Ambientalistas voltam a alertar para perigos do acordo UE-Mercosul

Associações ambientalistas alertam para o eventual impacto do acordo UE-Mercosul no ambiente, direitos humanos, trabalhadores, pequenos agricultores e no bem-estar animal.

Na segunda-feira, ativistas montaram na Praça do Luxemburgo, em Bruxelas, uma “torre Jenga da ganância UE-Mercosul”, apelando ao fim do acordo comercial UE-Mercosul | Foto: Johanna de Tessieres, Greenpeace


O acordo comercial entre a União Europeia (UE) e o bloco Mercosul, que reúne Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, foi um dos tópicos de debate na Cúpula da UE com os países da Comunidade de Estados da América Latina e Caribe (CELAC). Este pacto continua a ser criticado por associações ambientalistas, que convergiram em Bruxelas para alertar para o impacto do acordo no meio-ambiente, direitos humanos, trabalhadores, pequenos agricultores e no bem-estar animal.

A Cúpula UE-CELAC decorreu esta segunda e terça-feira em Bruxelas, após oito anos sem reuniões de alto nível entre os blocos, com a participação de mais de 50 líderes, entre os quais o Presidente brasileiro, Lula da Silva, e o primeiro-ministro português, António Costa.

No final da Cúpula, a coligação Stop EU-Mercosur, que reúne mais de 450 organizações da Europa e da América Latina, lançou um comunicado  que critica o anúncio dos líderes da UE e do Mercosul de que pretendem concluir o tratado até ao fim deste ano.

Na segunda-feira, ativistas montaram na Praça do Luxemburgo, em Bruxelas, uma “torre Jenga da ganância UE-Mercosul”, apelando ao fim do acordo comercial UE-Mercosul | Foto: Johanna de Tessieres, Greenpeace

“Mais conversações secretas apenas conduzirão a um resultado que coloca as florestas, o clima e os direitos humanos sob uma pressão insuportável”, alertou Lis Cunha, da Greenpeace Alemanha, citada num comunicado da coligação Stop EU-Mercosur.

“Em vez de avançar com um acordo concebido para a exploração empresarial, a UE e os países do Mercosul devem começar de novo e repensar a sua relação de uma forma que coloque o planeta, as pessoas e os animais acima da destruição do nosso planeta para obter lucros a curto prazo”, sublinha a ativista.

Na segunda-feira, ativistas de 50 organizações tinham montado na Praça do Luxemburgo, em Bruxelas, uma “torre Jenga da ganância UE-Mercosul”, recriando uma versão gigante do jogo. Os grupos ambientalistas apelam aos decisores políticos de ambos os lados do Atlântico para “pararem o acordo comercial UE-Mercosul e reabrirem as negociações pelas pessoas, animais e o planeta”.

Desmatamento  e sustentabilidade

O acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul, alvo de negociações ao longo de 20 anos, atingiu um compromisso político em 2019, mas a ratificação continua por concluir devido a questões ambientais levantadas pela UE durante o período em que Jair Bolsonaro presidiu ao Brasil.

No ano seguinte ao compromisso alcançado, o Presidente francês, Emmanuel Macron, rejeitou o acordo, depois de um estudo revelar o risco de um aumento de desmatamento com a entrada em vigor. Dentro da UE, também a Áustria apresenta reservas em relação ao acordo da UE-Mercosul por razões comerciais e ambientais.

A Comissão Europeia propôs um adendo sobre desmatamento e sustentabilidade e aguarda neste momento uma resposta do Mercosul ao documento complementar proposto pelo bloco comunitário. Apesar das críticas, a atual presidência espanhola da UE espera que esta Cúpula seja um ponto de partida para desenvolvimentos na conclusão do acordo UE-Mercosul.

Na segunda-feira, o Presidente brasileiro, Lula da Silva, defendeu um acordo UE-Mercosul “baseado na confiança mútua” e não “em ameaças”, argumentando que as exigências ambientais europeias são “desculpa para o protecionismo”.

Lula da Silva afirmou esperar que a UE e o Mercosul finalizem este ano o acordo comercial, para “abrir horizontes” aos blocos regionais, pedindo “um sinal” do compromisso. “Queremos um acordo que preserve a capacidade das partes e que responda a desafios presentes e futuros.”

Para algumas organizações ambientalistas, pelo contrário, o adendo proposto pela UE não é sequer suficiente para sanar as ameaças ambientais que identificam no tratado. Alberto Villarreal, da Amigos de la Tierra América Latina y Caribe (ATALC), defende que “nenhum protocolo ambiental suplementar será alguma vez capaz de eliminar as ameaças às pessoas, aos territórios e ao planeta que estão embutidas neste acordo de comércio livre neocolonial e perversamente orientado para o lucro empresarial”.

Citado no comunicado da coligação Stop EU-Mercosur, o ativista apela a “acordos socio-ambientais multilaterais vinculativos”, que permitam reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, “e não de falsa soluções baseadas no mercado”.

Questionado sobre o acordo comercial que falhou em 2019, o primeiro-ministro português, António Costa, recordou que o quadro político do Brasil era diferente na altura e que o então Presidente Jair Bolsonaro “não tinha nenhum compromisso com as alterações climáticas, cuja existência negava”. “Hoje o Presidente do Brasil é o campeão da defesa da Amazónia, é o campeão da luta contra o desmatamento, o campeão da luta contra as alterações climáticas”, acrescentou.

António Costa reconheceu que “há avanços entre os países do Mercosul” e que, em princípio, já está preparada a resposta que vai ser apresentada à União Europeia.

Emmanuel Macron e Lula da Silva | Foto: REUTERS

Ritmo alarmante de destruição da natureza

Em entrevista ao Azul, no início de Junho, a diretora da Human Rights Watch no Brasil, Laura Canineu, alertou que “é importante que a UE se mantenha vigilante, para que Lula possa realmente cumprir o que prometeu, em relação aos povos indígenas e a ser um líder na maior crise que a humanidade está vivendo, que é a crise climática”.

“Entendemos que a União Europeia, por exemplo, não pode ratificar o acordo Mercosul-UE se o Brasil não mostrar progresso efetivo na redução do desmatamento e no combate à impunidade por atos de violência e criminalidade contra os defensores da floresta”, acrescentou ainda Laura Canineu.

De acordo com o comunicado da coligação Stop EU-Mercosur, várias análises têm mostrado que “a redução dos direitos aduaneiros e dos controles de produtos como as peças de automóveis, os pesticidas provenientes da UE e a carne bovina e aves de capoeira provenientes de países da América do Sul aumentarão o ritmo já alarmante de destruição da natureza”.

Morgan Ody, da coordenação europeia da organização La Via Campesina, alerta que “os acordos de comércio livre tornam impossível aos agricultores de média e pequena escala viverem da agricultura, e é por isso que os camponeses são contra eles”.

“Os agricultores de ambos os lados não querem produzir para exportar e competir”, defende a ativista francesa, citada no comunicado subscrito por 450 organizações. “Queremos produzir para alimentar as comunidades locais, dando prioridade ao comércio local, nacional e regional acima do comércio internacional.”

Morgan Ody apela, assim, aos membros do Parlamento Europeu e aos governos “de ambos os continentes” para que se unam como “aliados da soberania alimentar e aumentem a pressão para anular o acordo UE-Mercosul”.

Em Novembro do ano passado, mais de 200 organizações de todo o mundo (incluindo 16 associações portuguesas) apelaram aos decisores políticos para que defendam “o controle democrático dos acordos comerciais” e se oponham às tentativas de aprovar o acordo comercial sem a ratificação pelos parlamentos de todos os Estados-membros. As ONG afirmam, baseadas numa análise jurídica, que esta manobra constitui uma violação do mandato de negociação que os Estados-membros da UE conferiram à Comissão.

No seu todo, a região da América Latina e Caribe é responsável por mais de 50% da biodiversidade do planeta, representando também 14% da produção mundial de alimentos e 45% do comércio agro-alimentar internacional líquido. É ainda uma potência para energias renováveis, com as fontes alternativas a serem responsáveis por cerca de 60% do cabaz energético da região.

Texto  Escrito por  e

Emergência climática e democracia: um problema estrutural

No mês passado, mais uma vez, fortes chuvas no estado do Rio Grande do Sul deixaram um cenário de destruição ambiental, provocando a perda de vidas humanas, isolamento de famílias e agravando a situação de vulnerabilidade social de muitos territórios. A passagem do ciclone, culminando com fortes chuvas, produziu um cenário de caos social, deixando 50 famílias desalojadas no município de Maquiné (RS), 418 mil residências sem energia elétrica, estradas bloqueadas e 13 pessoas mortas. Os efeitos climáticos nos centros urbanos têm sido uma constante no país. Tragédias são vistas em Petrópolis/RJ, São Paulo/SP, alguns anos atrás em Santa Catarina. Todos esses casos se relacionam aos efeitos das mudanças climáticas e à falta de planejamento urbano e territorial.

Para os atingidos e atingidas de Maquiné, as tragédias evocam a necessidade de um repensar das relações entre sociedade e natureza. Segundo o abaixo-assinado da comunidade: “Os rastros da tragédia estão inscritos na paisagem, nos noticiários, na mente e nos corações de todos e todas. As perdas, os danos e as dores são muitas, e, nós como habitantes dessas matas, guardiões desse manancial de biodiversidade, precisamos refletir sobre o presente e o passado para planejarmos um futuro consciente e responsável, visando a reconstrução deste território sagrado, que junto com outros biomas, permite a vida na Terra.”

