Site do jornal Brasil de Fato traz, neste 30 de agosto, duas matérias sobre o conflito entre o povo indígena Tembé, no Pará, e a empresa Brasil BioFuels (BBF), proprietária de monocultivos de dendê na região. Indígenas denunciam que os plantios da empresa ocasionaram envenenamento de colheitas da comunidade e de nascentes de água, adoeceu animais e gerou pragas de insetos. Situação será agravada se a tese do Marco Temporal for aprovada, como denuncia o jornal.
No início do mês, a Amigas da Terra Brasil acompanhou a denúncia deste conflito feita pelo Povo Tembé durante o Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia, no Pará. Apoiamos dando divulgação ao ataque sofrido por três liderenças do povo , que haviam sido baleadas em 7 de agosto, durante as atividades organizadas pelos movimentos e organizações sociais e o governo brasileiro. Também entrevistamos Jesus Gonçalves, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), que falou sobre a situação de vulnerabilidade e as constantes ameaças que ocorrem ao Povo Tembé.
Divulgamos, abaixo, as matérias publicadas pelo jornal Brasil de Fato e o material produzido pela Amigas da Terra Brasil:
Qual a origem da ‘Guerra do Dendê’ no Pará e por que os indígenas Tembé querem expulsar a Brasil BioFuels (BBF)
Indígenas denunciam que monocultivo de dendê envenenou colheitas e nascentes, adoeceu animais e gerou pragas de insetos
Em uma área repleta de dendezais, o líder indígena Urutaw Tembé aponta para uma nascente de igarapé mal-cheirosa. Na superfície da água sem peixes, flutuam porções de matéria orgânica decomposta, entre largos tubos de concreto abandonados. “Aqui era um lugar onde meus pais, meus avós e meus tios caçavam e pescavam há uns anos atrás. Nunca imaginavam que ia chegar a uma contaminação tão grande. É horrível”, suspira a liderança indígena.
O igarapé, conhecido como Braço Grande, já não é mais sinônimo de água potável e alimento para os indígenas Tembé. Eles afirmam que o motivo da contaminação foi o descarte da tiborna, um resíduo químico da produção de óleo de palma, descrito como um caldo de cheiro insuportável. A responsável pelo descarte seria uma gigante do agronegócio “sustentável” que afirma ter nascido para “mudar a matriz energética na região Norte” em “100% de harmonia com a floresta amazônica”: a Brasil BioFuels (BBF).
O despejo da tiborna é apenas um dos graves impactos socioambientais documentados em agosto deste ano pelo Brasil de Fato no município de Tomé-Açu (PA) e que estão na origem da chamada “Guerra do Dendê”. Em três anos, o conflito resultou em pelo cinco mortes de indígenas e quilombolas, que tentam resistir à destruição das suas condições básicas de vida na floresta: água para beber e terra para plantar.
“Eles falam que a atividade deles é sustentável, mas é um sustentável manchado de sangue”, denuncia Urutaw Tembé.
Com um exército de seguranças privados e fortemente armados, a BBF é acusada de reagir com violência desproporcional a protestos de moradores, além de restringir a circulação de pessoas e de atirar, bater e até torturar lideranças. A truculência é vista como uma forma de garantir que a revolta que explode entre as populações tradicionais não afete o crescimento da operação. Desde 2021, a BBF afirma ter dobrado a capacidade de produção de biodiesel e aumentado em 10% a área plantada no Norte brasileiro, chegando a 75 mil hectares, mais do que o tamanho da cidade do Rio de Janeiro. O faturamento previsto é de R$1,5 bilhão para 2023.
Enquanto isso, indígenas Tembé relataram à reportagem uma vida devastada por uso abusivo de agrotóxicos, proliferação de insetos e desaparecimento da caça, pesca e água potável. E dizem que o cultivo de dendê está em áreas previamente griladas de onde seus antepassados foram expulsos por pistoleiros – e até mesmo dentro de terras indígenas demarcadas. Tudo, segundo os indígenas, sem qualquer procedimento de consulta prévia, na contramão de leis brasileiras e tratados internacionais.
Parte das alegações feitas pelos Tembé já foram reconhecidas no âmbito de processos judiciais pelo Ministério Público Federal (MPF), que já pediu a prisão do dono da BBF por tortura, acusação negada pela empresa.
A BBF afirma que sua segurança privada atua em defesa da integridade dos seus funcionários, maquinário e instalações, contra “invasores” “criminosos”. Sustenta ainda que faz o “cultivo sustentável da palma no estado, exercendo a posse pacífica, justa e ininterrupta das áreas privadas da companhia”. Confira o posicionamento da empresa na íntegra no final do texto.
