Qual a origem da ‘Guerra do Dendê’ no Pará e por que os indígenas Tembé querem expulsar a Brasil BioFuels (BBF)

Site do jornal Brasil de Fato traz, neste 30 de agosto, duas matérias sobre o conflito entre o povo indígena Tembé, no Pará, e a empresa Brasil BioFuels (BBF),  proprietária de  monocultivos de dendê na região. Indígenas denunciam que os plantios da empresa  ocasionaram envenenamento de colheitas da comunidade e de nascentes de água, adoeceu animais e gerou pragas de insetos. Situação será agravada se a tese do Marco Temporal for aprovada, como denuncia o jornal.

No início do mês, a Amigas da Terra Brasil acompanhou a denúncia deste conflito feita pelo Povo Tembé durante o Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia, no Pará. Apoiamos dando divulgação ao ataque sofrido por três liderenças do povo , que haviam sido baleadas em 7 de agosto, durante as atividades organizadas pelos movimentos e organizações sociais e o governo brasileiro.  Também entrevistamos Jesus Gonçalves, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), que falou sobre a situação de vulnerabilidade e as constantes ameaças que ocorrem ao Povo Tembé.

Divulgamos, abaixo, as matérias publicadas pelo jornal Brasil de Fato e o material produzido pela Amigas da Terra Brasil:

Qual a origem da ‘Guerra do Dendê’ no Pará e por que os indígenas Tembé querem expulsar a Brasil BioFuels (BBF)

Indígenas denunciam que monocultivo de dendê envenenou colheitas e nascentes, adoeceu animais e gerou pragas de insetos

Murilo Pajolla
Brasil de Fato | Tomé-Açu (PA) |

Pichação pede ‘Fora BBF’ em base da empresa próxima a terras indígenas e quilombolas – Murilo Pajolla/Brasil de Fato

Em uma área repleta de dendezais, o líder indígena Urutaw Tembé aponta para uma nascente de igarapé mal-cheirosa. Na superfície da água sem peixes, flutuam porções de matéria orgânica decomposta, entre largos tubos de concreto abandonados. “Aqui era um lugar onde meus pais, meus avós e meus tios caçavam e pescavam há uns anos atrás. Nunca imaginavam que ia chegar a uma contaminação tão grande. É horrível”, suspira a liderança indígena.

O igarapé, conhecido como Braço Grande, já não é mais sinônimo de água potável e alimento para os indígenas Tembé. Eles afirmam que o motivo da contaminação foi o descarte da tiborna, um resíduo químico da produção de óleo de palma, descrito como um caldo de cheiro insuportável. A responsável pelo descarte seria uma gigante do agronegócio “sustentável” que afirma ter nascido para “mudar a matriz energética na região Norte” em “100% de harmonia com a floresta amazônica”: a Brasil BioFuels (BBF).

O despejo da tiborna é apenas um dos graves impactos socioambientais documentados em agosto deste ano pelo Brasil de Fato no município de Tomé-Açu (PA) e que estão na origem da chamada “Guerra do Dendê”. Em três anos, o conflito resultou em pelo cinco mortes de indígenas e quilombolas, que tentam resistir à destruição das suas condições básicas de vida na floresta: água para beber e terra para plantar.

“Eles falam que a atividade deles é sustentável, mas é um sustentável manchado de sangue”, denuncia Urutaw Tembé.

Com um exército de seguranças privados e fortemente armados, a BBF é acusada de reagir com violência desproporcional a protestos de moradores, além de restringir a circulação de pessoas e de atirar, bater e até torturar lideranças. A truculência é vista como uma forma de garantir que a revolta que explode entre as populações tradicionais não afete o crescimento da operação. Desde 2021, a BBF afirma ter dobrado a capacidade de produção de biodiesel e aumentado em 10% a área plantada no Norte brasileiro, chegando a 75 mil hectares, mais do que o tamanho da cidade do Rio de Janeiro. O faturamento previsto é de R$1,5 bilhão para 2023.


Nascente do igarapé Braço Grande com indícios de contaminação pela tiborna, subproduto do beneficiamento do dendê / Murilo Pajolla/Brasil de Fato

Enquanto isso, indígenas Tembé relataram à reportagem uma vida devastada por uso abusivo de agrotóxicos, proliferação de insetos e desaparecimento da caça, pesca e água potável. E dizem que o cultivo de dendê está em áreas previamente griladas de onde seus antepassados foram expulsos por pistoleiros – e até mesmo dentro de terras indígenas demarcadas. Tudo, segundo os indígenas, sem qualquer procedimento de consulta prévia, na contramão de leis brasileiras e tratados internacionais.

Parte das alegações feitas pelos Tembé já foram reconhecidas no âmbito de processos judiciais pelo Ministério Público Federal (MPF), que já pediu a prisão do dono da BBF por tortura, acusação negada pela empresa.

A BBF afirma que sua segurança privada atua em defesa da integridade dos seus funcionários, maquinário e instalações, contra “invasores” “criminosos”. Sustenta ainda que faz o “cultivo sustentável da palma no estado, exercendo a posse pacífica, justa e ininterrupta das áreas privadas da companhia”. Confira o posicionamento da empresa na íntegra no final do texto.

Tiborna comprometeu igarapés e adoeceu caça 

Urutaw Tembé se lembra do terror que sentiu ao ver pela primeira vez o impacto do despejo da tiborna, o subproduto do beneficiamento do dendê.

“Todas as espécies de peixes e cobra de dentro do rio vinham boiando na água. Tinha muita mosca, muito urubu, e um fedor que não dava nem para chegar perto. Essas moscas ferravam a paca, a cotia… Os animais da floresta que a gente caça. Quando a gente olhava, os animais tavam com a pele, o couro caindo, se desprendendo do corpo”, relata.

Segundo Urutaw, a substância venenosa se espalhou aos poucos e comprometeu todos os igarapés ao redor do território.

“A gente não se arrisca a beber água, nem a tomar banho. Quem entrava na água saía com coceira. Por isso começamos a reivindicar para a empresa cavar poço artesiano”, diz.

