As mudanças climáticas, os crimes corporativos e a injustiça ambiental

COP28 mantém a hipocrisia dos espaços multilaterais internacionais do clima. Enquanto Estados tentam redesenhar os Acordos de Paris, manipulando a contabilidade das reduções das emissões e a polêmica sobre o financiamento do clima, empresas transnacionais hegemonizam as discussões com as propostas de solução “verde”. Tais propostas envolvem investimentos do capital financeiro no uso de hidrogênio verde, em geração de energia eólica e solar e em eletrificação de carros, todas respostas pensadas nos termos de uma economia extrativa com impactos desproporcionais no Sul Global, aprofundando desigualdades e injustiças ambientais.

Enquanto isso, o Brasil acumula muitas contradições ao seguir mantendo sua subordinação às empresas transnacionais. Na própria COP 28, a tenda Brasil, organizada pelo governo, com o lema “Brasil unido em sua diversidade a caminho do futuro sustentável”, contava com painéis das empresas Vale S.A e Braskem, duas mineradoras responsáveis pelos maiores crimes socioambientais do país. Além delas, o Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas),  mecanismo promotor da responsabilidade social corporativa, teve seu espaço na tenda. O que corporações conhecidas nacionalmente pela violação aos direitos humanos e ambientais dos povos, e o instrumento corporativo de “lavagem verde e social” têm para construir e agregar à nossa nação?

A Vale S.A, BHP Billiton Brasil Ltda. e Samarco Mineração S.A são responsáveis pelos rompimentos das barragens de Fundão, na cidade de Mariana, e Córrego do Feijão, em Brumadinho, ambas no estado de Minas Gerais – afora outras diversas barragens de rejeitos em risco de rompimento no país. Por anos, a empresa vinha sendo alertada pelos órgãos de fiscalização da necessidade de reforço da segurança das minas. Inclusive, especialistas apontam para o risco do uso de determinadas tecnologias no manejo do rejeito. Nenhuma das políticas corporativas conseguiu conter a destruição. E vale ressaltar que, nesses oito anos do desastre de Fundão, as vítimas seguem buscando indenização. O que os casos revelam é a reprodução de uma arquitetura da impunidade corporativa.

No caso da Braskem, a história se repete. Desde os anos 80, a sociedade civil e pesquisadores da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) alertam para as consequências da expansão da extração de sal-gema em Maceió, em Alagoas. Por décadas, a empresa extrai sal-gema, transformando o subsolo da cidade em várias crateras. Moradores da região atingidos denunciam rachaduras nas casas, cuja responsabilidade a empresa negava. Em 2018, quando ocorreu o terremoto na cidade, bairros vieram abaixo. A mineradora iniciou sua atividade instalando em um santuário ecológico estuarino; não havia dúvidas de que a destruição ambiental começava ali.

Importante destacar que os setores corporativos do agronegócio, mineração, construção civil, imobiliário e de energia têm flexibilizado a legislação. Temos tido eventos climáticos extremos resultantes das alterações do clima em função dos impactos gerados pelas corporações nos últimos séculos.  A diferença entre os crimes de Brumadinho, Mariana, Maceió e das enchentes na região de Maquiné e do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul; em Teresópolis, no Rio de Janeiro; em Santa Catarina e em Minas Gerais é o tempo. Alguns  demoram centenas de anos para recuperar, ainda que parcialmente, a qualidade de vida das pessoas e a integridade dos ecossistemas e outras dezenas; o certo é a impunidade dessas empresas e a violação dos direitos dos povos, que estão no plano de negócios. Não é acidente, é parte do plano. Sabiam que aconteceria e que o lucro seria maior em não fazer nada do que investir em soluções reais. Assim, a impunidade segue do lado das corporações e dos Estados capturados.

