As mudanças climáticas, os crimes corporativos e a injustiça ambiental

COP28 mantém a hipocrisia dos espaços multilaterais internacionais do clima. Enquanto Estados tentam redesenhar os Acordos de Paris, manipulando a contabilidade das reduções das emissões e a polêmica sobre o financiamento do clima, empresas transnacionais hegemonizam as discussões com as propostas de solução “verde”. Tais propostas envolvem investimentos do capital financeiro no uso de hidrogênio verde, em geração de energia eólica e solar e em eletrificação de carros, todas respostas pensadas nos termos de uma economia extrativa com impactos desproporcionais no Sul Global, aprofundando desigualdades e injustiças ambientais.

Enquanto isso, o Brasil acumula muitas contradições ao seguir mantendo sua subordinação às empresas transnacionais. Na própria COP 28, a tenda Brasil, organizada pelo governo, com o lema “Brasil unido em sua diversidade a caminho do futuro sustentável”, contava com painéis das empresas Vale S.A e Braskem, duas mineradoras responsáveis pelos maiores crimes socioambientais do país. Além delas, o Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas),  mecanismo promotor da responsabilidade social corporativa, teve seu espaço na tenda. O que corporações conhecidas nacionalmente pela violação aos direitos humanos e ambientais dos povos, e o instrumento corporativo de “lavagem verde e social” têm para construir e agregar à nossa nação?

A Vale S.A, BHP Billiton Brasil Ltda. e Samarco Mineração S.A são responsáveis pelos rompimentos das barragens de Fundão, na cidade de Mariana, e Córrego do Feijão, em Brumadinho, ambas no estado de Minas Gerais – afora outras diversas barragens de rejeitos em risco de rompimento no país. Por anos, a empresa vinha sendo alertada pelos órgãos de fiscalização da necessidade de reforço da segurança das minas. Inclusive, especialistas apontam para o risco do uso de determinadas tecnologias no manejo do rejeito. Nenhuma das políticas corporativas conseguiu conter a destruição. E vale ressaltar que, nesses oito anos do desastre de Fundão, as vítimas seguem buscando indenização. O que os casos revelam é a reprodução de uma arquitetura da impunidade corporativa.

No caso da Braskem, a história se repete. Desde os anos 80, a sociedade civil e pesquisadores da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) alertam para as consequências da expansão da extração de sal-gema em Maceió, em Alagoas. Por décadas, a empresa extrai sal-gema, transformando o subsolo da cidade em várias crateras. Moradores da região atingidos denunciam rachaduras nas casas, cuja responsabilidade a empresa negava. Em 2018, quando ocorreu o terremoto na cidade, bairros vieram abaixo. A mineradora iniciou sua atividade instalando em um santuário ecológico estuarino; não havia dúvidas de que a destruição ambiental começava ali.

Importante destacar que os setores corporativos do agronegócio, mineração, construção civil, imobiliário e de energia têm flexibilizado a legislação. Temos tido eventos climáticos extremos resultantes das alterações do clima em função dos impactos gerados pelas corporações nos últimos séculos.  A diferença entre os crimes de Brumadinho, Mariana, Maceió e das enchentes na região de Maquiné e do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul; em Teresópolis, no Rio de Janeiro; em Santa Catarina e em Minas Gerais é o tempo. Alguns  demoram centenas de anos para recuperar, ainda que parcialmente, a qualidade de vida das pessoas e a integridade dos ecossistemas e outras dezenas; o certo é a impunidade dessas empresas e a violação dos direitos dos povos, que estão no plano de negócios. Não é acidente, é parte do plano. Sabiam que aconteceria e que o lucro seria maior em não fazer nada do que investir em soluções reais. Assim, a impunidade segue do lado das corporações e dos Estados capturados.