Os governos e gestores públicos tendem a associar tais fatos como eventos extremos da natureza, sobre os quais precisamos desenvolver soluções técnicas capazes de “controlar” esta força. A comunidade de Maquiné explica em seu abaixo-assinado que “enchentes, ciclones, deslizamentos de terra e inundações são considerados como catástrofes naturais, mas mais do que isso, representam a força da Natureza em restabelecer seu curso, suas leis e impor a necessidade de respeito, fato que precisa ser interpretado e internalizado para a elaboração de planos de recuperação e prevenção”.

Quanto à visão governamental, precisamos primeiro refletir sobre a reprodução da construção moderna que separa “homem” da natureza. Como nos ensina o professor Carlos Marés, dos diálogos do direito socioambiental, essa cisão permite um processo de objetificação da natureza no qual o homem passa a impor sobre ela um modelo de dominação. É assim que, no capitalismo, toda a abundância da natureza, a água, terra, chuvas, ar, vento, vários bens comuns podem ser mercantilizados, tornando-se “recursos naturais”.

O segundo efeito desta apreensão da realidade é supor que a crença de uma tecnicização irá resolver os problemas das mudanças climáticas; acreditamos que não foi por falta de técnica que chegamos até aqui, mas por decisões tecnificadas, visando o lucro. Por isso, as soluções propostas investem em mecanismos da economia verde, dentre eles a metrificação das políticas de compensação do carbono, como as propostas de “netzero” apresentadas na COP 26, e mais antigas como os créditos de “REDD”a proposta do Banco Mundial da “agricultura climaticamente inteligente”;  as cidades climaticamente inteligentes. No entanto, tais proposições ignoram as causas sociais e políticas mais amplas da crise climática, que envolvem as questões estruturais do modelo de produção capitalista.

Ao determinar as mudanças climáticas como um fenômeno recente se desconecta do efeito direto que o modelo de desenvolvimento adotado tem sobre a continuidade da vida no planeta Terra. Ainda que seja evidente uma emergência climática, é preciso cuidar com o uso do termo à medida que não esteja acompanhado de uma reflexão histórico-estrutural do sistema capitalista.

Com isso, queremos afirmar que o debate do clima envolve as reflexões sobre o capitalismo, colonialismo, desenvolvimento, participação e a governança global. Por isso, a construção de soluções que sejam respostas técnicas aos efeitos do clima, constituem-se apenas uma pequena parte do reconhecimento do problema que existe. Assim como as propostas históricas dos povos, em muitos momentos desconsideradas e desqualificadas, sendo que hoje a solução mais eficiente é a existência dos povos nos territórios, esta realidade de resistência foi o que garantiu a proteção ambiental territorial.

Assim, a crise climática é uma consequência das relações desiguais de poder. Não à toa seus efeitos se reproduzem igualmente de maneira desequilibrada. Enquanto países do Sul Global, especialmente regiões marginalizadas, sofrem profundas transformações ecológicas em virtude dos efeitos das mudanças climáticas e das “soluções da economia verde”, países do Norte Global dispõem de recursos para assegurar qualidade de vida a sua população.

Essa distribuição desigual de poderes e consequências compõe o cenário de uma injustiça socioambiental, que se aprofunda com o impacto da ação do Estado e de empresas em uma constante e histórica ação de “passar a boiada” no agro literalmente, mas também na construção civil e na mineração, com grandes obras de infraestrutura que, em sua busca insana de extração de capital do ambiente natural, descumpre, altera e flexibiliza a legislação ambiental, priorizando o interesse corporativo em detrimento do ambiente natural equilibrado e sadio.

Famílias desabrigadas ficaram alojadas no Ginásio Municipal de São Leopoldo, cidade da região do Vale do Rio do Sinos, no RS. Crédito: Gustavo Mansur/Secom

Inclusive, o tema de uma “justiça reparadora” é muito forte entre os povos afetados pelo clima. Países como Bolívia, e mais recentemente, Brasil, vêm afirmando a presença de uma “dívida climática” dos países desenvolvidos para com os subdesenvolvidos. Indo mais além nas questões estruturais, a presença do subdesenvolvimento é um produto direto da divisão internacional do trabalho, da presença intrínseca ao capitalismo mundial de um intercâmbio desigual entre os países, que cria a dependência. Reverter a situação de dependência, reconhecer o processo de silenciamento do colonialismo é tarefa fundamental para pensar a construção de alternativas à crise ecológica que vivemos.

A líder indígena hondurenha e lutadora ambientalista Berta Cáceres, quando recebeu o prêmio Goldman do Meio Ambiente, denunciava que as iniciativas para o clima estavam pensadas “fora do tempo”. Claramente, Berta se referia a uma injustiça histórica e social que vivem os povos da América Latina e Caribe, da África, do Sul Global, sobre os efeitos catastróficos que o colonialismo e o capitalismo impõem. De tal forma que pensar as questões do clima não significa apenas uma análise de seus efeitos físicos, mas conectar ao racismo, às desigualdades de gênero e classe que fazem com que territórios e corpos sejam mais afetados. Retomar a história de negação dos povos do Sul Global é parte fundante das discussões sobre o clima, ou seja não é somente o clima que deve ser visto, mas as causas dessas alterações e a dívida histórica aos povos que esta lógica produziu no campo das violações dos direitos dos povos, as métricas de carbono como estão colocados não respondem à diversidade da natureza e, menos ainda, na reparação dessas violações, este debate tem que estar no centro das soluções.

Desse modo, devemos nos questionar sobre os espaços internacionais promotores das soluções e a responsabilidade que determinados países têm na estruturação da crise. As metas voluntárias de redução das emissões não envolvem qualquer política de questionamento da destruição socioambiental das empresas transnacionais, pelo contrário, afirmam seu protagonismo. São os mesmos países causadores dos problemas estruturais que envolvem o clima, que estão hegemonizando a construção das soluções. Certamente, não serão eles a questionar os seus privilégios. De igual modo, lhes interessa manter as questões histórico-estruturais que lhe permitem seu domínio. Como o presidente Lula falou em Paris, “que os países que fizeram a revolução industrial são os responsáveis pela poluição do planeta, e que eles têm uma dívida histórica com a Terra”.

Importante perceber essa forma de agir das corporações, que querem ser voluntárias e não cumprem regras criadas para a garantia das leis, constituições e princípios da coletividade. Assim, lutamos para garantir regras para as empresas e direitos para os povos, como a campanha por um tratado vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos, instrumento internacional vinculante que responsabiliza diretamente as empresas transnacionais pelas violações de direitos humanos decorrentes de suas atividades, como no PL 572/2022 que cria um marco nacional sobre direitos humanos e empresas e estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o assunto.

Retornando aos impactos das enchentes nas cidades brasileiras, os governantes locais, estaduais e federais não são menos responsáveis pela reprodução deste sistema desigual. Os ventos, a chuva, são questões climáticas; agora, a alteração dos leitos dos rios não, o assoreamento dos rios, não; o aterro em banhados e áreas de várzeas, desmatamento, resíduos sólidos sem a implementação das leis, barramentos nos rios, falta de regularização fundiária, moradia, obras de infraestruturas que alteram os caminhos das águas e as cotas nos territórios, colocando essas comunidades de forma cada vez mais expostas a essas situações de alagamento e deslizamentos, expondo famílias e os mais vulneráveis a riscos previsíveis. As elites brasileiras seguem apostando na construção de respostas vindas “de fora”, que promovem um desencontro entre nosso passado, presente e futuro. Não há, por parte de muitos governantes, um compromisso com a construção de transformações sociais profundas em nosso país. A maioria do Congresso Nacional é bastante representativa da completa ignorância da destruição do planeta, e não tem consciência para além da lógica do lucro.

Repensar o problema dos danos causados pelas mudanças climáticas, da reparação das comunidades, famílias e territórios envolve, portanto, um profundo questionamento sobre o modelo de desenvolvimento, a organização do sistema produtivo e um giro ético político de relações sociais e com a natureza. É necessário construir outras respostas governamentais para além da prestação de serviços emergenciais, pensar a construção de alternativas fora dos espaços hegemônicos, desde as lutas e resistências populares locais, da organização política popular. É fundamental que nos casos, sobretudo de emergências climáticas, a reconstrução dos modos de vida seja feita mediante a escuta das comunidades locais e com processos de verdadeira participação popular, oportunizando-se da troca de saberes locais.

Edificar um projeto político de sociedade, territórios, cidades, que garanta essas profundas transformações, não serão reais e verdadeiras se não forem construídas com a participação efetiva de cada território, com seus povos e seus conhecimentos e cultura.

Esta ética-política renovada do reconhecimento de que o problema do clima é um problema civilizatório é de um tempo presente. Ou nos organizamos e mobilizamos para uma mudança da correlação de forças desta agenda, ou estaremos reféns de um futuro incerto. Um futuro que poderá não existir quando destruirmos as condições de vida concreta.

Texto originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/07/05/emergencia-climatica-e-democracia-um-problema-estrutural 

As políticas ambientais e climáticas no Brasil

Uma das promessas de campanha de Lula foi a preservação do ambiente natural. Ainda antes da posse, durante a COP27 (Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas), no Egito, afirmou compromissos com o combate ao desmatamento, aos crimes ambientais, à desigualdade social e à violência na Amazônia. Ao se diferenciar dos anos de negacionismo climático do Governo Bolsonaro, afirmou: “Essa devastação ficará no passado. Os crimes ambientais que cresceram no governo passado estão chegando ao fim. Serão agora combatidos sem trégua”.