A construção dos poços  foi feita “pela metade”, diz o líder Tembé. “Algumas partes a BBF atendeu, mas outras não. Ela cavava o poço, mas não colocava a estrutura ou não colocava a caixa d’água, não colocava bomba.. Algumas aldeias ela atendeu, mas o restante não”.

“Essa é a nossa revolta. De eles virem estragar nossa água e não dar estrutura para que nós pudéssemos viver”, explica Urutaw També.

Dendê avançou sobre terra demarcada, diz liderança Tembé

Na aldeia Yriwar, comandada por Urutaw Tembé, o líder indígena janta com a família. Na mesa que alimenta cerca de 10 pessoas estão açaí, farinha, e carne de tatu assada na brasa. “Confesso que não sou o melhor caçador, mas de vez em quando trago alguma coisa”, comenta Urutaw em tom de brincadeira.

Por estar dentro dos limites da Terra Indígena Turé-Mariquita, a menor do Brasil com 146 hectares, a aldeia Yriwar ainda abriga matas nativas que proporcionam a carne de caça.

Mas nem o território regularizado e protegido por lei escapou do dendê. Ao olhar para a placa do governo federal que sinaliza os limites da Turé-Mariquita, é possível ver os dendezais.


Nordeste tem grande fluxo de caminhões da BBF carregados de dendê / Murilo Pajolla/Brasil de Fato

“Aqui é a placa onde é o território já homologado, território indígena”, aponta Urutaw. “E ali o Dendê encostou [nos limites da demarcação], não respeitou limite de amortecimento. Hoje nós podemos dizer: o dendê está plantado dentro do território indígena”.

Pouco maior do que um campo de futebol, a Terra Indígena Turé-Mariquita abriga cerca de 50 pessoas. “Pouca terra para muito índio”, diz Urutaw, subvertendo o lema ruralista. Por isso, a luta dos Tembé é por espaço. Eles pedem à Funai a ampliação da terra indígena para as áreas ao redor, que estão em disputa com fazendeiros e com a própria BBF.

Agrotóxicos inviabilizaram produção

A aldeia Pitàwà está fora de terras indígenas demarcadas e é lar de 15 famílias Tembé. Na mesa do almoço, Deusalina Tembé senta com sua filha e seus netos ao redor de um pote de farinha e de uma panela com caldeirada de peixe tambaqui. “Toda a nossa comida é comprada na cidade, nada vem daqui”, lamenta a idosa.

“Hoje a gente já não come mais um peixe ou uma caça do mato, só se a gente comprar. Tudo isso foi a destruição dessa empresa, dessa maldita empresa ao nosso redor”, diz Deusalina aos prantos.

Os agrotóxicos jogados sobre os dendezais, que ficam a 30 metros das casas e da escola da aldeia, transformaram a comunidade em uma terra infértil e infestada de insetos.

“Meu pai me criou na roça, trabalhando. E hoje em dia nós não podemos mais trabalhar. Nós já ficamos até desanimados de plantar. Porque nós plantamos uma mandioca e ela apodrece. Tudo apodrece por causa desse veneno que jogam”, relata Deusalina Tembé.

“Eles estavam jogando o veneno por baixo, e a gente começou a reclamar, porque estava destruindo os nossos igarapés. Aí eles já começaram a vir de avião, por cima. Onde [o agrotóxico] pegava nas nossas plantas, todas morriam. A gente vivia só dentro de casa por causa daquele veneno com as crianças.

Infestação de insetos

A infestação de borboletas, baratas, cobras, aranhas e escorpiões está entre os impactos ambientais mais graves, porém silenciosos, relatados pelos Tembé que moram em áreas próximas de cultivos da BBF. Segundo os indígenas, as “nuvens” de insetos estão relacionadas à aplicação de agrotóxicos nos dendezais.

“Teve o tempo em que a gente já não podia comer mais caju, porque era muita borboleta em cima dele. E hoje a gente não consegue mais dormir sem mosquiteiro porque os embuás [também conhecido como piolho de cobra] caem em cima da gente e dá muita coceira”, conta Deusalina.


Caju encoberto por borboletas: “comer frutas ficou impossível”, diz Deusalina Tembé / Acervo pessoal

“Cobra, muita cobra. Já escapei de ser mordida por uma dentro da minha casa. “Esses insetos vêm todos do meio do dendê. Todo do meio do dendê esses insetos para perto da casa da gente. E aí traz mais revolta para a gente. Mais revolta, porque antigamente não era assim”, completa a matriarca Tembé.

O vislumbre de uma terra sem BBF

Com 30 moradores, a aldeia I’ixing é uma área de retomada do povo Tembé próxima ao distrito de Quatro Bocas, no município de Tomé-Açu. Localizada entre uma fazenda e um dendezal, a comunidade foi fundada em julho de 2012, mas o pedido de regularização do território vem desde 1996, como forma de compensação por um mineroduto da Pará Pigmentos que cruzou o território.

“No passado aqui morou o meu tio Lúcio”, conta Miriam Tembé, líder da comunidade. “Foi onde ele teve seus primeiros filhos. Ele teve que sair por conta da chegada de fazendeiros. Primeiro aqui foi ocupado por fazendeiros. E depois eles passaram a terra para a empresa Biopalma, depois Biovale [ex-subsidiária da Vale] e agora BBF”.

Há dois anos, em meio à pressão do movimento indígena, a BBF deixou de manejar as palmeiras de dendê na comunidade I’ixing, para alívio dos moradores. Um ano depois, a infestação de insetos que inviabilizava a coleta de frutas e o cultivo de alimentos começou a cessar.

“Por incrível que pareça a gente já consegue ver o mamão crescendo, madurando. Mas até o ano passado os insetos não deixavam. E a gente não conseguia ter uma manga, um mamão, uma banana sequer. Você falava e as moscas iam entrando na boca, caindo no alimento, na água”, relata Miriam.

Para os Tembé, a comunidade de Miriam é o vislumbre de como pode ser um futuro sem o monocultivo de dendê e com uma vida verdadeiramente sustentável.