Quanto ao tema da energia, no regresso da COP28, o governo brasileiro, via ANP (Agência Nacional do Petróleo), decidiu disponibilizar em leilão 603 blocos para exploração de petróleo e gás, em regiões que incluem a afetação à Amazônia brasileira. O leilão de poços irá permitir que mais empresas transnacionais venham ao país determinar os rumos de nosso desenvolvimento e reduzindo, também, a capacidade do Estado em construir, com participação popular, uma política necessária de transição energética justa para a classe trabalhadora, incluindo perspectivas da justiça ambiental e do feminismo popular. Ao invés disso, mais destruição e impactos anunciados, na contramão de um movimento de redução dos combustíveis fósseis, que foi a tônica desta COP depois de 28 conferências realizadas desde 1992.

Movimentos populares e organizações feministas têm denunciado o avanço dos aerogeradores para produção de energia eólica no Nordeste e sua relação com a violência de gênero. No polo da Borborema, na Paraíba, a instalação de parques eólicos têm alterado toda a dinâmica de produção camponesa. No litoral do Ceará, a instalação de eólicas em alto mar atrapalha a produção pesqueira, afetando pescadores e ribeirinhos. Evidenciando a contradição entre o uso de soluções tecnológicas e a sua aplicação concreta, que segue causando conflitos socioambientais.

Não podemos deixar de mencionar o papel do Congresso Nacional. O Senado Federal, como alavanca da modernização conservadora no país, aprovou, ao final de novembro, o PL 1459/2022, que flexibiliza, ainda mais, a liberação de agrotóxicos no país. Apesar dos inúmeros estudos científicos, posicionamento de Conselhos e órgãos de classe, como CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), que alertam para as perdas da biodiversidade e do risco de aumento das doenças, como câncer, relacionadas ao uso intensivo de agrotóxicos no país. O Congresso aprova, e a Presidência tem dificuldade de veto.

Nesse cenário, observamos que as soluções para a crise climática são pensadas pelos mesmos agentes causadores delas: as grandes corporações. A história ambiental nos revela como a intensificação da destruição ambiental está relacionada ao avanço da industrialização capitalista, na promoção de um desenvolvimento desigual. No qual, países do Norte Global saíram na frente na corrida imperialista, destruindo comunidades, territórios, escravizando populações e colonizando a natureza, cujos efeitos profundos são sentidos pelas atuais gerações. São os países do Norte Global e organismos multilaterais que promovem a atuação das empresas transnacionais, facilitando seu processo de acumulação por dependência.

Desse modo, qualquer solução pensada nos termos atuais das relações sociais internacionais, e de sua base, as relações sociais de produção capitalista, são mecanismos para seguir mantendo a ordem de destruição socioambiental.

Seguimos nos desencontrando, enquanto promovemos um discurso internacional avançado, e não sabemos transcender as políticas internas desenvolvimentistas apoiadas pela burguesia nacional. Dessa forma, terminamos fazendo um grande pacto de mediocridade, concedendo continuamente nossa soberania às corporações.

É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis

Na construção de um Brasil novo, que seja o país do seu povo, não um país sustentável, mas um país ecológico e com justiça ambiental, é preciso aprender com as nossas práticas cotidianas, povos do campo, águas e florestas e, também, com as periferias das cidades, para manter a terra viva, suas culturas e  biomas,  onde estão as soluções para a crise climática. É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis. São as Terras Indígenas demarcadas, convivendo com outras relações de produção da vida no território, assim como as terras quilombolas, os territórios de povos e comunidades tradicionais.

A nossa história não permite aceitarmos que as corporações sejam soluções, um mundo dirigido pelo crescente poder corporativo que só tem nos levado às múltiplas  crises e aos desastres socioecológicos. Precisamos, com urgência, responsabilizar as corporações pelos seus crimes corporativos. São 37 anos de impunidade do empreendimento de sal-gema em Maceió; são séculos de impunidade das mineradoras e das grandes plantações transnacionais no solo brasileiro. Em face disso, a responsabilização das empresas e a regulação estatal do setor é fundamental. Por isso, a proposta do PL n.º 572/2022 deverá ser uma pauta prioritária dos povos para 2024.

