Assembleia da Amigas da Terra Brasil reafirma compromissos na luta internacionalista por justiça ambiental

A organização Amigas da Terra Brasil (ATBr) realizou sua assembleia anual em 26 de julho, na Casanat – casa sede da organização, em Porto Alegre (RS). Estiveram presentes membros de seus conselhos Diretor, Fiscal e Consultivo, além de integrantes de movimentos sociais, de territórios em luta e de organizações aliadas, como a Periferia Feminista; a horta e cozinha comunitárias do Morro da Cruz; Marcha Mundial de Mulheres (MMM), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Comitê de Combate à Megamineração (CCM-RS) e a Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz).

O momento contou com apresentação de relatório de atividades e aprovação da prestação de contas de 2023. Debruçou-se, ainda, na temática da emergência climática, seus impactos na vida cotidiana da população e proposições de quais táticas e estratégias devem ser adotadas para garantir soluções reais frente a tragédias anunciadas, como a das enchentes no Rio Grande do Sul. “A gente tem as respostas para essa crise. É demarcação de terra indígena, titulação kilombola, reforma fundiária, reforma agrária popular”, expôs a presidenta da ATBR, Letícia Paranhos, salientando que as soluções estão na defesa e garantia dos povos nos territórios. O que passa por um Estado forte, com políticas públicas construídas a partir das demandas dos territórios.

Uma retrospectiva sobre a caminhada da ATBr na luta durante o último ano foi traçada, trajetória que se enraíza ainda mais neste ano. Da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no Brasil, uma vitória após quatro anos do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, até a articulação para barrar o Acordo Mercosul-UE (União Europeia) na Europa e a construção do feminismo popular na Escola Internacional Berta Cáceres, em Honduras, a Amigas da Terra segue no compromisso internacionalista para a construção do poder popular.  

Momentos importantes das lutas de 2023 são rememorados

A apresentação do relatório de atividades da ATBr em 2023 especificou os principais projetos construídos junto aos territórios de vida nos programas Soberania Alimentar e Cuidado Popular dos Territórios e da Biodiversidade (SAeB), Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo (JERN) e Justiça Ambiental nas Cidades.

Dentre as principais ações estão o apoio a comunidades camponesas assentadas da Reforma Agrária, denunciando os impactos dos agrotóxicos na produção agroecológica, na saúde humana e animal e no meio ambiente. Exigimos, juntos, que as autoridades competentes garantam que as famílias possam produzir de forma saudável, sem serem pulverizadas com veneno pelo agronegócio. Ainda se destacam a formação política e popularização de temas, a articulação nacional em redes e ações de solidariedade aos povos da Amazônia e a articulação regional e internacional das lutas de base. 

A ATBr pautou o fim do PL do Veneno e da Tese do Marco Temporal para demarcação de territórios indígenas, e segue mobilizada contra esses retrocessos. Além do posicionamento contra os projetos de morte do agronegócio, marcados a sangue com o genocídio de indígenas, campesinos e dos povos tradicionais, a organização combate a expansão do capital fossilista e da mineração sobre os territórios de vida. Exigiu e segue exigindo justiça e o fim da impunidade corporativa da Braskem e da Vale, assim como luta para barrar o avanço dos projetos carboníferos no RS. 

Em 2023, em parceria com o Comitê de Combate à Megamineracão do RS, da qual faz parte, uniu esforços contra o Projeto de Lei do Senado n°4.653/2023. O Comitê expressou de maneira unânime a necessidade de arquivamento do projeto, alegando que a proposta busca incluir a região carbonífera do estado em um programa de transição energética, mas, na prática, mascara a continuidade prejudicial da exploração e queima do carvão mineral. Além disso, critica propostas anteriores, como a Lei Estadual 15.047/2017, apontando para a necessidade urgente de um debate amplo sobre uma transição energética efetiva, considerando as particularidades e vocações econômicas locais. 

Nos territórios de retomada indígena e nas aldeias, foram desenvolvidos projetos de manutenção de sistemas elétricos para autonomia comunitária, assim como campanhas de solidariedade e distribuição de alimentos da agricultura familiar. Nesta aliança com as retomadas, em  novembro de 2023, a CasaNat foi palco da estreia do curta-documentário “Opy Nhombaraete Karai”, no idioma Guarani, sobre a Retomada Mbya Guarani no Arado Velho, em Porto Alegre (RS).

A Amigas da Terra Brasil segue apoiando cozinhas solidárias, visando o combate à fome e a construção da soberania alimentar. Entre elas, a Cozinha Solidária da Azenha, iniciativa do MTST, e a Cozinha e Horta Comunitária do Morro da Cruz, construída pela Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e pelo coletivo Periferia Feminista, que se articulam ainda com a ATBr e com outros movimentos, como o MTST – aliança esta conhecida como Aliança Feminismo Popular e que marcou o início do processo da horta, durante a pandemia de Covid-19. 

Outra parceria fundamental foi com a Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz), de Triunfo (RS), que enfrenta uma luta bastante dura  para que seja consultada e respeitada no processo de licenciamento das obras de ampliação da BR 386, conforme prevê a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Em 2023, importantes vitórias vieram para provar que é possível parar a légua de um megaprojeto de morte que ameaça a coletividade kilombola. Entre elas, a Justiça Federal reconheceu o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa fé da comunidade antes que qualquer projeto seja implementado. E o Conselho de Direitos Humanos do RS, em que foi apresentado o Dossiê Kilombola durante a primeira sessão de 2023, reforçou que autoridades e empresas respeitem a comunidade e os seus direitos. 