“A BBF prega uma propaganda lá fora que produz de forma sustentável. Não é. Porque o sustentável não destrói a floresta, não polui os rios, não destrói a fauna e a flora. Da forma que ela faz, ela destrói tudo isso, impactando as nossas vidas. A vida da população que precisa da floresta para sobreviver”, diz Miriam Tembé.

Sociedade civil e Funai se solidarizam com os Tembé 

A presidenta da Funai, Joenia Wapichana, ouviu as reivindicações das lideranças Tembé no início de agosto em Belém (PA). Em nota, o órgão indigenista manifestou apoio aos indígenas e disse que busca a regularização do componente indígena do processo de licenciamento ambiental.

“(…) Apesar de a empresa ter realizado diversas ações pontuais de apoio em prol da comunidade indígena, não houve avaliação adequada dos impactos sinérgicos e cumulativos, tampouco uma atuação eficaz para dirimir os problemas ambientais”, declarou a Funai por meio de nota.

Os Tembé receberam declarações de solidariedade da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) e de inúmeras lideranças dos povos originários.

A situação de vulnerabilidade dos indígenas e quilombolas da região é acompanhada e vista com preocupação por diversas entidades de direitos humanos, como Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDH), Comissão de Direitos Humanos da OAB Pará, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Associação Brasileira de Juízes para a Democracia (ABJD).

BBF rebate impactos ambientais 

Brasil de Fato pediu respostas à BBF sobre cada uma das alegações feitas pelos indígenas na reportagem.

Sobre o despejo da tiborna na nascente do Igarapé Braço Grande, a empresa disse que “a acusação não procede”.

“O Grupo BBF enfatiza que suas operações não causam prejuízo ambiental, pelo contrário, recuperam áreas degradadas pelo desmatamento. Em suas áreas de cultivo de palma, a empresa utiliza o processo de fertirrigação, método 100% natural e orgânico. Por meio da água do cozimento dos frutos de dendê – conhecida como tiborna – que é rica em vitaminas e nutrientes, é realizada a fertirrigação somente das áreas privadas de plantio de palma, como uma alternativa sustentável para os tratos culturais necessários do palmar”, diz a nota.

A respeito da utilização de agrotóxicos, a BBF repetiu que “a acusação não procede”.

“O Grupo BBF esclarece que utiliza apenas produtos permitidos por lei em suas áreas de cultivo de palma e que realiza monitoramento contínuo, nunca foram detectados valores de substância química em concentrações que não sejam seguros à saúde pública, respeitando os indicadores definidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para o cultivo da palma de óleo. Para corroborar com a não procedência desta falsa acusação, em março deste ano, o inquérito da Polícia Federal (número 1035068-94.2022.4.01.3900) concluiu que não existe contaminação por agrotóxico ou qualquer outro tipo de poluição ambiental causada pela empresa ao longo da reserva indígena Turé Mariquita e que existe, apenas e em grande quantidade, a presença de contaminação por coliforme fecais de humanos e animais que residem no local. No inquérito, foram colhidas amostras de água em 11 pontos distintos em localidades indicadas pelos próprios indígenas Tembé e que foram periciados pela Polícia Federal e pelo Instituto de Criminalística Evandro Chagas, referência na área no Brasil e no mundo”, escreveu a BBF.

Quanto a alegação de não ter concluído a instalação de poços artesianos acordada com os indígenas, a empresa reafirmou que “acusação não procede”.

“O Grupo BBF reforça que investe de forma contínua no desenvolvimento socioeconômico das comunidades onde atua. Entre os destaques das benfeitorias em infraestrutura e serviços realizados pela empresa no último ano, estão a construção de nove pontes, a manutenção de mais de 650 quilômetros de estradas vicinais, construção de poços artesianos e estruturas de caixas d’água para as comunidades, cursos profissionalizantes, palestras de preservação ambiental em escolas públicas, assistência técnica de fitossanidade aos agricultores da região, entre outros”, afirma o comunicado.

Em relação ao dendê plantado no interior na divisa da terra indígena Turé-Mariquita, a BBF reiterou: “a acusação não procede”.

“O Grupo BBF (Brasil BioFuels) reforça que não existe sobreposição de terras, conforme relatado por representantes do INCRA e ITERPA em reunião realizada com a Comissão Agrária, que contou com a presença do Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, representantes do Judiciário e outros participantes. A companhia realiza suas atividades agrícolas respeitando os limites territoriais e apenas em suas áreas de posse. Vale ressaltar que o cultivo sustentável da palma de óleo realizada pela empresa respeita o Zoneamento Agroambiental da Palma de Óleo (decreto 7.172 do Governo Federal de 7 de maio de 2010), uma das legislações mais severas do mundo, cujo objetivo é recuperar áreas da Amazônia degradadas até dezembro de 2007, com as diretrizes de proteção ao meio ambiente, conservação da biodiversidade e utilização racional dos recursos naturais, além do respeito à função social da propriedade. Como histórico, o Grupo BBF adquiriu em novembro de 2020 a operação da antiga empresa Biopalma (subsidiária da Vale) no Pará, dando continuidade ao cultivo sustentável da palma no estado, exercendo a posse pacífica, justa e ininterrupta das áreas privadas da companhia”, disse a BBF.

Edição: Rodrigo Chagas

 

Validação do marco temporal deve agravar ‘Guerra do Dendê’ no Pará

Se aprovada, tese permitiria avanço do agro e afetaria 99% da população indígena de Tomé-Açu

Murilo Pajolla
Brasil de Fato | Tomé-Açu (PA) |

Miriam Tembé: “marco temporal seria um desastre para nós” – Murilo Pajolla/Brasil de Fato

A eventual validação do marco temporal das terras indígenas, tese ruralista que volta a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (30), afetará 99% da população indígena de Tomé-Açu, nordeste do Pará.

Há três anos a região é palco da chamada “Guerra do Dendê”, um conflito entre forças desproporcionais que resultou em pelo menos cinco mortes de indígenas e quilombolas nos últimos três anos.

O percentual de indígenas atingidos é uma estimativa da Associação Indígena do Vale do Acará, presidida por Miriam Tembé. Segundo ela, a mudança no critério de demarcação poderia anular os direitos territoriais de cerca de 1300 Tembé em quatro territórios de ocupação tradicional que foram retomados recentemente.