Um Brasil livre e soberano, construindo um projeto político de libertação para si e para os povos da América Latina e Caribe, é a nossa urgência. Chega de falsas soluções! Chega de impunidade corporativa.

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em 21 de dezembro de 2022, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/21/as-mudancas-climaticas-os-crimes-corporativos-e-a-injustica-ambiental 

Nota de solidariedade: Exigimos justiça e o fim da impunidade corporativa da Braskem

Há pelo menos cinco anos moradores de Maceió (AL) vivenciam o terror e a iminência da morte impostos pela Braskem. Cinco bairros já afundaram devido à mineração de sal-gema da empresa, que causou o deslocamento obrigatório de ao menos 60 mil pessoas. São cerca de 200 mil vidas humanas afetadas pela ganância da empresa, responsável pelo maior crime socioambiental urbano em curso do planeta. 

Hoje, o medo se torna mais agudo com novos tremores que abalam a cidade e localidades próximas.  A Defesa Civil afirmou que “o desastre está em evolução”, e que a região passa por um risco iminente de colapso. A cada ano o número de bairros e de famílias diretamente impactadas pelas atividades da Braskem aumenta. A informação de que a mina M18D está na iminência de dolinamento acentua o horror, e seu possível desmoronamento expõe a subserviência da Defesa Civil de Maceió e da Prefeitura à Braskem, colocando a população em risco desnecessário –  o que poderia ter sido evitado se os dados e informações fossem transparentes, disponibilizadas à população com regularidade.

A Amigas da Terra Brasil chama a sociedade a tomar ações frente à dor e ao sofrimento da população. Que divulguem, colaborem e participem nesta luta das afetadas pela Braskem e não permitam que este crime passe impune, seja colocado de lado e assumido por quem vive na pele os seus impactos.

Denunciamos que as indenizações articuladas pelas grandes empresas são, na maior parte das vezes, mero pretexto para ampliar seu monopólio com a compra de áreas nas cidades. A Braskem, em sua sanha por poder, que violenta as vidas em bairros inteiros, às custas da população e de seus direitos, do território e da natureza que colapsam com as suas atividades, está se tornando proprietária de cada vez mais espaços, numa lógica que almeja controle territorial. Uma empresa não deve e nem pode ser a dona de uma cidade. A Braskem não é e nem pode ser dona de Maceió.

Nos solidarizamos com companheiras, companheires e companheiros que fazem a luta para barrar a impunidade dessas corporações, que são as mesmas responsáveis pela devastação que nos traz a um cenário de mudanças climáticas. Ressaltamos, ainda, que a violação de direitos faz parte do projeto de grandes empresas e de seu plano de negócios. Enquanto famílias realizam protestos em Maceió e lutam por seus direitos e vidas, representantes da Braskem estavam participando da Conferência Internacional do Clima da ONU (COP28), em Dubai. A empresa petroquímica estava no pavilhão brasileiro ao lado de Vale, Petrobras e Syngenta, para divulgar ações supostamente ambientais realizadas pelo grupo. 

Embora na propaganda que fazem de si mesmas (com lavagem verde e uma série de selos de sustentabilidade e responsabilidade social) digam que é um acidente, se passem por surpresas com o que chamam tragédia, a realidade prática é que suas ações nada mais são que crimes socioambientais de proporções catastróficas. Em nome do lucro e da mercantilização da vida, a Braskem e poder corporativo impõe violações como rotina ao povo, já fragilizado há anos por suas atividades e sem reparação justa. 

O que chamam de acidente é um projeto político. É mais barato pagar as indenizações, pagar pouco ou até mesmo não pagar, do que fazer o que é necessário: cuidados, reforços, sistemas, ações para a redução de impacto. A violação de direitos é uma escolha das corporações, faz parte do seu plano de lucros. É algo premeditado, assim como fica evidente nos crimes da Vale, BHP Billiton e Samarco, com inúmeras violações de direitos no rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho (MG). Situações que traduzem a falta de responsabilização das empresas, de ação efetiva do estado, e, principalmente, a violação da natureza  e dos direitos das comunidades atingidas. 

Vivemos uma série de desastres conectados com as mudanças climáticas. Estas, causadas por impactos de uma série de atividades, seja o desmatamento via avanço da mineração e do agronegócio, seja por empresas poluidoras, processos de contaminação de águas e do solo. Há um conjunto de ações que nos levam ao colapso, a maioria delas está dentro da responsabilidade das empresas, que saem ilesas se abrigando na arquitetura da impunidade. 

Exigimos uma rápida resposta do Estado e uma intervenção emergencial deste. A Braskem não pode ser a responsável, em nenhuma medida, por cuidar do desastre que ela mesma causou. O descaso que ocorreu em Minas Gerais, quando a Vale com a Renova foram as responsáveis por (não) garantir os processos de reparação frente aos seus crimes, não pode se repetir. Esta é mais uma violação.

É necessário que o Estado afaste a empresa e garanta os direitos dos povos, impedindo que haja vínculo da Braskem com as pessoas atingidas e garantindo que quem sofreu as violações escolha como será reparada. O poder corporativo visa o lucro,  não importa o rastro de destruição e sangue que deixa no caminho. E, historicamente, sabemos que as grandes corporações seguem lucrando com tragédias. Sendo assim, não são elas que devem ditar como reparar a situação, e sim quem é afetado por suas ações. Que a Braskem pague as indenizações, que vão muito além do que ela própria estipula. E que o Estado, em diálogo permanente com a população, ouça quem foi impactado e dê cabo às soluções: de moradia, de saúde, de como serão as indenizações, de danos morais e de tudo que as famílias têm direito.

Tratado Vinculante internacional na ONU e PL 572/2022 no Brasil: a luta para responsabilizar empresas transnacionais por seus crimes

A construção do poder popular, assim como iniciativas para garantir a primazia dos direitos humanos sob a lógica dos negócios são fundamentais. Em esfera nacional, lembramos da relevância da aprovação do PL 572/22, projeto de lei brasileiro que atualmente tramita na Câmara dos Deputados. Ele cria a lei marco nacional sobre Direitos Humanos e Empresas e estabelece as diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o assunto. Avança para a responsabilização de empresas nacionais e estrangeiras com atuação no Brasil por violações aos direitos humanos, reconhecendo obrigações ao Estado e às mesmas, e estabelecendo medidas de prevenção, monitoramento e reparação, bem como direitos às populações atingidas.  

Internacionalmente, atuamos como membras da Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo, Reivindicar a Soberania dos Povos e Pôr fim à Impunidade (Campanha Global) e apostamos na construção de um Tratado Vinculante internacional para responsabilizar as empresas transnacionais por seus crimes socioambientais, garantindo as indenizações necessárias e resguardando os direitos das comunidades atingidas em todo o mundo. De 23 a 27 de outubro deste ano, estivemos em Genebra, na 9ª sessão de negociações sobre o tema, momento que representou um marco importante na luta. Movimentos sociais, sindicatos, povos indígenas, comunidades afetadas e organizações da sociedade civil, juntamente com muitos estados do Sul Global, deram o recado de que estão comprometidos em proteger o processo de negociações dos interesses capitalistas. Erguemos os punhos e alçamos voz por: direitos para os povos e regras para as empresas!

Para que Maceió, conhecida como cidade do sorriso, não se torne a cidade da destruição da Braskem, exigimos justiça. Seguimos atuando, em todas as esferas que nos cabem, pela reparação justa das famílias e a sua centralidade na tomada de decisões. É na luta do povo organizado que se constroem as condições para uma sociedade ecologicamente sustentável e socialmente justa. A vida vale mais que o lucro. Toda solidariedade aos afetados. 

Leia também a Carta Aberta das Vítimas da Braskem, da Associação do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB):
Carta Aberta das Vítimas da Braskem 06 DEZ 2023

 

Atingidos pela mineração da Braskem pedem que todas as famílias sejam incluídas no mapa de criticidade da Defesa Civil de Maceió. Foto: Gabrielle Sodré / MAB

Confira a Declaração da Campanha Global sobre a Sessão de Negociações por um Tratado Vinculante sobre Direitos Humanos e Empresas na ONU

8ª Sessão de Negociações do Tratado Vinculante na ONU: os povos afetados exigem normas vinculantes para as empresas transnacionais, a nível local e internacional

As grandes empresas estão devastando o meio ambiente e as vidas humanas em todas as partes do mundo. Os Princípios Orientadores das Nações Unidas (ONU) e a abordagem de devida diligência não conseguiram conter a impunidade empresarial. É urgentemente necessário um instrumento internacional juridicamente vinculativo para regular as empresas transnacionais em matéria de direitos humanos, tal como o que está sendo atualmente negociado na ONU. Também são necessárias leis nacionais que se baseiem e deem suporte a este tratado internacional.

Normas vinculantes para as grandes empresas 

A indústria do gás está provocando destruições em Cabo Delgado, na zona norte de Moçambique, e fomenta violações de direitos humanos, pobreza, corrupção, violência e injustiça social. Durante décadas o Estado de Israel e sua empresa Mekorot negaram à população palestina o acesso e controle de suas terras, fronteiras e recursos naturais. As comunidades do Brasil seguem esperando indenização e justiça frente ao colapso da represa da Vale/Samarco/ BHP Billinton, em 2019. Estas são apenas três das  incontáveis atrocidades que cometem as empresas transnacionais e que afetam, em particular, o Sul Global.  

Os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos são uma diretiva fraca e não vinculativa aprovada em 2011. Ainda que se estabeleça que “as empresas devem proceder com a devida diligência em matéria de direitos humanos”, o documento fracassou imensamente na hora de fazer com que as grandes empresas sejam responsabilizadas por suas violações destes direitos. 

A coordenadora do Programa de Justiça Econômica da Amigos da Terra Internacional, Letícia Paranhos, explica: 

“A devida diligência não tem sido de todo suficiente. É por isso que as pessoas celebraram uma vitória no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em 2014. Com a adoção da Resolução 26/9, foi criado um novo Grupo de Trabalho Intergovernamental para negociar um Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos. Este foi um marco fundamental para pôr fim à impunidade empresarial”. 

De 24-28 de Outubro de 2022, realiza-se em Genebra a oitava sessão de negociações deste tratado.

As comunidades afetadas de todo o mundo, com o apoio da Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Pôr Fim à Impunidade (Campanha Global), estão liderando o processo da ONU com uma lista clara de exigências relativas ao conteúdo do Tratado Vinculante. Agora, um elemento fundamental da estratégia para os movimentos sociais é, também, a promoção de leis nacionais que complementem e sustentem o tratado internacional.

Lutas complementares contra as grandes empresas do Sul Global e do Norte Global

As lutas diárias enfrentadas pelas comunidades afetadas pelas corporações exigem também uma ação a nível nacional. Do Sul Global, onde operam a maioria das empresas transnacionais, para o Norte Global, onde estas empresas estão sediadas. Nos últimos anos, tem havido um movimento de leis nacionais em vários países. 

A lei da França sobre o dever de vigilância

Num momento histórico em 2017, a França aprovou uma lei sobre o “dever de vigilância” (devoir de vigilance) das empresas-mãe e subcontratadas. “Este foi o resultado de esforços incansáveis – anos de campanha – da sociedade civil e das comunidades afetadas pelas operações das empresas transnacionais francesas no estrangeiro”, diz Juliette Renaud da Amigos da Terra França. Para além dos desafios, esta lei é um passo em frente, pois “aborda a complexidade jurídica das empresas transnacionais com as suas múltiplas filiais e subcontratadas bem como as diferentes formas de relações comerciais que frequentemente utilizam para assegurar a sua impunidade”.

A lei já está sendo utilizada: em 2019, seis organizações francesas e ugandesas, incluindo a Amigos da Terra França e a Amigos da Terra Uganda, entraram com uma ação judicial contra a gigante petrolífera francesa Total por violações dos direitos humanos e danos ambientais potencialmente irreversíveis na Uganda e na Tanzânia. O processo, que foi o primeiro a ser instaurado com base na nova norma “dever de vigilância”, segue em curso.

Agora outros países da União Europeia (UE) estão seguindo os passos da França, como Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Finlândia e Luxemburgo, que atualmente estão analisando propostas 

No início de 2022, a UE divulgou a sua proposta de lei sobre a devida diligência obrigatória para as empresas em matéria de direitos humanos e meio ambiente. Infelizmente, na sua forma atual, a lei “não garante justiça nem responsabiliza as empresas pelos seus impactos climáticos“. Em resposta, 220 organizações apelaram à UE para que resolvesse as principais falhas da diretiva. A participação do bloco europeu no processo do Tratado Vinculante da ONU tem estado longe de ser exemplar: desde os estados membro que votaram no bloqueio contra a resolução 26/9 em 2014, até às várias tentativas de desandar o processo ao longo dos últimos anos de negociações.

O projeto de lei do Brasil sobre um marco para as empresas e os direitos humanos

Com o colapso da barragem de Mariana e Brumadinho ainda fresco na memória, a luta para frear os abusos empresariais no Brasil atingiu um ponto-chave em 2022. As violações dos direitos humanos neste gigantesco país latino-americano são moeda corrente. E o fato de que existam grandes empresas por trás de muitas destas violações não é uma surpresa.

Apesar da contínua devastação provocada por Bolsonaro, em Agosto de 2022 o Brasil formulou o projeto Lei Marco Brasileira de Direitos Humanos e Empresas (PL 572 de 2022). Cabe destacar que movimentos sociais, organizações da sociedade civil, acadêmicos e sindicatos de pessoas trabalhadoras participaram na redação do texto. O projeto de lei irá beneficiar os povos indígenas, povos quilombolas (afrodescendentes), as comunidades afetadas por violações dos direitos humanos e a classe trabalhadora. Estes são os grupos mais afetados pelas violações corporativas. 

De forma inovadora, o projeto de lei estabeleceria a primazia dos direitos humanos e incluiria obrigações diretas para as empresas transnacionais, o que é sem precedentes a nível mundial. Por conseguinte, poderia ser utilizado para responsabilizar as empresas por violações dos direitos humanos. A proposta em si é baseada nas experiências das comunidades afetadas no Brasil. Além disso, seriam atores-chave no estabelecimento de medidas de prevenção, controle e compensação. Isto é algo sem precedentes. O projeto de lei será posto em votação, mas ainda não foi definida uma data. 

“Claramente no caso do Brasil, o desejo de trabalhar a nível das bases para uma lei nacional foi em parte inspirado pela participação dos movimentos brasileiros no processo do Tratado de Vinculação da ONU”, afirma a brasileira Letícia Paranhos. A participação na Campanha Global fortaleceu a sua confiança e a capacidade de articular as suas exigências, o que abriu o caminho para uma forte participação a nível nacional. Esta lei nacional também será útil na criação de mecanismos para implementar normas internacionais dentro do Brasil.  

Letícia Paranhos acrescenta: 

“A América Latina está cansada da devida diligência e dos Princípios Orientadores, medidas que foram impostas de maneira neocolonial no Sul Global. A Lei Marco Brasileira De Direitos Humanos e Empresas está dentro do espírito da Campanha Global. Foi redigido com base na nossa proposta de Tratado Vinculante. Precisamos avançar nos nossos contextos nacionais com leis juridicamente vinculantes baseadas nas nossas demandas para o contexto internacional. Ao mesmo tempo, estas leis nacionais dariam respaldo a esse processo na ONU, para pressionar um instrumento internacional ambicioso verdadeiramente capaz de pôr fim à impunidade empresarial”.

*Texto divulgado originalmente no dia 26 de outubro de 2022,  no site da Amigos da Terra Internacional, no link: https://www.foei.org/es/grandes-empresas-pueblos-afectados-exigen-normas-vinculantes/ 

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