Cumprindo com sua promessa, no dia 1º de janeiro assinou o decreto 11373/2023, que extinguiu o Núcleo de Conciliação das multas ambientais. O núcleo havia sido criado por Ricardo Salles, então ministro do Meio Ambiente, por meio do decreto 9.760/2019, que suspendia a cobrança das multas até que fosse realizada audiência de conciliação. Contudo, quase não se estruturou o órgão, levando a uma fila de conciliações que resultaram, na prática, na anistia de multas ambientais no governo Bolsonaro.

Ainda nos primeiros meses de governo, a ministra Marina Silva retomou o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). O plano havia sido uma das prioridades apontadas pelo Grupo de Trabalho da Transição do governo Lula. Sua aplicação vem sendo conduzida por meio de processos de abertura à participação da sociedade civil, de consultas públicas e de um Conselho Participativo. As metas previstas são bem concretas, com medidas a serem adotadas até os anos de 2025-2027.

Como já temos destacado em colunas anteriores, a preservação ambiental caminha lado a lado com a garantia dos direitos territoriais e à terra, dos povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais. Por isso, atribui-se também ao bom resultado dos dados a força tarefa organizada pelo governo de combate ao garimpo ilegal dentro dos territórios indígenas, em especial à questão da invasão do território Yanomami. As operações da Polícia Federal já destruíram 10 garimpos ilegais e aplicaram mais de R$ 4,5 milhões em multas.

A retomada da agenda progressista ambiental pelo governo, porém, sofre com alguns entraves, além dos problemas tão suscitados no orçamento. O primeiro deles é a composição conservadora do Congresso Nacional. Nas últimas semanas, assistimos a uma pressão exercida por Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, sobre o governo. As ameaças vieram com a necessidade do governo de aprovação da Medida Provisória dos Ministérios (MP 1154/23), enfrentada pela proposta de modificações ao texto apresentadas pelo deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL). As alterações do deputado incidiram diretamente sobre o Ministério do Meio Ambiente e Clima (MMA) e sobre o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Diante das pressões, o governo cedeu às proposições, apresentando parecer favorável à proposta.

As modificações aprovadas incidem sobre a agenda socioambiental. Isso porque retiram do MPI a competência para a demarcação das terras indígenas, retornando à política anterior dentro do Ministério da Justiça e Segurança Pública. A medida afeta a autonomia dos povos indígenas; contudo, segundo a ministra Sônia Guajajara, há o entendimento que o governo seguirá mantendo o compromisso com a continuidade do processo demarcatório.

Mas já prevendo que outros mecanismos seriam necessários para barrar as pautas indígenas, a ala conservadora do Congresso partiu para a aprovação do PL 490/2007 na Câmara. O PL trata da tese do marco temporal, defendida por ruralistas; determina que os indígenas só terão direito às suas terras se estivessem na posse das mesmas na data de 5 de outubro de 1988, dia promulgação da Constituição. O texto ignora completamente a expulsão violenta dos territórios a que os povos indígenas foram submetidos historicamente e, também, antes e depois de 1988.  Além disso, libera mineração e exploração econômica em terras indígenas e, na prática, viola o direito dos Povos Indígenas à Consulta Livre Prévia, Informada e de Boa Fé garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

Dentre as mudanças aprovadas, impactos na política de proteção ambiental são sentidos. O MMA perde a competência para controlar o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que irá para o Ministério da Gestão. O CAR é o registro obrigatório para imóveis rurais e um dos instrumentos utilizados para mapear áreas griladas e desmatadas, além de oferecer um diagnóstico das disputas por terras a partir das inúmeras sobreposições de informações prestadas por grileiros de terra para tentar legitimar sua posse. Ainda, a gestão da Agência Nacional de Águas (ANA) vai para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, e os sistemas de informação sobre saneamento básico e gestão de resíduos sólidos, para o Ministério das Cidades. A manobra é idêntica à utilizada pelo Governo Bolsonaro para esvaziar as competências fiscalizatórias do MMA e fortalecer, política e economicamente, outros ministérios com áreas com orçamento relevante. Preocupa, ainda, o fato de que temas que estão sendo alvo de processos de privatização, como o saneamento básico, e de um modo geral, as águas, fiquem sob ministérios de indicação da direita.

Na agenda ambiental, vale destacar ainda a queda de braço entre Marina Silva e o governo pela exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas pela Petrobras. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) negou o pedido com base no risco à biodiversidade, tendo em vista que a área é composta por manguezais e mamíferos aquáticos. No entanto, o Ministério de Minas e Energia e parlamentares da base do governo, ignorando o compromisso com a consulta e participação social dos povos amazônidas diretamente atingidos pelo megaprojeto de exploração petrolífera, reivindicam um melhor equilíbrio entre a produção de petróleo e a preservação da biodiversidade.

Também na Amazônia, povos têm se reunido para denunciar a continuidade dos impactos dos projetos e programas de REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), que visam compensar as emissões de gases do efeito estufa, utilizando-se de áreas preservadas, compondo o mercado de carbono e as chamadas “soluções baseadas na natureza”. Esses projetos e políticas, mais recentemente reapresentados como uma estratégia de “bioeconomia”, com a simpatia da base do Governo Federal, além de falsas soluções à crise climática representam, na prática, a emissão de créditos de poluição – da queima de petróleo, do desmatamento e contaminação do agronegócio e da mineração -, enquanto restringem o uso da terra pelos povos que de fato preservam a floresta, seguindo o modelo de “desenvolvimento” baseado na compensação dos danos ambientais sob o viés do mercado.

No Acre, têm sido registradas violações de direitos dos povos pelas políticas de financeirização da natureza há mais de uma década. Assim mesmo, projetos privados e políticas jurisdicionais seguem avançando na Amazônia em geral, em especial nos estados do ParáTocantins e Mato Grosso. Tanto o caso da exploração de petróleo como as soluções da economia verde turvam o campo progressista do governo, reproduzindo um pensamento social que entende a superação das mazelas da realidade brasileira investindo no avanço das forças produtivas sem aprender com e integrar, de fato, a economia dos povos da floresta, respeitando seus direitos, como estratégias para inserção do país no mercado internacional.

Para esse discurso, a Natureza e suas gentes são passíveis de serem compensados numa redistribuição econômica dos lucros dos projetos. Contudo, a questão é muito mais complexa; em geral, as injustiças ambientais permanecem afetando as populações menos responsáveis pela crise climática, cada vez mais presente e emergente. Como os exemplos sugerem, a solução vai muito além de um problema de clima e carbono, pois é sobretudo um problema de modelo de produção, o capitalismo, e as relações sociais que dele decorrem, para as quais os povos originários já apresentam soluções reais e, por isso, seguem sendo atacados.

Assim, a corda do governo, nas questões socioambientais, está esticada entre sua própria base, entre os desafios de uma governabilidade em uma composição de frente ampla e na presença majoritária de conservadores no Congresso Nacional. A bancada ruralista e os conservadores parecem querer seguir consolidando retrocessos socioambientais do governo Bolsonaro, negociando agendas com o governo. Os conservadores no governo pretendem seguir com suas fatias de benefícios às elites brasileiras. E os nossos, parecem ignorar a reprodução da dependência, numa corrida pela repetição do desempenho econômico do primeiro ano do governo Lula.

Porém, depois de tanto aprendizado, nessa nova fase do jogo político, é o povo quem sustentou e segue sustentando a democracia, a mudança dos ares no Brasil, a reconstrução do país, os discursos e narrativas que incluem e valorizam todos os povos e que precisam se concretizar, na prática, também nas políticas por justiça ambiental e climática do governo Lula.

Em meio a todas as disputas, os povos organizados encontram sabedoria para explorar as conjunturas e correlações de forças e seguir na defesa da democracia e na luta por seus direitos. Inclusive nos espaços internacionais que terão a Amazônia como centro, como a reunião dos Presidentes dos países Amazônicos em Agosto deste ano e a COP 30 do Clima em 2025, em Belém do Pará.

Texto publicado originalmente no Jornal Brasil de Fato, no link: https://www.brasildefato.com.br/2023/06/22/as-politicas-ambientais-e-climaticas-no-brasil 

Pulverização de agrotóxicos é debatida no Fórum Social Mundial de Porto Alegre

Famílias assentadas, organizações e movimentos sociais debatem problemáticas da pulverização de agrotóxicos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre e constroem aliança para garantir a produção de alimentos sem veneno

Importância da solidariedade internacionalista e da articulação entre países da América Latina para combater o avanço dos agrotóxicos é enfatizada nos debates. Foto: Maiara Rauber

Nos dias 23 e 24 de janeiro, as famílias Sem Terra participaram do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e debateram sobre as problemáticas da pulverização aérea de agrotóxicos na mesa ‘Povos contra agrotóxicos na República Sojeira’.

Também estiveram presentes representantes do Movimento Ciência Cidadã, em colaboração com Multisectorial Paren de Fumigarnos (AR), Red Nacional de Accion Ecologista (Renace – AR), Instituto de Salud Socioambiental da Universidad de Rosario (AR), Famílias do PA Santa Rita de Cássia II e Integração Gaúcha, Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST RS), Rede Irerê de Proteção à Ciência, Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Terra de Direitos, Amigos da Terra Brasil, Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), Comissões de Produção Orgânica (CPORG), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Cooperativa Central dos Assentamentos do RS (COCEARGS), Instituto Preservar, Jornal Brasil de Fato RS, Rede Soberania e GT-Saúde/Abrasco.

