Audiência pública debateu projeto de lei da prefeitura que regulamenta e ameaça autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Maioria dos agricultores expõe que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras, ameaçando a construção coletiva dos espaços, a autogestão dos feirantes e a produção ecológica de alimentos

A última terça-feira (14) foi marcada pela Audiência Pública virtual sobre o Projeto de Lei 037/2023, que ocorreu na Câmara de Vereadores de Porto Alegre (RS). O PL, proposto pela prefeitura, não está de acordo com o Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre (CFEPOA) e fere a cultura, autogestão, identidade e o acúmulo histórico das feiras, construído com esforços para garantir uma alimentação saudável para as pessoas e para os territórios. 

Na ocasião estiveram presentes presencialmente cerca de 90 pessoas, além de 160 pessoas por videoconferência. A presença física no espaço se deu via articulação de entidades ambientalistas, organizações da sociedade civil, parlamentares, movimentos sociais, produtores ecológicos/agricultores e parceiros urbanos. Isto devido a audiência ter sido marcada apenas de forma online pelas autoridades públicas – formato que inviabiliza a participação de agricultores e agricultoras do interior do estado, que ainda enfrentam dificuldades de acesso à internet. 

Mesmo com solicitação à presidência da Câmara para audiência híbrida, que permite a participação presencial da sociedade, as entidades não tiveram de pronto o retorno. Fato que também demonstra os reais interesses por trás do PL e a forma com que o debate vem sendo conduzido.  Mesmo assim, as articulações em defesa da autogestão e da autonomia das feiras ecológicas estiveram fisicamente presentes, ocupando o espaço.

A Audiência reuniu agricultores agroecológicos de diversos municípios, frequentadores das feiras, representantes de entidades e vereadores. Foi presidida pela vereadora Lourdes Sprenger (MDB), que fez a abertura dos trabalhos e passou a palavra ao secretário de Governança Local e Coordenação Política, Cássio Trogildo, que apresentou detalhes do projeto. Foram ouvidas cinco pessoas contrárias e cinco favoráveis ao PL 037/23. 

Em maioria, as pessoas presentes se posicionaram evidenciando que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras. O Conselho de Feiras Ecológicas é uma entidade que representa os produtores ecologistas do Rio Grande do Sul, o qual é constituído por produtores, consumidores, entidades da sociedade civil e órgãos públicos, como o Ministério da Agricultura, Associação Agroecológica do RS, entre outros.

Capital gaúcha tem as feiras ecológicas mais antigas do país – Foto: Elson Schroeder

Embora o Executivo afirme que o projeto foi construído com participação popular, grande parte dos participantes da Audiência criticaram o PL 037/23, sublinhando que ele é imposto sem diálogo com quem torna as feiras possíveis há décadas. Contrária ao PL, a agricultora familiar Franciele Bellé, cuja a família está na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) há 29 anos, evidenciou: “As feiras foram criadas pelos movimentos sociais, pela necessidade que a população de Porto Alegre tinha de consumir alimentos saudáveis”. Para ela, as feiras da Capital são referência pela relação produtor consumidor e o referido projeto vai contra isto, no intuito de instituir “uma norma de cima para baixo”.

Os participantes contra o PL da prefeitura estavam mobilizados reivindicando mais tempo para discussão e ao menos um novo encontro, em outra audiência pública de formato presencial, que ainda não teve data definida. 

Durante o encontro, foram salientados aspectos como a relevância da participação popular como parte da construção da agroecologia. Ponto que desembocou na reivindicação de mais espaço para participação de produtores que integram as feiras ecológicas na construção do PL. No sentido de levar em consideração os acúmulos, história e lutas por uma cultura que dissemine uma alimentação saudável para pessoas, meio ambiente e planeta.

 A pesquisadora em sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e conselheira do Conselho de Segurança Alimentar do RS, Potira Price, comentou que o poder público sempre teve uma participação muito tímida no fomento das feiras ecológicas. “As feiras são uma conquista social”, sintetizou. 

As feiras ecológicas resistem em meio às pressões do setor imobiliário, tanto na zona rural (com o avanço dos condomínios fechados, com a perda de área de plantio e a contaminação das águas), como no urbano, que privatiza os espaços públicos e avança sobre a cidade na lógica da especulação imobiliária e de transformar Porto Alegre em uma cidade “ctrl C+ ctrl V” de outras cidades, retirando a construção cultural e histórica das ruas e da memória do povo porto-alegrense. 

O desafio vai além de resistir a uma hegemonia marcada pela mercantilização da vida, pela redução dos espaços coletivos à ideia de compra e venda, pela fragmentação das coletividades e espaços dos comuns. Também é sobre pautar outras possibilidades e caminhos, o que as feiras ecológicas de Porto Alegre vem ensinando há décadas, sem se descaracterizar.  

Feiras ecológicas promovem debate sobre PL 037/23 e contam com abaixo assinado em defesa da autogestão das feiras. Crédito: Comunicação da FAE

Quanto ao PL 037/23, que em breve pode ser votado na Câmara Municipal, a base do governo tem maioria, podendo aprovar o projeto. Porém, entre feirantes e parceiros urbanos, é mínimo o setor que está de acordo com a proposta da prefeitura. O argumento contra o PL, advindo da maioria de feirantes/produtores, é de que o autocontrole, organização e consensos das feiras ecológicas sejam debatidos como vem sendo feitos desde o início: com autonomia, participação popular e na coletividade de quem constrói, de fato, os espaços. Hoje, da instalação de luz elétrica e das lonas para cada tenda, até toda a organização da feira, são afazeres realizados por feirantes. As pessoas produtoras que fazem tudo, a prefeitura só tem que ceder a rua. 