“Se o marco temporal for aprovado, para nós seria um desastre imenso. Estamos cercados por fazendas e grandes empresas, e nossos parentes estão morrendo. Nós já comprovamos que temos a necessidade e o direito de estar no nosso território”, diz Miriam Tembé.

O primeiro e único advogado Tembé, Jorde Tembé, que presta jurídico aos indígenas, também manifestou preocupação.

“Algumas áreas requeridas pelas comunidades são de ampliação do território já demarcada e outras são de reconhecimento de um território. Se houver a aplicação do marco temporal, as comunidades que buscam esse reconhecimento e que foram vítimas de tentativa de genocídio, acabam sendo privadas novamente dos seus direitos fundamentais”, explicou Jorde Tembé.

“Mesmo com eventual aplicação do marco temporal, nós entendemos que em 1988 as comunidades já exerciam a posse tradicional ao território requerido que está em discussão com a empresa de óleo de palma da região”, acrescentou o advogado.

Marco temporal poderá ser arma jurídica de gigante do agro

Na “Guerra do Dendê”, a empresa produtora de biocombustível Brasil BioFuels (BBF) é acusada por indígenas e quilombolas de impactar territórios tradicionais ao envenenar plantações e nascentes, adoecer animais e gerar pragas de insetos. O dendê é o fruto de uma palmeira usado na fabricação do biodiesel.

Revoltadas, as populações afetadas organizam protestos contra a empresa, que vem respondendo de forma cada vez mais violenta. As manifestações são reprimidas com tiros, e a circulação dos moradores é restringida por seguranças fortemente armados.

O marco temporal das terras indígenas prevê que os povos só podem reivindicar territórios que estavam ocupando em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal. O critério arbitrário desconsidera o histórico de expulsões violentas que tiraram as terras dos Tembé e os confinaram em pequenos territórios.

O advogado Alberto Pimentel, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), avalia que a BBF e outras forças econômicas poderiam usar o marco temporal para reivindicar na Justiça áreas de retomada indígena. Por ainda não estarem regularizadas, as terras estão vulneráveis ao avanço do agronegócio, mineradoras e madeireiros.

“No caso dos Tembé de Tomé-Açú uma possível votação favorável do STF ao marco temporal implicaria em sérias violações sobre seus direitos. Poderia dificultar a luta legítima que este povo tem para ampliação da área de seu território atualmente reivindicada”, afirmou Pimentel, em nome da SDDH.

A BBF nega todos os impactos ambientais alegados pelos Tembé e afirma que sua segurança privada atua em defesa da integridade dos seus funcionários, maquinário e instalações contra “invasores” “criminosos”. Sustenta ainda que faz o “cultivo sustentável da palma no estado, exercendo a posse pacífica, justa e ininterrupta das áreas privadas da companhia”.

Exigir comprovação de conflitos é “piada de mal gosto”, diz líder Tembé 

O critério do marco temporal abre uma exceção para indígenas que conseguirem comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material em 1988. Nesses casos, as populações poderiam pleitear a posse da terra. Para Miriam Tembé, a necessidade de comprovação de conflito é “uma piada de mal gosto”.

“Isso é algo totalmente desrespeitoso com as populações que viviam nesse território. Muitos foram mortos, outros tiveram que fugir para não serem mortos. Não havia Defensoria Pública da União, Ministério Público, nem a Funai existia. Não havia meios de comunicação, nem como chegar até as autoridades, era um lugar totalmente isolado. E aí eles pedem para a gente comprovar?”, questiona a líder Tembé.

Um exemplo está na comunidade I’ixing, liderada por Miriam. A pequena aldeia está localizada entre uma grande fazenda de gado e um dendezal que foi manejado pela BBF até 2022. Após os indígenas retomarem a área, a BBF deixou de utilizar as áreas de plantio, dando aos 30 moradores do local um alívio nos impactos ambientais.

“Até o ano passado não conseguíamos colher uma manga, um mamão, uma banana sequer, por causa das nuvens de insetos provocadas pelos agrotóxicos. Você falava e as moscas iam entrando na boca, caindo no alimento e na água”, relata Miriam.

Segundo Miriam, a aldeia I’ixing foi onde seu tio Lúcio Tembé teve os primeiros filhos. Ainda com a mata preservada e livre do agronegócio, a área era usada pelos indígenas como fonte de pesca, caça e água limpa para plantar, beber e cozinhar. Tudo mudou a partir da década de 1960, quando os antepassados da líder indígena foram expulsos por pistoleiros.

“Isso se deu por conta de madeireiros invadindo o território. Os madeireiros chegavam, nos expulsavam, faziam todo o desmatamento e passavam para fazendeiros. Esse fazendeiros iam comprando as terras na base da grilagem, e muitas dessas terras passaram hoje para as mãos da BBF”, relata Miriam.

O advogado Jorde Tembé diz que a exigência de comprovação de posse tradicional se mostra muito desleal para os Tembé.

“Porque, desde a demarcação das terras, muitos dos direitos das comunidades tem sido preteridos, pois durante um longo período elas não foram devidamente acompanhadas pelo Estado, por isso não deram início a sua luta por direitos nesse período”, afirmou Jorde.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

 

Nota de solidariedade da Amigas da Terra Brasil ao povo indígena Tembé

No vídeo, Jesus Gonçalves, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), fala sobre a situação de vulnerabilidade e as constantes ameaças que ocorrem ao Povo Tembé:

 

Amazônia, COP 30 e solidariedade entre os povos: balanço da Amigas da Terra Brasil sobre Diálogos Amazônicos e Cúpula da Amazônia

 

“Agora, rumo à COP 30, que é também de véspera de eleições no Brasil, temos dois anos para fazer mais e melhor, para de fato colocar a Amazônia e seus povos no centro de uma luta comum a todos os povos da Terra por justiça climática e contra todas as formas de opressão” –  Lúcia Ortiz, da ATBrasil.