A mesa, dividida entre dois encontros, contou com troca de relatos e experiências entre companheiros de luta do Brasil e da Argentina. A partilha foi de vivências forjadas pelas desigualdades do capitalismo, que avança com um modelo de produção de alimentos primário exportador (o agronegócio) de alto impacto negativo nos biomas, responsável por danos irreversíveis nos territórios além de inúmeras violações de direitos destes e dos povos. Modelo assinalado ainda por uma relação de dependência econômica do Sul Global em relação ao Norte, que incide no cotidiano de pequenos produtores rurais por meio da violência, destruição da sociobiodiversidade, poluição, envenenamento, falta de incentivo via políticas públicas, desestruturação de suas formas de produção e de vida e perseguição política.

Mas para além do descaso do estado e do desamparo presente nos relatos, o otimismo da vontade foi o horizonte das pautas discutidas. De forma propositiva, também foram elencadas estratégias para barrar a deriva de agrotóxicos, a pulverização aérea de veneno e as violências contra pequenos produtores rurais, propondo o direito à terra, trabalho, comida e à produção de alimentos saudáveis. Na confluência de saberes e realidades, os movimentos e coletivos presentes se fortaleceram, dando início a uma aliança latinoamericana para dar um basta às violações dos corpos, territórios e da natureza imposta por uma minoria muito rica que comanda o agronegócio.

Visita a assentamentos conta com troca de experiências entre Argentina e Brasil e proposição de reivindicações coletivas para barrar as violências dos agrotóxicos nos países

No primeiro dia da atividade ‘Povos contra agrotóxicos na República Sojeira’’, foi realizado um roteiro de reconhecimento dos espaços atingidos pela pulverização aérea nos últimos anos. Inicialmente os participantes reuniram-se no Viveiro Bourscheid, no Assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, na região Metropolitana de Porto Alegre (RS). O viveiro é o único com certificado orgânico no Rio Grande do Sul. Espaço que resiste às derivas e as ameaças latentes advindas dos agrotóxicos pulverizados nas proximidades, apontando que outros caminhos para a produção de ervas, temperos, hortaliças e medicinas da natureza, assim como o sonho de uma alimentação saudável, são uma realidade não apenas possível, mas que já vem sendo construído na prática. Realidade que também se traduz na segunda visita do dia, realizada em outra propriedade de assentados da região, muito reconhecida pela produção de morangos orgânicos.

Nos locais os visitantes tiveram uma contextualização histórica sobre o processo de produção de alimentos orgânicos e agroecológicos, assim como das lutas cotidianas travadas pelos assentados. Houve a identificação dos problemas enfrentados, das estratégias adotadas e das implicações das pulverizações de agrotóxicos na vida das famílias afetadas. Também foram apresentadas as articulações com comunidades urbanas e laços estabelecidos com a sociedade local e regional.

O assentado e produtor de mudas Adir Bourscheid, um dos primeiros a relatar a deriva da pulverização de agrotóxicos na região de Santa Rita. Foto: Maiara Rauber

As famílias dos assentamentos de Reforma Agrária Itapuí, Santa Rita de Cássia II e Integração Gaúcha relembram os momentos que enfrentaram em 2020 e 2021, nas quais foram atingidos pela deriva de agrotóxicos pulverizados por aviões agrícolas utilizados por grandes produtores de arroz convencional do município de Nova Santa Rita. Os herbicidas afetaram a saúde de agricultores, moradores, culturas orgânicas, animais e agroecossistemas locais, como consequência de voos rasantes de aviões com agrotóxicos sobre e nas proximidades das áreas dos assentamentos, onde se concentram também algumas das áreas de maior produção de arroz agroecológico da América Latina.

Entre os diversos sentimentos presentes, esteve a tristeza pelas violações nos territórios, com impactos traduzidos em estiagens prolongadas, como a de 2020, no envenenamento das águas, e nas ameaças constantes das pulverizações. Foram evidenciados casos de câncer devido ao contato com o veneno, doenças de pele, alergias, bolhas na pele, adoecimento e enfermidades tantas.

A partilha de relatos sobre a realidade da vida no campo, com enfoque na produção agroecológica, contou com falas como a da companheira argentina Flavia Zenotigh, da organização Mujeres Rurales Campo Hardy y Zona. Ela abordou os impactos do modelo do agronegócio e dos agrotóxicos na vida das mulheres argentinas do campo, que muitas vezes passam por situações como abortos espontâneos pelo contato com o veneno, ou nascimento de crianças com doenças e deformações. Além de um cotidiano evidenciado pela perda de suas crianças, revelou ainda que o câncer alcança índices elevados em seu território, afetando drasticamente as companheiras. Contexto situado dentro da conivência do estado Argentino, que como expôs sua fala, adota políticas que dão as costas aos pequenos agricultores. “E a justiça não nos escuta”, acrescentou. Caso semelhante ao do Brasil, e até mesmo de Santa Rita, com fiscalização que em uma das denúncias feitas demorou 15 dias para ser realizada.

Flavia Zenotigh, da organização Mujeres Rurales Campo Hardy y Zona, abordou os impactos do modelo do agronegócio e dos agrotóxicos na vida das mulheres argentinas do campo na Argentina. Foto: Maiara Rauber

O assentado e produtor de mudas Adir Bourscheid, um dos primeiros a relatar a deriva da pulverização de agrotóxicos na região de Santa Rita, comentou: “Em 2015 fomos atingidos pela primeira vez e ninguém dizia que era veneno, era falado que era falta de água. Tinha veneno por cima de tudo, eu denunciei. Chegamos aqui e construímos o que construímos para persistir na terra, persistir em ir contra o veneno. É difícil fazer uma muda orgânica, mas não vamos parar, porque primeiro de tudo vem a saúde”.

Os impactos das derivas também se dão na vida econômica dos produtores, com perdas que podem comprometer a subsistência das famílias, a ida a feiras e o abastecimento com alimentos em regiões inteiras. Adir resgatou ainda a conexão política com a pauta, mencionando a importância do Movimento Sem Terra e das políticas do governo de Lula para que pudessem tocar o projeto do viveiro.

A questão, que como o próprio assentado e produtor orgânico de morangos, Olímpio Vodzik, ressaltou, vai para além da terra. Olympio, além de contar a história de sua propriedade e a importância da produção agroecológica, que garante inclusive a potabilidade das águas e o equilíbrio ecológico dos locais, destacou a importância dessa forma de produção na fertilidade do solo, na diversidade da vida. E o quanto desde que se assentou no local, numa relação afetuosa com o espaço e sem uso de venenos, foi possível perceber melhorias neste.

A questão, que como o próprio assentado e produtor orgânico de morangos, Olímpio Vodzik, ressaltou, vai para além da terra. Foto: Maiara Rauber

A violência permeia os relatos da resistência contra a pulverização de agrotóxicos no Brasil e na Argentina. Mas para além dela, a indignação, na coletividade e construção das lutas, se torna mobilização para seguir. O assentado do MST, João Vitor de Almeida,  insistiu na cooperação, articulação das lutas, e pressão dos de baixo ao poder público e à justiça para garantir o direito à terra, produção, trabalho e vida digna. “A última vez que nós ficamos muito sufocados era cinco horas da manhã e o avião estava passando. E às cinco da manhã é hora que ninguém fiscaliza. E se as famílias não reclamam, elas não se movimentam. O agronegócio vai corrompendo e vai criando mecanismos que tornam tudo possível novamente. Então a lei é importante, mas mais importante é a consciência e a mobilização das famílias, de que não é possível conviver com agroecologia e agronegócio”, relatou. Evidenciando a importância das alianças de luta, João complementou: “ Temos que juntar todas nossas forças possíveis para que a gente possa produzir alimentos saudáveis, cuidar do ambiente, da terra e do nosso trabalho. E é isso que temos feito nos últimos anos, enfrentando todas as dificuldades possíveis. E o que estamos propondo, diante de todas as dificuldades que enfrentamos é que nós precisamos ampliar essa relação para um processo de luta maior a partir das comunidades locais. Porque uma árvore não se planta de cima para baixo, e nós temos que produzir a luta de baixo para cima”.

Encontro na Assembleia Legislativa apresenta reinvindicações das lutas e proposições para frear o agronegócio

No segundo dia (24) do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o debate da temática, desta vez aberto ao público, teve sequência na Assembleia Legislativa do RS. Lá, trouxe reflexões a nível de América Latina, de Brasil, mas também abordou informações mais específicas dos casos ocorridos em Nova Santa Rita e Eldorado do Sul, assim como em Santa Fé (AR).

Carlos Manessi, da Multisectorial Paren de Fumigarnos (AR), explanou sobre a realidade Argentina. “As condições são as mesmas, temos agora na Argentina  o presidente Alberto Ángel Fernández ,respaldado pelo CEO da Syngenta, principal promotora desse modelo que temos agora em presidência. Falo para que tenham ampla ideia. Manessi acrescentou ainda que em Santa Fé há 20 milhões de hectares cultivados com soja: “Na nossa província, local da qual venho, temos três milhões e meio de hectares, 70% do nosso território está coberto com soja. Isso corresponde a 70% das terras cultivadas. É muitíssimo. É monocultura, monocultivo demais. Demais”, situou.

