Crises sistêmicas e o Estado que queremos

O respeito ao outro, ao meio ambiente e modos de produção que não gerem crises estruturais são soluções para as crises

As tempestades, os ciclones, os desmoronamentos, as enchentes, as secas estão por todos os lados no Brasil. As crises desencadeadas por esses eventos mostram o completo colapso das relações de produção, como consequência delas as relações sociais, e nossa interação com a natureza, no sistema capitalista. O desequilíbrio entre as chuvas e as secas é resultado das mudanças climáticas, que como podemos ver no Brasil já não são eventuais, começam a se tornar contínuas.

Em julho deste ano, a cidade de Maquiné, dentre outras da região no estado do Rio Grande do Sul, sofreu com as fortes chuvas, deixando populações desabrigadas, isoladas, com problemas de acesso à energia e alimentos. No mês passado, novamente o estado enfrentou a mesma problemática. A tempestade deixou, pelo menos, 51 mortos; causou enchentes, destruição de casas e quebra de pontes. Os efeitos atingiram o estado de Santa Catarina. Segundo os meteorologistas, a intensidade desses eventos aumenta porque as águas dos oceanos estão mais quentes.

Na região Norte do país, o evento extremo oposto, as secas. As cidades amazônicas registram as maiores temperaturas. Oito estados enfrentam a mais severa seca dos últimos 40 anos. O voluptuoso Rio Amazonas está baixando, em média, 13 a 14 centímetros por dia. Os estados decretaram emergência ambiental pela escassez da água. Os animais morrem. As populações ribeirinhas perdem o rio, seu meio de transporte, e ficam isoladas. Os fatores para tais alterações são atribuídos ao El Niño, mas também às intensas modificações no meio ambiente do bioma, sobretudo o desmatamento.

Nos últimos anos, várias cidades brasileiras sofreram os impactos dos desastres climáticos. Apesar disso, os estados não modificaram suas escolhas econômicas. As opções políticas pelos subsídios ao agronegócio, à mineração, aos grandes empreendimentos e a políticas desiguais de ordenação territorial afetam diretamente na produção das catástrofes climáticas, assim como nas sequelas deixadas por elas. As políticas climáticas reduzem-se ao conservacionismo ambiental, da criação de  áreas de proteção, e às metas de redução de carbono, insuficientes para dar respostas à crise socioambiental.

O clima não é um assunto apenas físico, é profundamente social, histórico e cultural. Enquanto as soluções à crise climática forem pensadas sem envolver mudanças estruturais, notadamente a de sistema, seguiremos produzindo desencontros. A questão é que as altas classes não enfrentam os males do clima da mesma forma. Sua condição econômica lhes permite viver em zonas privilegiadas ou ter recursos para atendimento emergencial. Por isso, é no Sul Global, assim como na periferia, que as repercussões climáticas produzem maiores danos. Nessa história, comunidades e sujeitos, que pouco ou nada contribuem para as mudanças climáticas, são os que mais pagam sua conta.

Os estados, além das opções equivocadas de política econômica, não investem na estruturação da atenção da Defesa Civil, da assistência social emergencial e nem na provisão de apoio adequado às vítimas dos desastres naturais. Mesmo que os fatos estejam se repetindo ano a ano, mês a mês, governantes não conseguiram estruturar políticas públicas. Muitos dos recursos destinados às calamidades não são adequadamente empregados no atendimento às vítimas e na adoção de medidas de prevenção de desastres.

Isso porque o Estado assume uma percepção de que a vulnerabilidade social é um problema do indivíduo. Assim, pessoas que vivem em casas precárias, em barrancos, morros, próximas de rios, são responsáveis individualmente por desenvolver capacidades para lidar com essas situações. Isso ocorre da mesma forma nas situações trágicas. Os Estados não consideram que a situação econômica, de moradia, é resultado do acesso desigual, dos problemas de distribuição de renda, próprios da economia capitalista. O desfecho é que as vítimas estão completamente desamparadas pelo Estado.