Tiborna comprometeu igarapés e adoeceu caça
Urutaw Tembé se lembra do terror que sentiu ao ver pela primeira vez o impacto do despejo da tiborna, o subproduto do beneficiamento do dendê.
“Todas as espécies de peixes e cobra de dentro do rio vinham boiando na água. Tinha muita mosca, muito urubu, e um fedor que não dava nem para chegar perto. Essas moscas ferravam a paca, a cotia… Os animais da floresta que a gente caça. Quando a gente olhava, os animais tavam com a pele, o couro caindo, se desprendendo do corpo”, relata.
Segundo Urutaw, a substância venenosa se espalhou aos poucos e comprometeu todos os igarapés ao redor do território.
“A gente não se arrisca a beber água, nem a tomar banho. Quem entrava na água saía com coceira. Por isso começamos a reivindicar para a empresa cavar poço artesiano”, diz.
A construção dos poços foi feita “pela metade”, diz o líder Tembé. “Algumas partes a BBF atendeu, mas outras não. Ela cavava o poço, mas não colocava a estrutura ou não colocava a caixa d’água, não colocava bomba.. Algumas aldeias ela atendeu, mas o restante não”.
“Essa é a nossa revolta. De eles virem estragar nossa água e não dar estrutura para que nós pudéssemos viver”, explica Urutaw També.
Dendê avançou sobre terra demarcada, diz liderança Tembé
Na aldeia Yriwar, comandada por Urutaw Tembé, o líder indígena janta com a família. Na mesa que alimenta cerca de 10 pessoas estão açaí, farinha, e carne de tatu assada na brasa. “Confesso que não sou o melhor caçador, mas de vez em quando trago alguma coisa”, comenta Urutaw em tom de brincadeira.
Por estar dentro dos limites da Terra Indígena Turé-Mariquita, a menor do Brasil com 146 hectares, a aldeia Yriwar ainda abriga matas nativas que proporcionam a carne de caça.
Mas nem o território regularizado e protegido por lei escapou do dendê. Ao olhar para a placa do governo federal que sinaliza os limites da Turé-Mariquita, é possível ver os dendezais.
“Aqui é a placa onde é o território já homologado, território indígena”, aponta Urutaw. “E ali o Dendê encostou [nos limites da demarcação], não respeitou limite de amortecimento. Hoje nós podemos dizer: o dendê está plantado dentro do território indígena”.
Pouco maior do que um campo de futebol, a Terra Indígena Turé-Mariquita abriga cerca de 50 pessoas. “Pouca terra para muito índio”, diz Urutaw, subvertendo o lema ruralista. Por isso, a luta dos Tembé é por espaço. Eles pedem à Funai a ampliação da terra indígena para as áreas ao redor, que estão em disputa com fazendeiros e com a própria BBF.
Agrotóxicos inviabilizaram produção
A aldeia Pitàwà está fora de terras indígenas demarcadas e é lar de 15 famílias Tembé. Na mesa do almoço, Deusalina Tembé senta com sua filha e seus netos ao redor de um pote de farinha e de uma panela com caldeirada de peixe tambaqui. “Toda a nossa comida é comprada na cidade, nada vem daqui”, lamenta a idosa.
“Hoje a gente já não come mais um peixe ou uma caça do mato, só se a gente comprar. Tudo isso foi a destruição dessa empresa, dessa maldita empresa ao nosso redor”, diz Deusalina aos prantos.
Os agrotóxicos jogados sobre os dendezais, que ficam a 30 metros das casas e da escola da aldeia, transformaram a comunidade em uma terra infértil e infestada de insetos.
“Meu pai me criou na roça, trabalhando. E hoje em dia nós não podemos mais trabalhar. Nós já ficamos até desanimados de plantar. Porque nós plantamos uma mandioca e ela apodrece. Tudo apodrece por causa desse veneno que jogam”, relata Deusalina Tembé.
“Eles estavam jogando o veneno por baixo, e a gente começou a reclamar, porque estava destruindo os nossos igarapés. Aí eles já começaram a vir de avião, por cima. Onde [o agrotóxico] pegava nas nossas plantas, todas morriam. A gente vivia só dentro de casa por causa daquele veneno com as crianças.
Infestação de insetos
A infestação de borboletas, baratas, cobras, aranhas e escorpiões está entre os impactos ambientais mais graves, porém silenciosos, relatados pelos Tembé que moram em áreas próximas de cultivos da BBF. Segundo os indígenas, as “nuvens” de insetos estão relacionadas à aplicação de agrotóxicos nos dendezais.
