Com o aumento do fluxo de chuvas, a única rota de fuga do território fica inundada. Habitantes de Guaíba City seguem em mobilização pela construção de ponte que garanta o direito de ir e vir e, consequentemente, a possibilidade de viver em caso de outra enchente
A enchente de maio de 2024 foi uma tragédia anunciada, que devastou o estado gaúcho e escancarou a realidade da emergência climática. Locais historicamente vulneráveis sofreram, e ainda sofrem, consequências ainda mais drásticas com o desequilíbrio ecológico. O loteamento rural Guaíba City, entre os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul (RS), é habitado por cerca de 280 famílias, algumas com até oito pessoas. Há anos moradores denunciam o abandono por parte do Poder Público. A comunidade, que já enfrentava a desassistência, assim como uma série de problemas relacionados à questões sanitárias, vivenciou outro nível de desamparo durante a enchente de maio, quando ficou ilhada. Até hoje as famílias sentem os impactos do terror vivenciado naquele período. De acordo com os moradores, não houve aviso sobre a inundação.
Em maio, as águas que transbordaram do Arroio Jacaré e do Rio Jacuí alcançaram os telhados de algumas das casas em Guaíba City. O forte fluxo de correnteza em algumas partes, principalmente na única entrada do loteamento, anunciava um perigo iminente para moradores pois impossibilitava a travessia por água, dificultando resgates. Durante visita realizada em Guaíba City, em julho, moradores mostraram vídeos com registros da enchente ao longo das semanas de cheia. Entre as recordações, davam destaque para a população se organizando como possível, transportando pessoas idosas dentro de caixas d’água de telhado para telhado. As águas tomaram conta de todo território. A principal demanda da população, até hoje, é que seja construído um acesso, seja uma ponte ou elevação de estrada, que possibilite a saída dos habitantes do território. “Se chove a gente não consegue sair. Ou a gente tem como sair, ou morremos aqui”, relatou Sirlei de Souza, moradora de Guaíba City.
Guaíba City ilhada: Os impactos da enchente de maio e a luta das famílias por uma rota de fuga
Mapas mostram que só há um acesso para chegar em Guaíba City. Nos fundos do loteamento está o Rio Jacuí. Entre o rio e o loteamento, se encontra uma extensão de lavouras de arroz. A única entrada para Guaíba City é por uma estrada de chão batido, que é cruzada pelo Arroio Jacaré. Este é um trecho crítico, que inunda com qualquer chuva. O Arroio foi dividido, o que altera o fluxo original das águas que por ali corriam, tornando o ambiente propício para os alagamentos. Antigamente o trecho contava com três pontilhões (pequenas pontes), sendo um e meio responsabilidade de cada município (Eldorado do Sul / Charqueadas). Para diminuir custos, fizeram um pontilhão para cada município, diminuindo a vazão da água. Em maio, quando a água do Jacuí chegou com força , avançando sobre as lavouras de arroz, casas e tomando o loteamento, que ficou submerso, a ponte do Arroio Jacaré, único ponto de fuga possível para os moradores, já estava sem condições de passagem.
Relatos de moradores denunciaram a demora no desligamento da rede elétrica, o que colocava todas pessoas em contato com a inundação em risco de eletrocutamento (morte por descarga elétrica). Quando a água baixou, a população que voltava às suas casas, muitas delas destruídas, encontrava um rastro de devastação, forte odor, lama e animais mortos pelo caminho. Se deparava, ainda, com uma vida de trabalho levada pelas águas.
Muitos dos habitantes locais vivem da pecuária. Conforme as águas subiam, em maio, os animais lutavam por suas vidas. Poucos foram os que fugiram e sobreviveram. Muitos morreram no sufoco, sem forças para suportar o avanço das águas antes de encontrar abrigo em telhados. A dor dos habitantes de Guaíba City também foi a perda de seus animais, que em muitos casos representavam a sua fonte de renda e de sobrevivência.