Em sua fala, abordou os casos de inundações, secas, contaminação de rios e desmontes decorrentes do modelo do agronegócio, diretamente relacionado ao uso de agrotóxicos e transgênicos. “Santa Fé perdeu 50% da colheita. Uma lagoa com 20km de peixes mortos pela seca em grande lagoa que temos. São impactos tremendos que estamos sofrendo”, contou, estabelecendo um paralelo com os impactos na saúde coletiva.  “Os impactos na saúde são muito grandes e não podemos seguir permitindo que nossos vizinhos sofram o que sofrem agora. Então a nossa ideia na Pare de Fumigarnos e esse coletivos de organizações é, para começar, garantir mil metros livres de fumigação… Não podemos permitir mais isso tudo. Vocês no Brasil, nós na Argentina, e paraguaios, uruguaios e bolivianos”.

Manessi também refletiu sobre a importância desse intercâmbio de informações entre organizações e movimentos de luta, inclusive como ação estratégica para frear a emergência climática: “Somos parte do ambiente, a cadeia do sistema agroindustrial é responsável por quase de metade dos gases de efeito estufa de efeito global. A mudança climática que presenciamos e sofremos está fortemente influenciada por esse modelo de produção agroindustrial. Esse sistema de produção agrária com toda cadeia de valor produz mais de 50% por cento dos gases de efeito estufa que nos leva à mudança climática”.

Somando nessa fala, Gabriel Adrian, do Instituto de Saúde Socioambiental da Universidade Nacional de Rosário (AR), elucidou que as articulações de luta reconhecem a necessidade de transformar o modelo do agronegócio, que gera doenças, mortes e consequências socioambientais nefastas. “Nesse século enfrentamos alguns desafios na saúde coletiva que tem a ver com aquecimento global, com surgimento de futuras pandemias. O modelo agroindustrial gera condições para que possam emergir novos microrganismos com potencial pandêmico, com a forma que são criados industrialmente os animais”, explicou, contextualizando que hoje vivemos em ambientes repletos de substâncias tóxicas como nunca ocorreu em outro momento da história. “Frente a todas essas ameaças, o que os companheiros querem reivindicar não se trata de nada mais que uma forma de produzir, um modo de vida.  Entendemos que os modos de vida agroecológicos são reivindicados porque são os modos de vida que nos permitem enfrentar todas essas ameaças e desafios”, sintetizou.

Adrian defendeu ainda que os sistemas agroecológicos são resilientes,  capazes de captar a sociobiodiversidade: “Frente a possibilidade de sofrimento de pandemias, os sistemas agroecológicos são os sistemas que defendem a imunidade coletiva, de toda sociedade. Contra a carga tóxica que há no ambiente, na água, no solo, no ar, os sistema agroecológicos são os que nos permitem recuperar os territórios para vivermos de modo saudável”, demarcou. Em sua exposição, reconheceu a importância da trajetória construída nas lutas, mas questionou quais compromissos  devem ser assumidos desde o setor da saúde para estar à altura histórica do momento em que estamos vivendo. “Por mais que tenhamos ideias e linhas de trabalho, é necessário recuperar desde as vivências que têm as comunidades e povos. É preciso transformar o sistema de saúde atual em um sistema capaz de produzir saúde”, comentou.

Adalberto Martins, da direção nacional do MST, apresentou em dados a problemática do agronegócio em nosso país, relacionando ao caso argentino. Evidenciou que o Brasil é o maior consumidor de veneno,  assinalando  que grande proporção dos agrotóxicos consumidos aqui são proibidos em seus países de origem.  “No Brasil, nas nossas lavouras temporárias que deveriam ser produção de alimentos, estão destinados em três cultivos: soja, milho e cana. Falamos de cerca de 40 milhões de hectares de soja, outros 22 milhões de milho, nove milhões de cana..  Isso implica para nós uma imensa concentração de riqueza, uma imensa concentração de terra, uma imensa concentração de insumos, e nesse caso os agrotóxicos saltam aos olhos no caso brasileiro. Nós somos o maior consumidor de veneno do mundo”, anunciou.

Adalberto Martins, da direção nacional do MST, apresentou em dados a problemática do agronegócio em nosso país, relacionando ao caso argentino. Foto: Maiara Rauber

A advogada e ouvidora da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Marina Dermmam destacou em sua fala o descaso do poder público em relação a fiscalização de crimes vinculados à agrotóxicos, mencionando a relevância do trabalho jurídico realizado para ajudar as famílias atingidas por pulverização aérea de agrotóxicos em Nova Santa Rita. “Os agrotóxicos podem violar uma série de direitos humanos, em especial os direitos que chamamos de DHESCAs (Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais). A gente tem uma série de legislações muito protetivas aqui no Brasil, especialmente que surgiram na década de 80 e 90: o nosso plano nacional de meio ambiente, a política nacional de meio ambiente, leis de crimes ambientais, de fato são muito protetivas, mesmo no que teve em desregulamentação no último momento que vivemos. Mas é um grande desafio quando vamos no sistema de justiça procurar responsabilidade”, mencionou. Marina manifestou ainda a importância dos polígonos de exclusão, locais em que a pulverização de agrotóxicos deve ser proibida.

Acordo Mercosul-União Europeia: acordo comercial sem participação dos afetados intensifica projeto neocolonial de superexploração dos povos e territórios no Sul Global

Para além das lutas cotidianas nas bases dos territórios, abordadas nos encontros do “Povos contra agrotóxicos na República Sojeira”, foi dimensionada como estas se travam dentro da geopolítica global. Na correlação de forças entre centro e periferia do sistema capitalista, países embobrecidos por esta economia hegemônica, como os da América Latina, são grifados pela violenta situação de dependência escancarada no modelo primário agroexportador do agronegócio. Modelo que privilegia o desenvolvimento dos países colonizadores, como os membros da União Europeia, a partir do subdesenvolvimento e superexploração do Sul Global.

Na prática, um acordo que intensifica o racismo ambiental, o ecocídio, a mercantilização da natureza e o genocídio dos povos indígenas, quilombolas,  ribeirinhos, tradicionais, campesinos e das periferias, que são os mais afetados pela emergência climática. Emergência essa causada pelo capitalismo e diretamente fomentada pelo agronegócio, ainda mais tendo em vista que o maior motivo de emissões de gases poluentes da atmosfera no Brasil é a alteração de uso de solos, via desmatamento para a ampliação da fronteira agrícola.

Exemplos que escancaram essa realidade são acordos como a Alca, barrado pelas lutas anos atrás. Caso que a assentada do MST e atingida pela pulverização de agrotóxicos, Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula.

Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula. Foto: Maiara Rauber

Logo, na luta contra a exploração dos corpos, territórios e da natureza na América Latina, este acordo é mais um ponto a ser considerado. Ele se relaciona diretamente com o avanço do agronegócio, que traz o uso de agrotóxicos que poluem águas, solos, afetam a saúde e integram um modelo de produção desigual. Graciela abordou essa situação de dependência econômica prolongada pelo Acordo, assim como o uso de agrotóxicos como armas químicas a qual estão submetidas as comunidades. O Acordo Mercosul-União Europeia a maioria das pessoas  desconhece. Quem conhece um pouco, e um pouco porque nem sequer foi traduzido nas línguas dos países que supostamente estão envolvidos, sabe muito bem que é uma nova exploração dos nossos territórios.  É um aprofundamento da exploração do sistema capitalista nos nossos territórios e nos nossos corpos. E isso significa que a fronteira da soja, a república unida da soja como falava a Syngenta, vai querer se expandir muito além. E isso vai acontecer com todas as monoculturas se nós não paramos, não conversamos e dizemos para esse novo governo que não queremos mais exploração nos nossos territórios”, situou Graciela quanto a necessidade de incidência das lutas neste Acordo.

Encontros fortalecem as alianças entre movimentos e organizações que assumem o compromisso no processo de conscientização da sociedade da América Latina

Leonardo Melgarejo, do Movimento Ciência Cidadã, explicou a importância dessa atividade multi-institucional que envolveu ativistas que lutam contra o agrotóxicos na América Latina, e contou com uma comitiva de quatro instituições da Argentina. “Nós discutimos um fato básico, temos doenças que são as mesmas, que afetam as famílias de todos os países da América Latina, que são causadas por agrotóxicos que são os mesmos comercializados com instituições que são as mesmas. Precisamos estabelecer uma forma de defesa conjunta para atuarmos de uma mesma maneira e não isoladamente, para atuarmos conjuntamente contra este problema que se associa aos avanços das lavouras transgênicas, das lavouras geneticamente modificadas tolerantes agrotóxicos que estão inundando os nossos territórios”, declarou.

Foi concluído no final do debate a importância de superar processos de alienação da sociedade de todos os países da América Latina, pois segundo Melgarejo a água que habita, que dá vida aos territórios da América Latina está sendo contaminada de maneira irreversível sendo que essa água faz parte dos organismos, das crianças, idosos, e também nos rios, lagos e aquíferos. “Uma maneira de tirar esse veneno dos espaços é evitando que ele chegue lá. Para isso temos que estabelecer mecanismos de comunicação que ajudem a sociedade a tomar consciência do problema que está em andamento e esses mecanismos exigem que nós pautamos ações em comum em conjunto nos vários espaços ao mesmo tempo”, reforçou o integrante do MCC.

Um dos exemplos citados por Melgarejo é o documento produzido pelas famílias assentadas de Nova Santa Rita, o qual conta a sua história e as estratégias que vem desenvolvendo para estabelecer essas alianças com as populações urbanas. Para fortalecer o documento estão captando assinaturas de adesão para levar adiante a sociedade do que acontece aqui no Rio Grande do Sul e que por extensão é o que acontece em todo o conjunto da América Latina.

