso envolvimento enquanto militantes e ativistas versa profundamente sobre a questão de raça e território, então os encaminhamentos às autoridades competentes para as pautas demandadas aqui serão devidamente encaminhadas”, comentou. Claudia mencionou que estão construindo junto às comunidades quilombolas do RS a articulação jurídica e também de apoio, inclusive pautando a 734785, que é a ação civil pública, e o fundo de reparações da comunidade negra do Rio Grande do Sul e nacional. “Estamos no apoio nos direitos reparatórios, da memória, da verdade e da justiça dos nossos povos negros, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais de matriz africana”, explicou.
No ato também estava presente o cacique Maurício Ven Tainh Salvador, da retomada Kaingang na Floresta Nacional de Canela (Flona), que relatou a importância da união dos povos, de suas culturas e sabedorias. “A Parada da Légua é uma retomada, num aspecto de dizer, para quem quer ouvir e quem quer saber, que a gente existe. Que a gente tá aqui e que a gente resiste para existir. É muito importante esse movimento que a gente tá fazendo hoje. A nossa vida é isso, é viver na retomada, lutando por espaços. Viemos nos apoiar e unir para buscar o reconhecimento de nossos territórios e de nossas histórias”, evidenciou.
O cacique também mencionou que um legado está sendo deixado para as próximas gerações. E que mesmo com vitórias, também existem as mágoas e as dores de quem vivencia na pele a violência da exploração e da opressão. Mas relembra como uma guiança: “Quando a gente vê a comunidade sorrindo, a comunidade tendo um espaço, os momentos de tristeza e dor vão embora e o que prevalece é a felicidade e a prosperidade de nossas famílias e de nosso povo”.
Remontando a fala das lideranças kaingang e mbya-guarani, moradores do assentamento da reforma agrária Sepé Tiaraju, de Viamão (RS), ressaltaram : “Não é a luta da Morada da Paz, é a luta de um povo todo”. Antes da Parada da Légua, quem estava em marcha foi adentrado pela Morada da Paz, Território de Mãe Preta, e neste encontro, no Kilombo, se preparou para a caminhada. Agradecido pela acolhida de Mãe Preta, cacique Maurício afirmou a importância da comunidade. Citou que a confluência de povos e os diálogos são fortalecimento para todas as lutas. “A gente vem através desses encontros perceber que tem bastante comunidades em luta, assim como nós. Que precisam de fortalecimento espiritual, mental, de experiências. Eu venho aqui aprender com pessoas que já vem há bastante tempo na luta, mas também para contribuir. É muito importante esse encontro para que a gente possa se unir, ajudar, contar das nossas experiências de luta e fortalecer a questão da coragem, de saber que a gente não tá sozinho. Essas vitórias que a gente vem buscando virão”, contou.
“Essa marcha é um chamamento feito por esse território kilombola, mas não é só nossa. É uma marcha das retomadas, das ocupações, das mulheres, da comunidade LGBTQIAP+. Uma marcha pelo direito de ser e existir, pela solidariedade real e radical dos povos indígenas, tradicionais. É uma marcha do sonho, da força. Para que a vida se sustente e se mantenha, mas não do modo como ele está. Ela se mantenha e se sustente com dignidade para todos, radical e real ”, clamou Yashodhan.
Em um mundo com cicatrizes abertas da colonização, que tenta impor uma forma única de vivenciar a realidade, salvaguardar e celebrar a diversidade de vida, de vivências, de culturas, assim como se expressar, é uma arma poderosa. Para além do fato de que o direito a ser e existir é fundamental, é na defesa dos modos de vida tradicionais, indígenas e kilombolas que se protege também a possibilidade de mundos futuros, tendo em vista que os seus territórios são onde mais se preserva a sociobiodiversidade. Nas suas formas de vivenciar a vida, numa coletividade que vai além do humano, estão muitas das respostas para a atual crise civilizatória, especialmente frente à emergência climática.
“A nossa cultura é o nosso jeito de ser e viver. Se há violação, ela fere com o nosso jeito de ser e viver. Que é um jeito de ser e viver amparado na Nação Muzunguê, que é uma espiritualidade que se manifesta com um sopé das matrizes africanas de origem yorubanta, das matrizes indígenas, em especial a guarani e também ela é búdica, sagrada. Ela reinventa, revive e chama para si o exercício do sagrado ao seu cotidiano”, expôs Yashodhan. Da retomada Mbyá Guarani Tekoá Ka’agüy Porã (Mata Verdadeira), de Maquiné (RS), o cacique André Benites salientou: “eu me orgulho e tenho de escudo a minha cultura e a minha expressão”.
Ao ser questionada sobre o que esperava da Parada da Légua, Yashodhan expressou que o que esperava da mobilização já estava acontecendo, naquele instante. “Hoje, aqui, temos mais de 100 pessoas reunidas, de ocupações, retomadas, quilombolas, indígenas, pessoas que são aliadas dessa luta. Eu também tenho o desejo de dar visibilidade para essa luta e dizer: nós existimos, nós sempre existimos. E enquanto essa vida pulsa a gente vai lutar”.
“Os nossos passos vêm de longe. E tem muita gente que tombou na luta para que a gente pudesse estar aqui hoje”
A Parada da Légua 2024 contou com diversos momentos marcantes, que remontam a realidade de cada território em luta que em solidariedade compunha o ato em defesa do Kilombo. Entre eles, ocorreu a performance “O Pulso Ainda Pulsa”, com a Kasa Okupa Contracultural Jibóia, de Porto Alegre (RS) – um espaço de moradia e cultura focado na população LGBTQIAP+ e em mulheres cis, que tem como intuito o acolhimento, geração de qualidade de vida, troca de experiências e o crescimento de novas redes de apoio comunitário, que fortalecem também a conexão com a terra e o território.
Omar Flores, morador da Okupa Jibóia, participou da Parada da Légua pela primeira vez, assim como sua ida à CoMPaz. “Estar no território, fazer a trilha, me encontrar e poder sentir essa proximidade com entidades e com toda a energia dali foi muito transformador como indivíduo, espiritualmente”, comentou, compartilhando que se sente fortalecido após Parada da Légua.