Moradores expuseram que a falta de limpeza e manutenção dos valões tem um histórico na localidade. E que, nos dias de chuva, essas áreas acabam transbordando e inundando as estradas de chão, deixando moradores ilhados e contaminando as tubulações de água potável. Com a enchente tudo se potencializou. A comunidade segue na luta, pressionando também por melhores condições de vida.
Meses após as enchentes, as cicatrizes permanecem na fachada das casas, indicando até onde as águas chegaram. Permanecem, também, na memória da comunidade, que agora teme as chuvas e é habitada pelo pavor de que a tragédia possa se repetir. As condições de vida, que antes já eram dificultadas pela ausência de suporte e direitos básicos, como o direito ao saneamento e água potável, pioraram após a enchente. Meio aos escombros, de maio para cá os habitantes de Guaíba City seguem pressionando por auxílio e ação das prefeituras.
Setembro é marcado por chuvas e medo, o povo segue pressionando as prefeituras pelo direito de sobreviver
Ao final de setembro, fortes chuvas deixaram o povo gaúcho em alerta outra vez. A água subiu novamente em Guaíba City, anunciando outra possível inundação. As previsões apontam que o mês de outubro também será chuvoso. Meses passaram e a comunidade segue sem resposta quanto à reivindicação para que seja construída uma ponte. Esta possibilitaria o trânsito no território, no local que é o único ponto de saída do loteamento, que durante enchentes e chuvas intensas fica ilhado. Não há saída, nem como entrar socorro. O direito de ir e vir é comprometido pela inação do poder municipal. O povo segue pressionando as prefeituras pelo direito de sobreviver.
“A comunidade do Guaíba City pede Socorro. Nessa enchente que deu a gente perdeu tudo que tinha, quase perdeu a vida, perdeu a vida dos nossos demais. Agradeça essa baixada aqui ó, onde estava, quando saímos daqui a três metros de profundidade. Se nós perdemos tudo foi porque a água aqui simplesmente invadiu e qualquer chuva que dá nós ficamos ilhados dentro do Guaíba City e nós não temos outra saída. Então estamos pedindo socorro, que amanhã ou depois pode ser a nossa vida que nós acabamos perdendo aqui dentro, por causa da negligência dos dois poderes políticos, tanto de Charqueadas como de Eldorado do Sul”, expõe Sirlei, em nome da comunidade.
O que as prefeituras fizeram até agora
Em agosto, após reunião da comunidade na Câmara de Vereadores de Charqueadas, o prefeito recentemente reeleito do município, Ricardo Machado Vargas (Republicanos), se comprometeu a arrumar estradas e a reabrir o posto de saúde de Guaíba City. Em setembro, a prefeitura retirou entulhos de valas e arrumou a maior parte das estradas. Mas a obra não foi concluída. Após ser questionado pela comunidade, o prefeito alegou que o prazo de licitação para a obra acabou e não seria possível recorrer a outra, apenas no próximo ano. O posto segue sem reabrir.
A prefeitura de Eldorado do Sul, sob mandato de Ernani de Freitas Gonçalves (PDT), que encerrará ao final deste ano, se comprometeu a limpar as valas que acumulavam entulhos desde a enchente. O trabalho foi realizado, junto à limpeza do Arroio Jacaré. Outra promessa foi cortar a estrada, a elevando nas proximidades das pontes. Conforme relatos da população, até final de setembro não houve movimentação alguma nesse sentido. Com a eleição de outubro, Juliana Carvalho (PSDB) foi eleita nova prefeita da cidade, e assumirá cargo em 1º de janeiro de 2025. Até lá, o compromisso do antigo governo segue em aberto.
O avanço das chuvas desde setembro faz com que a população de Guaíba City reviva o choque da enchente de maio. As pontes são a principal reivindicação popular, por serem a garantia de uma rota de fuga em caso de alagamento. “Nada foi feito, estamos prestes a ter outra enchente e só Deus sabe o que vai acontecer”, relatou uma moradora em setembro. O abalo é físico, seja no território cheio de lama e entulhos, seja nos corpos dos moradores, que são engatilhados no trauma e mais do que nunca temem as chuvas.