Quanto à emergência climática, um dos destaques de 2023 foi a participação da ATBr na Audiência Pública para decretar Emergência Climática no RS, assim como na ronda de monitoramento de violações de Direitos Humanos com as Enchentes no Vale do Taquari (RS). Também foram abordadas articulações e construções de luta que vão desaguar na Cúpula dos Povos, que irá ocorrer  durante a COP30 do clima, que será sediada no Brasil em 2025. 

A luta é internacionalista

Entre alianças nacionais e internacionais, destacaram-se as articulações que criaram a Lei Marco sobre Direitos Humanos e Empresas (PL 572/2022) e outras iniciativas visando responsabilizar as transnacionais por seus crimes e violações de direitos. Em março de 2023, essa luta confluiu no Seminário “Direitos Humanos e Empresas: O Brasil na frente”, organizado com a ATALC (Amigos da Terra América Latina e Caribe) e demais organizações sociais e sindicatos brasileiros, ocorrido em Brasília (DF). Contou com debates, pressão política pela primazia dos direitos humanos, diálogo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, articulação política e o lançamento de cartilha popular sobre o PL 572/22. Atualmente, a ATBR vem incidindo para a criação de uma política nacional de direitos humanos e empresas que aterrissem nos princípios do PL. A nível internacional, o tema seguiu em debate na 9ª Sessão de Negociações do Tratado Vinculante sobre Transnacionais na ONU, da qual a ATBr integra. 

Destaque para o combate ao Acordo Mercosul-UE, pautado há anos pela ATBr, que integra a Frente Brasileira Contra o Acordo UE-Mercosul. Foi lançada, em 2023, uma campanha contra o acordo comercial, que reverberou vozes de movimentos sociais, lideranças indígenas e comunitárias, assentados da reforma agrária e mulheres, pautando o que significa de fato este acordo e porque deve ser combatido. Além disso, a ATBr esteve em espaços institucionais com a Frente, no intuito de barrar o acordo e pressionar que presidentes, como Macron (França) e Lula, não o levem adiante. 

Feminismo popular para transformar o mundo 

A Amigas da Terra Brasil prossegue na construção do feminismo popular, aprofundando conhecimentos, troca de experiências e sua participação em atividades no intuito de mudar a vida das mulheres e colocar a vida no centro. 

A nível nacional fez parte de momentos históricos como a Marcha das Margaridas, que reuniu em Brasília mais de 100  mil mulheres dos campos, águas, florestas e cidades brasileiras. Pautou ainda a descriminalização e legalização do aborto no Brasil, somando a campanhas do Nem Presa Nem Morta e tendo a CasaNat como ponto de referência para distribuição de lenços para militantes e organizações feministas e aliadas a essa luta.  

Também participou do  Seminário e Intercâmbio de Quilombolas e Mulheres da Agroecologia em Ribeirão Grande Terra Seca, localizado no Vale do Ribeira, em Barra do Turvo (SP). O evento teve como principal objetivo fortalecer o intercâmbio solidário – , com foco na busca pela justiça econômica e no diálogo com a economia feminista, e propôs respostas concretas para combater a fome no Brasil. A ATBr também fez parte da construção e realização do “Intercâmbio entre Mulheres do Campo e da Cidade – Construindo a economia feminista no RS”, que ocorreu em maio de 2023, em Porto Alegre, Maquiné e Rolante (RS), junto com a  Aliança Feminismo Popular,  comunidades, quilombos e iniciativas parceiras da economia solidária na região metropolitana e no Litoral Norte do RS e as mulheres do Vale do Ribeira (SP).

Para desmantelar o patriarcado, a organização se articulou territorialmente, nacionalmente e a nível internacional, denunciando o poder das transnacionais e como essas afetam a vida cotidiana de mulheres. Dentro da Amigas da Terra, exemplo desse compromisso está na política para prevenir a violência contra a mulher, que foi referendada pela organização em 2021 e garante um ambiente de trabalho seguro, que não fere direitos de mulheres, pessoas trans e não binárias. 

Após apresentação de relatório de atividades e de prestação de contas, a Assembleia encerrou com um momento de confraternização, embalado pelo samba e as vozes do duo Irmãs Vidal e nutrido por refeição preparada pelas militantes da Cozinha Comunitária do Morro da Cruz, da Periferia Feminista.

Retomando os processos do ano que passou, firmando compromissos e alianças e articulando coletivamente o que é preciso para frear o avanço do capital sob as vidas, a  Assembleia foi mais um dos momentos relevantes para dar sequência a uma luta muito anterior, e que seguirá a passos largos pelo amanhã.  É neste compromisso de uma luta constante para transformar a realidade que a Amigas da Terra Brasil é guiada para tornar possível um mundo mais justo e solidário. 

 

Seguimos na luta feminista frente aos ataques contra a democracia

A luta feminista é fundamental para alcançar a justiça ambiental. A resistência e o desmantelamento do patriarcado formam parte integral da Soberania Alimentar, da gestão das florestas e da democracia, assim como da luta contra os sistemas econômicos e as instituições políticas opressivas. Abaixo, apresentamos três entrevistas com pessoas que estão liderando lutas pela mudança de sistema e por um mundo mais feminista, centrado na justiça de gênero. 

Florestas e Biodiversidade – Rita Uwaka, Amigos da Terra Nigéria
Como é que o patriarcado e outras opressões se tornam obstáculos na luta pela democracia, pelas florestas e pela biodiversidade?