Parceiros urbanos se aliam aos feirantes, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que para além da luta por moradia constrói o sonho da soberania alimentar e do fim da fome no Brasil. Em 2021, na pandemia de Covid-19 e auge da fome, o movimento implementou um projeto nacional para garantir a alimentação de quem precisa: as Cozinhas Solidárias. Hoje, a Cozinha Solidária da Azenha, de Porto Alegre (RS), garante por dia em torno de 350 a 400 marmitas para a população, fazendo o que o Estado não faz.  

Unindo a produção de alimentos ecológicos com a distribuição de quentinhas, o MTST e a FAE se encontram na luta. E quanto ao PL 037/23, Eduardo Osório, da coordenação estadual do MTST, expôs: “O que está em jogo é uma disputa de modelo, uma disputa pela cidade. E a FAE, as feiras, sintetizam um sonho de uma outra sociedade, que aqui na cidade junta os urbanos e a turma do rural para garantir saúde, alimentação digna, dignidade do nosso povo. Nós do MTST estamos nessa disputa da cidade, pelo direito à cidade. Vivendo as expulsões do dia a dia nas ocupações, a negação do acesso aos serviços, com despejos administrativos e forçados, com a criação da periferia da periferia. E sempre contamos com a solidariedade e o apoio dos trabalhadores e trabalhadoras do rural, visionários, que há mais de trinta anos apostaram num modelo de agroecologia, sem uso de venenos, com uma outra relação com a natureza. E vem se provando que esse é um modelo de saúde, de futuro”.

Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), defendeu que as feiras não podem ter interferência da prefeitura. Apontou, ainda, o erro do PL em confundir os conceitos de orgânico e ecológico. “Temos que falar o que é ecologia, sobre a relação da vida com todas espécies e meios. E nesse sentido, já achamos que a lei tem que ser regulada. Precisamos de uma lei para as feiras, mas não essa da prefeitura”, mencionou. 

Finalizando a Audiência, foram debatidas as tentativas da prefeitura, fechada com empresários, de mercantilizar e privatizar os espaços coletivos. Além disso, o governo atua para dividir feirantes, incentivando a ideia da mercadoria como valor central, quando na agroecologia o valor está na vida e na diversidade das relações –  vai muito além do simples ato de comprar e vender. Foi pontuada também a necessidade de atenção a esses processos de fragmentação das lutas e coletividades, botando em prática uma ecologia da ação que paute outros horizontes de mundos. 

Leia também a matéria “Agricultores ecológicos criticam esvaziamento da autogestão em projeto de regulamentação do governo Melo”

O PL 037/2023 fere de morte as feiras ecológicas de Porto Alegre

Saiba o que é o PL 037/23 e quais são os pontos abordados em sua construção

Ato em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre, que ocorreu no dia 28 de outubro de 2023. Crédito: MTST RS

Ferindo as feiras ecológicas, e até mesmo os princípios da ecologia, que se propõe a construções democráticas, diversas e plurais, o PL 037/2023 não contempla demandas importantes dos coletivos que compõem as feiras

Uma das principais críticas ao projeto de lei da prefeitura é o esvaziamento do protagonismo do Conselho de Feiras, que tem em si um acúmulo de décadas de organização coletiva e gestão. Da forma que as feiras funcionam hoje, tudo é debatido entre entidades e pessoas produtoras. Conforme a proposta do PL 037/23, as feiras ecológicas acontecerão em logradouros públicos municipais definidos pelo Executivo. E a ocupação das vagas disponíveis nas feiras ecológicas existentes, assim como nas futuras, serão preenchidas mediante edital de seleção publicado pela administração municipal. 

A proposta da prefeitura retira a autonomia da gestão de sete Feiras Ecológicas: Feira de Agricultores Ecologistas (FAE) José Bonifácio, quadra 1, Feira Ecológica do Bom Fim, José Bonifácio quadra 2, Tristeza, Três Figueiras, Auxiliadora, Rômulo Telles e Park Lindóia. Houveram várias tentativas de diálogo com a Secretaria de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV). Os participantes do Conselho das Feiras se reuniram com o prefeito Sebastião Melo e saíram com a promessa de avaliação e de participação para os próximos passos do PL. Só que a proposta acabou indo para o legislativo sem considerar o que havia sido acordado. O PL do Executivo foi protocolado em 19 de outubro, na Câmara Municipal de Porto Alegre (RS). 

O Projeto de Lei 037/23 está tramitando na Câmara de Vereadores e prevê que a SMGOV regule as Feiras Ecológicas realizadas nos espaços públicos do município. O que pode acarretar, ainda, em feiras menos ecológicas e mais voltadas para o mercado convencional de hortigranjeiros. 

Com esse PL, a atual administração do município pretende alterar vários pontos do funcionamento desses espaços, privilegiando produtores e fornecedores de Porto Alegre. Fator que implica na quebra da diversidade de alimentos da feira, tendo em vista que os produtores aqui da região não tem uma produção diversificada. 

“A gente quer muito que a prefeitura abra espaço. Mais uma vez a gente pede diálogo.  São 34 anos de construção de um trabalho que é reconhecido hoje nacionalmente, mundialmente, por ser berço de um movimento ecológico, um movimento de luta em defesa da agricultura sustentável e da agricultura saudável. Nós somos um pilar dessa força. Que permita que a nossa identidade seja preservada e essa gestão seja compartilhada de fato”, assinalou Ezequiel Cardoso Martins, agricultor do litoral norte gaúcho, da Banca das Raízes, que faz parte da FAE.

O PL segue para análise da Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul (CEFOR). A relatoria ficará a cargo da vereadora Biga Pereira (PCdoB).