Por fim, Melgarejo encarou o encontro positivamente, ao destacar a relação estabelecida com companheiros de lugares diferentes da América Latina. E novas etapas dessa luta conjunta já estão previstas. Segundo Leonardo, em junho deste ano haverá um momento na Universidade de Rosário, na Argentina, durante o Congresso de Saúde Coletiva e Saúde Ambiental. Outro encontro será realizado em novembro na cidade do Rio de Janeiro, no Congresso Brasileiro de Agroecologia (ABA).

“Nesse meio tempo nós temos um compromisso de apoiar as instituições que trabalham nessa linha e ajudar a proteger esses ativistas que estão envolvidos com essas ações de proteção, pois eles são perseguidos, discriminados e ameaçados. Devemos construir gradativamente esse processo de conscientização da sociedade da América Latina, e tomar medidas em conjunto para superar essa crise”, finalizou Leonardo Melgarejo.

Acesse o documento na integra.

Texto por Maiara Rauber e Carolina Colorio Reck

Confira alguns dos registros das atividades na nossa galeria de fotos: 

 

Créditos: Carolina C.

Não foi possível estar presente? Confira a transmissão ao vivo  da atividade na Assembleia Legislativa, que conta com apresentação da Carta dos atingidos pela deriva de agrotóxicos e debate internacionalista, da sociedade civil, movimentos e organizações sobre a pauta

Transmissão ao vivo

__________________________________________________________

Saiba mais sobre a luta contra o Acordo Mercosul- União Europeia na matéria “Delegação brasileira faz Jornada na Europa para denunciar os impactos do Acordo Mercosul-União Europeia”

E aqui você confere  o posicionamento da Frente Brasileira Contra o Acordo Mercosul-UE, que foi apresentada ano passado no Parlamento Europeu 

O que há por trás do termo natureza positiva na Cúpula de Biodiversidade, COP15?

Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas, que assegurem que o mundo volte a viver dentro dos limites planetários. 

Imagem de David F. Sabadell

A biodiversidade está em crise em todo o planeta. O número de espécies, e de indivíduos dentro das próprias espécies, diminuiu de forma retumbante nas últimas décadas, e a comunidade científica adverte que nos próximos anos podemos perder um milhão a mais de espécies. Para quem está seguindo o tema de perto é mais evidente que essa crise da biodiversidade é, na verdade, uma faceta a mais da crise sistêmica, causada pelo modelo econômico atual e pelo mantra do crescimento infinito. 

O Convênio sobre a Diversidade Biológica (CBD nas siglas em inglês) iniciou um processo para estabelecer um novo Marco Mundial da Biodiversidade durante a Conferência das Partes das Nações Unidas no ano de 2018, um encontro em que muitas das nações participantes se comprometeram a respaldar um marco para a “mudança transformadora” elaborado pela comunidade científica. Aí então, se abrigava a esperança de que essa decisão fosse uma oportunidade real para mudar o modelo econômico e proteger a biodiversidade. Frente a essa premissa, escrevi para um bom número de amigas, amigos e ativistas ecologistas de todo o mundo para lhes dizer: “você tem que participar desse processo, vai ser transformador”. Enquanto o Convênio sobre a Diversidade Biológica fingia escutar as necessidades da sociedade civil e dos povos indígenas na primeira ronda de consultas, quando veio a luz o primeiro rascunho, tomei um duro golpe: as medidas que poderiam transformar verdadeiramente o sistema econômico que minava a biodiversidade – tais como normas/políticas rígidas e coordenadas para minimizar o dano ambiental – não tinham nenhuma possibilidade de êxito. 

O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses danos a longo prazo

Por sua vez, nos demos conta rapidamente de que a participação das grandes empresas nas discussões estava obstruindo qualquer avanço, tal como acaba de demonstrar um novo estudo da Amigos da Terra Internacional. Inclusive empresas criminosas como BP, responsável pelo derramamento de petroleiro de Deepwater Horizon em 2010, ou a Vale, que envenenou centenas de quilômetros de rios com rejeitos tóxicos de suas minas diante do rompimento de duas represas de rejeitos no Brasil. Grandes contaminantes como estas empresas criam coalizões que se apresentam como ‘verdes“ ou “sustentáveis”. Porém, nas salas de negociação, com as portas fechadas,  advogam por medidas voluntárias e de maquiagem verde que simulam uma regulação verdadeira. Está evidente que entendem que qualquer medida eficaz frente a perda de biodiversidade os prejudica e constitui um obstáculo para suas ganâncias.

Durante anos temos visto como os estados participantes e os altos funcionários da ONU recebem de braços abertos essas coalizões empresariais e suas propostas. Isso faz com que os resultados deste convênio- chave sobre a biodiversidade – e as políticas que vão reger a próxima década – estejam repletos de propostas de lavagem verde. Os conceitos de “Natureza positiva” e “soluções baseadas na natureza” são algumas dessas medidas, que colocam em perigo as verdadeiras soluções da crise urgente da biodiversidade. 

O conceito de “Natureza positiva” ou “positivo para a natureza” pode soar bem, mas sua definição é muito confusa. O termo natureza pode ser uma referência a políticas que nada tem a ver com a biodiversidade e “positivo” é, inclusive, mais ambíguo 

Ainda que possa parecer que implique em algo bom, na realidade gera um resultado duvidoso, se seguem destruindo ecossistemas e os processos de restauração são questionáveis.  O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses planos a longo prazo. O que esperam aqueles que propõem o conceito de “Natureza positiva” é que no ano de 2030, o resultado possa ser ligeiramente positivo. Porém, quando dimensiono a perda de biodiversidade que vi ao longo da minha vida, fica evidente que não podemos permitir mais perdas. 

Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade. 

Tanto o conceito de “natureza positiva” quanto o de “soluções baseadas na natureza”, o SBN, se baseiam em compensar, sejam as emissões atuais de CO2 ou os ecossistemas que querem destruir, o que supõe que um tipo de ecossistema possa ser compensado com outros, sem levar em conta a sua capacidade de absorção de CO2, a complexidade de organismos que existe em cada ecossistema, o caráter único de cada espécie ou o território sagrado para os povos indígenas. Tal compensação é uma “solução” para as empresas que querem manter seus benefícios e seguir minando a biodiversidade com a desculpa de que sua destruição é sustentável porque se compensará em outro lugar. O conceito não só é totalmente errôneo, como não é realista. Na realidade, compensar dessa forma requer grandes extensões de terras para capturar carbono, que excedem a superfície de terras disponíveis a nível mundial. 

Permitir a compensação de emissões dá para as empresas um passe livre para seguir arrasando o meio ambiente apesar da emergência climática e da perda exacerbada de biodiversidade. Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade. Reservar terras para compensar emissões de carbono também compete com a demanda de terras de cultivo do agronegócio.  

Porém, alguns poucos projetos pontuais de soluções baseadas na natureza que incluem práticas agroecológicas e a participação de Povos Indígenas e comunidades locais são apresentados em folhetos atrativos, em todas as cores, e afirmam falsamente que as soluções baseadas na natureza representam uma mudança de significado para o clima e a biodiversidade. 

Ao mesmo tempo, ambos conceitos empresariais representam uma grande carga para os Povos Indígenas e para as comunidades locais. Muitos projetos de compensação acontecem em suas terras e frequentemente os expulsam de seus territórios. As empresas tendem a afirmar que o uso da terra feito pelas comunidades nativas prejudica a biodiversidade, ainda que seja demonstrado o contrário. Cerca de 80% do remanescente de biodiversidade terrestre se preservou graças aos povos indígenas e comunidades locais, apesar das violações de seus direitos e o assassinato de defensores e defensoras ambientais. 

Embora a destruição de ecossistemas faça parte de uma crise mundial que temos que resolver, não é apenas uma questão técnica, como também de justiça. Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas que garanta que o mundo volte a viver dentro de limites planetários. As empresas têm que ser submetidas a uma regulamentação rigorosa, ao invés de ser permitido que criem as suas próprias medidas para evitarem as responsabilidades.  Mas, antes de qualquer coisa, é preciso proteção aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais, que são os verdadeiros guardiões que protegem a biodiversidade. 

*Artigo de opinião de Nele Marien, Coordenadora do Programa Bosques e Biodiversidade da Amigos da Terra Internacional. Publicado originalmente no site El Salto, no dia 14 de dezembro, em: www.elsaltodiario.com/opinion/cumbre-de-biodiversidad-cop15 

 

Justiça Ambiental: diálogos necessários na agenda da transição

Lula na COP 27, no Egito, com lideranças de movimentos populares do Brasil – Foto: Ricardo Stuckert

Durante os últimos quatros anos de governo, os criminosos ambientais tiveram um verdadeiro regime de “passada da boiada”. O orçamento da preservação ambiental foi reduzido drasticamente, os órgãos fiscalizatórios foram completamente desestruturados, o país praticamente parou de produzir dados sobre desmatamento e, no Congresso, projetos de lei escandalosos avançaram para o Senado.

Tais projetos de lei estão paralisados na Casa, que é presidida por Rodrigo Pacheco (PSD). Dentre eles, constam a mudança no licenciamento ambiental para praticamente extingui-lo (PL nº. 3729/2004) e a tão defendida, pelo bolsonarismo, regularização da grilagem de terras públicas (PL nº. 2633/2020 e PL nº. 510/2021). Ainda, a liberação da mineração em terras indígenas, além de outras formas de intervenção nos territórios originários previstas no PL nº. 191/2020. E também, as alterações no regime de liberação dos agrotóxicos (PL nº. 1459/2022), conhecido como o Pacote do Veneno.