Contra essa lógica, movimentos populares e organizações da sociedade civil, em sua luta anticapitalista, exercem valores solidários de apoio às vítimas, demonstrando uma prática de ser distinta. No Vale do Taquari, a região mais atingida com as enchentes de setembro no Rio Grande do Sul, criou-se a Campanha “Sementes da Solidariedade”.

Cozinha Solidária no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul – Victor Frainer | Levante Popular da Juventude

Composta pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Consea/RS (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), CPT (Comissão Pastoral da Terra), MAB (Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens), Cáritas, Sindicato de Trabalhadores Rurais e Instituto Cultural Padre Josimo, visitou a região atingida levantando informações sobre as perdas, fornecendo apoio emergencial, inclusive da entrega de sementes para plantarem lavouras perdidas. Também foi construída uma cozinha solidária para apoiar na alimentação das famílias.

A experiência da militância do MAB, com o cenário de calamidade que se instaura aos rompimentos da barragem, contribuiu no apoio para as vítimas poderem se organizar em grupos, reivindicar indenizações, articularem-se para acessar moradias. Experiência apreendida na luta popular, que se constitui como um saber partilhado entre o povo. “Além da entrega das quentinhas, nós do MAB, fomos fazendo contato com pessoas, lideranças e referências, e percebemos que tinham demandas de casas, acesso a informações e direitos”, comenta Alexania Rossato, do MAB/RS. “Mais que levar comida, é preciso levar organização para as famílias”, “de serem sujeitos do processo histórico”, descreveu Alexania. Segundo a militante do MAB, a solidariedade “é parte do princípio do movimento, na situação delicada, gravíssima, que as pessoas passaram”.

Na esteira do acúmulo da experiência histórica da luta popular, a Cozinha Solidária do MTST serviu de referência para a construção da solidariedade no Vale do Taquari. Caio Belloli de Almeida, militante do MTST que esteve na região, destacou ser “muito importante a participação do MTST na Cozinha Solidária, nesta iniciativa, porque como movimento social que proveu a alimentação para as pessoas assistidas, a Prefeitura apenas entregava, não ajudava a construir. Inclusive, em alguns momentos, a Prefeitura ameaçou interromper o processo, foi muito importante o MTST estar lá para conseguir incidir na política”.

Lucas Gertz, do Levante Popular da Juventude, participou deste processo da cozinha. Para ele, os aprendizados da solidariedade da pandemia na produção de alimentos ajudaram a construir a experiência histórica para organizar as cozinhas emergenciais. Lucas caracteriza que vivemos “um processo de aquecimento, de ebulição global, o que torna muito mais importante e urgente as nossas organizações e a sociedade se voltarem ao debate ambiental”. Todo o processo vivenciado nas enchentes está relacionado à forma como estabelecemos as relações de produção, o fenômeno da privatização e a falta de prioridade para a vida na Terra, destaca Lucas.

De forma semelhante, o MST montou uma cozinha solidária no município de Encantado, também no Vale do Taquari, fornecendo marmitas diárias aos desabrigados. A cozinha, organizada com apoio do Levante Popular da Juventude, distribuiu marmitas produzidas com produtos da reforma agrária, orgânicos, vindos de cooperativas do movimento. Marildo Mulinari, militante do MST, conta que a cozinha foi instalada logo no dia seguinte à tragédia. A vivência tem sido rica com a comunidade: “O pessoal vem nos agradecer, dizer que se não fosse nós, não teriam o que comer porque foi a casa, foi tudo embora, as pessoas não tinham mais as coisas”.

Segundo Marildo, mais de 500 militantes estiveram envolvidos em toda a produção das marmitas, uma força tarefa mobilizada para o apoio às pessoas afetadas. Salete Carollo, uma das militantes do MST que foi à região em solidariedade, nos descreveu que foi uma experiência muito forte “para a gente que vem da agricultura, e principalmente, olhando para essa dimensão. É de como o ser humano se move, é pelo amor, pela terra, pela ternura; e se move com o coração para ajudar aqueles que mais precisam”. A fala de Salete é tocante do espírito, dos valores da militância que movem a ajuda humanitária, que são o valor da vida em sua integralidade. A comida que os assentados produzem, da terra que conquistaram, foi o que alimentou os atingidos. As mesmas mãos que trabalharam na produção do alimento trabalharam para o transformar em comida, para servir ao outro. É essa lógica de orientação do trabalho vivo, a da produção de mais vida, a que o mundo deveria estar orientado.

Cedenir de Oliveira, coordenador do MST, também esteve na Cozinha Solidária de Encantado e nos contou que todos que participaram da solidariedade ficaram impactados com a tragédia. “Nós do MST entendemos que poderíamos contribuir na confecção de alimentos, com o aprendizado ao longo de nossos 40 anos de existência, de produzir alimentos em condições adversas, nas estradas, nas marchas, então nós já adquirimos uma expertise”. Cedenir ressalta que o MST recebeu muita solidariedade até se consolidar nos assentamentos, produzir, ter cooperativas. Hoje, conquistou sua dignidade e encontra-se em condições de retribuir. Nas palavras do militante do MST, a solidariedade é um “valor importante para desenvolver não só na tragédia, mas no dia a dia, para romper a cultura do ódio e ignorância para construir uma sociedade mais justa e igualitária”.

A solidariedade militante aos efeitos trágicos das enchentes semeia os valores da sociedade que estamos construindo, centrada na vida humana e na natureza como maiores riquezas do universo. O respeito ao outro, a reciprocidade, o cuidado como política, a construção de outras relações com o meio ambiente, o fim do modo de produção que dá origem estrutural a essas crises são os caminhos para uma real transformação da sociedade, e o horizonte de solução da nossa crise.

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em 11 de outubro de 2023, na página: www.brasildefato.com.br/2023/10/11/crises-sistemicas-e-o-estado-que-queremos 

8 de março: nossa bandeira é a economia feminista

Nós, mulheres, somos 51,8% da população brasileira, e mesmo assim não chegamos a ser metade das cadeiras do Congresso Nacional (17,7%) ou do Judiciário (38,8%). Tampouco temos a representatividade devida nas Assembleias Estaduais, Câmaras Municipais ou na direção do Executivo. A única mulher eleita Presidenta, Dilma Rousseff, sofreu um golpe misógino em 2016. Será impossível pensar em igualdade de gênero quando sequer somos capazes de construir uma equidade de representação política.

O cenário se agrava quando olhamos os quatro últimos anos de Governo Bolsonaro. Quando as políticas públicas se destinaram a retificar papéis históricos de gênero que reforçam a divisão sexual do trabalho. A mensagem política transmitida pelo governo e representações políticas era sintetizada em expressões como: “bela, recatada e do lar”; “meninas vestem rosa e meninos azul”.

Neste universo conservador, agregava-se o fundamentalismo religioso propagado pelas posições fascistas que confrontavam diretamente os direitos historicamente conquistados das mulheres, especialmente os sexuais e reprodutivos.

As estatísticas comprovam os retrocessos. Segundo o relatório de transição, houve uma desidratação das políticas públicas destinadas às mulheres; apenas no primeiro semestre de 2022, o país bateu recordes de feminicídio. Em 2021, 66 mil brasileiras foram vítimas de estupro e 230 mil sofreram agressões físicas por violência doméstica. Se olharmos esses dados sob o recorte racial, ainda encontraremos que 67% das vítimas de feminicídio e 89% das vítimas de violência sexual são mulheres negras. A partir de 2016, a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres sofreu um corte de 90% de seu orçamento.

A crise sanitária atingiu de forma distinta as mulheres, refletindo a urgência de um debate público sobre a economia de cuidados. Isso porque as mulheres ocuparam as linhas de frente de combate ao coronavírus sendo as enfermeiras dos hospitais, as cuidadoras dos doentes nas casas e as que sustentaram o isolamento doméstico. As trabalhadoras domésticas foram as primeiras a serem infectadas pela pandemia e as mais impactadas pelos efeitos do covid-19.

O retorno do país ao mapa da fome afeta sobremaneira as mulheres: 1 em cada cinco lares chefiados por mulheres não tem o que comer no dia a dia. A sobrecarga de trabalho doméstico, já excessiva, aumentou ainda mais no desmantelamento de políticas sociais como escola e creches, agravando uma conjuntura marcada pelo desemprego generalizado. Nossas mulheres estão cansadas, doentes.

Em realidade, as disparidades de gênero cresceram em todo o mundo com a pandemia, estima-se que para atingir a igualdade de gênero levaríamos 135,6 anos. O Brasil ocupa a 93ª posição no mundo, de 153 países, sendo o penúltimo na lista latino-americana. O que nos torna um gigante de desigualdade.

O Informe Global de Gênero, do Fórum Econômico Mundial, propõe que para superar as lacunas são necessários investimentos no setor de assistência social, construção de políticas para igualdade no mundo do trabalho e capacitação das mulheres. A retórica da organização financeira é bastante peculiar, já que se de um lado propõe essas diretrizes, de outro promovem políticas de austeridade e desregulamentação nos países para facilitar a privatização de serviços e a entrada e permanência de empresas transnacionais.

Como podemos observar, as políticas públicas para as mulheres se resumem a uma sujeição à sociedade capitalista e patriarcal, e para outra grande parcela delas, a morte. Assim estão nos matando; eliminam nossos corpos, nossas mentes, nossa libertação. No entanto, somos feitas da terra e da resistência, e neste 8 de março queremos semear nosso projeto político alternativo: a economia feminista.

A economia feminista nos liberta

Mulheres são maioria nas iniciativas de solidariedade contra a fome que surgiram durante a pandemia, como as cozinhas solidárias do MTST – AFP

O sistema capitalista, desde sua origem, estruturou-se fazendo o uso do patriarcado como instrumento de dominação e exploração das mulheres, e rebaixando ainda mais sua posição como grupo social. Assim, organizou uma divisão sexual do trabalho, separando o trabalho produtivo, assalariado, do trabalho reprodutivo, este último legado às mulheres. Todas as tarefas de cuidado que são necessárias para a manutenção das condições de vida estão designadas às mulheres e não são remuneradas. Se assim o fosse, seria impossível sustentar os baixos salários e o avanço da mercantilização e privatização à medida que exigiria que a sociedade não estivesse orientada para o individualismo e, sim, para a coletividade.

Ocorre que a crise de cuidado é permanente em nossa sociedade; não à toa, vivemos uma profunda crise do capital versus vida. A orientação da produção mundial para a produção constante de lucro, concentrado numa cada vez menor parcela de indivíduos acionistas de grandes corporações que controlam cadeias globais de produção, é insustentável.

A crise ambiental instalada desde a separação do homem da Natureza na modernidade tem produzido cada vez mais a nossa insustentabilidade como espécie humana neste planeta. “A ruptura entre as nossas sociedades e a natureza não é de responsabilidade de toda a população, pois foi projetada e é perpetuada por esses sistemas de poder em nível global”, expressa Karin Nansen, ex-presidenta da Federação de Amigas da Terra Internacional. Precisamos, urgentemente, superar nossa separação com a Natureza, suas gentes e suas culturas, e incorporar valores de ecodependência.

Frente aos desafios da crise múltipla da acumulação do capital, feministas de todo mundo têm construído a economia feminista e popular como projeto político alternativo. A economia feminista é uma aposta política para transformar a sociedade, as relações entre as pessoas, e entre elas e a natureza. Reconhecer o trabalho de cuidado invisibilizado e propor sua reorganização é um primeiro passo. Determinar uma nova lógica de produção mundial na qual a economia esteja centrada na vida, dando especial atenção aqueles que trabalham para sustentá-la.

Todas e todos, ao longo de nossas vidas, precisamos de cuidados; não há condição de vida sem relações de reciprocidade. É por isso que precisamos subverter a lógica da ganância das empresas transnacionais que dirigem o mundo, e tomar consciência da centralidade da vida humana e sua reprodução. Ter esses sujeitos e sujeitas no centro do pensar nossa política, como propõe Karin: “Precisamos de respostas que coloquem no centro as classes populares, a classe trabalhadora, as mulheres, os povos indígenas, as comunidades quilombolas, as comunidades camponesas e todas aquelas comunidades que sofrem diretamente os impactos desse sistema e desse modelo de acumulação”.

A economia feminista não é um projeto acabado, é um projeto em permanente construção no andamento dos processos de luta de classes, do qual convidamos a todos e todas para se engajarem. Construir a economia feminista é resistir aos projetos de morte, e mesmo depois de tantas pilhagens, semearmos a esperança. Muitas mulheres ao redor do mundo estão fazendo isso, construindo cotidianamente novas práticas coletivas de cuidado, novas relações sociais e com a Natureza.

Assim, deixamos para este 8 de março o repensar a organização da sociedade em quatro eixos centrais de enfrentamento ao capitalismo, desde a economia feminista: 1) o reconhecimento e organização do cuidado; 2) a centralidade da vida; 3) interdependência; 4) ecodependência. Marchando com nossa bandeira, seguimos e nos atrevemos a viver a nossa vida com valor, força e dedicação.

Texto publicado no Jornal Brasil de Fato RS, no link: https://www.brasildefators.com.br/2023/03/01/8-de-marco-nossa-bandeira-e-a-economia-feminista 

O que há por trás do termo natureza positiva na Cúpula de Biodiversidade, COP15?

Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas, que assegurem que o mundo volte a viver dentro dos limites planetários. 

Imagem de David F. Sabadell

A biodiversidade está em crise em todo o planeta. O número de espécies, e de indivíduos dentro das próprias espécies, diminuiu de forma retumbante nas últimas décadas, e a comunidade científica adverte que nos próximos anos podemos perder um milhão a mais de espécies. Para quem está seguindo o tema de perto é mais evidente que essa crise da biodiversidade é, na verdade, uma faceta a mais da crise sistêmica, causada pelo modelo econômico atual e pelo mantra do crescimento infinito. 

O Convênio sobre a Diversidade Biológica (CBD nas siglas em inglês) iniciou um processo para estabelecer um novo Marco Mundial da Biodiversidade durante a Conferência das Partes das Nações Unidas no ano de 2018, um encontro em que muitas das nações participantes se comprometeram a respaldar um marco para a “mudança transformadora” elaborado pela comunidade científica. Aí então, se abrigava a esperança de que essa decisão fosse uma oportunidade real para mudar o modelo econômico e proteger a biodiversidade. Frente a essa premissa, escrevi para um bom número de amigas, amigos e ativistas ecologistas de todo o mundo para lhes dizer: “você tem que participar desse processo, vai ser transformador”. Enquanto o Convênio sobre a Diversidade Biológica fingia escutar as necessidades da sociedade civil e dos povos indígenas na primeira ronda de consultas, quando veio a luz o primeiro rascunho, tomei um duro golpe: as medidas que poderiam transformar verdadeiramente o sistema econômico que minava a biodiversidade – tais como normas/políticas rígidas e coordenadas para minimizar o dano ambiental – não tinham nenhuma possibilidade de êxito. 

O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses danos a longo prazo

Por sua vez, nos demos conta rapidamente de que a participação das grandes empresas nas discussões estava obstruindo qualquer avanço, tal como acaba de demonstrar um novo estudo da Amigos da Terra Internacional. Inclusive empresas criminosas como BP, responsável pelo derramamento de petroleiro de Deepwater Horizon em 2010, ou a Vale, que envenenou centenas de quilômetros de rios com rejeitos tóxicos de suas minas diante do rompimento de duas represas de rejeitos no Brasil. Grandes contaminantes como estas empresas criam coalizões que se apresentam como ‘verdes“ ou “sustentáveis”. Porém, nas salas de negociação, com as portas fechadas,  advogam por medidas voluntárias e de maquiagem verde que simulam uma regulação verdadeira. Está evidente que entendem que qualquer medida eficaz frente a perda de biodiversidade os prejudica e constitui um obstáculo para suas ganâncias.

Durante anos temos visto como os estados participantes e os altos funcionários da ONU recebem de braços abertos essas coalizões empresariais e suas propostas. Isso faz com que os resultados deste convênio- chave sobre a biodiversidade – e as políticas que vão reger a próxima década – estejam repletos de propostas de lavagem verde. Os conceitos de “Natureza positiva” e “soluções baseadas na natureza” são algumas dessas medidas, que colocam em perigo as verdadeiras soluções da crise urgente da biodiversidade. 

O conceito de “Natureza positiva” ou “positivo para a natureza” pode soar bem, mas sua definição é muito confusa. O termo natureza pode ser uma referência a políticas que nada tem a ver com a biodiversidade e “positivo” é, inclusive, mais ambíguo 

Ainda que possa parecer que implique em algo bom, na realidade gera um resultado duvidoso, se seguem destruindo ecossistemas e os processos de restauração são questionáveis.  O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses planos a longo prazo. O que esperam aqueles que propõem o conceito de “Natureza positiva” é que no ano de 2030, o resultado possa ser ligeiramente positivo. Porém, quando dimensiono a perda de biodiversidade que vi ao longo da minha vida, fica evidente que não podemos permitir mais perdas. 

Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade. 

Tanto o conceito de “natureza positiva” quanto o de “soluções baseadas na natureza”, o SBN, se baseiam em compensar, sejam as emissões atuais de CO2 ou os ecossistemas que querem destruir, o que supõe que um tipo de ecossistema possa ser compensado com outros, sem levar em conta a sua capacidade de absorção de CO2, a complexidade de organismos que existe em cada ecossistema, o caráter único de cada espécie ou o território sagrado para os povos indígenas. Tal compensação é uma “solução” para as empresas que querem manter seus benefícios e seguir minando a biodiversidade com a desculpa de que sua destruição é sustentável porque se compensará em outro lugar. O conceito não só é totalmente errôneo, como não é realista. Na realidade, compensar dessa forma requer grandes extensões de terras para capturar carbono, que excedem a superfície de terras disponíveis a nível mundial. 

Permitir a compensação de emissões dá para as empresas um passe livre para seguir arrasando o meio ambiente apesar da emergência climática e da perda exacerbada de biodiversidade. Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade. Reservar terras para compensar emissões de carbono também compete com a demanda de terras de cultivo do agronegócio.  

Porém, alguns poucos projetos pontuais de soluções baseadas na natureza que incluem práticas agroecológicas e a participação de Povos Indígenas e comunidades locais são apresentados em folhetos atrativos, em todas as cores, e afirmam falsamente que as soluções baseadas na natureza representam uma mudança de significado para o clima e a biodiversidade. 

Ao mesmo tempo, ambos conceitos empresariais representam uma grande carga para os Povos Indígenas e para as comunidades locais. Muitos projetos de compensação acontecem em suas terras e frequentemente os expulsam de seus territórios. As empresas tendem a afirmar que o uso da terra feito pelas comunidades nativas prejudica a biodiversidade, ainda que seja demonstrado o contrário. Cerca de 80% do remanescente de biodiversidade terrestre se preservou graças aos povos indígenas e comunidades locais, apesar das violações de seus direitos e o assassinato de defensores e defensoras ambientais. 

Embora a destruição de ecossistemas faça parte de uma crise mundial que temos que resolver, não é apenas uma questão técnica, como também de justiça. Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas que garanta que o mundo volte a viver dentro de limites planetários. As empresas têm que ser submetidas a uma regulamentação rigorosa, ao invés de ser permitido que criem as suas próprias medidas para evitarem as responsabilidades.  Mas, antes de qualquer coisa, é preciso proteção aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais, que são os verdadeiros guardiões que protegem a biodiversidade. 

*Artigo de opinião de Nele Marien, Coordenadora do Programa Bosques e Biodiversidade da Amigos da Terra Internacional. Publicado originalmente no site El Salto, no dia 14 de dezembro, em: www.elsaltodiario.com/opinion/cumbre-de-biodiversidad-cop15 

 

plugins premium WordPress