O morador da ocupação relembrou momentos de tensão vividos pela Jibóia no último ano, quando em ação arbitrária e ilegal, comandada pela Polícia Militar e tropa de choque, derrubaram parte da ocupação. Naquela data, que marcava 19 de outubro, após violência desproporcional da polícia e do Estado contra a Okupa Jibóia, esta recebeu a visita da Morada da Paz, em ato de solidariedade. No momento, Yashodhan se referiu a uma árvore da okupa como parte do povo de pé. “O pessoal do Kilombo Morada da Paz esteve aqui no dia 19, e escutar esse termo do povo de pé, e ouvir nas falas das pessoas no Kilombo, de muitos outros povos, dos povos encantados, do povo do fundo, que as árvores são os povos de pé, é marcante. No momento em que se falou do povo de pé eu olhei para essa árvore (paineira presente na Jibóia) de um jeito diferente. E voltando do Kilombo eu também sinto essa árvore de uma forma diferente. Então meio que me sinto mais conectado ainda com esse território, entendendo que ele está conectado com todos esses outros. Que a nossa luta está conectada com todas essas outras lutas”, contou.
Entre outras performances apresentadas pela Okupa Jibóia, em conjunto com outros coletivos, como a Okupa Kaliça, “O Pulso ainda Pulsa” trouxe como central o deslocamento fluído por entre todos os blocos do ato, que também representa a forma como foi construída a Parada da Légua e a unidade das lutas ali presentes. “Fizemos a performance caminhando entre as pessoas, olhando elas nos olhos e segurando o próprio pulso enquanto falávamos: o pulso ainda pulsa. Quando a gente se desloca entre pessoas que estão em movimento, a gente precisa conectar uma percepção espacial e corporal diferente, porque o corpo todo da coletividade é o corpo que dança quando tu te desloca. Se tu não tem essa consciência, tu se choca com o outro. E fazendo esse deslocamento, esse movimento coletivo, tocando o próprio pulso, sentindo o próprio pulsar e rememorando e trazendo de volta o que é vivo na gente das pessoas que já se foram, é muito forte, é muito intenso”, mencionou Omar.
Ele contou que integrantes da Okupa perderam pessoas muito próximas no último ano, e que antes da performance, houve um momento em que todes debateram como seria a apresentação. Neste, muitos relatos de luto e perda estavam presentes, e foram sentidos coletivamente. O intuito da performance foi evocar os nomes de todos que tombaram na luta, rememorando que ainda sentimos os seus batimentos. Como disseram no ato: “está presente, pois a gente até sente o pulsar de seu coração”. Entre as menções estavam Mãe Bernadete, Zumbi dos Palmares, Nego Bispo, Marielle Franco, irmã Dorothy, Sepé Tiaraju, Isabel Cristina, Chico Mendes, Julieta Hernandéz. “É como se a gente tivesse colocando esse amor no som, colocando esse amor no ar ali. Enchendo o ato, também, disso. Foi muito curativo, é muito curativo pra nós”, expôs.
Dividida em quatro partes, a performance realizada por integrantes da Okupa Jibóia e da Okupa Kaliça também fez referência a suas próprias lutas, a partir da releitura de uma canção sobre a caminhada que fizeram até o tribunal, se posicionando contra a demolição da Okupação Jibóia. “Ao mesmo tempo trouxemos o vogue, que fala da cultura ballroom, que é muito parte da nossa comunidade e também faz parte dessa luta por espaço, reconhecimento, resistência. Essa luta da comunidade LGBTQIAP+” . Direto da Okupa Kaliça foi declamada uma poesia sobre a questão da branquitude e da luta antirracista, e feito convite para que presentes participassem do grupo de estudos sobre branquitude, que ocorre na Okupa. Por fim, a performance realizada pelas ocupações urbanas trouxe uma manifestação sobre a questão da moradia, expondo dados quanto ao déficit habitacional de Porto Alegre e defendendo o direito à moradia, um direito básico tão violado. “Nem gente sem casa, nem casa sem gente – um refrão que fala bastante da nossa história”, evidenciou Omar.
É preciso parar a légua: a ampliação de uma rodovia e a violação de direitos de uma comunidade
Nascida das entranhas das mulheres pretas, que retomam a luta de seus ancestrais quando foram expulsos de seus territórios, a Comunidade Kilombola Morada da Paz vem há uma década lutando contra a ampliação da rodovia federal.
As obras de ampliação da BR-386 foram iniciadas em 2010 pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). O empreendimento faz parte do programa de Concessão Federal no Rio Grande do Sul e é regulado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)
Conforme a Comunidade, a ampliação no trecho 405-415km afeta diretamente o território, envolvendo, entre outros danos, a supressão de 300m2 da vegetação local e a aproximação perigosa de uma rodovia com alto fluxo de veículos pesados perto de suas porteiras, colocando em risco todas as vidas que compõem o território.
“Não fomos informados absolutamente de nada até hoje, faz quatro anos que estamos nessa luta então ela não é de boa fé. Não nos procuraram até hoje”, afirma Yashodhan Abya Yala.
No final de 2021 a comunidade ajuizou a Ação Civil Pública (N, 5063160-33.2022.4.047100/RS) em que pedia a suspensão do andamento da obra no trecho até que fosse realizada a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé à comunidade, respeitando a Convenção n.169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mesmo após inúmeros recursos dos réus do processo – as empresas concessionárias e o Estado brasileiro, a partir dos órgãos Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) – a Comunidade ganhou a causa sustentando a decisão liminar.
Contudo, esta foi derrubada ao final de 2023, quando a juíza designada para avaliar o mérito do processo decidiu extinguir a ação. O argumento utilizado foi o de que, ainda que tenha legitimidade em reivindicar esse direito, a comunidade estaria se adiantando em seu pedido, já que o cronograma da concessionária teria previsto para 2034 a execução das obras no trecho 358-444 KM, entre os municípios de Tabaí e Canoas, o que tiraria seu caráter de urgência.