“Teve o tempo em que a gente já não podia comer mais caju, porque era muita borboleta em cima dele. E hoje a gente não consegue mais dormir sem mosquiteiro porque os embuás [também conhecido como piolho de cobra] caem em cima da gente e dá muita coceira”, conta Deusalina.
“Cobra, muita cobra. Já escapei de ser mordida por uma dentro da minha casa. “Esses insetos vêm todos do meio do dendê. Todo do meio do dendê esses insetos para perto da casa da gente. E aí traz mais revolta para a gente. Mais revolta, porque antigamente não era assim”, completa a matriarca Tembé.
O vislumbre de uma terra sem BBF
Com 30 moradores, a aldeia I’ixing é uma área de retomada do povo Tembé próxima ao distrito de Quatro Bocas, no município de Tomé-Açu. Localizada entre uma fazenda e um dendezal, a comunidade foi fundada em julho de 2012, mas o pedido de regularização do território vem desde 1996, como forma de compensação por um mineroduto da Pará Pigmentos que cruzou o território.
“No passado aqui morou o meu tio Lúcio”, conta Miriam Tembé, líder da comunidade. “Foi onde ele teve seus primeiros filhos. Ele teve que sair por conta da chegada de fazendeiros. Primeiro aqui foi ocupado por fazendeiros. E depois eles passaram a terra para a empresa Biopalma, depois Biovale [ex-subsidiária da Vale] e agora BBF”.
Há dois anos, em meio à pressão do movimento indígena, a BBF deixou de manejar as palmeiras de dendê na comunidade I’ixing, para alívio dos moradores. Um ano depois, a infestação de insetos que inviabilizava a coleta de frutas e o cultivo de alimentos começou a cessar.
“Por incrível que pareça a gente já consegue ver o mamão crescendo, madurando. Mas até o ano passado os insetos não deixavam. E a gente não conseguia ter uma manga, um mamão, uma banana sequer. Você falava e as moscas iam entrando na boca, caindo no alimento, na água”, relata Miriam.
Para os Tembé, a comunidade de Miriam é o vislumbre de como pode ser um futuro sem o monocultivo de dendê e com uma vida verdadeiramente sustentável.
“A BBF prega uma propaganda lá fora que produz de forma sustentável. Não é. Porque o sustentável não destrói a floresta, não polui os rios, não destrói a fauna e a flora. Da forma que ela faz, ela destrói tudo isso, impactando as nossas vidas. A vida da população que precisa da floresta para sobreviver”, diz Miriam Tembé.
Sociedade civil e Funai se solidarizam com os Tembé
A presidenta da Funai, Joenia Wapichana, ouviu as reivindicações das lideranças Tembé no início de agosto em Belém (PA). Em nota, o órgão indigenista manifestou apoio aos indígenas e disse que busca a regularização do componente indígena do processo de licenciamento ambiental.
“(…) Apesar de a empresa ter realizado diversas ações pontuais de apoio em prol da comunidade indígena, não houve avaliação adequada dos impactos sinérgicos e cumulativos, tampouco uma atuação eficaz para dirimir os problemas ambientais”, declarou a Funai por meio de nota.
Os Tembé receberam declarações de solidariedade da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) e de inúmeras lideranças dos povos originários.
A situação de vulnerabilidade dos indígenas e quilombolas da região é acompanhada e vista com preocupação por diversas entidades de direitos humanos, como Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDH), Comissão de Direitos Humanos da OAB Pará, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Associação Brasileira de Juízes para a Democracia (ABJD).
BBF rebate impactos ambientais
O Brasil de Fato pediu respostas à BBF sobre cada uma das alegações feitas pelos indígenas na reportagem.
Sobre o despejo da tiborna na nascente do Igarapé Braço Grande, a empresa disse que “a acusação não procede”.
“O Grupo BBF enfatiza que suas operações não causam prejuízo ambiental, pelo contrário, recuperam áreas degradadas pelo desmatamento. Em suas áreas de cultivo de palma, a empresa utiliza o processo de fertirrigação, método 100% natural e orgânico. Por meio da água do cozimento dos frutos de dendê – conhecida como tiborna – que é rica em vitaminas e nutrientes, é realizada a fertirrigação somente das áreas privadas de plantio de palma, como uma alternativa sustentável para os tratos culturais necessários do palmar”, diz a nota.
A respeito da utilização de agrotóxicos, a BBF repetiu que “a acusação não procede”.