A coordenadora da Amigas da Terra Brasil, Lúcia Ortiz, esteve presente nesta semana em Belém do Pará participando do Diálogos Amazônicos, atividade que antecedeu o encontro de chefes de Estado na Cúpula da Amazônia. Neste vídeo de balanço divulgado neste post, Lúcia nos conta que foi um grande encontro dos povos amazônicos, que “de fato preservam o bioma e constroem, todo dia, economias que sustentam a vida”. 

 

 

Populações, organizações e movimentos sociais denunciaram violências e violações cometidas pelo agronegócio, mineradoras e grandes empresas exportadoras contra os direitos dos povos, como o ataque ao Povo Indígena Tembé, que ocorreu durante o encontro.
🔗 Confira a nota de solidariedade da Amigas da Terra Brasil em: bit.ly/3QFBLYK 


Em plenárias, que contaram com a participação popular e representações de governos, ficaram expostas algumas contradições, entre elas em relação à sociobioeconomia da Amazônia. “Não pode ser extrativa e nem associada à lógica de compensação, seja dos mercados de carbono, de créditos para quem polui, seja de troca de dívida, de venda e privatização de áreas para conservação a fim de alcançar as metas de proteção da Amazônia e do desmatamento zero”, argumenta Lúcia. Esse posicionamento defendido pela Amigas da Terra Brasil é compactuado por povos indígenas, comunidades e trabalhadores rurais da Amazônia e organizações sociais que se encontraram recentemente em junho, no Acre. Aprovaram uma declaração, mandando um forte recado para a cúpula de presidentes dos países amazônicos que ocorreu nesta semana no Pará. Relembre a carta AQUI

Os tempos e métodos dos debates careceram de mais escuta, inclusão e compromisso para que os participantes do Diálogos Amazônicos pudessem incidir, de fato, na Declaração de Belém, assinada pelos governos do Brasil e dos outros sete países integrantes da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica). Tanto é que na terça-feira, 8 de agosto, quando iniciava a Cúpula da Amazônia, movimentos e organizações sociais entregaram uma carta que haviam aprovado no dia anterior, durante a Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia. O documento reivindica prioridade na titulação de todas as terras indígenas e quilombolas, assim como ações para recuperação do bioma amazônico e que sejam cumpridas todas as demandas para evitar um ponto de não retorno (momento em que o bioma não tem mais condições de se recuperar dos impactos causados).

O Diálogos Amazônicos também foi um momento de avanços nas propostas de transição ecológica e energética justa, popular e inclusiva, e de convergência e construção de unidade entre as organizações e movimentos sociais para a COP 30, Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (Organização das Nações Unidas) que será sediada no Brasil em 2025. 

“Agora, rumo à COP 30, que é também véspera de eleições no Brasil, temos dois anos para fazer mais e melhor, para de fato colocar a Amazônia e seus povos no centro de uma luta comum a todos os povos da Terra por justiça climática e contra todas as formas de opressão. Essa caminhada, essa jornada popular de convergências, de formação política e de organização, a partir dos territórios da Amazônia e de todos os biomas brasileiros, para o Brasil, a América Latina e o Caribe, já começou”, avalia Lúcia.   

 


Acesse a cobertura da ATBrasil sobre o Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia:


Amigas da Terra Brasil na Cúpula da Amazônia: Programação
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/08/03/confira-a-participacao-da-amigas-da-terra-brasil-na-cupula-da-amazonia/

Amigas da Terra Brasil acompanha povos amazônicos e debates sobre transição justa na Cúpula da Amazônia
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/08/07/amigas-da-terra-brasil-acompanha-povos-amazonicos-e-debates-sobre-transicao-justa-na-cupula-da-amazonia/

Assembleia dos Povos da Terra Pela Amazônia: movimentos sociais lançam carta com demandas para chefes de estado
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/08/08/assembleia-dos-povos-da-terra-pela-amazonia-movimentos-sociais-lancam-carta-com-demandas-para-chefes-de-estado/

Nota de solidariedade ao povo indígena Tembé
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/08/09/nota-de-solidariedade-ao-povo-indigena-tembe/ 

Depoimento de Jesus Gonçalves, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), sobre a situação de vulnerabilidade e as constantes ameaças ao Povo Tembé, cobrando que o Estado assuma a sua responsabilidade na proteção dos povos indígenas e dos territórios

 

Veja mais sobre o assunto nos links abaixo:

 

Encontro no Acre debate impactos dos projetos REDD , de mercados de carbono e de soluções baseadas na natureza
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/06/14/encontro-no-acre-debate-impactos-dos-projetos-redd-de-mercados-de-carbono-e-de-solucoes-baseadas-na-natureza/

Coluna no jornal Brasil de Fato >> Emergência climática e democracia: um problema estrutural
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/07/06/emergencia-climatica-e-democracia-um-problema-estrutural/

Coluna no jornal Brasil de Fato >> As políticas ambientais e climáticas no Brasil
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/06/23/as-politicas-ambientais-e-climaticas-no-brasil/

Nota de solidariedade ao povo indígena Tembé

Em meio às atividades dos Diálogos da Amazônia em Belém do Pará, à 200km de distância, três lideranças indígenas do Povo Tembé foram baleados na segunda-feira, dia 07 de agosto de 2023. As lideranças indígenas se preparavam para uma visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos em Tomé-Açu/PA.

Segundo informações da Comissão Pastoral da Terra (CPT) os disparos foram realizados por seguranças privados de uma empresa exploradora de dendezais na região. Existe um conflito na região entre os indígenas e as monoculturas de palma pertencentes ao grupo BBF (Brasil Bio Fuels), a maior empresa do ramo na América Latina, que mantém operações no entorno com frequente presença de seguranças armados dentro do território indígena.

No dia 04 de agosto um adolescente foi baleado, tendo como principal suspeita a segurança privada da empresa. Em 2021, uma jovem liderança já havia sido assassinada em uma das aldeias. Assim este novo ataque é mais um caso de violência realizada contra o povo Tembé.