Como relata Yashodhan, a duplicação da rodovia federal ameaça a comunidade quando ela fere o protocolo de consulta prévia, livre, informada e de boa fé. “É importante que se diga que a consulta é uma obrigatoriedade do estado brasileiro que é signatário da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A consulta prévia pressupõe um processo que respeite os povos que serão impactados. Aqui no território nós não somos ou isso ou aquilo. É e, e é nós e o nosso povo em pé, as nossas Yanjis, nossas árvores. Somos nós e o ar que respiramos, onde reina a Iansã, Ofurucu. É E. Nós e toda vida de seres sencientes que habitam conosco esse espaço. Então esse espaço todo está sendo ameaçado”.
“Uma juíza sentenciou de modo que ela tenta derrubar a nossa ação civil pública. Então essa marcha, ela também serve para avisar essa juíza de que a sua sentença é uma escrita de cicatrizes de violação e exclusão. E nós não fizemos da borda, da periferia ou da margem, um espaço de exclusão. Pelo contrário, nós fizemos da periferia, da margem, da borda que tentam nos colocar um espaço de libertação. Queremos mais do que sobreviver, queremos dignidade. Que essa juíza entenda o recado que sua sentença não vai borrar a nossa coragem”, afirmou Yashodhan.
“Não se render. Ousar lutar, ousar vencer” Grito pronunciado durante Parada da Légua 2024
“É que nós sabemos: tem portas que só se abrem pelo lado de dentro. Então fomos cavar as brechas, cavar os caminhos arduamente percorridos por pessoas como nós. E nós somos água, senhoras e senhores. E a água sempre encontra um caminho”, referiu-se Yashodhan Abya Yala, Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz. Sua menção foi realizada ao contar a história viva da luta desta comunidade para ser ouvida e consultada durante o processo de ampliação de uma rodovia. Obra que ameaça o território, os corpos de matas, rios, animais e de gentes, assim como impõe uma lógica perversa que busca minar os modos de vida dessa diversidade que pulsa, tomando o seu direito de ser e existir. Frente a um processo colonizatório marcado por violência, existe outra possibilidade de estar no mundo, com a potência de nascentes que vão de encontro ao mar. Contada dos tempos de lá atrás que são também esse instante, ela narra a realidade da resistência dessa comunidade negra em permanecer em seu território, com seus costumes e práticas. De seguir existindo na sua terra fincada no município de Triunfo, às margens da BR 386. Uma importante estrada para escoamento da soja no Rio Grande do Sul que está sendo ampliada, rodeada ainda pela monocultura do eucalipto – duas atividades do agronegócio gaúcho.
Em 9 de março, mês conhecido por suas águas, a Comunidade Kilombola Morada da Paz (ComPaz) abriu caminhos na primeira sessão do ano do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH/RS), na Assembleia Legislativa (AL/RS). Som do berrante. A sua chegada em cantos para Ogum, anunciada por vozes que faziam coro ao batucar de tambores, já trazia como horizonte a força de uma história que tem uma demanda e uma proposição. A demanda é pelo comprometimento do Conselho de Direitos Humanos e Cidadania, para que se coloque como órgão atuante em defesa de que as comunidades sejam ouvidas, especialmente em casos de violações de direitos. Como proposição, para além de alianças possíveis e de compromissos firmados para garantir a justiça dos povos, a Comunidade apresentou o seu Protocolo de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé, contido no Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) enfrenta, há pouco mais de dois anos, as ameaças de dois grandes empreendimentos na região: à frente do território, a obra de ampliação da BR 386 e, na parte dos fundos, a proposição de instalação de um aterro industrial às margens do rio Caí. Opressão, exploração e uma série de conflitos são desencadeados pelo avanço desses empreendimentos, que nem sequer realizaram consulta às comunidades afetadas por sua instalação, pautando uma lógica violenta de progresso que pela primazia do lucro se propõe a uma política de morte. Mas a resistência e a ancestralidade são raízes fortes, que fazem o caminho entre solos pavimentados e indicam outras trilhas, com outros valores éticos. Foi na boa fé da articulação coletiva, organização e luta, que recentemente a Comunidade conquistou mais uma vitória por seu direito de Ser e Existir. No início de janeiro, a Justiça Federal no RS concedeu tutela de urgência suspendendo a obra de ampliação da rodovia no trecho que compreende os Km 405 a 415, onde fica a Comunidade Kilombola Morada da Paz. A obra só poderá ser retomada após a realização de novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, em que a comunidade seja consultada previamente conforme dispõe a Convenção 169 da OIT. Os réus, entre eles o governo federal (Ibama e Incra) e as empresas concessionárias (CCR Via Sul e Empresa de Planejamento e Logística / VALEC), ainda podem recorrer da decisão.
A decisão judicial, um importante precedente para as lutas dos povos kilombolas em todo país, se deu em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Comunidade Morada da Paz em dezembro de 2022, e que teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por ação no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em Novembro de 2021. Na ação, a comunidade kilombola requereu liminar que suspendesse a obra de ampliação da BR 386 no determinado trecho. Também pediu a anulação do licenciamento, já que não foi chamada a participar dos termos de referência do estudo e nem foi citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) realizado pela empresa consultora contratada pela concessionária e apresentado ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), apesar de seu território localizar-se a menos de 500 metros da margem da rodovia.
Além de abordar a decisão mencionada, a participação da Comunidade na sessão de abertura do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) também representou um passo importantíssimo nas lutas por território e possibilidade de ser e de existir no mundo. Yashodhan Abya Yala proferiu em sua fala o que a comunidade exigia no momento: “Chegamos ao Conselho Estadual de Direitos Humanos com uma demanda: nós queremos que esse conselho tenha grupo de trabalho, um grupo de trabalho que seja mais que um observatório. Porque um observador, pode ser um traidor. Um grupo de trabalho nessa comissão que seja escutatório, um grupo de trabalho nessa comissão que demande, que dê conforto, que dê encorajamento, que vigie, que proteja, que seja um espaço de resiliência, resistência e potência de força. Um grupo de trabalho que seja feito com senhores e senhoras desta casa, mas também com senhores e senhoras das comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul, com comunidades indígenas do estado do Rio Grande do Sul, com o povo das ocupações do Rio Grande do Sul, com os refugiados e refugiadas do estado do Rio Grande do Sul.”
É preciso ir além do reconhecimento da existência das comunidades e de dar o direito em decreto, é preciso assegurar na prática esse direito e dar as condições para a sua defesa. “Nós estamos aqui hoje para demandar desse Conselho Estadual de Direitos Humanos que ele seja o que ela se propõe na sua missão: resistência, reexistência. Um espaço em que a gente possa ser mais do que corpos contados ao chão. O Conselho não pode servir para contar as nossas mortes, deve servir para impedir a morte moral, a morte espiritual, a morte cultural e a morte histórica e política de povos e pessoas comuns”, expôs Yashodhan.
A demanda levada ao CEDH-RS, reunido na Assembleia Legislativa, é para que o Estado Brasileiro e o Estado do Rio Grande do Sul de fato deem recursos e condições para a existência desse que é um dos bastiões de resistência da sociedade civil e também controle social das políticas no Brasil e no Estado do Rio Grande do Sul. “A gente traz a demanda ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, que faça essa recomendação a todas as entidades do estado, do reconhecimento do Protocolo de Consulta Livre Prévia e Informada elaborada pela comunidade e faça conhecer também a sentença da ação civil pública. E que ela seja vista pela Fepam, pelo Ibama, pelo Ministério Público e pelos demais órgãos competentes como uma oportunidade dada para que possam ser estabelecidos protocolos que façam cumprir o que já é de direito na Constituição, dos povos indígenas, dos povos quilombolas”, mencionou Lúcia Ortiz, presidenta da organização social das pessoas Amigas da Terra, reconhecida nesse tempo e era como Luz das Águas, filha de Mãe Preta.
“Que esse protocolo seja também utilizado, não apenas em processo de licenciamento de grandes empreendimentos, mas de consulta como deve ser, na garantia dos direitos democráticos, consulta aos povos na elaboração das políticas públicas, sejam elas de saúde, sejam elas de educação, porque elas só tem a melhorar com a sabedoria do povo, com a participação popular e com essa articulação que nos fortalece”, salientou Luz das Águas.
Desta vitória específica, sopram ventos de mobilização e possibilidade para outros cantos do país. A vitória da comunidade levou a um resultado que é um precedente da justiça, que implica órgãos estado, especialmente oInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a construir um novo protocolo, um novo procedimento. Algo há muito tempo demandado do poder público. Ao final do encontro, o Conselho se comprometeu estabelecendo um Grupo de Trabalho para elaborar coletivamente sua recomendação e para os órgãos do estado do Rio Grande do Sul, como sugerido pela Comunidade. Passo que representa mais do que uma recomendação sobre um caso específico, mas que tem caráter de uma recomendação para as comunidades e povos tradicionais do estado, em benefício da diversidade de povos, seres, biomas e territórios.
Na sessão estiveram também o povo de Alvorada, da Restinga, das comunidades quilombolas de São Lourenço do Sul e de Santa Maria, ocupações urbanas de Porto Alegre como a Ocupação Jiboia, membros do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, do Conselho Indigenistas Missionário (CIMI Sul), presenças de quilombos, terreiras e das lutas antirracistas, por moradia e direito ao território, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), integrante do Igualdade Racial da OAB, o gabinete da deputada federal do Reginete Bispo (PT), Mestre Cica de Oyó e o novo Ouvidor eleito para a Defensoria Pública Estadual, Rodrigo de Medeiros, entre outros.
A atividade, além de demandar os próximos passos sólidos para uma luta que se amplia, com valores acolhidos em cuidado, coletividade e na vida, foi um momento de troca sobre realidades perpassadas por amor e guerra. Foi, também, um debate sobre o tempo e seu entendimento. Desde a entrada da Comunidade na Assembleia até sua saída, a linearidade do tempo de kronos, marcado pelo som do passar de ponteiros dos relógios apressados, se dissolveu. O tempo é memória, resgatou em uma de suas falas Yashodhan. E ali o tempo se fez memória. Vivo, coletivo, entrelaçado entre um ontem, agora e amanhã que rompem a linearidade e tem firmamento em uma cosmovisão e prática de mundo que nos evidenciam respostas que sempre estiveram aqui, afinal, somos natureza. Tempo de fluidez firme que percorre o tambor, o berrante e o peito de quem canta e dança enquanto faz luta, enquanto se regam e brotam sementes e sombras de figueiras, essas guardiãs antigas e de tanta sabedoria.
É preciso assegurar a consulta livre, prévia, informada e de boa fé às comunidades afetadas por empreendimentos que existem numa lógica colonizatoria de lucro acima da vida, de superexploração dos corpos e territórios para a extração de riquezas que se traduz no monopólio de poder de poucos, às custas de muitos num plano que leva ao colapso socioambiental. É preciso combater a genealogia do desastre que alarga as veias da América Latina. Um caminho possível no fazer em comunidade, na construção coletiva de outros valores, na compreensão que um rio que corre é um ser vivo. Nas vivências que têm como base que, como referiu-se Yashodhan, é preciso que o tempo do relógio se curve para o tempo da vida. Foi preciso parar a légua. E é crucial impedir que outras léguas avancem sob o tempo da vida.
A história de luta pelo direito de ser e existir da Comunidade Kilombola Morada da Paz
Justamente trazendo o fio de kitembo, a divindade do tempo na cosmopercepção da Comunidade Kilombola Morada da Paz, que Baogan, Bàbá Kínní da Nação Muzunguê, guardião das choupanas e sapopembas de Mãe Preta e de todos povos de Mãe Preta espraiados nos sete cantos do Ayiê, deu abertura às exposições faladas do momento. Kitembo é senhor dos destinos, não das vontades, manifestou. No instante, compartilhou a partir de memórias a história de luta da Comunidade por seu direito de ser e existir.