Existe uma forte ligação entre o patriarcado e a gestão florestal, porque o sistema patriarcal domina a governança das florestas e da biodiversidade e é um agente chave da apropriação das florestas. As relações de poder desiguais que o patriarcado reforça promovem falsas soluções e modelos agrícolas destrutivos, que transformam as florestas em commodities do agronegócio, por exemplo.

O patriarcado afeta todas as pessoas. O patriarcado influencia os processos de tomada de decisões relacionadas com a gestão florestal em detrimento das mulheres que dependem destas florestas, que são excluídas dos espaços de decisão e cujas vozes e preocupações não são tidas em conta nas políticas e práticas que afetam as florestas e a biodiversidade. Contudo, as mulheres são as principais cuidadoras e guardiãs das florestas, bem como aquelas que possuem conhecimentos tradicionais. 

A falta de controle na tomada de decisões se traduz em um desequilíbrio de poder que marginaliza as mulheres, as comunidades locais e outros grupos já excluídos.  Quando as partes interessadas não incorporam adequadamente as considerações destes grupos e quando os espaços de tomada de decisão não são suficientemente inclusivos e representativos, não se pode avançar e nem progredir. 

No entanto, ao enfrentar o poder e defender ao lado das mulheres o seu direito à autodeterminação, bem como o seu direito de dizer sim e de dizer não, fazemos com que as coisas mudem. Através do empoderamento das mulheres e da resistência contra as estruturas patriarcais, estamos formando líderes comunitárias.

É essencial que as pessoas compreendam o valor ecológico, social e cultural das florestas, bem como o que as florestas contribuem para as suas vidas e comunidades. Além disso, devemos permanecer alertas à ameaça constante do poder corporativo e às tácticas que as empresas utilizam – tais como subornar comunidades com subvenções e empréstimos – apenas para assumir o controle das suas terras e impedir o seu acesso às florestas. Ser capaz de tomar decisões informadas é fundamental para a nossa luta pela democracia, pelas florestas e pela biodiversidade.

Desmantelar a influência que o patriarcado tem nos processos de tomada de decisão relacionados com a gestão florestal e a conservação da biodiversidade exige resistir, mobilizar e transformar as atuais relações e estruturas de poder. Assim como criar processos de tomada de decisão inclusivos e participativos, que valorizem as contribuições das mulheres.

Lembremos que não há justiça ambiental sem justiça de gênero. Não há justiça de gênero sem mulheres!

 

Soberania Alimentar – Joolia Demigillo, Amigos da Terra Filipinas
Como o feminismo contribui na construção da Soberania Alimentar e como a democracia é defendida nessa perspectiva?

A Soberania Alimentar é uma aspiração a uma alternativa ao sistema atual, incapaz de alimentar a população com alimentos nutritivos, diversos e ecológicos. Baseia-se na consideração da alimentação como uma questão política que não deve ser separada dos contextos sociais, culturais e econômicos.

As mulheres em todo o mundo desempenham um papel muito importante na produção de alimentos, bem como na garantia de que estes estejam sempre disponíveis nas suas casas e comunidades. No entanto, a maioria, senão todas estas tarefas, não são reconhecidas, não são remuneradas ou são consideradas responsabilidades exclusivas das mulheres. Isto torna ainda mais difícil para as mulheres obterem oportunidades de participar em assuntos políticos.

É uma luta diária para as mulheres enfrentarem relações assimétricas de poder e a opressão de gênero – a nível pessoal e estrutural. As mulheres escolhem estar na linha da frente de muitas lutas pela democracia. Em todo o lado vemos a ascensão de governos autoritários que minam a democracia e impedem a realização do direito humano à alimentação adequada. A luta pela Soberania Alimentar é uma luta pela democracia e contra a opressão. Através da Soberania Alimentar, mulheres e pessoas de todos os gêneros podem expressar os seus direitos, a sua dignidade e aspirações.

Podemos viver o sonho da Soberania Alimentar quando este é deixado nas mãos dos povos, mulheres e jovens, para determinar que alimentos, como e onde são produzidos, distribuídos e consumidos. Portanto, isto requer uma mudança radical nos sistemas e estruturas da nossa sociedade.

O apelo à Soberania Alimentar é feminista porque quer transformar o sistema. É quando as mulheres e outras expressões de gênero são libertadas que podemos dizer que emancipamos a nossa sociedade da discriminação, da injustiça e da opressão.

 

Economia Feminista – Karina Morais, Marcha Mundial das Mulheres Brasil
Quais são as principais contribuições da economia feminista para as lutas em defesa da democracia?

A Economia Feminista é a nossa resposta objetiva ao sistema capitalista, neoliberal, racista e patriarcal, baseado na mercantilização da vida. O modelo econômico hegemônico baseia-se na separação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, o que historicamente criou a ideia de que o primeiro está ligado à esfera pública e o segundo à esfera privada. Trabalho produtivo é entendido como aquele que pode ser precificado e, portanto, gerar lucro. Já o trabalho reprodutivo envolve o trabalho doméstico e de cuidado, nas suas diversas dimensões. Isto inclui tarefas domésticas, cuidados com crianças, doentes e idosos, bem como apoio emocional aos familiares.

Essas atividades, por sua vez, são realizadas majoritariamente por mulheres, a partir da naturalização de uma construção social patriarcal. O que é visto como algo “natural” no universo feminino, até mesmo como expressão de “amor”, é na verdade um trabalho invisível, não remunerado, e que não é entendido como um componente da economia. Em outras palavras, exploração. Isso é o que chamamos de dia duplo e triplo das mulheres. Afinal, realizam atividades produtivas, mesmo que estejam em desvantagem no mercado de trabalho, e também realizam atividades de sustentabilidade da vida.