Nos dias 08 e 09 de agosto, chefes de estado da região Pan-amazônica estarão reunidos em Belém para a Cúpula da Amazônia, cidade que sediará a  Conferência do Clima, a COP 30, em 2025. Resta saber que medidas adotarão para proteger concretamente os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais da região vítimas de violência relacionada à operação de empresas transnacionais na região.

Diante da gravidade dos fatos, exigimos que sejam tomadas medidas urgentes pelo governo do Estado do Pará já há muito cobrado, sem efeito, a proteger as comunidades indígenas do Alto Acará. No mesmo sentido, que haja investigação para apurar rigorosamente os crimes, e que os responsáveis sejam punidos. Tendo em visto o histórico conflito territorial, recomendamos que a Polícia Federal acompanhe o caso.

Proteger a Amazônia é respeitar e defender a vida dos seus povos!

Amigas da Terra Brasil
Belém do Pará, 8 de Agosto de 2023

Denúncia, indignação e Solidariedade ao Povo Tembé do Pará na Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia no dia 7/8/2023. Créditos: ATBrasil

No vídeo, Jesus Gonçalves, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), fala sobre a situação de vulnerabilidade e as constantes ameaças que ocorrem ao Povo Tembé:

 

Reportagem > Preservação da Floresta Amazônica: “é a soja que tem que sair, não a escola!”


Chantal Rayes/ Jornal La Libération

Na Cúpula de Belém, que começa nesta terça-feira no Brasil, os chefes de estado de oito países atravessados ​​pela floresta gigante devem discutir sua preservação. Entre os perigos, o cultivo industrial da soja. O Jornal “Libération” foi ao estado do Pará, ver de perto as populações que sofrem com a destruição das paisagens, a grilagem de terras e a poluição do solo e do ar.

O castanheiro ainda está lá, a motosserra mal o poupou. A árvore símbolo da Amazônia fica sozinha no meio de uma enorme plantação de soja nos arredores de Santarém, cidade no noroeste do Pará. Foz do maior rio do mundo, a região tornou-se, com suas terras férteis e baratas, o novo eldorado dessa semente, da qual o Brasil é o maior produtor mundial. Em ambos os lados da BR-163, os campos se estendem até onde a vista alcança. A estrada serpenteia aqui e ali entre finas faixas de vegetação.

“Em toda a bacia amazônica, a maior floresta tropical do planeta está ameaçada pela agricultura, pecuária, indústria extrativista”, compara Danicley Aguiar, do Greenpeace Brasil. Um modelo baseado no desmatamento, latifúndio e semi-escravidão . Mas, pela primeira vez, oito países que compartilham a floresta estão falando em protegê-la. Abre nesta terça-feira, 8 de agosto, em Belém, capital do Pará, uma cúpula reunindo seus presidentes sob a égide do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.“Esta Cúpula será um sucesso se permitir delinear uma transição para um novo modelo económico capaz de conviver com a floresta, de superar a pobreza respeitando os direitos humanos”, prossegue.

Para isso, seria preciso, segundo ele, rejeitar acordos de livre comércio como o que a UE negocia com o Mercosul , mercado comum que reúne Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. “Esse acordo deve contribuir para a descarbonização dos países sul-americanos , explica Danicley Aguiar. No entanto, sua versão atual prevê, ao contrário, um aumento de nossas exportações de matérias-primas para a UE , o que implicaria uma expansão da fronteira agrícola em detrimento de todos os ecossistemas, e não apenas da Amazônia. Para Lúcia Ortiz, da filial brasileira da Amigos da Terra, as salvaguardas europeias, como a proibição de importação de produtos resultantes do desmatamento praticado após dezembro de 2020, não pode fazer nada sobre isso. “O que impediria a produção de passar por tramas totalmente regulares?” pergunta a ativista. Sua associação integra um coletivo criado no Brasil com o apoio de ONGs europeias para pressionar o governo a abandonar um acordo tachado de “neocolonial” .

“A boa vontade de Lula não será suficiente”

Durante três dias no início do ano, o Libertação acompanhou estas trabalhadoras sociais em campanha em Santarém e região. Aqui estamos no sindicato dos pequenos agricultores. Maureen Santos, coordenadora da FASE , uma organização dedicada à educação popular, explica sua abordagem. “A transição ecológica europeia corre o risco de ser às nossas custas ”, adverte. A boa vontade de Lula não será suficiente . Temos que nos manter mobilizados.” A associação explica: a Europa vai demandar cada vez mais soja, cujo óleo é considerado uma matéria-prima “renovável”, e esta monocultura requer cada vez mais terra e pesticidas. Substâncias das quais o Brasil, gigante agrícola, já é o maior consumidor mundial. “Santarém está no olho do furacão” , acrescenta o educador popular Samis Vieira.

A soja foi introduzida na região no início dos anos 2000 para satisfazer a insaciável demanda chinesa. Um morador conta como a paisagem mudou: “Além das reservas naturais, a vegetação foi totalmente arrasada”. Em toda a Amazônia, a sementinha verde torna-se então o vetor direto do desmatamento, a principal fonte das emissões brasileiras de CO2. Pressionadas pelo Greenpeace, as multinacionais que negociam a matéria-prima, como a americana Cargill e a francesa Louis-Dreyfus, comprometem-se então a não adquirir mais soja plantada em lotes desmatados após a data de 22 de julho de 2008. Mas essa moratória tem limites Segundo Danicley Aguiar:“Embora tenha ajudado a conter a destruição da floresta, não leva em consideração o desmatamento causado indiretamente pela soja.” Essa cultura se instala de fato em pastagens, avançando cada vez mais para a pecuária florestal, que se tornou a principal causa do desmatamento.

“Já nem sabemos que pesticidas usam”

Na BR-163, o município de Mojuí dos Campos, em plena serra santarena , está de ressaca. “Quando os sojeiros chegaram, a gente acreditou no progresso “, diz Sileuza Nascimento, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais. “Isso não aconteceu. O campo está se esvaziando porque a agricultura industrial cria muito poucos empregos. Por outro lado, legou-nos a destruição da paisagem, a circulação de veículos pesados ​​de mercadorias e as doenças, devido ao uso massivo de pesticidas”. Com suas casas de madeira, Belterra, a cidade vizinha, parece saída da América profunda. E por um bom motivo. A “bela terra” foi erguida na década de 1930 por Henry Ford, a fim de garantir o fornecimento de borracha para o fabricante de automóveis. Foi a gloriosa era do látex, extraído das seringueiras, que por um breve período fez a fortuna da Amazônia.