Confira o relato do agricultor Ezequiel, em defesa da autogestão das feiras. A entrevista foi realizada durante o ato do dia 28 de outubro, que ocorreu na FAE

Clique aqui e saiba mais sobre como foi a Audiência Pública 

Assine o abaixo-assinado em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Leia também a nota da Amigas da Terra Brasil sobre o PL 037/2023. Que defende a sociobiodiversidade e a autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

 

Parceria entre Consultório de Rua e Cozinha Solidária leva saúde para a população em Situação de Rua

No da 19 de julho, o Consultório de Rua, programa do SUS, foi até a Cozinha Solidária Azenha para atender a população

Com o objetivo de facilitar o acesso a serviços de saúde, a Cozinha Solidária da Azenha e o Consultório de Rua, de Porto Alegre, firmaram parceria para atender a população que frequenta o espaço. Uma vez por mês equipes multidisciplinares compostas por enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, auxiliares de enfermagem, dentistas, entre outros profissionais estará prestando serviços afim de levar direitos básicos a uma parcela da população que sempre teve esses direitos negados.

:: Combate à fome: um dia na rotina da Cozinha Solidária do MTST ::

Prestes a cumprir um ano de funcionamento na Avenida Azenha, nº 608, em Porto Alegre, a Cozinha Solidária da Azenha recebe, todos os dias cerca de 160 pessoas em situação de vulnerabilidade social, proporcionando alimentação nutritiva, além de ser um espaço de formação política social e cultural. E desde o dia 19 de julho, está levando assistência em saúde.

A Cozinha da Azenha faz parte de um projeto nacional idealizado pelo MTST que visou a instalação de cozinhas solidárias em diversas regiões do país durante a pandemia da covid-19. Na capital gaúcha, iniciou suas atividades em uma ocupação. Como o imóvel pertencia à União, foi despejada em menos de um mês. No mesmo dia, a cozinha foi realocada para outro local cedido por uma moradora da região, que possibilitou o prosseguimento da preparação das refeições. Por nove meses, as marmitas foram distribuídas na Praça Princesa Isabel, também situada na Av. Azenha.

:: Após quase oito meses servindo almoço na rua, Cozinha Solidária ganha espaço próprio ::

Em Porto Alegre, de acordo com um levantamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), e da Unisinos, por meio do grupo de pesquisa e extensão interdisciplinar Passa e Repassa, existem 5.788 pessoas vivendo nas ruas da Capital. Pela estimativa da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) há 2.371.

Acesso à saúde 

“A parceria com o consultório da rua iniciou quando o pessoal nos procurou. As pessoas que a gente atende aqui na cozinha seguido têm problemas de saúde, é uma coisa bem recorrente, a dificuldade de acesso à saúde”, expõe o militante do MTST e Coordenador da Cozinha Solidária da Azenha, Fernando Campos Costa.

Ele comenta que o movimento sempre dialogou com os trabalhadores e trabalhadoras da saúde, assim como a prática de encaminhar as pessoas para os centros de saúde, para os postos de saúde, e buscar essas soluções para os frequentadores do espaço.

“Fomos procurados pelos trabalhadores, pela galera do consultório de rua, e eles vieram nos consultar se poderiam atender aqui na cozinha, uma vez por mês. Desde então tem sido bem bom o atendimento. Começa a rolar uma cultura desse cuidado com a saúde, de ver a saúde mais próxima”, afirma.


”Chamamos de Consultório na Rua equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde frente às necessidades dessa população” / Foto: Marco Antonio de Faria

O coordenador explica que há cerca de três meses os atendimentos vêm sendo realizados de forma paliativa. Fernando ressalta o trabalho feito pelas equipes e sobre a importância do Sistema Único de Saúde. “O SUS é um modelo de saúde que, pós-pandemia, se mostrou muito fundamental, importante para garantir o direito à saúde. Para nós, é muito importante que esse serviço exista e que essas pessoas, que estão em situação de rua, outras que estão vindo do Interior, pessoas que moram em comunidades aqui no entorno, como Cabo Rocha, Princesa Isabel, e outras.”

“É um processo de dignidade. Ter um prato de comida é dignidade, conseguir ter uma roupa é dignidade, ter uma pia, um banheiro é dignidade. Poder ter a saúde, garantir essa dignidade são coisas que a gente vem tentando”, complementa.


“A gente acredita que cada vez mais serviços possam ser desenvolvidos dentro da cozinha e que a cozinha seja realmente um lugar de reconstrução da dignidade do nosso povo” / Foto: Marco Antonio de Faria

Fernando destaca também a aprovação, dentro do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a aprovação a política pública de cozinhas solidárias. “A gente acredita que cada vez mais serviços possam ser desenvolvidos dentro da cozinha e que a cozinha seja realmente um lugar de reconstrução da dignidade do nosso povo. Com a PAA a partir de agora, as cozinhas vão começar a receber alimentos, infraestrutura”, destaca o coordenador.

Somado a isso, continua Fernando, há decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe a remoção compulsória da população em situação de rua. “A gente espera que isso seja um novo momento para enfrentar essa situação. Estamos bem esperançosos com essas iniciativas, com essas conquistas que tem tido nos últimos dias. A gente acredita que vai conseguir mudar essa realidade e enfrentar melhor esses impactos todos que a gente teve, tanto na pandemia quanto durante o governo Bolsonaro”, finaliza.

:: MTST combate a fome e promove segurança alimentar através de cozinha solidária no RS ::

Sobre o consultório de rua 

Conforme explica a gerente do Consultório na Rua Centro e Unidade Móvel de Saúde SMS/ IBSAÚDE e educadora Social de Rua do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), Luciana Moro Machado, a estratégia Consultório na Rua foi instituída pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011. Tento em vista ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, ofertando, de maneira mais oportuna, atenção integral à saúde para esse grupo populacional, o qual se encontra em condições de vulnerabilidade e com os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados.

