Há dez dias, indígenas Guarani Mbya retomaram suas terras ancestrais no Arado Velho, no bairro Belém Novo, Porto Alegre. Desde então, veem-se ameaçados — inclusive com armas — pelo empreendimento que quer privatizar a área e expulsá-los dali para que deem lugar a duas mil casas em três condomínios de luxo.
Foi num sonho que a terra chamou, e isso o homem branco jamais entenderá: ele que insiste em expulsá-los para as periferias de suas cidades barulhentas e poluídas ou cercá-los em um só canto, tirando-os de seus locais sagrados, é surdo já, não escuta; o chamado da terra, porém, impõe-se com clareza a quem sabe ouvir: estava ali, no Arado Velho, bairro Belém Novo, Porto Alegre, a terra usurpada – apenas uma delas. E era hora de retomá-la.
Assim que um grupo de Guarani Mbyas navegou pelo Rio Guaíba até as areias sagradas, sabendo ir ao encontro do que sempre procuraram, atentos à convocação do território. Ao desembarcar, o cacique Timóteo Karai Mirim olhou a mata verde e as árvores cobertas de barba de bode — que deixavam o cenário ainda mais bonito: que alegria!, que tranquilidade!, sentiu, de coração leve. Os pés estavam enfim postos no chão do qual jamais deveriam ter saído. O grupo avançou algumas dezenas de metros e montou acampamento.
Contudo, logo nas primeiras noites, aquelas de frio mais intenso, uma visita pouco agradável: homens armados, dizendo-se policiais, ameaçaram os índios e os empurram de volta à orla — área pública na qual os Guaranis se viram cercados. Ali montaram uma vez mais suas barracas, duas lonas azuis grandes seguras por paus de madeira, propiciando algum teto para proteger da chuva. O ataque dos supostos policiais tem explicação: no território ancestral indígena, um empreendimento de luxo pretende construir três condomínios fechados com cerca de duas mil casas; a presença Guarani por óbvio é incômoda.
Desde a chegada indígena, na sexta-feira, dia 15/6, seguranças privados circulam pela área, fotografando e filmando a movimentação do grupo e, além disso, a de qualquer pessoa que se aproxime dali, inibindo a chegada de ajuda e doação de roupas e alimentos. Os pescadores da região foram ameaçados para que não façam o transporte de apoiadoras e apoiadores até a área (para que se evite a parte já privatizada, onde a passagem é bloqueada, é necessário que se percorra um trecho pelas águas do Guaíba). O barco que ajudou na travessia dos indígenas foi misteriosamente sabotado, tendo o motor danificado.
O projeto dos condomínios de luxo levanta muitas controvérsias: ainda em 2015, houve uma alteração no Plano Diretor de Porto Alegre para que se ampliasse em 12 vezes o número de casas permitidas na área da Fazenda do Arado Velho, território em disputa. Tal mudança foi feita sem nenhuma consulta popular: não houve sequer uma audiência pública para debater a questão. A decisão arbitrária foi mais tarde suspensa pela Justiça, exatamente pela ausência de participação popular. Também tramita uma acusação de fraude na parte geológica do estudo apresentado pelo empreendimento.
Mas a terra chamou, e ela não prioriza os interesses privados de empresas que querem somente o lucro; pelo contrário, protege-se deles: a presença indígena é a garantia da preservação e do equilíbrio ambiental na região. Um empreendimento megalomaníaco, promovendo a mega-concentração de casas, carros e pessoas, além de privatizar a natureza do Arado, tão rica, certamente acabaria por degradar o lugar. Para se ter noção, como o terreno ali é baixo, seria necessário aterrar uma área equivalente a 200 campos de futebol para a construção de ruas e casas — com a utilização de cerca de um milhão de metros cúbicos de terra. E para carregar essa terra toda seriam necessárias 125 mil caçambas de caminhão. O impacto que isso causaria é devastador.
Mais que isso, o empreendimento pretende agora expulsar os indígenas de suas terras sagradas: sítios arqueológicos datados da era pré-colonial foram encontrados na região do Arado Velho, com diversos artefatos, ferramentas e cerâmicas típicas dos Guarani, mostrando que ali estavam estabelecidas aldeias inteiras até a invasão do homem branco.
Mesmo nas noites frias e escuras, Timóteo não teme o enfrentamento com os interesses de grandes corporações: sabe estar seguro pelo espírito de seus ancestrais, verdadeiros donos do território. Logo na primeira noite na Ponta do Arado Velho, seu tio os viu, cercando o grupo e zelando por eles. Ora, de nada adiantam metralhadoras contra os ventos e trovões e tempestades que o homem branco terá que enfrentar; as balas não podem sangrar a natureza sagrada, e isso Timóteo sabe bem. Por isso, sente-se alegre e tranquilo: é esse o sentimento que descansa no coração daquele que sabe estar em seu lugar, enquanto medo e ameaças fazem sombra no coração do invasor.
Olhando as crianças que brincam nas areias, duas delas suas — e todas elas vigiadas ameaçadoramente pelos seguranças privados —, Timóteo esboça um sorriso leve ao dar uma longa tragada em seu petynguá: está exatamente onde deve estar; o chamado da terra fora ouvido. Alegria e tranquilidade mesmo: afinal a retomada, como a própria palavra indica, apenas deu ao índio o que é, e sempre foi, do próprio índio.
Para ver mais fotos da retomada Guarani Mbya no Arado Velho, acessa o nosso Flickr. As fotos são do Douglas Freitas.