Quanto ao tema da energia, no regresso da COP28, o governo brasileiro, via ANP (Agência Nacional do Petróleo), decidiu disponibilizar em leilão 603 blocos para exploração de petróleo e gás, em regiões que incluem a afetação à Amazônia brasileira. O leilão de poços irá permitir que mais empresas transnacionais venham ao país determinar os rumos de nosso desenvolvimento e reduzindo, também, a capacidade do Estado em construir, com participação popular, uma política necessária de transição energética justa para a classe trabalhadora, incluindo perspectivas da justiça ambiental e do feminismo popular. Ao invés disso, mais destruição e impactos anunciados, na contramão de um movimento de redução dos combustíveis fósseis, que foi a tônica desta COP depois de 28 conferências realizadas desde 1992.

Movimentos populares e organizações feministas têm denunciado o avanço dos aerogeradores para produção de energia eólica no Nordeste e sua relação com a violência de gênero. No polo da Borborema, na Paraíba, a instalação de parques eólicos têm alterado toda a dinâmica de produção camponesa. No litoral do Ceará, a instalação de eólicas em alto mar atrapalha a produção pesqueira, afetando pescadores e ribeirinhos. Evidenciando a contradição entre o uso de soluções tecnológicas e a sua aplicação concreta, que segue causando conflitos socioambientais.

Não podemos deixar de mencionar o papel do Congresso Nacional. O Senado Federal, como alavanca da modernização conservadora no país, aprovou, ao final de novembro, o PL 1459/2022, que flexibiliza, ainda mais, a liberação de agrotóxicos no país. Apesar dos inúmeros estudos científicos, posicionamento de Conselhos e órgãos de classe, como CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), que alertam para as perdas da biodiversidade e do risco de aumento das doenças, como câncer, relacionadas ao uso intensivo de agrotóxicos no país. O Congresso aprova, e a Presidência tem dificuldade de veto.

Nesse cenário, observamos que as soluções para a crise climática são pensadas pelos mesmos agentes causadores delas: as grandes corporações. A história ambiental nos revela como a intensificação da destruição ambiental está relacionada ao avanço da industrialização capitalista, na promoção de um desenvolvimento desigual. No qual, países do Norte Global saíram na frente na corrida imperialista, destruindo comunidades, territórios, escravizando populações e colonizando a natureza, cujos efeitos profundos são sentidos pelas atuais gerações. São os países do Norte Global e organismos multilaterais que promovem a atuação das empresas transnacionais, facilitando seu processo de acumulação por dependência.

Desse modo, qualquer solução pensada nos termos atuais das relações sociais internacionais, e de sua base, as relações sociais de produção capitalista, são mecanismos para seguir mantendo a ordem de destruição socioambiental.

Seguimos nos desencontrando, enquanto promovemos um discurso internacional avançado, e não sabemos transcender as políticas internas desenvolvimentistas apoiadas pela burguesia nacional. Dessa forma, terminamos fazendo um grande pacto de mediocridade, concedendo continuamente nossa soberania às corporações.

É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis

Na construção de um Brasil novo, que seja o país do seu povo, não um país sustentável, mas um país ecológico e com justiça ambiental, é preciso aprender com as nossas práticas cotidianas, povos do campo, águas e florestas e, também, com as periferias das cidades, para manter a terra viva, suas culturas e  biomas,  onde estão as soluções para a crise climática. É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis. São as Terras Indígenas demarcadas, convivendo com outras relações de produção da vida no território, assim como as terras quilombolas, os territórios de povos e comunidades tradicionais.

A nossa história não permite aceitarmos que as corporações sejam soluções, um mundo dirigido pelo crescente poder corporativo que só tem nos levado às múltiplas  crises e aos desastres socioecológicos. Precisamos, com urgência, responsabilizar as corporações pelos seus crimes corporativos. São 37 anos de impunidade do empreendimento de sal-gema em Maceió; são séculos de impunidade das mineradoras e das grandes plantações transnacionais no solo brasileiro. Em face disso, a responsabilização das empresas e a regulação estatal do setor é fundamental. Por isso, a proposta do PL n.º 572/2022 deverá ser uma pauta prioritária dos povos para 2024.

Um Brasil livre e soberano, construindo um projeto político de libertação para si e para os povos da América Latina e Caribe, é a nossa urgência. Chega de falsas soluções! Chega de impunidade corporativa.

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em 21 de dezembro de 2022, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/21/as-mudancas-climaticas-os-crimes-corporativos-e-a-injustica-ambiental 

Missão de Monitoramento no Vale do Taquari é marcada por relatos que expõem série de violações

Comitiva de entidades visitou as cidades de Lajeado, Roca Sales e Arroio do Meio nos dias 27 e 28 de novembro

Após visita a três cidades gaúchas fortemente impactadas pelas enchentes no Vale do Taquari, que contou com conversa com pessoas afetadas, a Missão de Monitoramento de Direitos Humanos realizou uma audiência pública para ouvir moradores de regiões atingidas pelas enchentes. Uma série de denúncias evidenciou o descaso do poder público municipal e estadual. Encerrando as atividades, a Missão realizou, no dia 28, uma reunião com representante do governo federal, movimentos sociais e moradores. Convidadas, as prefeituras locais não compareceram, se isentando do diálogo.

Em audiência, moradores da região relataram as dificuldades enfrentadas após as enchentes que atingiram o estado – Foto: Carolina Colorio
Moradoras atingidas pelas enchentes reivindicam os seus direitos | Foto: Carolina Colorio

A roda de diálogo contou com a participação de representantes de variados entes sociais: Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST-RS), Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), Amigas da Terra Brasil, Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS, Conselho Estadual de Direitos Humanos, Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES), Defensoria Pública do RS (DPE-RS), Ouvidoria da DPE-RS,  Conselho Estadual do Direito da Mulher, deputados e representantes de mandatos, Fórum Permanente de Mobilidade Humana (FPMH) do RS, Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Ministério do Desenvolvimento Social, Organização Internacional para Migrações das Nações Unidas (ONU-OIM), sindicatos e outros movimentos sociais.

Presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, a deputada estadual Laura Sito (PT) abriu o encontro falando sobre a escuta realizada com moradores atingidos pelas enchentes nas cidades de Lajeado, Roca Sales e Arroio do Meio, respectivamente nos bairros Conservas, Centro e Navegantes.

A parlamentar também citou a audiência realizada no dia anterior, ressaltando que a Missão convidou representantes das prefeituras locais e autoridades, que não compareceram ao debate. “Foi muito emblemático porque convidamos todas as prefeituras da região para acompanharem a nossa ação e a audiência pública. Chamamos para reunião de hoje. Nos causou bastante estranheza o descaso das prefeituras de responderem a um chamado sobre situações muito mais ligadas à sua atuação cotidiana. A única prefeitura que esteve na audiência foi a de Arroio do Meio”, afirmou.

Segundo Laura, a escuta foi permeada por relatos que se assemelham e entrelaçam, especialmente no tocante a questões estruturais ligadas à saúde, política de aluguel social, casas provisórias, acesso limitado à água potável, aumento na conta de luz e uma série de humilhações. “A RGE e a Corsan não respeitaram acordos com a Defensoria Pública, e as contas de água e de luz das pessoas aumentaram”, denunciou, mencionando o acordo de isenção de cobrança.

Também chamou atenção para a dificuldade do manejo de lixos e dejetos nos municípios atingidos, além da preocupação com as zoonoses (doenças transmitidas por animais). Quanto à educação, destacou a questão das escolas afetadas, da falta de infraestrutura adequada e das crianças que não conseguem dar continuidade ao ano letivo. Pontuou ainda que é muito preocupante a questão dos imigrantes. Muitas vezes refugiados de seus países, vêm ao Brasil em busca de melhores condições de vida, mas se deparam mais uma vez com um cenário de violações de direitos, desamparo e com a condição de refugiados climáticos. Laura relatou que foi até embaixadas buscando diálogo.

Outra violação constantemente presente nos relatos da população foi quanto ao atendimento socioassistencial, via Centros de Referência em Assistência Social (CRAS). O serviço não tem dado conta, o que gera uma série de humilhações e exaustão em quem busca atendimento.