”Chamamos de Consultório na Rua equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde frente às necessidades dessa população. Elas devem realizar suas atividades de forma itinerante e, quando necessário, desenvolver ações em parceria com as equipes das Unidades Básicas de Saúde do território”, expõe


Consultório de rua oferece uma escuta qualificada, atendimento por equipe multidisciplinar, testes rápidos, orientações de necessidades mais emergenciais para a saúde / Foto: Marco Antonio de Faria

De acordo com Luciana, ações compartilhadas e integradas aos serviços especializados, redes de suporte, como por exemplo a Cozinha Solidária, com estratégias para a melhoria de qualidade de vida das pessoas, potencializam e qualificam as ações do Consultório na Rua.

“Buscamos através das ações realizadas conhecer as pessoas e/ou dar continuidade ao acompanhamento e atendimento com o cuidado continuado e longitudinal. Além de uma escuta qualificada, atendimento por equipe multidisciplinar, testes rápidos, orientações de necessidades mais emergenciais para a saúde da pessoa, conseguimos acessar e reencontrar cada um atendido e criar vínculo para saber se a vida de cada um que nos pede auxílio, está sendo eficaz e minimamente aliviar os sofrimentos causados por estarem na rua. Nosso clima e tempo como o inverno aqui no Sul, trazem situações mais agravadas para a saúde das pessoas vulnerabilizadas”, detalha a gerente.

Luciana afirma que a Cozinha Solidária é muito significativa para todos, tanto para as pessoas em situação de rua, como também para os profissionais que fazem parte do SUS e acreditam em um acolhimento e tratamento justo e solidário para todos, todas e todes.

“A fome é um dos maiores problemas enfrentados pela população que atendemos, pois nas ruas enfrentamos diariamente o maior abandono que um ser humano pode ter em toda a sua existência, e não há solução para o problema da fome sem política pública. A Cozinha Solidária é um exemplo de inspiração para novas estratégias de humanização em saúde coletiva e políticas públicas”, frisa.


“A Cozinha Solidária é um exemplo de inspiração para novas estratégias de humanização em saúde coletiva e políticas públicas” / Foto: Jonathan Heckler

Texto de Fabiana Reinholz, do Brasil de Fato RS. Publicado originalmente em 01 de agosto de 2023, em: https://www.brasildefators.com.br/2023/08/01/parceria-entre-consultorio-de-rua-e-cozinha-solidaria-leva-saude-para-a-populacao-em-situacao-de-rua 

Quem disse que não existe almoço grátis?

Todos os dias, quem passa pela Avenida da Azenha às onze horas da manhã, na altura do número 608, vê uma fila se formar rapidamente. É neste horário que começam a chegar pessoas em situação de rua, aposentados, trabalhadores informais, entregadores, ambulantes, famílias com crianças em situação de vulnerabilidade para pegar suas marmitas, que começam a ser servidas ao meio-dia pela Cozinha Solidária da Azenha. A atividade tem duração de uma hora.

A iniciativa começou na pandemia por iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que luta por moradia digna. Além da localizada na capital gaúcha, existem mais de 30 cozinhas espalhadas pelo Brasil.
Em média, são servidas 250 marmitas por dia. Os insumos vêm de doações de outros movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Ação pela Cidadania e do próprio MTST em âmbito nacional.
Para conseguir manter sua autonomia financeira, o movimento aposta tanto na organização de saraus culturais com venda de pratos quentes, chamado Tempero de Luta, como em campanhas permanentes de arrecadação por meio de contribuições espontâneas.
Isaura Aparecida é uma das voluntárias que faz as refeições servidas de segundas a sextas ISABELLE RIEGER/ESPECIAL/JC
As marmitas são distribuídas nos fundos, no pátio da casa, que conta com um espaço com telhado para proteger de situações adversas de clima. Na hora da distribuição do almoço, a preferência é das mulheres, crianças e pessoas com deficiência. Depois de servidas, é a vez dos homens.

Caso algum representante dos dois primeiros grupos chegue no meio da distribuição, eles têm prioridade imediata. Repetir o prato, ou o apelidado de “repique”, também é permitido, próximo ao fechamento dos portões. Às vezes, há frutas para sobremesa.

No meio da atividade, um representante do movimento grita os avisos gerais do espaço, como necessidade maior de organização do ou atenção para o lixo espalhado no chão. Quando a reportagem esteve no local, quem fez os alertas foi o coordenador da Cozinha Solidária, Fernando Campos Costa.

Ele também explicou sobre a campanha do movimento pela redução do uso de plástico. As marmitas, que eram servidas em recipientes descartáveis de isopor, agora podem estar em potes.

A medida, de acordo com Costa, reduz o impacto ambiental e diminui os gastos com as compras dos recipientes. A Cozinha Solidária, assim, recebe doações de potes, talheres, canecas e copos para seguir com a campanha.

Ao final do almoço, as atividades do dia são encerradas. Os potes descartáveis são jogados nos lixos da Cozinha e se iniciam as despedidas. Muitas pessoas se tornam frequentadores do espaço e compartilham experiências e angústias no espaço sentadas nas cadeiras do pátio.

Sentado em um banco de madeira, o João Ferreira Trindade, 79 anos, conta como chegou no local. Movido por curiosidade, desceu da linha 398 no ponto de ônibus da Avenida Azenha e foi descobrir o que era a casa com a fachada vermelha na avenida. Agora, almoça diariamente há duas semanas por causa da iniciativa do MTST.

Já o venezuelano Juan Pablo Ortiz, 35 anos, retira sua marmita na Cozinha há um mês. Ele mora em um albergue no Centro da cidade, mas está desempregado.

Ortiz já esteve em situação de rua. Por meio de conhecidos que já frequentavam o espaço, descobriu a iniciativa da cozinha, que alivia as circunstâncias de vulnerabilidade pelas quais passa.