“Inicialmente, em dezembro de 2020, começaram a aparecer algumas pistas de que haviam ameaças à nossa comunidade, ao nosso território”, expôs. Baogan contou como ocorreu a construção do processo de resistência, quando a comunidade se negou a fazer o Estudo de Componente Kilombola proposto por uma empresa de consultoria, e que orientados por suas divindades e com ajuda de parceiros tiveram conhecimento de seu direito de realizar o Protocolo de Consulta Prévia, conforme previsto na Convenção 169 da OIT. E foi o que fizeram, levando a palavra coletiva e a resistência adiante, assim como a possibilidade de manter acesa a vida em toda a sua sociobiodiversidade.
“Um dos filhos do território, Johny (Johny Fernandes Giffoni – Defensor Público do Estado do Pará), sabedor dessa situação após o nosso contato, nos alertou para a diferença entre Estudo de Componente Kilombola e Protocolo de Consulta Prévia, pois a nossa uma empresa de consultoria chegou propondo que fizéssemos um Estudo de Componente Kilombola, mas isso é uma etapa a posteriori. André Filho de Mãe Preta traz o que está acontecendo e apresenta elementos do Projeto de ampliação da BR 386, não se trata de duplicação, já é uma estrada-duplicada. O direito à consulta prévia, livre e informada de boa fé é algo que nos é assegurado, enquanto povo tradicional. E algo que estava sendo de nós retirado. Então propor a nós um Estudo de Componente Kilombola era uma tentativa de cooptar também o nosso direito de sermos consultados prévia, livre, informada e de boa fé”, explicou Baogan, expondo a violação de direito já no ato de vetar o acesso à informação.
De acordo com Baogan, esse foi o primeiro ato. “Perceber, entender e compreender que estávamos sendo vítimas de um racismo estrutural e de um projeto de destruição. Anciãs e anciãos e os jovens odomodês do nosso território oram de juncó ao pé do jacutá, nossos orixás respondem: dezembro de 2020. Terceiro Momento, nos ensina a nossa Mãe Preta, a nossa yagbá ancestral: mais do que ter fé, é preciso SER FÉ. Sapopembas, raízes de força, de luz, chamado do berrante, tambor, concha, organização como uma árvore. A nossa luta não é como um pé de funcho, mas como uma figueira negra”, ressaltou, abordando então os passos que seguiram dessa consciência e de uma prática engajada em ser fé.
Em março de 2022, foi publicado o Dossiê Kilombo Proteger Defendere Vigiar, com apresentação no México e no Peru. O dossiê também percorreu a Retomada Gah-Ré (RS), o Quilombo de Dandá (BA), a Jornada de Agroecologia (BA), a Ilha de Colares (PA), o Quilombo Vidal Martins (SC) e com uma série de intervenções em Porto Alegre (RS), que ocorreram em jornadas de Janeiro de 2021 à Março de 2023. Atualmente, o reconhecimento público da Legitimidade do Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar é onde a luta se trava,com incidências políticas, sociais, culturais em âmbito local, estadual, federal e latino-americano. Como trouxe Baogan à palavra, citando Mãe Preta: “Em terra firme se fazem grandes construções”.
Nos próximos passos, a Comunidade e os aprendizados coletivos serão partilhados, ressignificados e articulados na Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, com o horizonte de alcançar outros Territórios Kilombolas, Indígenas e Ribeirinhos, assim como Populações Atingidas por empreendimentos que violam direitos humanos e aos territórios.
‘É preciso parar a velocidade da légua’
Como relatado pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), ao menos 650 quilombos sofrem com grandes empreendimentos no Brasil. Quanto à Comunidade Ancestral Morada da Paz – Território de Mãe Preta, Lúcia Ortiz conta que foi necessário barrar o avanço da ampliação da rodovia.
“A Mãe Preta dizia: ‘Tem que parar a légua, tem que parar a velocidade da légua’. E nós tivemos a missão de fazer uma marcha na BR 386 ao final de 2019. E eu me perguntava: mas como que nós vamos parar essa légua? Somos trinta, quarenta pessoas. Como que nós vamos fazer essa caminhada? E fomos nesse grupo com muita coragem, com muita valentia, e nós tivemos certeza que nós éramos muito mais que trezentos nessa caminhada. E isso foi antes de chegar a empresa de consultoria no território, pedindo licença para fazer um Estudo de Componente Kilombola. E foi só depois que nós ficamos sabendo que a Licença Prévia para a ampliação dessa BR já tinha sido concedida pelo Ibama. E esse mesmo ano começou a pandemia (Covid-19) em março, e também foi esse ano de isolamento e da necessidade da gente retomar o nosso fio de contas e essa força de protegimento, que nós fomos chamados também a compor o colegiado de organizações do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e suas comissões. Então foi em março, sabendo disso tudo, que nós recebemos a Convocatória para a Primeira Reunião da Comissão naquele ano, da comissão chamada assim: “Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Envolvidos em Conflitos Fundiários”. E isso chegou depois da parada da légua, depois das nossas ações, depois de nós tomarmos a consciência da ameaça acontecendo no território, então nós construímos esse caminho com a sabedoria, com a participação dos mais velhos, dos mais novos, de todos os seres dessa comunidade, traduzindo como que a comunidade percebia e sentia no sonho, na vida, no cotidiano, essas ameaças”, explicou.