“Justiça para limpar essa lama” | Foto: Carolina C.

Assista a integra da audiência aqui

Na sequência, o coordenador do escritório do governo federal em Lajeado, secretário de Comunicação Institucional da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Emanuel Hassen de Jesus (conhecido como Maneco), fez um relato sobre as ações do governo federal no atendimento à crise das enchentes no estado. Começou sua fala evidenciando a necessidade de olhar para o meio ambiente. “Temos que recolocar esse tema na pauta. Meio Ambiente não é só cuidar do desmatamento da Amazônia. Cada um de nós, como cidadãos, temos que colocar esse tema no nosso dia a dia, o da sustentabilidade. Ou eventos extremos serão cada vez mais frequentes, causando tragédias.”

Ex-prefeito de Taquari, Maneco lembrou que o governo federal realizou duas visitas ao Rio Grande do Sul. Ele apontou que, na região, 99% dos anúncios da União se realizaram ou estão para se realizar. “Na educação o dinheiro está lá, faltando o município licitar. Demora para a pessoa enxergar o livro de volta, o computador, tem um processo até ser comprado. Mas o dinheiro está garantido e os municípios estão trabalhando para ele ser viabilizado. Mesma coisa com o Minha Casa Minha Vida. Vamos enxergar as casas quando elas forem construídas. Em Lajeado e Encantado a tendência é que em 30, 45 dias comece a construção. Dois municípios que tiveram portaria publicada. Algumas prefeituras são mais rápidas, outras mais devagares”, comentou.

Entre as ações do governo federal, destaca-se a criação do “Minha Casa Minha Vida Rural Calamidades”. De acordo com o secretário, até a sexta-feira passada (24) haviam 110 casas cadastradas na região. Em relação à construção de omradias, a União dividiu a responsabilidade: o município providencia as áreas e o governo do estado constroi as casas temporárias, até o governo federal fazer a moradia definitiva pelo Minha Casa Minha Vida.

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O secretário também afirmou que mais de 52 milhões foram destinados à Defesa Civil aos municípios, recursos para sotuaçoes como abrigo ou aluguel social. “O governo deu tudo que os municípios tinham direito, conforme número de pessoas desabrigadas.”

Na saúde, afirma que o repasse foi de 100% do que os municípios pediram. “Vieram R$ 49 milhões na região para recursos em hospitais e reequipar postos de saúde, R$ 29 milhões para a educação, e todos os municípios da região que requisitaram recursos para reequipar Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) receberam 100% do que pediram”, disse.

Quanto à agilidade no processo de atendimento à população, Maneco mencionou que uma casa pode demorar mais de ano e meio para ficar pronta e que os processos demoram. Salientou, ainda, que não é papel do governo federal fiscalizar.

“Não é culpa de ninguém, é de todo mundo. Não tinha legislação e programas para momentos como a gente tá vivendo, de uma sequência de tragédias no país inteiro. Temos enchentes no sul, seca na Amazônia, incêndio no Pantanal, todo dia, toda hora. O Brasil chegou a ter quase 30% dos municípios em estado de calamidade. Precisamos melhorar, porque a tendência é essas coisas seguirem acontecendo”, defendeu.

As cidades ainda estão cheias de entulhos das enchentes / Foto: Carolina Colorio

Moradores relatam preocupações 

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Arroio do Meio, Astor Klaus, ressaltou que os pequenos agricultores perdem muito com as enchentes. “Se perdeu muita produção de alimentos, que replantamos depois da primeira enchente. A segunda enchente veio e foi-se de novo o plantio”, contou, questionando qual recurso para este tipo de situação.

Diego Alexandre Dutra, atingido da cidade de Cruzeiro do Sul, pontuou que tanto o governo federal quanto o estadual mandam recursos, contudo ele não chega até a população. “Eu fiz sete cadastros mas em nenhum deles eu fui contemplado, porque não tenho Bolsa Família. Mas a enchente não pegou só aqueles de baixa renda, na extrema pobreza. Cruzeiro do Sul está esquecida. Dinheiro chega, mas falta organização e principalmente transparência: onde o recurso está sendo utilizado, como?”

Bairro Centro, em Roca Sales. Novembro, 2023. Foto: Carolina Colorio

De acordo com ele, em relação à assistência social havia só uma pessoa para fazer o cadastro. ”Filas e filas e filas, pessoal reclamando e ninguém atendido. Pedimos atenção especial do poder público do estado, do poder federal”, adicionou. Pai de três meninas, Diego conta que essa é a primeira enchente que ele enfrenta, e que a enchente de setembro levou tudo. “Cruzeiro do Sul tem pouco maquinário, ninguém veio nos salvar. A Defesa Civil não tem um barco, um motor, nada. Fomos para o telhado na primeira enchente, amarraram cordas para o pessoal ir subindo. Cruzeiro precisa de muita atenção agora.”

Rever a política de assistência social

Carine Bagestam, consultora do Ministério de Desenvolvimento Social, em parceria com a ONU-OIM, mencionou ser nítido que as assistências sociais nos municípios são uma política fragilizada. “Antes da emergência tinha um déficit, sem equipe mínima”, disse. Para ela, especialmente agora, é fundamental uma reformulação dos critérios e cadastros. “Ontem tivemos reunião com a secretária do estado e reforçamos que tem que ter uma construção estadual e federal para rever a política de assistência social, especialmente em contexto de calamidade”, reiterou.

Ela também chamou atenção sobre a crise habitacional. “Não há informação clara sobre as casas provisórias. As famílias estão esperando, querem saber em quantos dias chega a casa e quem vai acessar.” Contou que o recurso da assistência social está em caixa, que os municípios receberam. “O que sentimos no Vale é que os alojamentos são muito provisórios. A maioria dos municípios começou a tirar pessoas dos alojamentos sem uma inspeção de segurança das casas e nem saber para onde essas famílias iriam, correndo perigo eminente dessas famílias voltarem para casas de risco”, sinalizou.

“Meio Ambiente não é só cuidar do desmatamento da Amazônia”, defende Maneco / Foto: Fabiana Reinholz

O perigo das barragens

A integrante do MAB, Maria Aparecida Castilho Luge reforçou a realidade dos atingidos pelas barragens na região. Ela salientou a necessidade de estudos em relação à questão. “É preciso transparência. De quem são essas barragens?”, questionou. Durante a visita da Missão às cidades, que antecedeu a audiência pública, foram inúmeros os relatos, em especial em Roca Sales, conectando as barragens aos impactos das últimas enchentes e alterações no fluxo das águas.

“Verificamos a falta de um sistema de alerta das enchentes, pois não existe um monitoramento dos rios na região. Isso poderia ser executado em parceria com as universidades”, sugeriu o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS (CEDH RS), Júlio Alt. Segundo ele, é imprescindível que haja mecanismos efetivos para reconhecer uma calamidade e alertá-la à população, o que passa por um esforço coletivo com estudos, envolvimento de universidades, municípios, poder estadual, coletivos e movimentos, para pensar alternativas desde a questão das barragens, seus impactos e a prevenção de seu uso.

Ainda no enfoque ambiental, Júlio reforçou que é necessária uma atuação drástica frente à catástrofe climática. “Que a gente possa pensar também em parcerias para recompor matas ciliares, a Mata Atlântica, pensar um regime ambiental. Sugerimos implementar um código ambiental nacional, para que a médio e longo prazo a gente possa arrefecer os impactos de calamidade pública”, disse.

Outros pontos destacados por ele foram a criação de grupos e comitês para fiscalizar onde está o recurso repassado pelo governo federal e a criação de um plano de trabalho. “Precisamos pensar alternativas desde a questão das barragens, dos impactos nos territórios.”