“Se não tem trabalho, não tem como ter subsistência. Pelo menos existem lugares para comer como a Cozinha Solidária”, afirma.

São servidas 250 marmitas por dia e, para continuar o trabalho, o Movimento dos Trabalhadores sem Teto precisa de doações que ajudem nos gastos | ISABELLE RIEGER/ESPECIAL JC

Cozinha Solidária já teve outros dois endereços

A Cozinha Solidária está agora na Avenida da Azenha, 608
/ISABELLE RIEGER/ESPECIAL/JC
A casa em que a Cozinha Solidária está situada é o seu terceiro endereço. Em 26 de setembro de 2021, o MTST ocupou um terreno abandonado para iniciar o projeto, também na Avenida da Azenha. O despejo veio 18 dias depois e levou o projeto para o térreo de um prédio na Rua Marcílio Dias, a duas quadras do atual endereço.
Lá, a distribuição de marmitas acontecia na Praça Princesa Isabel, que também comporta um ponto de táxis e feiras de artesanato durante a semana, além de estar suscetível à ação de vento e chuva. Houve reclamações, inclusive, da segurança do local, aponta Costa.
Para seguir com o projeto e garantir a integridade física de todos os participantes, o espaço de número 608 na Azenha foi alugado. Embora não seja ideal por conta dos gastos a mais que a locação acarreta, reconhece Costa, o local permite atividades maiores do que as que estavam sendo feitas na rua.

 

Lula e o Brasil da Esperança

sonho de um Brasil diferente, mais justo e igualitário, manteve-nos vivos e atuantes nos últimos quatro anos. A força da esquerda organizada para conduzir um dos piores processos eleitorais já vivenciados pelo povo brasileiro, enfrentando as forças mais conservadoras e vis do fascismo-bolsonarista, edificou a grandiosidade do dia 1° de janeiro de 2023, uma data para a nossa história, para Abya Ayla, que se converteu na festa do retorno da democracia, o dia da esperança.

No último domingo, assistimos a uma verdadeira refundação do Estado democrático brasileiro. O destaque é a criação do Ministério dos Povos Indígenas, uma pauta defendida ao longo de toda a eleição por Lula, que encontrou muitos desafios para ser efetivada. Sonia Guajajara assumiu a liderança deste, que promete ser um dos ministérios de reformas mais estruturais, na raiz das desigualdades históricas deste país. É importante recordar que os povos indígenas sofreram uma devastação no último governo, o que aprofundou essa dívida histórica com os povos originários. A Funai (Fundação Nacional do Índio), que foi completamente desmantelada, deverá ser reconstituída, com a confirmação de Joênia Wapixana para a presidência do órgão.

A questão indígena vem conectada com o sempre presente discurso de proteção e da justiça ambiental, que estará sob a chefia de Marina Silva. Outros temas estruturantes terão prioridade, como a questão racial, com Anielle Franco sendo ministra da Igualdade Racial  – Anielle é irmã da vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018. E, por diversas vezes mencionado ao longo da posse, a desigualdade de gênero ganha novamente um ministério, o das Mulheres, que estará sob a chefia de Cida Gonçalves.

:: Lula garante Bolsa Família de R$ 600 e busca controle de armas com primeiros atos ::

Em discurso no Congresso Nacional, o presidente Lula afirmou: “Foi para combater a desigualdade e suas sequelas que nós vencemos a eleição. Esta será a grande marca do nosso governo. Dessa luta fundamental surgirá um país transformado. Um país de todos, por todos e para todos. Um país generoso e solidário, que não deixará ninguém para trás”.

Lula é empossado em cerimônia no Congresso Nacional / CARL DE SOUZA / AFP

Os últimos dois meses de trabalho da equipe de transição, formada por 930 pessoas, em sua maioria voluntários, divididos em 33 grupos temáticos, produziram o relatório de mais de 100 páginas sobre os estragos do governo anterior, que conforme o discurso do presidente Lula, será distribuído em todas as instituições públicas para que se tenha ideia dos problemas encontrados no país e possam ser medidas as ações tomadas pelo novo governo em prol de mudanças. Espera-se, para os próximos dias, a publicação de diversas revogações de decretos, o que já começou no domingo, com a revisão da licença de porte de armas e a retomada das políticas ambientais, bem como a articulação, com o Congresso, para aprovação da PEC da Transição, ampliando o teto dos gastos e dando condições de governabilidade.

O trabalho da equipe de transição do Governo Lula foi fundamental para se ter um diagnóstico das urgências do país e alinhar o programa do governo eleito com a realidade encontrada, especialmente quanto à disponibilidade de orçamento público. Segundo o relatório final, chegamos à beira de um colapso dos serviços públicos. Faltam remédios nas farmácias populares, não há estoques de vacinas para enfrentar novas variantes de covid-19, faltam recursos para compra de merenda escolar, sequer os livros didáticos para o próximo ano letivo começaram a ser impressos, as universidades não têm recursos, assim como a defesa civil para a prevenção de acidentes e desastres. O desmatamento no Brasil cresceu 49% nos últimos 4 anos, o orçamento para cultura foi reduzido em 90%, e 33,1 milhões de brasileiros passam fome.

:: Posse presidencial: saiba quem subiu a rampa e passou a faixa para Lula ::

Para avançar é preciso destruir todos os parasitas do Estado, toda a disseminação das ideologias de direita, conservadoras, que foram falsamente profetizadas por Messias. Um líder que, desde o pronunciamento após a derrota eleitoral, de pouco mais de 3 minutos, permaneceu em silêncio, o que muitos caracterizam como a melhor fase de seu governo.