“O Grupo BBF esclarece que utiliza apenas produtos permitidos por lei em suas áreas de cultivo de palma e que realiza monitoramento contínuo, nunca foram detectados valores de substância química em concentrações que não sejam seguros à saúde pública, respeitando os indicadores definidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para o cultivo da palma de óleo. Para corroborar com a não procedência desta falsa acusação, em março deste ano, o inquérito da Polícia Federal (número 1035068-94.2022.4.01.3900) concluiu que não existe contaminação por agrotóxico ou qualquer outro tipo de poluição ambiental causada pela empresa ao longo da reserva indígena Turé Mariquita e que existe, apenas e em grande quantidade, a presença de contaminação por coliforme fecais de humanos e animais que residem no local. No inquérito, foram colhidas amostras de água em 11 pontos distintos em localidades indicadas pelos próprios indígenas Tembé e que foram periciados pela Polícia Federal e pelo Instituto de Criminalística Evandro Chagas, referência na área no Brasil e no mundo”, escreveu a BBF.
Quanto a alegação de não ter concluído a instalação de poços artesianos acordada com os indígenas, a empresa reafirmou que “acusação não procede”.
“O Grupo BBF reforça que investe de forma contínua no desenvolvimento socioeconômico das comunidades onde atua. Entre os destaques das benfeitorias em infraestrutura e serviços realizados pela empresa no último ano, estão a construção de nove pontes, a manutenção de mais de 650 quilômetros de estradas vicinais, construção de poços artesianos e estruturas de caixas d’água para as comunidades, cursos profissionalizantes, palestras de preservação ambiental em escolas públicas, assistência técnica de fitossanidade aos agricultores da região, entre outros”, afirma o comunicado.
Em relação ao dendê plantado no interior na divisa da terra indígena Turé-Mariquita, a BBF reiterou: “a acusação não procede”.
“O Grupo BBF (Brasil BioFuels) reforça que não existe sobreposição de terras, conforme relatado por representantes do INCRA e ITERPA em reunião realizada com a Comissão Agrária, que contou com a presença do Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, representantes do Judiciário e outros participantes. A companhia realiza suas atividades agrícolas respeitando os limites territoriais e apenas em suas áreas de posse. Vale ressaltar que o cultivo sustentável da palma de óleo realizada pela empresa respeita o Zoneamento Agroambiental da Palma de Óleo (decreto 7.172 do Governo Federal de 7 de maio de 2010), uma das legislações mais severas do mundo, cujo objetivo é recuperar áreas da Amazônia degradadas até dezembro de 2007, com as diretrizes de proteção ao meio ambiente, conservação da biodiversidade e utilização racional dos recursos naturais, além do respeito à função social da propriedade. Como histórico, o Grupo BBF adquiriu em novembro de 2020 a operação da antiga empresa Biopalma (subsidiária da Vale) no Pará, dando continuidade ao cultivo sustentável da palma no estado, exercendo a posse pacífica, justa e ininterrupta das áreas privadas da companhia”, disse a BBF.
Edição: Rodrigo Chagas
Validação do marco temporal deve agravar ‘Guerra do Dendê’ no Pará
Se aprovada, tese permitiria avanço do agro e afetaria 99% da população indígena de Tomé-Açu
A eventual validação do marco temporal das terras indígenas, tese ruralista que volta a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (30), afetará 99% da população indígena de Tomé-Açu, nordeste do Pará.
Há três anos a região é palco da chamada “Guerra do Dendê”, um conflito entre forças desproporcionais que resultou em pelo menos cinco mortes de indígenas e quilombolas nos últimos três anos.
O percentual de indígenas atingidos é uma estimativa da Associação Indígena do Vale do Acará, presidida por Miriam Tembé. Segundo ela, a mudança no critério de demarcação poderia anular os direitos territoriais de cerca de 1300 Tembé em quatro territórios de ocupação tradicional que foram retomados recentemente.
“Se o marco temporal for aprovado, para nós seria um desastre imenso. Estamos cercados por fazendas e grandes empresas, e nossos parentes estão morrendo. Nós já comprovamos que temos a necessidade e o direito de estar no nosso território”, diz Miriam Tembé.
O primeiro e único advogado Tembé, Jorde Tembé, que presta jurídico aos indígenas, também manifestou preocupação.
“Algumas áreas requeridas pelas comunidades são de ampliação do território já demarcada e outras são de reconhecimento de um território. Se houver a aplicação do marco temporal, as comunidades que buscam esse reconhecimento e que foram vítimas de tentativa de genocídio, acabam sendo privadas novamente dos seus direitos fundamentais”, explicou Jorde Tembé.