Esta transformação proposta pela Economia Feminista implica também a defesa da democracia, porque a lógica do modelo económico hegemónico é imposta através da violência e da desapropriação (expropriação), e é combinada com a opressão patriarcal e racista. A expressão do mercado livre que hoje domina a economia é profundamente antidemocrática. Mudar a economia para mudar a vida das mulheres é também um ato radical de defesa da democracia e da liberdade.

Neste sentido, desde a fundação da Marcha Mundial das Mulheres defendemos que não basta incluir as mulheres neste modelo econômico, em que o lucro está acima da vida e as vidas existem para gerar esse lucro. Precisamos romper com esse paradigma e propor um projeto político em que a sustentabilidade da vida esteja no centro da economia. Esta compreensão é central para as nossas formulações da Economia Feminista. É conceitual, mas faz parte da realidade prática da vida, principalmente quando observamos o conjunto de experiências alternativas que as mulheres construíram que vão na contramão ao modelo hegemônico, no campo e na cidade.

A Amigas da Terra Internacional manifesta solidariedade com o povo palestino e apoia a sua luta para acabar com a ocupação de Israel. Ao abordar a questão da democracia, é impossível celebrar o 8 de Março e o Dia Internacional dos Direitos da Mulher sem prestar homenagem à resistência passada, presente e contínua do povo palestino, especialmente das mulheres, que são os seus pilares. É imperativo reconhecer que a abordagem dos problemas ambientais não pode ser separada do reconhecimento do direito dos povos à soberania nacional na sua própria terra.

A Palestina é uma causa de direitos humanos e de justiça climática”, disseram Rasha Abu Dayyeh e Abeer Butmeh, membros do PENGON – Amigos da Terra Palestina, nesta entrevista publicada em dezembro de 2023.

Texto originalmente publicado no site da Amigas da Terra Internacional, em: https://www.foei.org/es/la-lucha-feminista-para-la-democracia/

 

Escola Internacional Berta Cáceres: mulheres indígenas, negras, camponesas e trabalhadoras das Américas construindo o Feminismo Popular

O início de agosto foi marcado por muita articulação e luta na Escola Internacional da Organização Feminista Berta Cáceres. Realizado por organizações que compõem a Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo, o encontro reuniu, entre os dias 7 e 11, em Honduras, mais de 100 mulheres em diversidades de gênero, indígenas, negras, camponesas e trabalhadoras das Américas, com o intuito de fortalecer o Feminismo Popular. 

Berta não morreu, multiplicou. A Escola Popular retoma o seu legado, e a Amigas da Terra Brasil somou nessa construção. Foram dias de partilha de ideias, saberes e experiências, de caminharmos juntas na construção de um projeto político que coloque a vida no centro.

Em entrevista ao podcast Fúria Feminista, Letícia Paranhos, da Amigas da Terra Brasil e coordenadora internacional do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo da Federação Amigos da Terra Internacional, membra da Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmontar o Poder Corporativo e Por Fim à Impunidade, comentou sobre o papel da economia feminista, uma das bases do feminismo popular, na mudança da sociedade.

“A economia feminista é um caminho para a transformação porque desafia o sistema de opressão, o capitalismo, racismo e o patriarcado, que se entrelaçam desafiando os direitos e apropriando, explorando; e sabemos que são as classes dominantes, que são as elites, que se beneficiam dessa exploração. Para mudar esse sistema é preciso romper com essa lógica de dominação e, daí, vem a perspectiva feminista, que coloca a vida no centro enquanto esse sistema tem como objetivo o lucro, concentrado nas mãos de poucas empresas transnacionais, em sua maior parte baseadas no Norte global, que geram miséria para os povos e mulheres em todo o Sul global. É mais que um conceito, é uma ferramenta política. É teórica sim, mas é ação, e já está em marcha em comunidades da periferia”, argumentou Letícia.

A articulação internacionalista na construção do feminismo popular é fundamental. Assim como a relação com a justiça ambiental. “O ambientalismo popular vem da Justiça Ambiental e, portanto, busca também o fim dessa lógica opressora e acumuladora de capital, desvela que as injustiças afetam, sobretudo, a classe trabalhadora, os povos, as mulheres. Essas opressões são exacerbadas nos corpos e territórios negros, quilombolas, dos indígenas e povos originários, povo camponês. E se nutre e se sustenta na soberania popular, que engloba a alimentar, tecnológica e energética, abraçando o feminismo e retroalimentando a economia feminista”, disse Paranhos.

O encontro trouxe como um dos lemas principais “Mulheres, água e energia não são mercadorias”, uma bandeira do feminismo popular que clama por soberania nos  territórios do Sul Global.

A Rádio Mundo Real (RMR) , a Capire  e a Rádio Rebelde de Cuba  estiveram em Honduras, juntas por uma comunicação feminista e popular. Acesse AQUI a matéria feita pela Capire sobre o encontro.

A Escola Feminista Berta Cárceres é organizada pela Grassroots Global Justice Aliance  e pela  Jornada Continental .  Assista ao vídeo e saiba mais sobre o projeto: 

Confira também as animações sobre Economia Feminista e os princípios de sua construção na agenda de movimentos sociais. Um conteúdo em dois vídeos produzido pela Capire, Marcha Mundial das Mulheres e Amigos da Terra Internacional:

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 01”:

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 02”:

8 de março: nossa bandeira é a economia feminista

Nós, mulheres, somos 51,8% da população brasileira, e mesmo assim não chegamos a ser metade das cadeiras do Congresso Nacional (17,7%) ou do Judiciário (38,8%). Tampouco temos a representatividade devida nas Assembleias Estaduais, Câmaras Municipais ou na direção do Executivo. A única mulher eleita Presidenta, Dilma Rousseff, sofreu um golpe misógino em 2016. Será impossível pensar em igualdade de gênero quando sequer somos capazes de construir uma equidade de representação política.