“A gente tá pedindo socorro tanto para Eldorado do Sul quanto para Charqueadas. Que nós, de direito, se por ventura vir outra enchente, nós termos como sobreviver. Porque as coisas nós perdemos tudo e a vida de nossos animais. Então nós queremos o direito de nós termos como sair, já que não recebemos ajuda de ninguém, foi voluntário ajudando voluntário. Então eles que deem esse direito de nós, quando vê que vai encher, poder sair. Só isso que nós queremos deles. E para isso acontecer, vazão das pontes que eles diminuíram e o levantamento da parte de Eldorado do Sul ali”, cobrou Sirlei
A organização Amigas da Terra Brasil (ATBr) realizou sua assembleia anual em 26 de julho, na Casanat – casa sede da organização, em Porto Alegre (RS). Estiveram presentes membros de seus conselhos Diretor, Fiscal e Consultivo, além de integrantes de movimentos sociais, de territórios em luta e de organizações aliadas, como a Periferia Feminista; a horta e cozinha comunitárias do Morro da Cruz; Marcha Mundial de Mulheres (MMM), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Comitê de Combate à Megamineração (CCM-RS) e a Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz).
O momento contou com apresentação de relatório de atividades e aprovação da prestação de contas de 2023. Debruçou-se, ainda, na temática da emergência climática, seus impactos na vida cotidiana da população e proposições de quais táticas e estratégias devem ser adotadas para garantir soluções reais frente a tragédias anunciadas, como a das enchentes no Rio Grande do Sul. “A gente tem as respostas para essa crise. É demarcação de terra indígena, titulação kilombola, reforma fundiária, reforma agrária popular”, expôs a presidenta da ATBR, Letícia Paranhos, salientando que as soluções estão na defesa e garantia dos povos nos territórios. O que passa por um Estado forte, com políticas públicas construídas a partir das demandas dos territórios.
Uma retrospectiva sobre a caminhada da ATBr na luta durante o último ano foi traçada, trajetória que se enraíza ainda mais neste ano. Da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no Brasil, uma vitória após quatro anos do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, até a articulação para barrar o Acordo Mercosul-UE (União Europeia) na Europa e a construção do feminismo popular na Escola Internacional Berta Cáceres, em Honduras, a Amigas da Terra segue no compromisso internacionalista para a construção do poder popular.
Momentos importantes das lutas de 2023 são rememorados
A apresentação do relatório de atividades da ATBr em 2023 especificou os principais projetos construídos junto aos territórios de vida nos programas Soberania Alimentar e Cuidado Popular dos Territórios e da Biodiversidade (SAeB), Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo (JERN) e Justiça Ambiental nas Cidades. Dentre as principais ações estão o apoio a comunidades camponesas assentadas da Reforma Agrária, denunciando os impactos dos agrotóxicos na produção agroecológica, na saúde humana e animal e no meio ambiente. Exigimos, juntos, que as autoridades competentes garantam que as famílias possam produzir de forma saudável, sem serem pulverizadas com veneno pelo agronegócio. Ainda se destacam a formação política e popularização de temas, a articulação nacional em redes e ações de solidariedade aos povos da Amazônia e a articulação regional e internacional das lutas de base.
A ATBr pautou o fim do PL do Veneno e da Tese do Marco Temporal para demarcação de territórios indígenas, e segue mobilizada contra esses retrocessos. Além do posicionamento contra os projetos de morte do agronegócio, marcados a sangue com o genocídio de indígenas, campesinos e dos povos tradicionais, a organização combate a expansão do capital fossilista e da mineração sobre os territórios de vida. Exigiu e segue exigindo justiça e o fim da impunidade corporativa da Braskem e da Vale, assim como luta para barrar o avanço dos projetos carboníferos no RS.