Senadores e deputadas e deputados progressistas, que compõem a Frente Parlamentar Ambientalista, têm buscado empreender esforços para segurar o “avanço da boiada”. Mas é preciso atenção e mobilização social para garantir que este pacote de maldades não seja aprovado nos dias que ainda restam do Governo Bolsonaro. A pressão dos derrotados por aprovar mais retrocessos frente ao desespero da perda do poder e o oportunismo político criado no desvio de atenção para trancamento de estradas e acampamentos em quartéis são um caldeirão ainda em ebulição. Portanto, em meio às comemorações da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, que nos traz de volta o direito de sonhar e fazer a luta real pela reconstrução do país, é preciso seguirmos atentas e fortes.

O problema e as soluções na mão da equipe de transição

Talvez como nunca antes, as questões ambientais pautam as agendas governamentais. As mudanças climáticas já são permanentes e sentidas pela população em seu cotidiano. Os desastres ambientais mais que triplicaram nos últimos anos. A destruição da Amazônia e do Cerrado foi vista em todo o mundo. Não será mais possível aos governos progressistas investir num modelo de desenvolvimento cunhado no avanço da exportação de commodities. É precisamente o avanço do extrativismo e da fronteira agrícola que destrói os ecossistemas e os povos que os habitam e cuidam. A ferida aberta e pulsante colonial, precisará ser enfrentada.

É diante deste cenário que a equipe de transição terá o desafio de construir a passagem do Governo Bolsonaro para a efetivação das ousadas propostas de campanha de Lula. Em seu plano de governo, construído com aliança programática com Marina Silva, encontra-se o combate ao desmatamento e a conservação de todos os biomas. Apresenta-se ainda o compromisso de cumprir as metas do Acordo de Paris, com políticas para redução das emissões de gases de efeito estufa, com investimento em sustentabilidade produtiva. Em diálogo com tais propostas, estão a retomada do Ministério da Pesca, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a promessa de titulação dos territórios quilombolas.

Diferentemente de outros governos, o tema da política ambiental aparece como transversal a toda a política de governo, além de indissociável dos esforços de combate à fome e às desigualdades, com centralidade também na política econômica. Reflete, portanto, uma consciência histórica e um entendimento inédito para um governante, ainda que no plano das ideias, de que a Justiça Ambiental e Climática não o é sem justiça social, econômica e de gênero. Bem como não se dissocia do enfrentamento a todas as formas de opressão, de classe, raça, identidade ou orientação sexual.

Geraldo Alckmin ainda não anunciou os integrantes da equipe de transição ambiental. No entanto, já solicitou dados do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. A despeito da demora, algumas movimentações apontam para a conformação de uma equipe promissora. Durante a COP 27 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), que aconteceu recentemente no Egito, a deputada Joênia Wapixana; as recém eleitas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá; as ex-ministras Marina Silva e Izabella Teixeira e o Senador Randolfe Rodrigues estiveram representando interesses do futuro governo.

Espera-se agora que o diálogo entre as políticas de combate à fome e as questões ambientais avance também em direção a uma convergência com as políticas de reparação histórica racial e territorial. Essas são questões ainda em aberto a serem respondidas pela equipe de transição com propostas concretas. No entanto, é importante destacar que, ao lado dos desafios, existem construções históricas dos movimentos populares no Brasil que podem facilitar nessa elaboração.

Neste sentido, no debate sobre os impactos à saúde e ao meio ambiente decorrentes do uso de agrotóxicos, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida  possui uma sistematização de dados, estudos e zonas de afetação que precisam de atenção e ação protetiva imediata. No campo da transição agroecológica, os movimentos da Via Campesina no Brasil são exemplo para o mundo em investimento na construção do paradigma da soberania alimentar e de políticas de incentivo à produção e comercialização saudável, justa, sustentável, solidária e feminista de alimentos, que precisa se expandir. O estabelecimento de políticas contra as queimadas e desmatamento, especialmente na responsabilização do agronegócio, já encontra inúmeras propostas feitas pela Campanha em Defesa do Cerrado e, do mesmo modo, a liderança dos povos originários, na denúncia da cumplicidade das corporações no desmatamento, e de um modo geral, nos efeitos das mudanças climáticas na Amazônia brasileira. Há ainda propostas de revisão de toda a regulamentação do setor minerário no país, paralisando especialmente projetos de lei que flexibilizam o licenciamento e autorizam o garimpo de larga escala, retomando políticas de estruturação para órgãos ambientais e agências reguladoras.

E finalmente, falta colocar no topo da lista das prioridades o combate ao racismo ambiental, marcado na pele do povo preto, pobre e periférico que se compreende também na cartografia das desigualdades e das injustiças climáticas nas cidades do Brasil. Pensar a organização das cidades, na democratização do acesso à moradia, trabalho e, também, de uma transição ecológica, dentro da retomada do Ministério das Cidades e da Plataforma de Lutas pelo Direito à Cidade.

“Não existem dois planetas Terra”

O Brasil definitivamente voltou à cena ambiental internacional quando o presidente Lula foi convidado a fazer parte da COP 27 sem ainda ter tomado posse. Em seu discurso, destacou o momento de alerta que o planeta vive: “São tempos difíceis. Mas foi nos tempos difíceis e de crise que a humanidade sempre encontrou forças para enfrentar e superar desafios. Precisamos de mais confiança e determinação. Precisamos de mais liderança para reverter a escalada do aquecimento. Os acordos já finalizados têm que sair do papel”.

A COP 27 estava sendo esperada como a “COP da implementação”. Após firmar todo o documento de regras do Acordo de Paris em Glasgow, na Escócia, em 2021, esperava-se que os Estados viessem para negociar o financiamento climático e mecanismos de compensação por perdas e danos. No entanto, pouco se avançou na criação do Fundo Verde para o Clima e, portanto, não há qualquer reconhecimento consequente das responsabilidades históricas dos países desenvolvidos quanto ao seu papel como poluidores, nem tampouco solidariedade real frente ao reconhecimento dos impactos diferenciados da crise climática ao Sul global.

As apostas continuam sendo no papel do setor privado para a transição verde, sem importar quais corporações ganham com isso e onde estão os povos atingidos pela indústria extrativa, que sustentam as chamadas energias limpas, como o Hidrogênio “Verde”. Também, no campo da redução das emissões por desmatamento, o grupo Carta de Belém lançou a Carta se perguntando “juntos com quem e para que?” se vai a COP. As entidades criticam os investimentos nas soluções baseadas na natureza (NBS), que na prática são “falsas soluções” por criarem “mercados verdes” e se construírem em mais uma ferramenta da especulação financeira, ou mesmo pelas soluções apresentadas envolverem a mercantilização das florestas, do ar, da biodiversidade e dos saberes populares, onerando ainda mais povos indígenas, povos quilombolas e comunidades tradicionais, bem como ignorando completamente o passivo histórico de destruição ambiental e a violação de direitos nas áreas já degradadas. Se não avançarmos para pensar soluções na construção de políticas públicas, dentro de um sistema de governança de Estados, transparente e democrático, iremos continuar reproduzindo injustiças ambientais, racismo e a dívida climática.

Na mesma semana da COP27, uma delegação de ambientalistas e lutadores/as sociais esteve no parlamento europeu alertando para os riscos do avanço do Acordo Mercosul- UE (União Europeia). Argumentaram que há o risco do aumento da fronteira agrícola para atender ao mercado de commodities, com destaque para a expansão da exportação da soja, do etanol e da carne e para a intensificação da mineração. De igual modo, projeta-se uma maior importação brasileira de agrotóxicos, a maioria deles proibidos nos seus países de origem. O novo governo eleito já declarou intenção de reabrir as negociações do Acordo em condições de maior respeito, com preocupações destacadas quanto à restrição para  a reindustrialização do país e das compras públicas, área chave para as políticas sociais e de geração de emprego. A UE, mesmo tendo aparentemente ouvido a sociedade civil, anunciou que espera apresentar “diretamente ao governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, suas demandas de compromissos adicionais do Mercosul na área ambiental”. Apesar do impecável e impactante discurso de Lula na COP, parece que o outro lado do Atlântico ainda não captou a mensagem de que o Brasil voltou e vai lutar contra as desigualdades e assimetrias coloniais.

Para buscar o envolvimento com todos os setores de modo transversal, a ex-ministra Marina Silva defende a criação de um mecanismo de autoridade nacional para fiscalizar os compromissos climáticos assumidos e reduzir os riscos climáticos. O novo governo tem realizado diálogos para retomada do Fundo Amazônia e a reestruturação do Programa de Desmatamento (Prodes) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Resta saber até onde chega a influência do campo popular da justiça ambiental na discussão de pontos da agenda da política externa. Apesar de parecerem temas aparentemente distantes, como a primazia dos direitos humanos e dos povos sobre os interesses das empresas transnacionais e do comércio internacional, a retomada das relações de integração econômica e solidária entre os povos da América Latina e do Caribe não devem estar apartados das ações afirmativas de descolonialidade e de combate ao racismo, dívidas sociais que são reconhecidas e caras para o nosso novamente eleito presidente operário.