Muito embora seus seguidores tenham se juntado em frente a quartéis e em estradas; agarrando-se a caminhão, bandeiras e a ideias patriotas, acabaram tomando chuva, sol e processos judiciais, encontrando aquilo que o bolsonarismo sempre foi: um projeto político sem representatividade, de poder para alguns. Um líder que os deixou na semana passada, em um avião da FAB (Força Aérea Brasileira), por medo de enfrentar as investigações sobre corrupção das quais ele e seu amigo, Sergio Moro, foram entusiastas. A saída pela porta dos fundos, no mesmo lugar que um dia Bolsonaro entrou para a história do país, um líder criado por robôs e redes sociais, embebido na alienação das massas; um militar medíocre, um parlamentar oportunista e um presidente que só obteve ganho pessoal para si e seus amigos. E como dizia a multidão presente na posse em alto e bom som: sem anistia!

Iniciou-se o tempo de esperançar. O principal desafio dos próximos anos de governo é exterminar as raízes bolsonaristas fincadas no último período no país e educar as massas para continuar o projeto da esperança. Como sempre atual, citamos nosso querido Paulo Freire, que disse que a esperança é o verbo que exige uma ação, construção, ir atrás.

Ônibus da Aliança Feminismo Popular saiu de Porto Alegre (RS) para a posse de Lula / Divulgação

De pé, entendendo nosso passado e construindo nossa própria história

Esse era o clima do ônibus da Aliança Feminismo Popular, que saiu de Porto Alegre (RS) na quinta-feira passada (29/12) rumo à posse do presidente eleito Lula nesse final de semana em Brasília. Estiveram presentes militantes do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), da MMM (Marcha Mundial de Mulheres) e da Amigos da Terra; integrantes da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta/CoMPaz, do Sítio Libélula/Grupo Agroecológico Sal da Terra e da ONG Onda Verde, do Litoral Norte gaúcho.

Para a delegação, a virada do ano que antecedeu a posse de Lula foi anunciada com muito asè na Prainha dos Orixás, no som e na raça do Ilê Ayê e Fundo de Quintal. “Sentimos a potência de voltar a celebrar, respirar, sorrir e amar. Foi uma virada simbólica de 2016 a 2023, trazendo de volta a alegria popular na retomada da democracia no Brasil e um sopro de vida e de esperança para toda América Latina”, contou Lúcia Ortiz, da Amigos da Terra Brasil. Para Isaura Martins, coordenadora da Cozinha Solidária da Azenha e da Cozinha Comunitária do Condomínio Irmãos Maristas em Porto Alegre, esta “foi a melhor virada de toda a minha vida, com essa união do povo que veio junto até aqui e das que vieram antes também”.

Reconhecendo nossas mazelas históricas, o novo governo assumiu, nesse final de semana, o compromisso com o combate ao racismo estrutural; ao reconhecimento e efetivação dos direitos dos povos indígenas; com a redução da violência e da fome e o combate ao crime ambiental como as prioridades de sua agenda. Dentre as medidas assinadas ainda na posse, encontramos a Medida Provisória que mantém o valor de R$ 600 para o programa Bolsa Família, a desoneração dos combustíveis, a devolução do protagonismo ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), medidas para combate ao desmatamento e ao garimpo ilegal em terras indígenas e a retomada do Fundo Amazônia. Determinou-se que o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima proponha, em 45 dias, nova regulamentação para o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). Foi trazida a centralidade da participação social na construção da estrutura da administração pública, que inclusive foi a metodologia adotada pela equipe de transição. E a recomendação para que seja revista a quebra do sigilo de 100 anos dos processos envolvendo a família Bolsonaro, além da revisão da política de controle de armas e munições e licenças de clubes de tiro. O governo está, desde o primeiro dia, mostrando a que veio.

A diversidade de ministros e de ministras é história para um país marcado pela colonialidade. A reafirmação constante do compromisso com a proteção ambiental, a igualdade de direitos das mulheres, negros e negras, e povos indígenas esteve consolidada em toda a posse do novo governo. O reconhecimento disso é um passo para construir um futuro mais igualitário. Caberá manter ativa a chama para que o meio ambiente não se reduza aos negócios da economia verde e que o significado global do termo “sustentável” seja revisto. Queremos um Brasil em crescimento, e não apenas como exportador de matérias-primas e de commodities.

O dia da esperança 

“Ainda que nos arranquem todas as flores, uma por uma, pétala por pétala, nós sabemos que é sempre tempo de replantio, e que a primavera há de chegar. E a primavera já chegou. Hoje, a alegria toma posse do Brasil, de braços dados com a esperança”, assim sinalizou Lula em seu discurso no Congresso Nacional, convocando a todos e todas parlamentares a assumirem o compromisso com a reconstrução do país, demarcando o diálogo com as casas legislativas e seus presidentes.
E para o povo, que caminhou e marchou ao Planalto Central para receber seu novo presidente, afirmou: “quero terminar pedindo a cada um e a cada uma de vocês, que a alegria de hoje seja a matéria-prima da luta de amanhã e de todos os dias que virão. Que a esperança de hoje fermente o pão, que há de ser repartido entre todos”. Relembrando valores de solidariedade e de partilha, Lula convoca o Brasil da Esperança a construir união em um novo projeto de país. Nesse domingo, encerrou-se uma era de obscurantismo, e foi iniciado o período de uma árdua caminhada rumo à transformação das profundas raízes injustas de nossa história. Dia de festa; dias que serão seguidos de muito trabalho para lapidar o barro com trabalho concreto com o povo e para o povo, para que a esperança não seja só uma utopia, mas que cada palavra e intenção se torne semente fecunda em nossa terra.