O cenário se agrava quando olhamos os quatro últimos anos de Governo Bolsonaro. Quando as políticas públicas se destinaram a retificar papéis históricos de gênero que reforçam a divisão sexual do trabalho. A mensagem política transmitida pelo governo e representações políticas era sintetizada em expressões como: “bela, recatada e do lar”; “meninas vestem rosa e meninos azul”.

Neste universo conservador, agregava-se o fundamentalismo religioso propagado pelas posições fascistas que confrontavam diretamente os direitos historicamente conquistados das mulheres, especialmente os sexuais e reprodutivos.

As estatísticas comprovam os retrocessos. Segundo o relatório de transição, houve uma desidratação das políticas públicas destinadas às mulheres; apenas no primeiro semestre de 2022, o país bateu recordes de feminicídio. Em 2021, 66 mil brasileiras foram vítimas de estupro e 230 mil sofreram agressões físicas por violência doméstica. Se olharmos esses dados sob o recorte racial, ainda encontraremos que 67% das vítimas de feminicídio e 89% das vítimas de violência sexual são mulheres negras. A partir de 2016, a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres sofreu um corte de 90% de seu orçamento.

A crise sanitária atingiu de forma distinta as mulheres, refletindo a urgência de um debate público sobre a economia de cuidados. Isso porque as mulheres ocuparam as linhas de frente de combate ao coronavírus sendo as enfermeiras dos hospitais, as cuidadoras dos doentes nas casas e as que sustentaram o isolamento doméstico. As trabalhadoras domésticas foram as primeiras a serem infectadas pela pandemia e as mais impactadas pelos efeitos do covid-19.

O retorno do país ao mapa da fome afeta sobremaneira as mulheres: 1 em cada cinco lares chefiados por mulheres não tem o que comer no dia a dia. A sobrecarga de trabalho doméstico, já excessiva, aumentou ainda mais no desmantelamento de políticas sociais como escola e creches, agravando uma conjuntura marcada pelo desemprego generalizado. Nossas mulheres estão cansadas, doentes.

Em realidade, as disparidades de gênero cresceram em todo o mundo com a pandemia, estima-se que para atingir a igualdade de gênero levaríamos 135,6 anos. O Brasil ocupa a 93ª posição no mundo, de 153 países, sendo o penúltimo na lista latino-americana. O que nos torna um gigante de desigualdade.

O Informe Global de Gênero, do Fórum Econômico Mundial, propõe que para superar as lacunas são necessários investimentos no setor de assistência social, construção de políticas para igualdade no mundo do trabalho e capacitação das mulheres. A retórica da organização financeira é bastante peculiar, já que se de um lado propõe essas diretrizes, de outro promovem políticas de austeridade e desregulamentação nos países para facilitar a privatização de serviços e a entrada e permanência de empresas transnacionais.

Como podemos observar, as políticas públicas para as mulheres se resumem a uma sujeição à sociedade capitalista e patriarcal, e para outra grande parcela delas, a morte. Assim estão nos matando; eliminam nossos corpos, nossas mentes, nossa libertação. No entanto, somos feitas da terra e da resistência, e neste 8 de março queremos semear nosso projeto político alternativo: a economia feminista.

A economia feminista nos liberta

Mulheres são maioria nas iniciativas de solidariedade contra a fome que surgiram durante a pandemia, como as cozinhas solidárias do MTST – AFP

O sistema capitalista, desde sua origem, estruturou-se fazendo o uso do patriarcado como instrumento de dominação e exploração das mulheres, e rebaixando ainda mais sua posição como grupo social. Assim, organizou uma divisão sexual do trabalho, separando o trabalho produtivo, assalariado, do trabalho reprodutivo, este último legado às mulheres. Todas as tarefas de cuidado que são necessárias para a manutenção das condições de vida estão designadas às mulheres e não são remuneradas. Se assim o fosse, seria impossível sustentar os baixos salários e o avanço da mercantilização e privatização à medida que exigiria que a sociedade não estivesse orientada para o individualismo e, sim, para a coletividade.

Ocorre que a crise de cuidado é permanente em nossa sociedade; não à toa, vivemos uma profunda crise do capital versus vida. A orientação da produção mundial para a produção constante de lucro, concentrado numa cada vez menor parcela de indivíduos acionistas de grandes corporações que controlam cadeias globais de produção, é insustentável.

A crise ambiental instalada desde a separação do homem da Natureza na modernidade tem produzido cada vez mais a nossa insustentabilidade como espécie humana neste planeta. “A ruptura entre as nossas sociedades e a natureza não é de responsabilidade de toda a população, pois foi projetada e é perpetuada por esses sistemas de poder em nível global”, expressa Karin Nansen, ex-presidenta da Federação de Amigas da Terra Internacional. Precisamos, urgentemente, superar nossa separação com a Natureza, suas gentes e suas culturas, e incorporar valores de ecodependência.

Frente aos desafios da crise múltipla da acumulação do capital, feministas de todo mundo têm construído a economia feminista e popular como projeto político alternativo. A economia feminista é uma aposta política para transformar a sociedade, as relações entre as pessoas, e entre elas e a natureza. Reconhecer o trabalho de cuidado invisibilizado e propor sua reorganização é um primeiro passo. Determinar uma nova lógica de produção mundial na qual a economia esteja centrada na vida, dando especial atenção aqueles que trabalham para sustentá-la.