Na reunião moradores relataram as dificuldades enfrentadas / Foto: Fabiana Reinholz

Falta de sintonia entre governos prejudica população

Para o coordenador jurídico do CDES, Cristiano Muller, há uma dessintonia que faz com que os investimentos do governo federal não cheguem a quem realmente precisa. Ele propôs que o escritório do governo federal na região não seja fechado e que seja criado um canal de informação e participação dos atingidos, no sentido de que sejam feitas reuniões ampliadas de prestação de contas dos municípios para o governo.

“Foram R$ 29 milhões em recursos em educação e ontem ouvimos denúncia de creche fechada e crianças amontoadas em um salão. O que ficou claro na audiência pública é que no CRAS as pessoas são humilhadas, que pedem muitos documentos. Temos que entender as pessoas atingidas como todas que estão em situação de calamidade, não só as de baixa renda. Quem define quem foi atingido não é política pública, é a água. Não podemos excluir essas pessoas”, acrescentou.

Segundo observou Júlio Alt, muitas pessoas não sabem como acessar essas políticas, ou, quando tentam, é muito burocrático. Claudete Sillas, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, reforçou a questão da saúde mental e da mobilidade, propondo CRAS móveis, tendo em vista que, para quem perdeu tudo na enchente, deslocar-se inúmeras vezes em busca de atendimento é mais uma violação de direito.

A saúde mental da população é outro tema que precisa de atenção, tendo em vista uma série de traumas causados pelas enchentes e da consequente falta de amparo. “As pessoas estão depressivas, precisam ser ouvidas, precisam ser aconchegadas. Há urgência de um atendimento de saúde mental e mudar um pouco desse esquema de saúde”, acrescentou.

A moradora do bairro Conservas, em Lajeado, Michele Siqueira, sente falta de comunicação com relação às enchentes. Ela também chamou a atenção para a situação das estradas que estão desbarrancando. “Na primeira enchente com imensa quantidade de água já desceu a parede de terra e colocaram pedras ali. A estrada está diminuindo. Não temos proteção naquela lateral, já começou a dar acidente pela quantidade de chuva, asfalto liso. É perigoso”, disse.

Michele mora a 500m do rio Taquari e contou que nunca tinha visto a água subir tanto. Com a enchente de setembro ela perdeu tudo. “Nosso bairro, Conservas, está uma bomba relógio. Não é só quantidade de chuva, é de água. A Defesa Civil encaminhou caminhões e eles se negaram a atender as pessoas porque a ponte estava trancada com o excesso de água”, relatou.

Bairro Centro, em Roca Sales. / Foto: Carolina Colorio

Orçamento 2024

Há muito tempo cientistas do clima e boa parte da militância socioambientalista alertam sobre a gravidade da emergência climática, denunciando o racismo ambiental e uma série de riscos. Sobretudo para as populações empobrecidas, periféricas, indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Mesmo assim, tanto as esferas municipais, quanto estaduais e federal, não apresentam soluções estruturais para o tema.

A aprovação do orçamento previsto para a adaptação climática no RS, em 2024, é um exemplo. Do total de R$ 80,348 bilhões, somente 157,933 milhões são para o tema: menos de 0,02% do orçamento total aprovado. Além disso, no eixo Sustentabilidade Ambiental no Plano Plurianual (2024-2027), consta a proposta de aplicar pouco mais de R$ 260 milhões, enquanto há um investimento previsto de mais de R$ 1,6 bilhão para o setor da agropecuária – atividade que, conforme dados de 2021 do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases, é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa no estado.

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Levando em conta as enchentes e catástrofes climáticas, o investimento em Defesa Civil também deixa a desejar. Para o próximo ano, o governo gaúcho pretende realocar R$ 50 mil na Defesa Civil, que é a primeira a agir durante emergências e a responsável pelo resgate da população atingida. O montante total para um ano inteiro de atuação da Defesa Civil, que precisa urgentemente de melhorias na infraestrutura, compra de equipamentos e na contratação de profissionais, especialmente tendo em vista os inúmeros episódios catastróficos no estado, equivale a menos do que o preço de um carro popular.