Em 2023, em parceria com o Comitê de Combate à Megamineracão do RS, da qual faz parte, uniu esforços contra o Projeto de Lei do Senado n°4.653/2023. O Comitê expressou de maneira unânime a necessidade de arquivamento do projeto, alegando que a proposta busca incluir a região carbonífera do estado em um programa de transição energética, mas, na prática, mascara a continuidade prejudicial da exploração e queima do carvão mineral. Além disso, critica propostas anteriores, como a Lei Estadual 15.047/2017, apontando para a necessidade urgente de um debate amplo sobre uma transição energética efetiva, considerando as particularidades e vocações econômicas locais.
Nos territórios de retomada indígena e nas aldeias, foram desenvolvidos projetos de manutenção de sistemas elétricos para autonomia comunitária, assim como campanhas de solidariedade e distribuição de alimentos da agricultura familiar. Nesta aliança com as retomadas, em novembro de 2023, a CasaNat foi palco da estreia do curta-documentário “Opy Nhombaraete Karai”, no idioma Guarani, sobre a Retomada Mbya Guarani no Arado Velho, em Porto Alegre (RS).
A Amigas da Terra Brasil segue apoiando cozinhas solidárias, visando o combate à fome e a construção da soberania alimentar. Entre elas, a Cozinha Solidária da Azenha, iniciativa do MTST, e a Cozinha e Horta Comunitária do Morro da Cruz, construída pela Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e pelo coletivo Periferia Feminista, que se articulam ainda com a ATBr e com outros movimentos, como o MTST – aliança esta conhecida como Aliança Feminismo Popular e que marcou o início do processo da horta, durante a pandemia de Covid-19.
Outra parceria fundamental foi com a Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz), de Triunfo (RS), que enfrenta uma luta bastante dura para que seja consultada e respeitada no processo de licenciamento das obras de ampliação da BR 386, conforme prevê a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Em 2023, importantes vitórias vieram para provarque é possível parar a léguade um megaprojeto de morte que ameaça a coletividade kilombola. Entre elas, a Justiça Federal reconheceu o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa fé da comunidade antes que qualquer projeto seja implementado. E o Conselho de Direitos Humanos do RS, em que foi apresentado o Dossiê Kilombola durante a primeira sessão de 2023, reforçou que autoridades e empresas respeitem a comunidade e os seus direitos.
Quanto à emergência climática, um dos destaques de 2023 foi a participação da ATBr na Audiência Pública para decretar Emergência Climática no RS, assim como na ronda de monitoramento de violações de Direitos Humanos com as Enchentes no Vale do Taquari (RS). Também foram abordadas articulações e construções de luta que vão desaguar na Cúpula dos Povos, que irá ocorrer durante a COP30 do clima, que será sediada no Brasil em 2025.
Destaque para o combate aoAcordo Mercosul-UE, pautado há anos pela ATBr, que integra a Frente Brasileira Contra o Acordo UE-Mercosul. Foi lançada, em 2023, uma campanha contra o acordo comercial, que reverberou vozes de movimentos sociais, lideranças indígenas e comunitárias, assentados da reforma agrária e mulheres, pautando o que significa de fato este acordo e porque deve ser combatido. Além disso, a ATBr esteve em espaços institucionais com a Frente, no intuito de barrar o acordo e pressionar que presidentes, como Macron (França) e Lula, não o levem adiante.
Feminismo popular para transformar o mundo
A Amigas da Terra Brasil prossegue na construção do feminismo popular, aprofundando conhecimentos, troca de experiências e sua participação em atividades no intuito de mudar a vida das mulheres e colocar a vida no centro.
A nível nacional fez parte de momentos históricos como a Marcha das Margaridas, que reuniu em Brasília mais de 100 mil mulheres dos campos, águas, florestas e cidades brasileiras. Pautou ainda a descriminalização e legalização do aborto no Brasil, somando a campanhas do Nem Presa Nem Morta e tendo a CasaNat como ponto de referência para distribuição de lenços para militantes e organizações feministas e aliadas a essa luta.