Todas e todos, ao longo de nossas vidas, precisamos de cuidados; não há condição de vida sem relações de reciprocidade. É por isso que precisamos subverter a lógica da ganância das empresas transnacionais que dirigem o mundo, e tomar consciência da centralidade da vida humana e sua reprodução. Ter esses sujeitos e sujeitas no centro do pensar nossa política, como propõe Karin: “Precisamos de respostas que coloquem no centro as classes populares, a classe trabalhadora, as mulheres, os povos indígenas, as comunidades quilombolas, as comunidades camponesas e todas aquelas comunidades que sofrem diretamente os impactos desse sistema e desse modelo de acumulação”.

A economia feminista não é um projeto acabado, é um projeto em permanente construção no andamento dos processos de luta de classes, do qual convidamos a todos e todas para se engajarem. Construir a economia feminista é resistir aos projetos de morte, e mesmo depois de tantas pilhagens, semearmos a esperança. Muitas mulheres ao redor do mundo estão fazendo isso, construindo cotidianamente novas práticas coletivas de cuidado, novas relações sociais e com a Natureza.

Assim, deixamos para este 8 de março o repensar a organização da sociedade em quatro eixos centrais de enfrentamento ao capitalismo, desde a economia feminista: 1) o reconhecimento e organização do cuidado; 2) a centralidade da vida; 3) interdependência; 4) ecodependência. Marchando com nossa bandeira, seguimos e nos atrevemos a viver a nossa vida com valor, força e dedicação.

Texto publicado no Jornal Brasil de Fato RS, no link: https://www.brasildefators.com.br/2023/03/01/8-de-marco-nossa-bandeira-e-a-economia-feminista 

Animações explicam o que é economia feminista e princípios da sua construção na agenda de movimentos sociais

Está chegando o dia #8M, data que marca globalmente as jornadas de luta do feminismo popular,  construído diariamente nos territórios. De forma propositiva, a @capiremov, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e a Amigos da Terra Internacional produziram duas animações que abordam a economia feminista, expondo também os princípios para a construção desta na agenda dos movimentos sociais e na construção de uma mudança de sistema. De forma criativa e lúdica, os vídeos se propõe a explicar o conceito e introduzir alguns princípios feministas, sendo recomendados para o uso de movimentos sociais em suas atividades de formação.

O que é a economia feminista?

 A Economia feminista é uma estratégia política para transformar a sociedade e as relações entre pessoas e pessoas e a natureza. Passa por reconhecer e reorganizar o trabalho doméstico e do cuidado, que dentro do patriarcado recaem com força sobre as mulheres. É, ainda, uma resposta à atual crise econômica, ambiental e social. 

As mulheres são sujeitos econômicos e protagonistas na luta contra o modelo econômico dominante. A economia feminista aponta o trabalho que sustenta a vida e a produção econômica, evidenciando todas as pessoas que o fazem – sendo a maioria delas mulheres, pessoas negras e imigrantes.

 É uma economia que se propõe ainda a reorganizar as relações de trabalho, de gênero e raciais na nossa sociedade, fazendo com que o trabalho de cuidado se torne uma responsabilidade compartilhada entre todas as pessoas e o Estado. Ponto que passa tanto por discussões de políticas públicas, retomada de espaços comuns, frear as privatizações e a atransformação de bens comuns como a água e a energia em mercadorias, revogações de medidas de retirada de direitos de pessoas trabalhadoras, mais direitos, qualidade de vida, educação e saúde públicos gratuitos e de qualidade para todas as pessoas. 

Na economia feminista, a sustentabilidade da vida está no centro. Isto significa priorizar as necessidades dos povos e dos territórios ao invés do lucro. Os cuidados são uma necessidade humana fundamental. Todas as pessoas são vulneráveis e interdependentes. Todo mundo precisa de cuidados ao longo da vida, independente da idade ou do estado de saúde.  E para além disso, os trabalhos conectados a essa esfera são de baixa intensidade ecológica, não exigindo extração de recursos da natureza em larga escala e podendo se aliar a uma transição energética, climática e ecológica realmente justa. 

Economia feminista, sociedade sustentável e sociedade do cuidado 

Para transformar nosso atual modelo econômico, precisamos fazer da solidariedade e da reciprocidade uma prática nas nossas vidas, nos nossos movimentos e nos nossos esforços políticos cotidianos. A economia feminista nos lembra que a biodiversidade é fruto da relação com as povos tradicionais e seus modos de vida. Devemos respeitar o ciclo de regeneração da natureza e repensar nossa relação com a alimentação, valorizando práticas agrícolas e culinárias locais e garantindo que as comunidades tenham meios de cultivar alimentos em seus próprios territórios. A economia feminista propõe uma alternativa de sociedade construída a partir da centralidade da sustentabilidade da vida, da interdependência e ecodependência.

Uma sociedade sustentável precisa ser uma sociedade do cuidado, mas um cuidado fora das amarras do capital. Assinalar a importância do trabalho de cuidado, que sustenta a vida de todas, todes e todos é um passo para a valorização deste e para a construção de outras formas de se relacionar.

A economia feminista apresenta ainda atividades compatíveis com a redução da exploração de recursos, o que aponta uma saída para um crescimento econômico clássico, pautado pelo acúmulo infinito de capital em um planeta finito. Processo que se dá por meio da superexploração do trabalho e da natureza, do ecocídio, da criação de zonas de sacrifício, do racismo ambiental e da extinção.

O modelo capitalista divide a nossa sociedade entre as esferas de produção e reprodução da vida, isso faz com que pareça que pareçam coisas independentes. O trabalho que tem relação com o dinheiro é considerado produtivo e a sociedade o valoriza. Já o trabalho doméstico e de cuidados é considerado reprodutivo. E apesar de ser fundamental para sustentar a vida, é invisível para a sociedade e não é considerado parte da economia. A economia tradicional se constrói dentro desse modelo, privilegiando as experiências dos homens e negando as das mulheres. A Economia feminista torna visíveis todos os trabalhos que sustentam a vida, sendo o trabalho reprodutivo fundamental para que o próprio trabalho produtivo aconteça. Não há separação.

A economia dentro da economia feminista, portanto, é o modo como garantimos a vida. Sem cuidados e sem alimentos, por exemplo, não há economia  e nem  vida possível. Por isso a economia feminista reconhece e valoriza os trabalhos de cuidado como parte da economia. E vai mais além: reorganizando esse trabalho pra que seja de todas pessoas, coletivo, e para que hajam políticas públicas a respeito.

O capitalismo se desenvolveu às custas da exploração da natureza e do tempo das pessoas. Tudo em função do mercado. Na África, Ásia e na América Latina as pessoas foram expulsas de suas terras para dar lugar a monocultivos de alimentos e agrocombustíveis para a exportação. Empresas minerárias contaminam as águas, seguem destruindo a diversidade da natureza e colocam em risco a vida de quem vive em territórios próximos. Não é casualidade que nessas áreas de disputa apareçam conflitos armados e as mulheres enfrentem muita violência.

Nas cidades, grandes empresas construtoras se beneficiam com a especulação imobiliária. Para isso, desalojam pessoas de seus lares e comunidades para construir grandes projetos que afetam sobretudo as populações periféricas, migrantes, negras e indígenas. E quem segura as pontas nas comunidades, garantindo que todo mundo tenha habitação, comida e cuidado, são as mulheres.

Para manter as taxas de lucro das grandes empresas, a exigência é de mais trabalho, com menos direitos e mais vigilância. Na lógica da ganancia transformam os bens comuns em mercadorias e superexploram o trabalho das pessoas. Quando menos esperamos, o que era público vira propriedade privada, o que era de acesso comum passa a ser só para quem pode pagar.

Mulheres estão cada vez mais sobrecarregadas com o trabalho em casa e fora de casa, da reprodução e produção da vida. E com um olhar para a ecomomia feminista, a partir do cotidiano de quem cuida da vida, é evidente que os tempos e as lógicas de vida, da natureza, são incompatíveis com os ritmos do capital.

Além de ser muito  invisibilizado, muitas vezes o trabalho de cuidado é não renumerado ou mal renumerado, trazendo ainda mais violências para o cotidiano de quem historicamente assume essa responsabilidade. Situações como a da pandemia de covid-19 escancaram o quão imprescindível é uma economia que tenha o cuidado em primeiro plano, pautando um modo de vida solidário, com o fortalecimento dos espaços comuns, de escolas, creches, lavanderias, hortas e cozinhas comunitárias.

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 01”:

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 02”:

Fonte: Capire 

 Leia também a nossa última coluna no Jornal Brasil de Fato, que também aborda o tema.

 

Estão nos matando, mas ainda assim semeamos a esperança

Nós, mulheres, somos 51,8% da população brasileira, e mesmo assim não chegamos a ser metade das cadeiras do Congresso Nacional (17,7%) ou do Judiciário (38,8%). Tampouco temos a representatividade devida nas Assembleias Estaduais, Câmaras Municipais ou na direção do Executivo. A única mulher eleita Presidenta, Dilma Rousseff, sofreu um golpe misógino em 2016. Será impossível pensar em igualdade de gênero quando sequer somos capazes de construir uma equidade de representação política.

O cenário se agrava quando olhamos os quatro últimos anos de Governo Bolsonaro. Quando as políticas públicas se destinaram a retificar papéis históricos de gênero que reforçam a divisão sexual do trabalho. A mensagem política transmitida pelo governo e representações políticas era sintetizada em expressões como: “bela, recatada e do lar”; “meninas vestem rosa e meninos azul”.

Neste universo conservador, agregava-se o fundamentalismo religioso propagado pelas posições fascistas que confrontavam diretamente os direitos historicamente conquistados das mulheres, especialmente os sexuais e reprodutivos.

As estatísticas comprovam os retrocessos. Segundo o relatório de transição, houve uma desidratação das políticas públicas destinadas às mulheres; apenas no primeiro semestre de 2022, o país bateu recordes de feminicídio. Em 2021, 66 mil brasileiras foram vítimas de estupro e 230 mil sofreram agressões físicas por violência doméstica. Se olharmos esses dados sob o recorte racial, ainda encontraremos que 67% das vítimas de feminicídio e 89% das vítimas de violência sexual são mulheres negras. A partir de 2016, a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres sofreu um corte de 90% de seu orçamento.

A crise sanitária atingiu de forma distinta as mulheres, refletindo a urgência de um debate público sobre a economia de cuidados. Isso porque as mulheres ocuparam as linhas de frente de combate ao coronavírus sendo as enfermeiras dos hospitais, as cuidadoras dos doentes nas casas e as que sustentaram o isolamento doméstico. As trabalhadoras domésticas foram as primeiras a serem infectadas pela pandemia e as mais impactadas pelos efeitos do covid-19.