Lúcia também mencionou a relevância da construção coletiva e dos vínculos de afeto entre lutas que convergem, para garantir que a ComumUnidade, assim como tantas outras, possam seguir existindo. Em agradecimento, citou Leandro Scalabrin, do Movimento de Atingidas e Atingidos por Barragens (MAB), que orientou a Comunidade nos ritos do CNDH. Luiz Ojoyandi, filho de Mãe Preta, do OLMA, que assumiu junto a construção dessa relatoria a partir da denúncia encaminhada ao Conselho Nacional de Direitos Humanos. A Sandra Andrade, da Conaq, que foi quem, como coordenadora da comissão nomeada carinhosamente de Terra e Água, elevou até o pleno do Conselho e acolheu e encaminhou a denúncia-relatório para que fosse elaborada uma recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro para que reconhecesse e respeitasse o direito que é dos povos na Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé. Ao Conselheiro Marcelo Chalréo da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, que participou da elaboração da redação da recomendação aprovada por aclamação no Pleno do CNDH. “Uma recomendação que subsidiou então as nossas amazonas de luz também, na representação junto ao Ministério Público, já que continha nessa recomendação que, dentro do contexto de desmonte das políticas públicas, das instituições do estado, e de instituições como a próprio Incra e a Fundação Palmares, que estavam com desvio da função, sendo extintas naquele momento, a responsabilidade era do Ministério Público, de alertar todas as comunidades, em processos de licenciamento de grandes empreendimentos acontecendo na região. Levamos então a representação das Amazonas de Luz ao Ministério Público”, destacou Lúcia. Agradeceu, ainda, a Cláudia Ávila, conselheira e advogada das ATBr e a Fernando Campos, que também estiveram presentes no momento de representação no Ministério Público. E aos presidentes do Conselho Nacional, ao Darci Frigo nosso companheiro da Terra de Direitos e também o Yuri Costa, da Defensoria Pública da União (DPU), que Lúcia destacou terem sido guerreiros muito valentes e importantes na sustentação da existência do Conselho Nacional nos quatro anos do (des)governo Bolsonaro.
Na sessão, Pâmela Marconatto Marques , Coordenadora do Grupo de Trabalho Kombit! Mutirão por Moradia, Território e Dignidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compartilhou sobre como foi a Ação Civil Pública ingressada pela CoMPaz. “É um dos diversos instrumentos utilizados na defesa do território. A Comunidade contou com o empenho de muitas pessoas, organizações e com a articulação com outros povos quilombolas, que enfrentam os mesmos problemas em todo o país, para construir sua própria cartografia comunitária e elaborar o seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé, chamado de Dossiê Kilombo, pontuou. E como Baogan comunicou em sua fala, é preciso recontar a história para não esquecer o que ela é hoje e não o que ela foi: “O Dossiê Kilombo expressa a necessidade de que haja uma pedagogia que oriente o ritual de Consulta Prévia (como fazer, por onde fazer, quem deve fazer)”.
Apesar da dificuldade e descrença de atores estatais e operadores jurídicos, a comunidade se lançou em movimento. “Como Baba menciona, a BR 386 já é duplicada, então começamos a pensar que o que estava em jogo era uma triplicação, quadruplicação. E tudo que tava em jogo com relação a isso. Porque uma BR precisa ser tão expandida assim? E quem conhece a morada vê que ela é quase um enclave ecossustentável diante de plantação de soja, diante de monoculturas diversas ali naquela região. Então começa a entender que essa ampliação servia justamente a esses cultivos. Ao monocultivo. E a gente sabe tudo que vem junto com ele: Trabalho indecente, gente em más condições, bicho de qualquer jeito. E a gente vai aprendendo que a Comunidade Morada da Paz acabava sendo um lugar que dava conta de tudo isso. Que dava conta, inclusive, de melhorar um território, de melhorar uma terra que tava sendo consumida pela arenização. Quem conhece o território sabe disso também, o quanto essas comunidades fazem para manter viva essa terra. A comunidade Morada da Paz e os povos tradicionais brasileiros, o quanto eles regeneram a vida nesses territórios. Pois bem, vendo tudo isso, nós tínhamos a missão de incidir de maneira a enfrentar o que não nos era possível fazer, que era parar esse megaprojeto”, expôs Pâmela.
A empreitada foi uma Ação Civil Pública, conectada à noção de que a comunidade já vinha sendo impactada pelo simples fato de não ter sido ouvida sobre o megaprojeto. “Justamente porque a consulta não tinha sido prévia, livre e de boa fé informada do que aconteceria ali, a comunidade não dormia mais de noite. Os jovens e as crianças tinham pesadelos, achavam que a qualquer minuto podia bater à sua porta aquela ampliação. Se houvesse acontecido a consulta prévia, talvez isso não tivesse acontecido assim. A comunidade esperaria, ela saberia que trechos seriam impactados, ela conseguiria olhar para esse megaprojeto e pensar: não, eu sei, vai acontecer ali, depois vai acontecer aqui, mas no nosso trecho não, ou depois”, trouxe Pâmela. Ela contou que o encaminhamento foi o pedido para que a 9ª vara respondesse em face liminar, urgentemente, a demanda do kilombo: parar a légua.
No atual momento, a Ação teve uma grande vitória e está em fase de embargos. Realizar a consulta prévia é responsabilidade do Estado, que sabe que tem que aplicar a Convenção 169 e que podem haver os protocolos das comunidades. No intuito propositivo de apresentar ferramentas, conectar pontos e garantir a vida, que a CoMPaz está enraizando essa pedagogia da consulta. O que está em jogo é como as comunidades devem ser consultadas, quem deve consultar e como isso deve ser feito, respostas que podem ser encontradas no Dossiê e em tantos outros que podem surgir, a partir das comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e tradicionais, para que sua existência seja não apenas reconhecida, mas possível em toda sua magnitude.
Ao elucidar que a morte pelo acesso a informação também é real, Yashodhan também contou comofoi o processo de resistência à ampliação da BR, destacando tentativas de silenciar a comunidade e o que está em jogo com a efetivação da obra. “Quando nós chegamos a denunciar todo o processo que está acontecendo conosco e com outros parentes e irmãos quilombolas e indígenas, foi-nos dito: Mas vocês estão fazendo uma tempestade num copo de água, o processo de ampliação da BR vai ser só para 2030. Eu vou repetir o que eu disse: em 2030 talvez nós estejamos mortos, precisamos garantir aqui no presente a continuidade da nossa história com o direito de ser e existir do jeito que nós somos. Nós precisamos garantir, aqui, no tempo presente, a luta e as estratégias de sobrevivência”. Salientou ainda que o ponto não é parar o progresso, mas impedir que o entendimento de progresso tenha como massa de sustentação a cultura, a fé, os sonhos e a possibilidade de continuar existindo das comunidades kilombolas.