Também participou do Seminário e Intercâmbio de Quilombolas e Mulheres da Agroecologia em Ribeirão Grande Terra Seca, localizado no Vale do Ribeira, em Barra do Turvo (SP). O evento teve como principal objetivo fortalecer o intercâmbio solidário – , com foco na busca pela justiça econômica e no diálogo com a economia feminista, e propôs respostas concretas para combater a fome no Brasil. A ATBr também fez parte da construção e realização do “Intercâmbio entre Mulheres do Campo e da Cidade – Construindo a economia feminista no RS”, que ocorreu em maio de 2023, em Porto Alegre, Maquiné e Rolante (RS), junto com a Aliança Feminismo Popular, comunidades, quilombos e iniciativas parceiras da economia solidária na região metropolitana e no Litoral Norte do RS e as mulheres do Vale do Ribeira (SP).
Para desmantelar o patriarcado, a organização se articulou territorialmente, nacionalmente e a nível internacional, denunciando o poder das transnacionais e como essas afetam a vida cotidiana de mulheres. Dentro da Amigas da Terra, exemplo desse compromisso está na política para prevenir a violência contra a mulher, que foi referendada pela organização em 2021 e garante um ambiente de trabalho seguro, que não fere direitos de mulheres, pessoas trans e não binárias.
Após apresentação de relatório de atividades e de prestação de contas, a Assembleia encerrou com um momento de confraternização, embalado pelo samba e as vozes do duo Irmãs Vidal e nutrido por refeição preparada pelas militantes da Cozinha Comunitária do Morro da Cruz, da Periferia Feminista. Retomando os processos do ano que passou, firmando compromissos e alianças e articulando coletivamente o que é preciso para frear o avanço do capital sob as vidas, a Assembleia foi mais um dos momentos relevantes para dar sequência a uma luta muito anterior, e que seguirá a passos largos pelo amanhã. É neste compromisso de uma luta constante para transformar a realidade que a Amigas da Terra Brasil é guiada para tornar possível um mundo mais justo e solidário.
Rede de solidariedade destinou toneladas de alimentos, água e itens básicos
Por Assessoria da CGY
A campanha de apoio emergencial lançada pela Comissão Guarani Yvyrupa em apoio às famílias indígenas atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul alcançou seu objetivo: formar uma rede de solidariedade para que as comunidades tivessem com quem contar no momento mais crítico dos impactos do evento climático.
As arrecadações de nossa campanha trouxeram um mínimo de alívio em meio à calamidade, assegurando às comunidades indígenas itens essenciais e condições para a sobrevivência e condições para o enfrentamento aos impactos da devastação. Num primeiro momento, os auxílios foram destinados para a garantia de itens básicos para a segurança alimentar e acesso à água potável.
No total, foram distribuídas 20 toneladas de alimentos, para 37 tekoa (aldeias),que também receberam água potável e itens básicos, como cobertores e colchões, alcançando 674 famílias, somando mais de 3.300 pessoas, em diversas regiões do estado do Rio Grande do Sul.
Contamos com a ampla colaboração de diversos parceiros, pessoas, coletivos e organizações, que contribuíram com valores, e, especialmente, com confiança na seriedade do trabalho da CGY.
Ao longo de 20 dias, no mês de maio, nos empenhamos em mapear, preparar e estabelecer planos de logística para que os apoios em forma de cestas básicas e outros itens fossem entregues nas aldeias do povo Guarani. Temos muito ainda a fazer no momento de reconstrução da vida e das aldeias na região.
A CGY reafirma o entendimento do povo Guarani de que eventos climáticos extremos como este ocorrem em consequência da exploração predatória da terra, com o uso desordenado de recursos naturais e o desmatamento descontrolado que atingem as florestas, águas e solo dos biomas Mata Atlântica e Pampa, os quais os povos indígenas têm lutado incansavelmente para proteger.
Na sexta-feira (31/05), vozes ecoaram pela capital gaúcha alertando que as enchentes que atingem o RS têm causas e culpados. A juventude organizada, partidos políticos, movimentos sociais, organizações ambientalistas e pessoas afetadas estiveram na Marcha pelo Clima, ato organizado pelo Eco Pelo Clima junto a outras organizações, como a União Estadual dos Estudantes.
Embalado por cantos como “essa chuva não é normal, capitalismo é desastre ambiental” e “Do Lami ao Sarandi, prefeito Melo eu não te vi”, somados a gritos de “Fora Leite” e “Fora Melo”, o ato denunciou o descaso de governantes com o povo e a responsabilidade do sistema capitalista na emergência climática. Destacou, ainda, a relação da devastação da natureza, imposta por projetos políticos que colocam o lucro acima da vida, com o atual cenário de enchentes no RS.
A tragédia também é política. E na receita deste caos anunciado, está a decisão do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), assim como do governador do estado, Eduardo Leite (PSDB), em ignorar avisos há tanto proferidos por ambientalistas, movimentos sociais, organizações por justiça socioambiental e cientistas. Está, também, a falta de investimento destes em políticas públicas e as ações de desmonte e sucateamento do que é público. Nas privatizações massivas, no desmonte da proteção ambiental e no avanço do agronegócio, da mineração e da especulação imobiliária, que nos trazem a um profundo desequilíbrio ecológico.
O governo de Eduardo Leite privatizou serviços complicando o acesso e a qualidade destes, dilacerou o código ambiental do RS, flexibilizou a legislação ambiental e abriu brecha para que grandes empresas e os ricos que lucram com o carvão, com a mineração, cravem suas garras em territórios de vida. O mesmo ocorre quanto ao agronegócio, outra atividade de alto impacto socioambiental negativo e que nos traz a emergência climática – defendida por Leite e em expansão no RS. Ao menos 20% da geografia do estado é monocultivo de soja para exportação, o que além de tudo nos mantém em uma relação de dependência do capital estrangeiro, minando a soberania. Todos estes são fatores que agravam a situação trágica, hoje vivida na pele por mais de dois milhões de gaúchos afetados. De acordo com a última atualização da Defesa Civil (01/06 – 9h), são 475 municípios afetados,
37.812 pessoas em abrigos, 580.111 desalojadas, 806 feridas, 43 desaparecidas e 171 óbitos confirmados.
Em marcha até o Palácio do Piratini, o ato contou com falas salientando que o povo não merece cidades provisórias ou de lona, como as que Sebastião Melo insiste em implementar, em total descaso com o povo, especialmente jovem, negro, ribeirinho, indígena e periférico. Houve denúncia da cidade provisória que o Prefeito Sebastião Melo insiste em querer criar no Complexo do Porto Seco. Na mesma data do ato, 31 de maio de 2024, Melo anunciou pela manhã plano realizado com apoio da Alvarez & Marsal, especialista em processos de gentrificação social e privatização, além de limpeza de nome dos responsáveis por tragédias.
No ato foi abordado o racismo ambiental que eclode em solo gaúcho, e que também existe na Palestina ocupada, que vive um processo de colonização e genocídio pelo Estado de Israel. Pauta presente, que contou também com fala e momento de silêncio em respeito às vítimas palestinas do processo de colonização, apartheid social, violência e limpeza étnica promovida pelo Estado de Israel contra o povo palestino.
Após segunda concentração do ato pelo clima, no Palácio do Piratini, manifestantes se somaram a outra manifestação, que teve ponto de encontro no Largo do Zumbi dos Palmares e foi organizada por moradores e comerciantes do bairro Cidade Baixa, também afetado pela enchente. A marcha seguiu pelas ruas do bairro, pautando com mais força o Fora Leite e Fora Melo.
Não há justiça climática sem justiça social. O mesmo sistema capitalista, racista e patriarcal que causa a morte de rios, florestas e biomas, é o que retira direitos da classe trabalhadora, suas casas, sua saúde, as condições de vida digna e os territórios dos povos. Quando um território é afetado, todos são. As fronteiras coloniais impostas pelo mundo capitalista não nos servem, e tampouco as águas que avançam após serem represadas por projetos de morte pedem licença para passarem de uma fronteira a outra.