Na escola municipal é hora do lanche. As crianças ocupam seus lugares no refeitório em um burburinho alegre. Uma semana antes da nossa visita, e novamente três dias depois, cerca de 200 alunos tiveram que ser mandados para casa, passando muito mal, culpados pela pulverização intempestiva do que o agronegócio chama modestamente de “produtos fitossanitários  . As plantações estão por perto. “A soja avança com a intenção de expulsar a escola” , acusa a professora e sindicalista Heloisa Rocha. Porém, se a escola tiver que ser fechada, as pessoas vão sair daqui, como nos municípios vizinhos. É a soja que precisa ir, não a escola.” Mas ela não tem ilusões, “o agronegócio é muito bem defendido pelos eleitos locais”.

Floresta rasgada

Para além do crescimento das explorações agrícolas, este comércio induz outros incômodos: as infraestruturas destinadas à exportação da soja também têm um impacto particularmente nefasto. Retorno a Santarém, no rio Tapajós, afluente do Amazonas. Aqui, a multinacional americana Cargill administra um gigantesco porto de exportação de soja para Europa e China desde 2003. Graças a ele, as cargas não precisam mais atravessar o país para chegar aos portos do Sul e do Sudeste. “Há uma reorientação da infraestrutura de escoamento da soja na Amazônia, porque é para cá que a fronteira agrícola se deslocou ”, explica Tatiana Oliveira, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Amazônia da universidade do Pará.Portanto, é mais econômico exportar da Amazônia, mesmo que essa infraestrutura destrua a floresta e os territórios dos índios.” Outro projeto do agronegócio e defendido pelo ministro dos Transportes de Lula: uma ferrovia de 900 quilômetros que deve cruzar o Pará com o risco de devastar cerca de 50 mil quilômetros quadrados de floresta.

Lúcia Ortiz, da filial brasileira da Amigos da Terra, diz estar preocupada com os grandes projetos defendidos pelo governo para reanimar a economia, mas não só. “É igualmente preocupante a tentativa de mercantilização da natureza por parte dos países ricos que, ao invés de reduzir suas emissões de CO2, buscam compensá-las nos países menos desenvolvidos por meio de mecanismos como o crédito de carbono. » E para concluir: “Vamos para Belém com muita apreensão”.

Chantal Rayes é uma jornalista que viajou ao estado do Pará a convite da Frente contra o Acordo UE-Mercosul no início de 2023

* Matéria originalmente publicada no Jornal francês Libération
** Matéria traduzida em português retirada do site da ONG Fase

 

 

Amigas da Terra Brasil acompanha povos amazônicos e debates sobre transição justa na Cúpula da Amazônia

Entre os dias 04 a 09 de agosto de 2023, a Amigas da Terra Brasil (ATBr) está em Belém (PA), participando da Cúpula da Amazônia. O evento, que acontece entre os dias 8 e 9 de agosto, abordará as políticas públicas da região amazônica e o fortalecimento da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), uma Organização Intergovernamental constituída por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

Dia 04 de agosto de 2023 começaram os eventos preparatórios para a Cúpula da Amazônia, em Belém (PA).  Entre eles, o Diálogos Amazônicos, em que representantes da sociedade civil, movimentos sociais, organizações, autoridades e entidades  dos oito países da região amazônica que compõem a OTCA discutiram as principais pautas e conflitos  que incidem na região da maior floresta tropical do planeta. O evento teve como objetivo produzir e entregar cinco relatórios aos oito presidentes dos países amazônicos na Cúpula da Amazônia – material produzido a partir das discussões de cada uma das plenárias-síntese , que envolvem temas como soberania, segurança alimentar e nutricional, participação social, erradicação do trabalho escravo, saúde,  ciência e tecnologia, transição energética, mudanças climáticas e a proteção aos povos indígenas, quilombolas e tradicionais da região.

Paralelamente, também acontece a Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia. Nela, estarão reunidos movimentos sociais, redes, coletivos, ativistas, instituições e organizações de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caboclos, negros, camponeses, artistas, religiosos, defensores da natureza, comunicadores, academicos, mulheres e habitantes da Amazónia e de outras regiões do planeta. O intuito é influenciar a Cúpula dos Presidentes da Amazônia e acordar um processo articulado de mobilização de todos os povos da Terra pela preservação da Amazônia, fim do desmatamento e atividades exploratórias dos povos e territórios que ali coabitam, assim como para barrar as alterações climáticas e as violações sistemáticas dos direitos dos povos. A partir da Assembleia, uma série de práticas, saberes, pedagogias e experiências a partir das lutas dos povos serão abordadas, com o objetivo de promover alternativas que se reflitam em uma vida digna, em harmonia com a natureza.

Lúcia Ortiz, da Amigas da Terra Brasil, Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC) e da Frente Contra o Acordo Mercosul-UE e EFTA expõe que a pauta central da ATBR é o acompanhamento dos povos da terra pela Amazônia, em diversos espaços organizados pelos movimentos sociais populares do Brasil e da América Latina. “Nós vamos estar presentes como Amigas da Terra Brasil e também como Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC), e com um companheiro do Programa de Bosques (Florestas) de Biodiversidade da Amigos da Terra Internacional, muito alertas às contradições que estamos vendo nesse encontro de presidentes da região amazônica, que também envolvem essa ofensiva muito grande do Capital à Amazônia, à biodiversidade, às águas, ao carbono da floresta. Atentas a essas estratégias do capital que hoje em dia estão chamando de bioeconomia, mas em outra época já se chamaram soluções baseadas na natureza, REED e mercados de carbono, economia verde, financeirização da natureza, etc”

Além de observar a evolução dessas propostas, a ATBR estará em alerta com a contradição dessas estratégias de compensação de emissões aliadas a estratégias de avanço da mineração, do agronegócio, das infraestruturas de exportação e a relação destes com com Acordos de Comércio neoliberais e neocoloniais, como o Acordo União Europeia-Mercosul (UE-MERCOSUL). “Com o Grupo Carta de Belém e a Frente Contra os Acordos Mercosul-UE e EFTA estaremos em eventos, em debates públicos em conjunto com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) estamos participando de eventos que tratam do tema da Transição Justa e Popular, uma Transição Energética que não seja altamente dependente da extração de minérios, que seja de fato uma transição energética baseada numa mudança de sistema que envolva e também uma transição agroecológica, menos demandante em agrotóxicos e em energia, em combustíveis fósseis e mineração, e que seja descentralizada, mas que garanta o direito e o acesso, a democracia energética. Que valorize os serviços públicos de qualidade e os direitos e a dignidade da classe trabalhadora. Também vamos estar participando da marcha dos povos da terra pela Amazônia”, comentou.