“Mesmo com eventual aplicação do marco temporal, nós entendemos que em 1988 as comunidades já exerciam a posse tradicional ao território requerido que está em discussão com a empresa de óleo de palma da região”, acrescentou o advogado.
Marco temporal poderá ser arma jurídica de gigante do agro
Na “Guerra do Dendê”, a empresa produtora de biocombustível Brasil BioFuels (BBF) é acusada por indígenas e quilombolas de impactar territórios tradicionais ao envenenar plantações e nascentes, adoecer animais e gerar pragas de insetos. O dendê é o fruto de uma palmeira usado na fabricação do biodiesel.
Revoltadas, as populações afetadas organizam protestos contra a empresa, que vem respondendo de forma cada vez mais violenta. As manifestações são reprimidas com tiros, e a circulação dos moradores é restringida por seguranças fortemente armados.
O marco temporal das terras indígenas prevê que os povos só podem reivindicar territórios que estavam ocupando em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal. O critério arbitrário desconsidera o histórico de expulsões violentas que tiraram as terras dos Tembé e os confinaram em pequenos territórios.
O advogado Alberto Pimentel, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), avalia que a BBF e outras forças econômicas poderiam usar o marco temporal para reivindicar na Justiça áreas de retomada indígena. Por ainda não estarem regularizadas, as terras estão vulneráveis ao avanço do agronegócio, mineradoras e madeireiros.
“No caso dos Tembé de Tomé-Açú uma possível votação favorável do STF ao marco temporal implicaria em sérias violações sobre seus direitos. Poderia dificultar a luta legítima que este povo tem para ampliação da área de seu território atualmente reivindicada”, afirmou Pimentel, em nome da SDDH.
A BBF nega todos os impactos ambientais alegados pelos Tembé e afirma que sua segurança privada atua em defesa da integridade dos seus funcionários, maquinário e instalações contra “invasores” “criminosos”. Sustenta ainda que faz o “cultivo sustentável da palma no estado, exercendo a posse pacífica, justa e ininterrupta das áreas privadas da companhia”.
Exigir comprovação de conflitos é “piada de mal gosto”, diz líder Tembé
O critério do marco temporal abre uma exceção para indígenas que conseguirem comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material em 1988. Nesses casos, as populações poderiam pleitear a posse da terra. Para Miriam Tembé, a necessidade de comprovação de conflito é “uma piada de mal gosto”.
“Isso é algo totalmente desrespeitoso com as populações que viviam nesse território. Muitos foram mortos, outros tiveram que fugir para não serem mortos. Não havia Defensoria Pública da União, Ministério Público, nem a Funai existia. Não havia meios de comunicação, nem como chegar até as autoridades, era um lugar totalmente isolado. E aí eles pedem para a gente comprovar?”, questiona a líder Tembé.
Um exemplo está na comunidade I’ixing, liderada por Miriam. A pequena aldeia está localizada entre uma grande fazenda de gado e um dendezal que foi manejado pela BBF até 2022. Após os indígenas retomarem a área, a BBF deixou de utilizar as áreas de plantio, dando aos 30 moradores do local um alívio nos impactos ambientais.
“Até o ano passado não conseguíamos colher uma manga, um mamão, uma banana sequer, por causa das nuvens de insetos provocadas pelos agrotóxicos. Você falava e as moscas iam entrando na boca, caindo no alimento e na água”, relata Miriam.
Segundo Miriam, a aldeia I’ixing foi onde seu tio Lúcio Tembé teve os primeiros filhos. Ainda com a mata preservada e livre do agronegócio, a área era usada pelos indígenas como fonte de pesca, caça e água limpa para plantar, beber e cozinhar. Tudo mudou a partir da década de 1960, quando os antepassados da líder indígena foram expulsos por pistoleiros.
“Isso se deu por conta de madeireiros invadindo o território. Os madeireiros chegavam, nos expulsavam, faziam todo o desmatamento e passavam para fazendeiros. Esse fazendeiros iam comprando as terras na base da grilagem, e muitas dessas terras passaram hoje para as mãos da BBF”, relata Miriam.
O advogado Jorde Tembé diz que a exigência de comprovação de posse tradicional se mostra muito desleal para os Tembé.
“Porque, desde a demarcação das terras, muitos dos direitos das comunidades tem sido preteridos, pois durante um longo período elas não foram devidamente acompanhadas pelo Estado, por isso não deram início a sua luta por direitos nesse período”, afirmou Jorde.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
Nota de solidariedade da Amigas da Terra Brasil ao povo indígena Tembé
No vídeo, Jesus Gonçalves, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), fala sobre a situação de vulnerabilidade e as constantes ameaças que ocorrem ao Povo Tembé: