Até quando as veias estarão abertas na América Latina?

Integrantes da Amigos da Terra, MST, RENAP (advogados populares) e APIB (indígenas) visitaram países europeus para denunciar os impactos do Acordo UE-Mercosul. Na foto, protesto na Alemanha. Crédito: Amigos da Terra Europa

A história da América Latina é marcada por uma espiral, na qual passado, presente e futuro se encontram e se distanciam em ciclos revisitados de exploração. Nossas independências nunca marcaram rupturas profundas com a hegemonia europeia. Desde que o capitalismo é capitalismo, temos um lugar periférico na divisão internacional do trabalho. Somos os que vivem sob as condições da superexploração do trabalho, dos territórios, para produzir uma riqueza extraordinária constante, que é diretamente transferida às potências globais. Assim, portanto, nosso subdesenvolvimento não é causa do nosso fracasso civilizatório, é estruturante para que outros se creiam desenvolvidos. 

A pilhagem colonial se reinventa nesses ciclos históricos. Antes, a barbárie da escravidão, da destruição da natureza, da violação dos corpos das mulheres, temas ainda cadentes e não resolvidos, que permitiram o acúmulo primitivo da riqueza dos países ditos desenvolvidos para constituírem seu avanço industrial e a estruturação de Estados sociais. Amargam ditaduras sangrentas quando a sombra de ideias revolucionárias perpassa o mundo, para que nos mantivessem presos na subordinação. Nos anos 90, a expansão do neoliberalismo nos prendeu nas dívidas externas, obrigando a vender todo nosso patrimônio nacional, a desregulamentar nossos setores, a sujeitar-nos aos comandos do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC). Eis a produção e reprodução da dependência.

Uma luz surgiu no final dos anos 90 e anos 2000 em vários países. A Venezuela, sempre na liderança revolucionária na região, Equador, Bolívia, Brasil, Argentina, Uruguai, Honduras e Paraguai tiveram a experiência da chegada de governos progressistas. Ainda que na reprodução de um modelo de desenvolvimento hegemônico, centrado na produção e exportação de commodities, os avanços de setores industriais como o petróleo, a cooperação sul-sul e a efetivação de políticas sociais avançaram e incomodaram muito. Por isso, a contrarrevolução foi brutal, os golpes arquitetados contra nossas democracias, com todo o requinte da guerra híbrida, passaram, mas deixam as forças auxiliares presentes da extrema-direita. Os donos do mundo, as empresas transnacionais, usam alguns fantoches de países desenvolvidos para recolocar as regras do jogo, a lex mercatoria no lugar, e interferem na soberania dos países para assegurar suas melhores posições no mercado internacional.

Hoje, governos progressistas retornam à Abya Yala. À exceção de Equador, Uruguai e Paraguai, vivemos um novo momento da esquerda. Certamente a eleição no Brasil, com a vitória de Lula, deu peso a esta nova onda. Se de um lado a América Latina busca forças para seguir respirando, a Europa encontra uma crise econômica com sua dependência energética com a Rússia, e os Estados Unidos (EUA) tentam uma corrida de hegemonia com a China. Nesse cenário, a pressão por novos tratados e acordos comerciais que sejam favoráveis à recolocação dos países desenvolvidos está crescente.

O desenvolvimento é sempre a chave utilizada para as políticas imperialistas. Como a desigualdade de inserção no mercado internacional nos condiciona a produtores de matérias-primas (commodities), estamos sempre buscando investimento estrangeiro direto e reduzindo nossos padrões de proteção social e ambiental. A onda de acordos que estão em negociação com a região, entre eles o Acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul e o Acordo de Associação Transpacífico, prevê a expansão da exportação de commodities, sem mensurar seus impactos sociais e ambientais e, ainda, a transferência de produtos e tecnologias defasadas para nossa região e a privatização de setores de serviços. Claramente, acordos com vantagens econômicas aos países do Norte e o aprofundamento da dependência para nós. 

O Acordo UE-MERCOSUL e o Brasil

Há mais de 20 anos, a negociação do Acordo UE-Mercosul, a portas fechadas, ficou estagnada. Em 2019, os países anunciaram a conclusão do acordo. No entanto, começaram movimentos da sociedade civil e de parlamentos de países europeus para evitar uma assinatura com o Governo Bolsonaro, com medo de serem associados ao momento crítico do desmatamento no Brasil. O presidente Lula, juntamente com o ex-chanceler Celso Amorim, ainda em campanha, anunciaram a intenção de revisitar o acordo na próxima gestão, com particular preocupação quanto a elementos como restrições à implementação de políticas de reindustrialização, impacto da abertura das compras públicas às transnacionais europeias, maior regulamentação sobre direitos de propriedade intelectual, comércio e privatização de serviços e os impactos do comércio bi-regional sobre o meio ambiente. Por outro lado, a União Europeia tem pressa e faz pressão para garantir suas cadeias de suprimento de energia, agro e minero commodities afetadas pela guerra na Ucrânia, e está propondo um protocolo adicional, com promessas sobre os impactos climáticos, para amenizar as críticas e resistências.

 O acordo tem como eixo central a exportação de matérias-primas pelo Brasil – como grãos, carnes e minérios, cujo modelo de produção gera conhecidos conflitos socioambientais no nosso país, e a importação de produtos industrializados de transnacionais europeias, muitos que já não são mais utilizados ou são até proibidos na Europa – como os agrotóxicos, que tanto afetam a saúde das pessoas e dos animais, a biodiversidade e a qualidade das águas. Em suma, não se trata de um acordo no qual duas partes saem beneficiadas; é mais uma solução neocolonial para a crise europeia. 

Nesta linha, Luana Hanauer, da Amigos da Terra Brasil, destacou que “O que está em jogo nos capítulos dos acordos comerciais com a Europa é perpetuar e aprofundar a agenda de violações e retrocessos dos direitos. O acordo acentua a reprimarização da economia brasileira e atualiza os dispositivos coloniais que mantêm a dependência do país em relação à Europa, além de incentivar a violência racista contra povos indígenas, comunidades negras, camponesas e tradicionais. Isso porque o dano ambiental, associado à expansão do desmatamento e do agronegócio, recai desproporcionalmente sobre os povos negro e indígena e, em particular, sobre as mulheres”.

Inspiradas nas lutas dos anos 2000 contra o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), 120 organizações da sociedade civil e movimentos populares construíram a Frente contra o Acordo UE-Mercosul. Desde 2020, a Frente vem realizando formações e diagnósticos dos impactos do acordo na vida da população brasileira, apresentando documentos de posicionamento, como a Carta à equipe de transição do governo. A Frente reafirma as consequências do aumento da exportação de commodities em troca da importação de carros, agrotóxicos, das privatizações e dos riscos para a economia nacional da restrição das compras governamentais, evidenciando como o texto beneficia a atuação das empresas transnacionais.

Em turnê realizada na Europa, ativistas brasileiros que compõem a Frente reiteraram oposição ao acordo e demandaram participação social com debate público, após o anúncio do governo eleito no Brasil da intenção de reabrir os diálogos com o Mercosul e, posteriormente, com a Europa, sobre o Acordo, especialmente para que sejam apresentadas as críticas e propostas populares sobre outros modelos de comércio, condizentes com as necessidades do povo brasileiro. Reabrir as negociações e frear seu avanço rumo à ratificação do Acordo pelos parlamentos nacionais, com compromisso de diálogo e participação popular, é também reconhecer a possibilidade de dizer não ao acordo, de ouvir as vozes das populações atingidas diante dos seus impactos sociais, ambientais e econômicos para um projeto popular e democrático de nação. Nas palavras de Graciela Almeida, liderança do MST (Movimento Sem Terra) no Assentamento Santa Rita, afetado pela pulverização de agrotóxicos no Rio Grande do Sul, “no acordo UE – Mercosul se pretende que, países como Brasil, continue sendo exportador de commodities e importador de agrotóxicos, entre outros. Transforma o agronegócio num grande negócio para poucos, submetendo as comunidades dos territórios de reforma agrária, territórios ancestrais, a todo tipo de violação de direitos humanos e da natureza”.

Que projetos de nação nos esperam

Muitas dúvidas pairam sobre os novos governos progressistas da América Latina; as mesmas condições de crescimento, com o boom de commodities de anos anteriores, não estão dadas. Países estão falidos, seja pelo fascismo, pela pandemia de COVID, com populações empobrecidas, especialmente o Brasil. Qual será a resposta de inserção econômica no mercado mundial que irão construir? 

Luis Lacalle, presidente do Uruguai, anunciou na recente cúpula do Mercosul a intenção de assinar o Acordo de Associação Transpacífico, sem qualquer consulta ou diálogo com o Mercosul, fragilizando o bloco. Por isso, recebeu duras críticas de Alberto Fernández, presidente da Argentina, para quem a negociação de acordos comerciais internacionais cada vez envolve menos a solidariedade entre os países. No mesmo momento, o Peru, assim como a Argentina, vivem sob forte pressão da direita para retomar o poder, com o uso da máquina do lawfare. Desse modo, está a pleno as táticas de cooptação de lideranças e do exemplo pedagógico do terror, para engrossar o caldo dos desafios dos novos governos.

Embora os povos de nossa América sejam muito aguerridos, nas lutas e organizações políticas – não à toa a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), essência do projeto imperialista americano, foi derrotada no último ciclo de governos progressistas com base na  força de um referendum popular regional, nossa governabilidade é sempre um caminho de poucas escolhas diante de nossa subordinação ao mercado mundial. Os arranjos políticos que levaram a vitórias eleitorais e as derrotas ao fascismo certamente condicionarão essas escolhas. Resta saber que tipo de semente tais governos irão semear neste novo ciclo. 

Serão os primeiros passos rumo à superação de nossa dependência? Se este for o caminho, as velhas formas de acordos comerciais e tratados de livre comércio, revisitados criticamente e à luz do atual momento histórico e dos compromissos de um novo governo no Brasil, suleado pelo combate à fome e pela qualificação (e não privatização) dos serviços públicos essenciais à garantia de direitos, deverão nele florescer as iniciativas econômicas emancipatórias populares, solidárias e feministas que, na resistência, sustentaram a vida e a política nesses duros anos de obscuridade, abrindo alas para uma reconstrução democrática no país. Se as apostas trilharem outros rumos, norteados por interesses empresariais neocoloniais, a história se repetirá, e o ciclo da espiral novamente estará longe de se quebrar.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2022/12/20/ate-quando-as-veias-estarao-abertas-na-america-latina 

De punho esquerdo alto, rumo ao dia 2 de outubro

 


O dia 2 de outubro apenas irá inaugurar um árduo trabalho do povo brasileiro para reconstruir sua soberania – Carol Ferraz/ ATBr

 

O filósofo e crítico literário Walter Benjamin, ao se referir à revolução, não a definiu como a “locomotiva da história”, mas como um “freio de emergência”. É precisamente esse o sentimento de milhares de brasileiros e brasileiras, que se sentem dentro de um trem em alta velocidade para o colapso, com o Governo Bolsonaro.

Diante disso, precisamos ir com consciência para votar, com punhos cerrados, no próximo dia 2 de outubro, tal qual nossos braços estavam abertos à vacina, por um compromisso coletivo com a derrota do fascismo e com a clareza de não haver tempo para hesitação. Aqueles que resistem por devaneios individuais estão condenando, a si e ao povo brasileiro, a riscos de ameaças democráticas maiores.

Queremos substituir a integralidade do projeto de ódio e intolerância do governo por uma administração pública de transformações profundas, que seja capaz de superar a dependência histórica estrutural que conforma nosso lugar geopolítico, para que não haja espaço para ingerências internacionais sobre nosso destino como nação. Na verdade, o dia 2 de outubro apenas irá inaugurar um árduo trabalho do povo brasileiro para reconstruir sua soberania.

Juntamente com o nosso voto presidencial, precisamos garantir que haja condições de governabilidade e que nossa radicalidade também se faça presente no “puxar o freio”, sobretudo que as questões ambientais tomem centralidade na agenda pública. Para isso, precisamos estar atentos em nossos votos aos representantes parlamentares.

Muitas candidaturas estão assumindo o compromisso político com a construção da justiça ambiental. Inclusive, essas eleições estão com um número expressivo de candidatos e candidatas provenientes de coletividades marginalizadas. Temos por volta de 17 candidaturas quilombolas, 178 indígenas e 260 candidaturas LGBTQI+. Importantes movimentos populares, como MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), também lançaram candidaturas individuais e coletivas pelo país.

Uma vez mais, anunciar e construir nossas bandeiras

Nos últimos anos, tem-se utilizado o termo justiça ambiental para caracterizar a existência de uma desigualdade na distribuição dos danos e riscos ambientais, diretamente conectada a uma distribuição desigual da renda, moradia, etc. Ela é incorporada por várias organizações ao redor do mundo, dentre elas a Amigos da Terra Internacional, como uma bandeira de construção de uma sociedade mais justa, igualitária e harmonizada com a produção da totalidade da vida.

Vivemos uma interação de várias crises sistêmicas: climática, alimentar, de biodiversidade, hídrica, energética. Em muitas partes do mundo, estamos chegando a um ponto de não retorno, que ameaça a continuidade dos modos de produção e reprodução da vida. Tais crises são atravessadas pelas desigualdades estruturantes da sociedade, como classe, raça e gênero, e em nossa região, na América Latina, estão interligadas à presença da colonialidade do poder.

A luta por justiça ambiental envolve os debates das mudanças climáticas, sobretudo em uma vertente crítica à economia verde, mas não apenas. Pensar em justiça ambiental está conectado a construir direitos para os povos, soberania popular e, dentro dela, a soberania alimentar, hídrica, energética; construir uma economia popular para a vida, recriar laços sociais de proteção e cuidado popular e comunitário nos territórios, avançar numa transição energética justa e feminista. Não existe ambiente sem ser humano.

Desse modo, entre as bandeiras que dialogam com o tema está a retomada da Reforma Agrária, a construção da Reforma Urbana, a retirada das políticas de austeridade que cortaram gastos públicos com saúde, educação, programas sociais; a proteção dos direitos territoriais de povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, os quais têm assegurado a proteção de várias áreas verdes. Não podemos seguir privatizando nossas Unidades de Conservação, cedendo à iniciativa privada o controle de bens naturais comuns.

Ano que vem, sob um novo governo e um novo Congresso Nacional, teremos que enfrentar os estragos do Governo Bolsonaro e, portanto, revisar os investimentos na proteção e conservação ambiental, as liberações de agrotóxicos, as concessões minerárias; a ofensiva no Pampa, na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal e o histórico desmatamento da Mata Atlântica. Novamente, a política de desenvolvimento de grandes projetos como hidrelétricas, termelétricas, expansão minerária, portos e ferrovias para o agronegócio, terão que ser repensados à luz dos danos socioambientais que provocam.

Entendemos que a justiça ambiental se constrói nos direitos dos povos e na soberania popular por meio da organização social e política da sociedade, tão vasta em suas formas e expressões. Esse projeto não começa nessas eleições, nem tampouco terminará, mas se não pudermos construir uma melhor correlação de forças agora estaremos nos distanciando desse horizonte não apenas por 4 anos, mas talvez muitos séculos diante do imaginário que o bolsonarismo tenta nos impor.

Assim, construiremos nosso voto no próximo domingo com punhos altos para triunfar ainda na primeira volta, e faremos disso a continuidade de várias caminhadas da esquerda que nos trouxeram até aqui, para seguir construindo as possibilidades do futuro que queremos.

Afirmamos que a justiça ambiental está no centro da agenda ecológica para o Brasil. Somos um país com um acúmulo de lutas, resistências, saberes e fazeres populares que nos permitem parar a locomotiva do capital e trilhar um caminho outro que não o do perverso desenvolvimentismo, recolocando a produção da vida como o bem mais importante que devemos cultivar.

Vote com consciência. Vote para mudar o rumo para onde vamos. Vote em quem se compromete com justiça ambiental. Vote e siga se organizando e construindo o real poder transformador, o popular!

* Coluna publicada originalmente em 26 de Setembro em https://www.brasildefato.com.br/2022/09/26/de-punho-esquerdo-alto-rumo-ao-dia-2-de-outubro

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