Além de monitorar os posicionamentos, definições e decisões que os governos nacionais presentes na Cúpula farão, a Amigas da Terra Brasil estará marcando presença e com a atenção voltada, especialmente, às lutas territoriais dos povos, principalmente das mulheres quilombolas, do Pampa à Amazônia. Um dos momentos chave desse processo foi o “Escutatórios kilombola pelo Direito de Ser e Existir da Amazônia ao Pampa”, promovido pela  Amay CoMPaz (Akilombamento Morada Abya Yala de Mãe Preta – Colares, no Pará). Na ocasião, foram apresentadas as preocupações quanto ao avanço das infraestruturas – como a construção de pontes e porto, implementação de obras que têm elevado impacto socioambiental. São estes projetos de infraestrutura que garantem o escoamento/transporte de commodities para os países centrais do capitalismo, , reproduzindo uma lógica colonial em que a América Latina e o Caribe seguem dependentes da exportação de materias primas em nome do desenvolvimento de países centrais desse sistema desigual. Obras que estão relacionadas ao avanço do agronegócio, da mineração e na prática representam violações de direitos, violências múltiplas contra os corpos das mulheres e seus territórios, desmatamento e formas de exploração, destruição e mercantilização da vida, além de muitas vezes ignorarem o direito que os povos e comunidades têm à consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé (violação da OIT 169) antes de qualquer obra atravessar seu território. Os relatos também trouxeram as ameaças advindas de projetos de exploração na região e outros ataques aos aos  territórios, seja no Pampa, seja na Amazônia, seja na Bahia.

Lúcia Ortiz salientou a importância das atividades paralelas, assim como da articulação da luta dos povos e da formação de alianças políticas para barrar o avanço do capital sob a vida rumo a COP 30 do Clima, que acontecerá em Belém em 2025. Ao citar o Encontro das Mulheres-Árvores e kilombolas do Pampa a Amazônia, outra atividade que acontecerá nos dias posteriores à mobilização, Lúcia comunicou que a Amigas da Terra Brasil, assim como a Amigos da Terra América Latina e Caribe e a Frente Contra o Acordo UE-Mercosul, vão estar acompanhando uma série de ações.”Durante a Cúpula estaremos dando visibilidade e presença nesses espaços, mas que são processos que vêm de longa data e que vão continuar sendo articulados aí pra frente. Vamos seguir construindo em aliança e movimento maior poder popular de incidência nos rumos que a gente quer para o nosso país, para a nossa região, para os povos, e pela integração dos povos também da Amazônia e da América Latina”, salientou.

Fotos e vídeos por Lúcia Ortiz/ ATBr

AMIGAS DA TERRA BRASIL NA CÚPULA DA AMAZÔNIA
Belém do Pará – 4 a 9 de Agosto de 2023

Sexta-feira dia 4/8 no HANGAR

12:00 – 14:00 – Escutatórios kilombola pelo Direito de Ser e Existir da Amazônia ao Pampa Amay CoMPaz (Akilombamento Morada Abya Yala de Mãe Preta)

12:00 – 14:00 – O Controle Social e Proteção de Direitos Humanos na Amazônia Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH)

 

Sábado dia 5/8 no CENSIPAM

18:00-20:00 – Qual papel dos governos progressistas da Panamazônia na construção da Justiça Climática nesse momento de retomada: as estratégias populares dos sujeitos da Amazônia? Grupo Carta de Belém e Frente Brasileira contra os Acordos Mercosul EU/EFTA

 

Domingo dia 6/8 no HANGAR

9:00-12:00 – Mudança do clima, agroecologias e as sociobioeconomias da Amazônia: manejo sustentável e os novos modelos de produção para o desenvolvimento regional Plenária IV da Cúpula da Amazônia

13:00-16:00 – Amazônias Negras: Racismo Ambiental, Povos e Comunidades Tradicionais Plenária Transversal da Cúpula da Amazônia

14:00-18:00 – Desafios da transição energética popular na Amazônia Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e CUT Brasil

16:00 -18:00 – Mineração e Transição Energética – Os dilemas associados à expansão da mineração na Amazônia Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

 

Segunda-feira dia 7/8 na CABANA

17:00-20:00 – Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia

 

Terça-feira dia 8/8 : Concentração Bosque Rodrigues Alves

8:00-12:00 –  Marcha dos Povos da Terra pela Amazônia

 

 

Confira a participação da Amigas da Terra Brasil na Cúpula da Amazônia

Amigas da Terra Brasil na Cúpula da Amazônia: Programação

Entre os dias 04 a 09 de agosto de 2023, a Amigas da Terra Brasil estará em Belém (PA), participando da Cúpula da Amazônia. O evento, que acontece entre os dias 8 e 9 de agosto, abordará as políticas públicas da região amazônica e o fortalecimento da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), uma Organização Intergovernamental constituída por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. 

Lúcia Órtiz, da Amigas da Terra Brasil, Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC) e da Frente Contra o Acordo Mercosul-UE e EFTA expõe que a pauta central será o acompanhamento dos povos da terra pela Amazônia, em diversos espaços organizados pelos movimentos sociais populares do Brasil e da América Latina. 

Confira a programação da Amigas da Terra Brasil da Cúpula da Amazônia:

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