A CoMPaz vai fazendo seus caminhos que contrapõe a violenta história hegemônica do Brasil, contada como se desenvolvimento fosse saque, domínio, escravidão e disparos de tantas violências contra os corpos negros, do campo à cidade, das águas às florestas. Ela expõe as feridas causadas por um entendimento dos kilombos a partir da dororidade, num imaginário racista que não reconhece as potências, sabedorias, pedagogias e a capacidade de organização coletiva e manutenção da vida dos territórios negros. E vai além, propondo saberes, práticas e ferramentas de luta, construindo alianças possíveis que florescem afeto e fé. “O que esperam de um kilombo? Criança ranhenta, com o pé no chão, cachorro e mendigando? Não. Nós somos mais do que isso. E se isso existe nas nossas comunidades, é produto de um estado estruturalmente pautado, basilado, na escravização, na morte, no peso da dor. Então nós somos mais do que isso, nós somos a antítese de uma história que teima por ter ouvidos para ouvir, porque voz nós sempre tivemos”, mencionou Yashodhan.
É no comprometimento, na construção do coabitar e de outros mundos possíveis, que segue a marcha para frear as léguas que soterram a vida. Que a vida segue, como ensina a água, abrindo brechas para correr ao mar. A luta avança, fazendo do chão que se pisa terra fértil para que o sonho de uma liberdade coletiva seja o amanhã possível. Como compartilhou Yashodhan: “É preciso que a gente continue e é preciso, como mulher preta, kilombola, como mulher da zona rural e como gaúcha que sou, que esse estado seja reconhecido e auto reconhecido não só como um estado hegemonicamente branco, simpático do fascismo, simpático do trabalho escravo. Porque o silêncio, senhoras e senhores, e essa frase não é minha, mas o silêncio daqueles que podem e devem fazer alguma coisa é a morte do futuro. É a morte do sonho. Não temos medo do nosso corpo tombado no chão. Não queremos que isso aconteça. Mas nós vamos lutar até o último minuto para que a morte moral não saia encostada em nós quando nos levantarmos dessa cadeira. Nós estamos aqui agora. Que o dia de hoje se transforme numa história que não deve ser esquecida”.
“Vida longa e próspera: nós continuamos e não estamos só”
📽️ Confira a cobertura em vídeos da participação da CoMPaz no CEDH/RS:
Em janeiro deste ano, a Justiça Federal reconheceu o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé da Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz), em Triunfo (RS). Anteriormente, a consulta, prevista na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), havia sido violada. Processo narrado acima por Ìyalasè Yashodhan Abya Yala, a Sangoma (Guardiã da Memória e Guiança Espiritual) da CoMPaz na série de entrevistas do podcast “Prelúdio de uma pandemia”. Realizado em parceria com a Rádio Mundo Real, da Amigos da Terra Internacional, o podcast percorreu o contexto brasileiro, da Costa Rica, de El Salvador e do Haiti para denunciar e analisar as violações dos direitos dos povos e seus direitos humanos, antes, durante e depois da pandemia de Covid-19. Confira o podcast aqui
Como consequência da sessão do CEDHRS do dia 9 de março na AL-RS se formou um grupo de trabalho – GT sobre a Convenção 169 da OIT e sua aplicação no Estado do RS. Esse GT já se reuniu virtualmente e nessa 5a feira dia 18 de maio se reúne presencialmente a partir das 9hs no Território Yagbá Ancestral de Mãe Preta – CoMPaz em Triunfo/RS. O encontro também forma parte das Conferencias Livres prévias à VI Conferencia Estadual de Direitos Humanos (a ser realizada nos dias 26 e 27 de maio de 2023, no Auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).
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Indicações de leituras:
Racismo Ambiental. Artigo de Alan Alves Brito (NEAB/UFRGS) e Ìyamoro Omo Ayo Otunja, (Ìyiakekerê da Nação Muzunguê – CoMPaz) Janeiro 2021.
Após tentativa de invasão com homens armados no domingo (28), essa semana está sendo marcada por vigília e mobilização no Quilombo dos Alpes, de Porto Alegre (RS). Mais uma vez a violência atravessa a vida dos quilombolas e o território ancestral de resistência. É necessária a titulação imediata do Quilombo dos Alpes e a garantia da segurança e integridade do quilombo e das pessoas que ali vivem.
No domingo, escoltadas por um carro com homens armados, pessoas tentaram invadir as casas em construção da comunidade, que fazem parte do projeto de moradia do Minha Casa Minha Vida, com a qual o quilombo foi contemplado. As obras, não finalizadas, mostram mais uma vez o descaso do estado com os quilombolas. Na ocasião, os invasores foram dispersados pela Polícia Militar. Mas ameaças seguiram em riste, evidenciando um histórico colonial e genocida que precisa ser interrompido. Desde então, a comunidade dos Alpes recebe o apoio em vigílias e cobra coletivamente medidas para garantir iluminação e segurança das pessoas e do território. A mobilização fez com que a Caixa Econômica Federal anunciasse que liberaria recurso para a obra de conclusão das casas recomeçarem na segunda-feira. Em resistência, mandinga e coletividade segue a luta do Quilombo dos Alpes, assim como as lutas para aquilombar o Brasil!
Nas margens que contornam o Quilombo dos Alpes se erguem prédios frutos de um projeto racista e elitista, que entende a cidade a partir de uma lógica excludente e colonizatória. Para dar espaço à iniciativa privada, os governos colocam em cheque populações, saberes e práticas ancestrais que pautam a vida em meio a políticas de morte. Da vista dos Alpes, torres na Orla do Guaíba, prédios do Barra Shopping e espaços que prevêm serem cedidos a construções que pouco falam sobre a realidade dos povos, e mais uma vez ameaçam territórios negros. Uma Porto Alegre que visa o lucro, a qualquer custo, e avança sobre os morros preservados.
Entidades, Coletivos, Quilombos e Movimentos Sociais se solidarizam com o Quilombo dos Alpes e exigem que as Autoridades e Instituições afins cumpram a sua missão Institucional ao que se refere a Regularização Fundiária e Efetivação da Titulação do Território Quilombola. Reivindicam o respeito e proteção do Quilombo e dos quilombolas como previsto na Constituição Federal de 1988. É dever do Estado a proteção dos quilombos, uma das expressões civilizatórias de matriz africana. Mitigar ou relativizar esse dever é fator para violência contra os Povos e Comunidades Tradicionais.
A Frente Quilombola RS divulgou o Manifesto em Defesa dos Quilombolas de Porto Alegre (RS) – Quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro. Leia o conteúdo na íntegra:
O Quilombo dos Alpes é uma comunidade tradicional centenária de Porto Alegre, localizada o bairro Glória/Cascata. Assim como os demais dez territórios quilombolas da cidade, o quilombo dos Alpes está sob franco ataque de disputas territoriais violentas dadas através de uma relação de forças perversas e desiguais. As lideranças quilombolas têm sido insistentemente acossadas pelo avançar da violência de milícias, grileiros e traficantes que tentam ocupar o território quilombola. A demora do Estado brasileiro em demarcar, proteger e qualificar o bem-viver das comunidades quilombolas contribui para esse cenário de extermínio da população quilombola. Na manhã de domingo, 28 de agosto de 2022, as casas do projeto Habitacional Quilombo dos Alpes – JV foram invadidas por cerca de 20 pessoas. No entanto, o grupo logo foi dispersado pela Brigada Militar. Porém, a tensão entre a comunidade quilombola e os invasores seguem atormentando as lideranças do Quilombo dos Alpes que movimentam, junto com a Frente Quilombola do RS a vigília dos sujeitos e o território quilombola. Em dezembro de 2008, duas das lideranças quilombolas foram assassinadas dentro do território em decorrência de disputas movidas pela especulação imobiliária. O assassino foi condenado a trinta anos de prisão, mas hoje responde em regime de prisão domiciliar. Na ocasião, a atual liderança quilombola também foi baleada, mas conseguiu sobreviver, e hoje segue na luta por melhorias para a comunidade quilombola. Tendo o medo como companhia as lideranças do Quilombo dos Alpes desafiam o Estado Brasileiro a cumprir a necessária reparação histórica e geógrafica ao explorado povo negro, indegena e quilombola que muita riqueza gerou na construção deste país.
O projeto Habitacional Quilombo dos Alpes – JV representa o acesso a uma política pública, o programa Minha Casa, Minha Vida-Entidade e é destinada a construção de 50 casas para 50 famílias quilombolas já cadastradas, e que acompanham o projeto desde 2016 quando do início de sua organização. A implementação só se efetivou com acesso ao financiamento em março de 2019 quando após exaustivo processo de judicialização o recurso do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), do atual Ministério do Desenvolvimento Regional, administrado pela Caixa Econômica Federal, foi então liberado. O projeto tem o destacado protagonismo da Associação do Quilombo dos Alpes D. Edwirges enquanto Entidade Organizadora a acessar esse tipo de edital majoritariamente acessado por empreiteiras e agentes do capital imobiliário. O ineditismo da organização do projeto por parte da associação quilombola em âmbito urbano é assessorado pelo Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente, do curso de Geografia da UFRGS e atualmente conta com a parceria da Cooperativa de Trabalho Habitação e Consumo Construindo Cidadania COOTRAHAB de São Leopoldo.
Com a pandemia e a paralisia completa das obras, a Associação Quilombola dos Alpes tem feito denúncias ao poder público sobre o abandono e a violência a qual estão submetidos. Desde o início da pandemia a comunidade vem exigindo respeito, reconhecimento, sinalização do território e iluminação pública enquanto medidas diretas de segurança, no entanto a lentidão dos serviços públicos, uma das expressões do racismo institucional que organiza a sociedade brasileira até os dias de hoje reforçam a desigualdades enfrentadas pelos sujeitos quilombolas. O esgotamento das comunidades frente às violências sistemáticas a que estão sujeitas apesar de dificultar, não tem impedido a continuidade da luta quilombola pela liberdade e libertação da monocultura do pensamento capitalista.
Contudo é muito alto o preço pago na luta por liberdade. As vidas quilombolas estão em risco permanente, seja no Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre, no Maranhão e em todo o Brasil. Responsabilizamos estas violências e as múltiplas escalas de negligência/violência de Estado e sua Colonialidade Permanente. O Estado nos acusa de estressar as suas instituições e institutos , sem reconhecer o quanto as instituições nos massacram.Nossa luta e nossos apelos não se resolvem a cada eleição, demandam ações diretas, efetivas e continuadas. Nossa luta não é hashtag, é por liberdade, reconhecimento, segurança, titulação e bem viver. Frente a crise civilizatória que enfrentamos, lutamos por outros projetos de sociedade, mais plurais, diversos e menos desiguais. O Quilombo dos Alpes e os Quilombos de Porto Alegre, assim como os amigos e apoiadores convidamos a compartilhar conosco a prática efetiva do UBUNTU se integrando a vigília no Quilombo dos Alpes que acontece desde o dia 28/08/2022 até 05/09/2022 no território do Quilombo, Estrada dos Alpes, 1300. Toda contribuição financeira ou presencial é bem vinda.
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A Amigos da Terra Brasil rechaça a violência contra o quilombo e os quilombolas, que em suas sabedorias, práticas e ancestralidade preservam cotidianamente os territórios brasileiros e pautam a construção de uma sociedade de bem viver, em que o respeito à diversidade de expressões civilizatórias é verbo! Que o Estado assuma a sua responsabilidade e a justiça seja feita, com titulação já para Quilombo dos Alpes. Toda solidariedade é necessária. Divulgue a respeito, some nessa luta, se articule com o Quilombo dos Alpes. Toda contribuição financeira ou presencial é mais que bem vinda! Contate a Frente Quilombola do RS e se articule nessa luta.
Salve a resistência nos Alpes e toda a resistência ancestral!