Conforme dados de boletim do governo do estado, atualizado em 27 de outubro, chuvas intensas e enchentes impactaram 107 cidades, afetando até aquele momento 402.297 pessoas. Destas, 22.283 pessoas ficaram desalojadas,  5.216 ficaram desabrigadas, 943 feridas, seis desaparecidas e 52 morreram. Em novembro quase 700 mil pessoas foram afetadas, direta ou indiretamente.

Manifestação durante audiência / Foto: Carolina Colorio

Rede de solidariedade 

O representante MPA de Arroio do Meio, Lari João Hoftomer, destacou a importância da solidariedade. Desde a enchente de 2010, o movimento desenvolve ações neste sentido, levando sementes crioulas, mudas e ramas para famílias de agricultores que são atingidas.

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Sobre a última enchente, lembrou da visita de solidariedade. “Arrecadamos dinheiro onde era possível. Entregamos mudas, sementes e ramas de mandioca.” Ele alientou a importância de olhar para a agricultura familiar e para as sementes crioulas, que dentro do princípio da agroecologia são práticas de produção que causam menor impacto socioambiental, numa lógica oposta à do agronegócio – um dos maiores expoentes para a emissão de gases de efeito estufa no Brasil, devido a alteração do uso do solo.

Atuando desde setembro na região, o MAB tem feito o atendimento emergencial e de articulação junto às comunidades para acessarem as políticas públicas necessárias. Juntamente com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea-RS), o movimento montou uma cozinha solidária em Arroio do Meio, após a primeira enchente. Mais de 1,2 mil refeições chegaram a ser feitas por dia, além disso, o MAB tem apoiado mais de 600 famílias que já receberam 2.100 cestas básicas, milhares de litros de água e 500 kits com produtos de limpeza. O movimento segue com as doações.

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A coordenadora do MAB, Alexania Rossato, reitera relatos feitos na audiência, quando foi exposto que, em algumas situações, a entrega de cestas básicas distribuídas pelo movimento foi o único apoio que as famílias receberam. Ela também reforçou o desinteresse das autoridades locais em participar da missão. “Prefeitos convidados não compareceram e se negaram  a ouvir as demandas do povo, assim como se negam a caminhar onde o povo mora. O que ouvimos no mutirão que fizemos, durante todo o dia, é que essa  realidade se repete em todas as prefeituras.”

Alexania relembrou do documento com reinvindicações dos atingidos, entregue ao governo em setembro, após a primeira enchente. Durante a reunião de 28 de setembro, ela questionou se seria possível dar sequência ao que foi proposto, e exigiu respostas em relação à questão de moradia e segurança alimentar. Trazendo um pouco de esperança, a liderança destacou a aprovação do Projeto de Lei (PL) 2788/2019, que cria a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e aguarda sanção presidencial.

“A sensação é que há uma naturalização da enchente, virou comum. Só que não é assim, quem vive, quem sofre a enchente, que tem que limpar suas casas de novo. Recomeçar. Não dá pra nós naturalizar a enchente na vida das pessoas e tratar como uma coisa comum”, pontou Alexania.

Sobre a Missão

Na Missão de Monitoramento de Direitos Humanos do Vale do Taquari foram checadas violações de direitos e como as ações de reparação às famílias atingidas são feitas, bem como as medidas tomadas para reconstruir os locais e as condições de vida e de trabalho das pessoas afetadas. Ela foi organizada em três momentos: o primeiro de visita a cidades afetadas e conversa com moradores em seus bairros, o segundo com audiência pública e o terceiro com reunião com autoridades.

A Missão foi organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos, pelo CDES Direitos Humanos e pela Acesso Cidadania e Direitos Humanos.

Como encaminhamento da Missão, a Comissão de Direitos Humanos irá realizar um relatório das denúncias recebidas durante os dois dias. O documento será entregue ao Ministério Público do RS (MP RS) e ao Tribunal de Contas do RS (TCE RS). Também será solicitada uma audiência com o governo do estado.

Conteúdo também publicado no Jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/03/rs-missao-de-monitoramento-no-vale-do-taquari-expoe-violacoes-a-familias-atingidas-por-enchentes 

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