Letícia Paranhos, representante da Aliança Feminismo Popular e integrante da organização Amigos da Terra Brasil, esteve presente na posse em Brasília. Ela desabafou que “vivenciar a posse de Lula em presença e poder soltar o grito de alívio que há 6 anos estávamos guardando foi uma experiência única. Merecíamos ver e respirar essa vitória junto ao mar vermelho que se formou em Brasília, vencemos!”. Lula tomou posse reforçando os compromissos com o povo. “A nós, movimentos, cabe manter e ampliar a mobilização  para que Lula tenha força para realizar, e com muita participação popular. Um governo que é porque nós somos. Essas foram as eleições mais importantes das nossas vidas desde a redemocratização. Não só para o povo brasileiro, mas para o mundo. Tentaram calar Lula, tentaram nos matar. Mas nós decidimos seguir vivendo e cantando, porque aqui vimos… o grito só não basta! Ditadura nunca mais, fascismo nunca mais, Bolsonaro nunca mais!”, defendeu.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: www.brasildefato.com.br/2023/01/03/lula-e-o-brasil-da-esperanca

 

Até quando as veias estarão abertas na América Latina?

Integrantes da Amigos da Terra, MST, RENAP (advogados populares) e APIB (indígenas) visitaram países europeus para denunciar os impactos do Acordo UE-Mercosul. Na foto, protesto na Alemanha. Crédito: Amigos da Terra Europa

A história da América Latina é marcada por uma espiral, na qual passado, presente e futuro se encontram e se distanciam em ciclos revisitados de exploração. Nossas independências nunca marcaram rupturas profundas com a hegemonia europeia. Desde que o capitalismo é capitalismo, temos um lugar periférico na divisão internacional do trabalho. Somos os que vivem sob as condições da superexploração do trabalho, dos territórios, para produzir uma riqueza extraordinária constante, que é diretamente transferida às potências globais. Assim, portanto, nosso subdesenvolvimento não é causa do nosso fracasso civilizatório, é estruturante para que outros se creiam desenvolvidos. 

A pilhagem colonial se reinventa nesses ciclos históricos. Antes, a barbárie da escravidão, da destruição da natureza, da violação dos corpos das mulheres, temas ainda cadentes e não resolvidos, que permitiram o acúmulo primitivo da riqueza dos países ditos desenvolvidos para constituírem seu avanço industrial e a estruturação de Estados sociais. Amargam ditaduras sangrentas quando a sombra de ideias revolucionárias perpassa o mundo, para que nos mantivessem presos na subordinação. Nos anos 90, a expansão do neoliberalismo nos prendeu nas dívidas externas, obrigando a vender todo nosso patrimônio nacional, a desregulamentar nossos setores, a sujeitar-nos aos comandos do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC). Eis a produção e reprodução da dependência.

Uma luz surgiu no final dos anos 90 e anos 2000 em vários países. A Venezuela, sempre na liderança revolucionária na região, Equador, Bolívia, Brasil, Argentina, Uruguai, Honduras e Paraguai tiveram a experiência da chegada de governos progressistas. Ainda que na reprodução de um modelo de desenvolvimento hegemônico, centrado na produção e exportação de commodities, os avanços de setores industriais como o petróleo, a cooperação sul-sul e a efetivação de políticas sociais avançaram e incomodaram muito. Por isso, a contrarrevolução foi brutal, os golpes arquitetados contra nossas democracias, com todo o requinte da guerra híbrida, passaram, mas deixam as forças auxiliares presentes da extrema-direita. Os donos do mundo, as empresas transnacionais, usam alguns fantoches de países desenvolvidos para recolocar as regras do jogo, a lex mercatoria no lugar, e interferem na soberania dos países para assegurar suas melhores posições no mercado internacional.

Hoje, governos progressistas retornam à Abya Yala. À exceção de Equador, Uruguai e Paraguai, vivemos um novo momento da esquerda. Certamente a eleição no Brasil, com a vitória de Lula, deu peso a esta nova onda. Se de um lado a América Latina busca forças para seguir respirando, a Europa encontra uma crise econômica com sua dependência energética com a Rússia, e os Estados Unidos (EUA) tentam uma corrida de hegemonia com a China. Nesse cenário, a pressão por novos tratados e acordos comerciais que sejam favoráveis à recolocação dos países desenvolvidos está crescente.

O desenvolvimento é sempre a chave utilizada para as políticas imperialistas. Como a desigualdade de inserção no mercado internacional nos condiciona a produtores de matérias-primas (commodities), estamos sempre buscando investimento estrangeiro direto e reduzindo nossos padrões de proteção social e ambiental. A onda de acordos que estão em negociação com a região, entre eles o Acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul e o Acordo de Associação Transpacífico, prevê a expansão da exportação de commodities, sem mensurar seus impactos sociais e ambientais e, ainda, a transferência de produtos e tecnologias defasadas para nossa região e a privatização de setores de serviços. Claramente, acordos com vantagens econômicas aos países do Norte e o aprofundamento da dependência para nós. 

O Acordo UE-MERCOSUL e o Brasil

Há mais de 20 anos, a negociação do Acordo UE-Mercosul, a portas fechadas, ficou estagnada. Em 2019, os países anunciaram a conclusão do acordo. No entanto, começaram movimentos da sociedade civil e de parlamentos de países europeus para evitar uma assinatura com o Governo Bolsonaro, com medo de serem associados ao momento crítico do desmatamento no Brasil. O presidente Lula, juntamente com o ex-chanceler Celso Amorim, ainda em campanha, anunciaram a intenção de revisitar o acordo na próxima gestão, com particular preocupação quanto a elementos como restrições à implementação de políticas de reindustrialização, impacto da abertura das compras públicas às transnacionais europeias, maior regulamentação sobre direitos de propriedade intelectual, comércio e privatização de serviços e os impactos do comércio bi-regional sobre o meio ambiente. Por outro lado, a União Europeia tem pressa e faz pressão para garantir suas cadeias de suprimento de energia, agro e minero commodities afetadas pela guerra na Ucrânia, e está propondo um protocolo adicional, com promessas sobre os impactos climáticos, para amenizar as críticas e resistências.