As vozes dos povos na transição e no futuro governo

Dia 20 de Novembro foi o Dia da Consciência Negra no país, e não podemos deixar de destacar o papel das comunidades quilombolas, indígenas e populações racializadas no Brasil para a luta da “floresta em pé”. Assim como reconhecer a sobrecarga dos danos ambientais sobre seus corpos e territórios. Quando ouvimos o presidente Lula, em sua passagem pelo Egito, abordando as questões ambientais atreladas ao combate às desigualdades sociais, cercado pela mística e presença dos povos indígenas, presenciamos o semear de um novo caminho rumo à Justiça Ambiental em sua integralidade neste país.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato RS em https://www.brasildefators.com.br/2022/11/23/justica-ambiental-dialogos-necessarios-na-agenda-da-transicao 

COP 27 encerra com acordo sobre fundo de ‘perdas e danos’, mas sem uma definição formal para reduzir o uso de combustível fóssil

Apoio financeiro para países em desenvolvimento impactados pelas mudanças climáticas é considerado acordo histórico, mas contém cascas de banana.

As divergências entre países para completar o texto final das negociações impediram que a 27ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas, em Sharm El-Sheikh, no Egito, acabasse na sexta-feira (18), data prevista para o encerramento do encontro. A plenária final ficou para a manhã de domingo, dia 20. A dificuldade para definir acordos tem feito com que as discussões sobre o regime climático avancem para além dos dias programados para o evento, e já se tornou uma “tradição” das Conferências. Em 2022, estiveram no centro dos debates agendas há muito reivindicadas pelos países do Sul global, os que menos contribuíram historicamente para as mudanças climáticas e os que mais são afetados por elas: Financiamento, Adaptação, Perdas e Danos. A divergência está em quem paga a conta pelas mudanças climáticas, isto é, os países ricos maiores causadores do problema, ou aqueles que já estão sofrendo com os impactos das mudanças climáticas.

O texto final da COP 27 foi divulgado com progresso sobre perdas e danos. Além de a pauta ter sido incorporada à agenda do evento (uma luta até o último minuto), as nações com altas emissões concordaram com a criação de um fundo de financiamento para perdas e danos. A decisão, considerada histórica, foi recebida sob aplausos na sala de conferências. No entanto, o evento foi encerrado sem informar qual será o valor destinado ao fundo, nem as metodologias que serão usadas para captar recursos e operacionalizar o fundo, o que deve acontecer no próximo ano, quando deve ser apresentada a regulamentação do Fundo. O que, sim, já sabemos é que o documento final prevê um papel especial para a iniciativa privada e para a filantropia climática, em uma articulação com os bancos multilaterais de desenvolvimento e grandes investidores institucionais.

A cooperação oficial internacional para o desenvolvimento, já há muitos anos cambaleante, torna-se definitivamente fora de moda. No horizonte, já não mais estão os empréstimos entre países a juros baixíssimos, muito aquém dos praticados no mercado de capitais, ou mesmo a fundo perdido. Estamos diante de uma transformação da macrofinança global, por meio da qual o desenvolvimento deve se tornar lucrativo para quem o financia. O esforço de reconstrução de países vitimados por eventos climáticos extremos fica refém do sistema financeiro, uma vez que essa agenda histórica (e tão demandada pelos países em desenvolvimento) vai sendo descaracterizada pela entrada de empresas seguradoras e dos grandes investidores cujo interesse está no lucro e não na vida das pessoas. Por isso, fica ambígua a designação de quais países irão realizar repasses para este fundo, se farão esses aportes ou se vão transferir para a iniciativa privada essa responsabilidade, e qual o montante, sinalizando que a definição pode ficar apenas para a COP 28, que ocorrerá em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Outro resultado importante das negociações foi a entrega do arcabouço geral para a implementação dos mercados de carbono, estabelecidos no art. 6 do Acordo de Paris. O grupo negociador conseguiu entregar resultados para os três parágrafos cruciais desse item da agenda: o 6.2, que estabelece os parâmetros para compensação de poluição entre os países por meio de “abordagens cooperativas”; 6.4, que trata dos antigos projetos de desenvolvimento limpo ou sustentável; e o 6.8, que aborda mecanismos de não-mercado. No primeiro item, causa estranheza a possibilidade de que os países definam como sigilosas as informações de compensação de poluição, ferindo o princípio de transparência e abrindo para possibilidades de dupla contagem; no segundo, permanece ambígua a relação entre os mecanismos 6.2 e 6.4, tal qual instituída pela figura da “autorização” necessária, outorgada pela autoridade pública, para o uso do crédito de carbono pelo mercado voluntário, favorecendo, assim, a maquiagem verde de governos e empresas; e, no terceiro item (6.8), a disputa entre a criação de uma plataforma para facilitar a correspondência entre demanda e oferta de meios de implementação (ou seja, financiamento, capacitação e transferência de tecnologia) ou de uma abordagem holística para o instrumento de não-mercado foi decidida em favor da primeira.

É importante ressaltar que tudo isso acontece em um contexto em que os governos aceleram a aprovação de regulações nacionais para os mercados de carbono, muitas vezes, sem escutar os sujeitos políticos mais vulneráveis a esse tipo de falsa solução climática. No Brasil, as florestas entraram para esse mercado, por meio do modelo de concessões, o que significa a contratação por parte do Estado brasileiro de empresas para realizar a gestão florestal. Vale lembrar dos programas já em andamento, como o Adote um Parque e o programa de estruturação de concessões de parques via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Já encontra-se em discussão no Congresso Nacional a aprovação de um projeto de lei que visa “desburocratizar” a concessão florestal no país, com isso, acelerando a transferência de terras da União para a administração privada, que poderá explorá-la economicamente, em particular, por meio de projetos de captura de carbono e serviços ambientais.

Durante a COP 27, o Grupo Carta de Belém, em conjunto com outras redes e movimentos sociais, lançou um posicionamento contrário à inclusão de florestas nos mercados de carbono, por entendermos que esse modelo de comercialização de créditos de poluição abre espaço para graves violações de direitos de povos indígenas, comunidades tradicionais e rurais, em uma conjuntura em que as instâncias de monitoramento e controle contra crimes ambientais foi desmontada pela gestão Bolsonaro-Salles-Leite.

Enquanto as florestas tropicais do mundo vão consolidando a sua posição como instrumentos da política de mitigação climática global por meio da lógica de compensações e net-zero, a posição contrária da comunidade internacional contra os combustíveis fósseis sofre retrocede a olhos vistos. A realização de uma COP no terceiro maior produtor de petróleo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), é símbolo da conjuntura em que vivemos. O documento final peca pela falta de ambição nas ações de mitigação e por não abordar a causa do aquecimento global de maneira significativa: eliminar gradualmente a indústria de combustíveis fósseis. Com a pressão de China e Índia para que os países ricos assumissem um maior compromisso com financiamento para os países em desenvolvimento, em troca, manteve-se a decisão fraca de Glasgow (COP 26).

Em vez de mudar a linguagem adotada naquele momento para uma mais ambiciosa em relação a transição para energias renováveis, o altamente poluente carvão seguiu ocupando a posição de “energia de transição” para diminuir (não eliminar) o uso de combustíveis fósseis. A questão é séria e, como viemos afirmando, o problema não será sanado enquanto seus causadores sentam à mesa para negociar quanto tempo ainda tem para estender seus lucros com uma “compensação” nos países do Sul global. Mais uma vez o distanciamento entre as reivindicações da sociedade civil organizada e as negociações torna a COP um espaço de convergência climática hermética para países e empresas poluidoras.

Já batemos a marca de trinta anos de regime climático e 27 COPs. Até hoje não houve um acordo formal para reduzir o uso de combustível fóssil no mundo. Enquanto isso, as emissões continuam a subir e a meta de limitar as temperaturas a 1,5°C segue distante.  A verdade é que o acordo final ficou aquém do que a emergência exige. A sociedade civil global ainda terá muito trabalho pela frente. Além de continuar pressionando pela eliminação do uso de combustíveis fósseis e a adoção de fontes renováveis de energia, com atenção aos princípios de uma transição justa, será necessário criar capacidades para disputar o novo vocabulário das finanças verdes que entra com tudo na disputa pelo direcionamento do regime climático global.

Uma transição justa precisa contar com a participação de trabalhadores e trabalhadoras e comunidades atingidas

Frente às dificuldades de avançar com uma transição de matriz energética, para enfim eliminar o uso de combustíveis fósseis, é essencial que seja elaborada como se dará a transição no mundo do trabalho, de modo a garantir uma transição justa para todos. O Acordo de Paris, de 2015, menciona o termo “transição justa” como um reconhecimento de que os governos precisam levar em consideração a força de trabalho durante o processo de transição para uma economia verde.

Entre outros pontos que merecem destaque no Plano de Implementação de Sharm el-Sheikh, se encontra o reconhecimento da necessidade do diálogo social significativo e eficaz para uma transição justa real através da participação das partes impactadas no processo de transição global, entre elas a força de trabalho. É preciso levar em conta que por trás dos números, há pessoas, que hoje desenvolvem trabalhos que poderão entrar em defasagem, mas que precisam ser incorporadas a este novo mundo do trabalho.

A transição justa tem sido a bandeira principal do movimento sindical nas negociações. O texto final ter incorporado a garantia da proteção social para mitigar os impactos do processo é um ganho importante para o mundo do trabalho, que já está sendo atingido pelas mudanças. Um desafio que se aponta agora é o de incorporar a transição justa nos planos nacionais, de forma cada vez mais explícita e com participação de trabalhadores e trabalhadoras e comunidades atingidas.

Artigo publicado originalmente no site do Grupo Carta de Belém, no dia 23 de novembro de 2022.  

plugins premium WordPress