O retorno do país ao mapa da fome afeta sobremaneira as mulheres: 1 em cada cinco lares chefiados por mulheres não tem o que comer no dia a dia. A sobrecarga de trabalho doméstico, já excessiva, aumentou ainda mais no desmantelamento de políticas sociais como escola e creches, agravando uma conjuntura marcada pelo desemprego generalizado. Nossas mulheres estão cansadas, doentes.

Em realidade, as disparidades de gênero cresceram em todo o mundo com a pandemia, estima-se que para atingir a igualdade de gênero levaríamos 135,6 anos. O Brasil ocupa a 93ª posição no mundo, de 153 países, sendo o penúltimo na lista latino-americana. O que nos torna um gigante de desigualdade.

O Informe Global de Gênero, do Fórum Econômico Mundial, propõe que para superar as lacunas são necessários investimentos no setor de assistência social, construção de políticas para igualdade no mundo do trabalho e capacitação das mulheres. A retórica da organização financeira é bastante peculiar, já que se de um lado propõe essas diretrizes, de outro promovem políticas de austeridade e desregulamentação nos países para facilitar a privatização de serviços e a entrada e permanência de empresas transnacionais.

Como podemos observar, as políticas públicas para as mulheres se resumem a uma sujeição à sociedade capitalista e patriarcal, e para outra grande parcela delas, a morte. Assim estão nos matando; eliminam nossos corpos, nossas mentes, nossa libertação. No entanto, somos feitas da terra e da resistência, e neste 8 de março queremos semear nosso projeto político alternativo: a economia feminista.

A economia feminista nos liberta

Mulheres são maioria nas iniciativas de solidariedade contra a fome que surgiram durante a pandemia, como as cozinhas solidárias do MTST – AFP

O sistema capitalista, desde sua origem, estruturou-se fazendo o uso do patriarcado como instrumento de dominação e exploração das mulheres, e rebaixando ainda mais sua posição como grupo social. Assim, organizou uma divisão sexual do trabalho, separando o trabalho produtivo, assalariado, do trabalho reprodutivo, este último legado às mulheres. Todas as tarefas de cuidado que são necessárias para a manutenção das condições de vida estão designadas às mulheres e não são remuneradas. Se assim o fosse, seria impossível sustentar os baixos salários e o avanço da mercantilização e privatização à medida que exigiria que a sociedade não estivesse orientada para o individualismo e, sim, para a coletividade.

Ocorre que a crise de cuidado é permanente em nossa sociedade; não à toa, vivemos uma profunda crise do capital versus vida. A orientação da produção mundial para a produção constante de lucro, concentrado numa cada vez menor parcela de indivíduos acionistas de grandes corporações que controlam cadeias globais de produção, é insustentável.

A crise ambiental instalada desde a separação do homem da Natureza na modernidade tem produzido cada vez mais a nossa insustentabilidade como espécie humana neste planeta. “A ruptura entre as nossas sociedades e a natureza não é de responsabilidade de toda a população, pois foi projetada e é perpetuada por esses sistemas de poder em nível global”, expressa Karin Nansen, ex-presidenta da Federação de Amigas da Terra Internacional. Precisamos, urgentemente, superar nossa separação com a Natureza, suas gentes e suas culturas, e incorporar valores de ecodependência.

Frente aos desafios da crise múltipla da acumulação do capital, feministas de todo mundo têm construído a economia feminista e popular como projeto político alternativo. A economia feminista é uma aposta política para transformar a sociedade, as relações entre as pessoas, e entre elas e a natureza. Reconhecer o trabalho de cuidado invisibilizado e propor sua reorganização é um primeiro passo. Determinar uma nova lógica de produção mundial na qual a economia esteja centrada na vida, dando especial atenção aqueles que trabalham para sustentá-la.

Todas e todos, ao longo de nossas vidas, precisamos de cuidados; não há condição de vida sem relações de reciprocidade. É por isso que precisamos subverter a lógica da ganância das empresas transnacionais que dirigem o mundo, e tomar consciência da centralidade da vida humana e sua reprodução. Ter esses sujeitos e sujeitas no centro do pensar nossa política, como propõe Karin: “Precisamos de respostas que coloquem no centro as classes populares, a classe trabalhadora, as mulheres, os povos indígenas, as comunidades quilombolas, as comunidades camponesas e todas aquelas comunidades que sofrem diretamente os impactos desse sistema e desse modelo de acumulação”.

A economia feminista não é um projeto acabado, é um projeto em permanente construção no andamento dos processos de luta de classes, do qual convidamos a todos e todas para se engajarem. Construir a economia feminista é resistir aos projetos de morte, e mesmo depois de tantas pilhagens, semearmos a esperança. Muitas mulheres ao redor do mundo estão fazendo isso, construindo cotidianamente novas práticas coletivas de cuidado, novas relações sociais e com a Natureza.

Assim, deixamos para este 8 de março o repensar a organização da sociedade em quatro eixos centrais de enfrentamento ao capitalismo, desde a economia feminista: 1) o reconhecimento e organização do cuidado; 2) a centralidade da vida; 3) interdependência; 4) ecodependência. Marchando com nossa bandeira, seguimos e nos atrevemos a viver a nossa vida com valor, força e dedicação.

 

Abaixo, divulgamos dois vídeos sobre economia feminista produzidos em parceria pela Capire e pela Amigas da Terra Internacional. A locução está em espanhol e inglês, mas tem legenda em português.

Parte 1

Parte 2

 

Coluna publicada originalmente no Jornal Brasil de Fato, no link: https://www.brasildefato.com.br/2023/02/28/estao-nos-matando-mas-ainda-assim-semeamos-a-esperanca 

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