 O acordo tem como eixo central a exportação de matérias-primas pelo Brasil – como grãos, carnes e minérios, cujo modelo de produção gera conhecidos conflitos socioambientais no nosso país, e a importação de produtos industrializados de transnacionais europeias, muitos que já não são mais utilizados ou são até proibidos na Europa – como os agrotóxicos, que tanto afetam a saúde das pessoas e dos animais, a biodiversidade e a qualidade das águas. Em suma, não se trata de um acordo no qual duas partes saem beneficiadas; é mais uma solução neocolonial para a crise europeia. 

Nesta linha, Luana Hanauer, da Amigos da Terra Brasil, destacou que “O que está em jogo nos capítulos dos acordos comerciais com a Europa é perpetuar e aprofundar a agenda de violações e retrocessos dos direitos. O acordo acentua a reprimarização da economia brasileira e atualiza os dispositivos coloniais que mantêm a dependência do país em relação à Europa, além de incentivar a violência racista contra povos indígenas, comunidades negras, camponesas e tradicionais. Isso porque o dano ambiental, associado à expansão do desmatamento e do agronegócio, recai desproporcionalmente sobre os povos negro e indígena e, em particular, sobre as mulheres”.

Inspiradas nas lutas dos anos 2000 contra o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), 120 organizações da sociedade civil e movimentos populares construíram a Frente contra o Acordo UE-Mercosul. Desde 2020, a Frente vem realizando formações e diagnósticos dos impactos do acordo na vida da população brasileira, apresentando documentos de posicionamento, como a Carta à equipe de transição do governo. A Frente reafirma as consequências do aumento da exportação de commodities em troca da importação de carros, agrotóxicos, das privatizações e dos riscos para a economia nacional da restrição das compras governamentais, evidenciando como o texto beneficia a atuação das empresas transnacionais.

Em turnê realizada na Europa, ativistas brasileiros que compõem a Frente reiteraram oposição ao acordo e demandaram participação social com debate público, após o anúncio do governo eleito no Brasil da intenção de reabrir os diálogos com o Mercosul e, posteriormente, com a Europa, sobre o Acordo, especialmente para que sejam apresentadas as críticas e propostas populares sobre outros modelos de comércio, condizentes com as necessidades do povo brasileiro. Reabrir as negociações e frear seu avanço rumo à ratificação do Acordo pelos parlamentos nacionais, com compromisso de diálogo e participação popular, é também reconhecer a possibilidade de dizer não ao acordo, de ouvir as vozes das populações atingidas diante dos seus impactos sociais, ambientais e econômicos para um projeto popular e democrático de nação. Nas palavras de Graciela Almeida, liderança do MST (Movimento Sem Terra) no Assentamento Santa Rita, afetado pela pulverização de agrotóxicos no Rio Grande do Sul, “no acordo UE – Mercosul se pretende que, países como Brasil, continue sendo exportador de commodities e importador de agrotóxicos, entre outros. Transforma o agronegócio num grande negócio para poucos, submetendo as comunidades dos territórios de reforma agrária, territórios ancestrais, a todo tipo de violação de direitos humanos e da natureza”.

Que projetos de nação nos esperam

Muitas dúvidas pairam sobre os novos governos progressistas da América Latina; as mesmas condições de crescimento, com o boom de commodities de anos anteriores, não estão dadas. Países estão falidos, seja pelo fascismo, pela pandemia de COVID, com populações empobrecidas, especialmente o Brasil. Qual será a resposta de inserção econômica no mercado mundial que irão construir? 

Luis Lacalle, presidente do Uruguai, anunciou na recente cúpula do Mercosul a intenção de assinar o Acordo de Associação Transpacífico, sem qualquer consulta ou diálogo com o Mercosul, fragilizando o bloco. Por isso, recebeu duras críticas de Alberto Fernández, presidente da Argentina, para quem a negociação de acordos comerciais internacionais cada vez envolve menos a solidariedade entre os países. No mesmo momento, o Peru, assim como a Argentina, vivem sob forte pressão da direita para retomar o poder, com o uso da máquina do lawfare. Desse modo, está a pleno as táticas de cooptação de lideranças e do exemplo pedagógico do terror, para engrossar o caldo dos desafios dos novos governos.

Embora os povos de nossa América sejam muito aguerridos, nas lutas e organizações políticas – não à toa a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), essência do projeto imperialista americano, foi derrotada no último ciclo de governos progressistas com base na  força de um referendum popular regional, nossa governabilidade é sempre um caminho de poucas escolhas diante de nossa subordinação ao mercado mundial. Os arranjos políticos que levaram a vitórias eleitorais e as derrotas ao fascismo certamente condicionarão essas escolhas. Resta saber que tipo de semente tais governos irão semear neste novo ciclo. 

Serão os primeiros passos rumo à superação de nossa dependência? Se este for o caminho, as velhas formas de acordos comerciais e tratados de livre comércio, revisitados criticamente e à luz do atual momento histórico e dos compromissos de um novo governo no Brasil, suleado pelo combate à fome e pela qualificação (e não privatização) dos serviços públicos essenciais à garantia de direitos, deverão nele florescer as iniciativas econômicas emancipatórias populares, solidárias e feministas que, na resistência, sustentaram a vida e a política nesses duros anos de obscuridade, abrindo alas para uma reconstrução democrática no país. Se as apostas trilharem outros rumos, norteados por interesses empresariais neocoloniais, a história se repetirá, e o ciclo da espiral novamente estará longe de se quebrar.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2022/12/20/ate-quando-as-veias-estarao-abertas-na-america-latina 

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