Em 2018, Jair Bolsonaro (PL) foi eleito com a promessa de não demarcar nenhuma Terra Indígena no Brasil. Passados quatro anos, nenhum território foi demarcado. Mas não apenas; a violência contra os povos indígenas se tornou crescente. Em relatório recente divulgado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) sobre a violência contra os povos indígenas, com dados coletados entre os anos 2019 e 2022, registrou-se 795 assassinatos, 407 conflitos relativos aos direitos territoriais, 1.133 invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio.
“O relatório do Cimi mostra que Bolsonaro criou – em seu governo – um roteiro para o genocídio indígena por meio da desterritorialização, da desconstrução dos direitos, da devastação do ambiente, da destruição das estruturas de fiscalização, da desassistência generalizada, da desumanização e a busca pela integração dos povos”, sintetiza Roberto Liebgott, coordenador do Cimi no Rio Grande do Sul.
Para o indigenista, “as invasões de terras foram programáticas”; o governo atuou para viabilizar o acesso de garimpeiros, madeireiros e grileiros aos territórios indígenas. As características da violência – relacionadas ao abuso de poder, racismo, intolerância e assassinatos – revelam uma “desumanização dos indígenas”, produzindo uma violência sistemática, explica Roberto. Destaca, ainda, a desassistência em saúde a partir da fragilização da assistência primária, ou seja, ausência de ações preventivas, gerando mortalidade na infância, desnutrição e um ambiente de profunda vulnerabilidade dos indígenas.
No mesmo sentido, Rose Padilha, membra do Cimi-Regional Amazônia Ocidental, salienta que os números dizem por si: “Foram 309 casos de invasões, em 218 terras de 25 estados brasileiros”. No seu estado, o Acre, a missionária ressalta que ocorreram casos emblemáticos em razão da falência da proteção do Estado. Entre eles, o aumento do suicídio entre o povo Madijá, que ocorre desde 2015, resultado da marginalidade a que são submetidos pela desassistência do poder público.
O povo Madijá enfrenta falta de acesso a documentos; também é vítima da extorsão de comerciantes locais, que retêm seus cartões de benefício social, vendem bebidas alcoólicas e alimentos vencidos. Ainda, como povo de recente contato, não falam português, não tiveram acesso à escola, nem a material didático em sua língua, ou seja, sem qualquer política específica.
O relatório do Cimi revelou a presença de um novo agente externo nos territórios indígenas: o crime organizado. Rose comenta como as facções afetam a situação da juventude Huni Kuin. Sem perspectivas de futuro, acabam se envolvendo com facções do crime. Um dos casos diagnosticados no relatório é de um jovem, assassinado com 30 facadas, nas proximidades da cidade de Jordão, no Acre.
Rose relembra, ainda, outro tipo de violência, que passa invisibilizada: a do mercado de créditos de carbono. No Acre, o governo autorizou a constituição do mercado de carbono, que passou a operar primeiro nas Terras Indígenas, afetando formas de uso e continuidade das relações territoriais. As soluções climáticas da economia verde foram se consolidando no estado, violando os direitos territoriais assegurados aos povos indígenas na Constituição como “usufruto exclusivo de suas terras”, destaca Rose.
Recentemente, em meio às atividades dos Diálogos Amazônicos, em Belém do Pará, a 200 km de distância, três lideranças indígenas do Povo Tembé foram baleados na segunda-feira, dia 7 de agosto de 2023. As lideranças se preparavam para uma visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos em Tomé-Açu/PA. Existe um conflito na região entre os indígenas e as monoculturas de palma pertencentes ao grupo BBF (Brasil Bio Fuels), a maior empresa do ramo na América Latina, que mantém operações no entorno com frequente presença de seguranças armados dentro do território indígena. Segue a violência colonial e do capital contra os corpos das gentes, águas e florestas.
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Lideranças Mbya Guarani de aldeias nas cidades de Porto Alegre e de Viamão, no Rio Grande do Sul, falam, no vídeo acima, sobre a necessidade urgente de se demarcar as terras indígenas para a sobrevivência dos seus povos, de sua cultura e para a preservação do meio ambiente
E agora, o que muda no novo governo?
Ao final do relatório, confere-se destaque à iniciativa de constituição de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, como um caminho para identificar e responsabilizar atores que historicamente vêm invadindo, matando e destruindo as formas de viver dos povos indígenas no Brasil. O tema foi pauta do Acampamento Terra Livre (ATL) em abril deste ano. A Comissão foi encaminhada como uma proposta da deputada Célia Xakriabá (PSOL), acolhida pela Presidenta da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana.
O governo federal iniciou sua gestão constituindo uma força-tarefa para exterminar a violência contra o povo Yanomami. Em abril, na ocasião do ATL, Lula liberou R$ 12,3 milhões para a FUNAI apoiar comunidades Yanomami. O presidente assinou, ainda, a demarcação de seis Terras Indígenas, das 13 identificadas pelo Grupo de Trabalho de Transição como prontas para serem demarcadas. Por fim, o retorno do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI).
São grandes as expectativas de avanço na proteção e efetivação dos direitos dos povos indígenas no Brasil com o atual governo. No entanto, como recorda Liebgott, ainda existe um longo caminhar para romper com os ciclos programáticos de violências. O governo precisa reconstruir toda a política indigenista desmantelada, avançar urgentemente nos processos demarcatórios e de desintrusão, explica.
Políticas como a da Instrução Normativa n.º 01/2021 da FUNAI, que autorizou a associação entre indígenas e não indígenas no arrendamento de terras, ainda que revogadas, criaram inúmeros conflitos internos e externos nas comunidades. Remover esses arrendamentos dos territórios, que com a Instrução foram realizados de boa-fé, exigirá um grande esforço do governo.
A demarcação dos territórios, o acesso às políticas públicas, os investimentos em saúde e educação indígena, a proteção social aos que vivem em áreas de retomada e acampamentos serão medidas fundamentais para a redução do quadro de violência. “A política indigenista não deve ser um faz de contas, não pode ser vista como enfeite, adorno ou pintura a ser mostrada no âmbito do governo. Há gente, comunidades, povos que padecem cotidianamente e clamam por seus direitos constitucionais. Por isso, demarcação já, e não ao marco temporal!”, defende Liebgott.
O Congresso Nacional, de maioria conservadora, também vem se constituindo como um obstáculo à ruptura com a violência contra os povos indígenas. Na semana passada, caminhou no Senado o projeto de lei sobre o Marco Temporal (PL n.º 2903/2023), com pareceres favoráveis à tese. Igualmente, segue ainda respirando o PL n.º 191/2020, que autoriza a mineração em Terras Indígenas. E no STF (Supremo Tribunal Federal), em passos lentos, o julgamento do Marco Temporal (RE 1017365).
Os novos ventos que sopram do governo em Brasília são mais favoráveis à causa indígena. Superar as políticas de retrocesso implementadas pelo governo anterior constituirá uma das tarefas prioritárias. Além dela, é preciso avançar na demarcação das terras indígenas, ampliando o orçamento para políticas públicas nelas. E educar o país para um diálogo intercultural. Como podemos ver, o caminho ainda é longo para erradicar os mais de 500 anos de violência contra os povos indígenas no Brasil.
* Coluna publicada no jornal Brasil de Fato originalmente em