Que na confluência das lutas, e nesse entendimento, sejamos capazes de somar forças e organizar a revolta. Demandando direitos, a começar pelo investimento em políticas públicas que considerem a emergência climática, construídas a partir das demandas e necessidades dos territórios, e em diálogo permanente com atingides.
Documento assinado por 17 entidades reúne informações e propostas para o enfrentamento dos impactos das enchentes
Por Assessoria da CGY
Durante a situação de calamidade pública causada pelas fortes chuvas no estado do Rio Grande do Sul uma rede de diversos atores vem prestando apoio direto às comunidades atingidas pelas enchentes.
A articulação indigenista no RS tornou pública uma carta direcionada aos órgãos públicos, na qual pressionam o governo a cumprir seu papel institucional e destacam as ações de solidariedade realizadas em rede. O documento foi divulgado na tarde desta quinta-feira (16/5), e reúne informações e propostas para o enfrentamento dos impactos das enchentes enquanto seus efeitos persistirem. (Acesse a íntegra da carta clicando neste link ou leia abaixo).
A carta afirma a necessidade de as demandas emergenciais das aldeias passarem a ser tratadas como parte das políticas assistenciais e de gestão ambiental e territorial contemplando todos os territórios com recursos financeiros, estrutura física e recursos humanos, e o texto remarca que os povos indígenas constituem os povos indígenas constituem “os maiores agentes de enfrentamento à crise climática global”, uma vez que são os primeiros a sofrer com as piores consequências da devastação ambiental.
Se faz necessário, então, que as demandas emergenciais das aldeias passem a ser tratadas como parte das políticas assistenciais e de gestão ambiental e territorial, visando atender a todos os territórios, com recursos financeiros, estrutura física e de pessoal. Sem olvidar que os povos indígenas constituem os maiores agentes de enfrentamento à crise climática global, ao passo em que são os primeiros a sofrerem as piores consequências da devastação ambiental. – Trecho da carta pública da articulação indigenista no RS
A rede é composta por representantes de 17 entidades, dentre elas a CGY, e já articulou esforços para atender as demandas emergenciais das 64 comunidades indígenas afetadas dos povos Guarani, Laklãnõ, Kaingang e Charrua, fazendo chegar doações de comida, água e itens básicos a mais de 1.300 famílias, em 35 municípios.
Na avaliação de Roberto Liebgott, que participa do coletivo enquanto membro do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), “agora é a parte do estado”, ressaltando que a atuação da frente de apoio foi realizada mesmo sem estrutura organizacional nem física, “com nossas limitações, mas muito estimuladas pelas organizações indígenas”.
O coletivo enfatiza a responsabilidade do poder público em implementar medidas concretas e duradouras para garantir a segurança e bem viver das comunidades indígenas na região, remarcando que o papel assistencialista foge ao escopo de atuação das organizações, apesar dos esforços ora catalisados no momento crítico da situação.
Passados apenas oito meses do que se acreditava ter sido a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, voltamos a vivenciar uma situação ainda pior. Chuvas intensas e de altos volumes, que chegaram a mais de 700 mm em algumas localidades, assolaram quase todos municípios do estado a partir de 29 de abril, provocando uma cheia sem precedentes. A chuva acumulada entre 22 de abril e a segunda-feira (6) chegou a igualar toda a média de precipitação prevista para cinco meses. Arroios e rios alcançaram níveis ainda mais altos do que os eventos de setembro de 2023, houveram deslizamentos de terra, destruição de estradas e rodovias, alagamento de cidades, mortes e destruição.
Levantamento da Defesa Civil (08/05) aponta cem pessoas mortas,128 desaparecidas e 372 feridas em417 dos 497 municípios, atingindo uma população de mais de 1,4 milhão de pessoas em todo o Rio Grande do Sul. Estes números ainda devem aumentar, já que há soterramentos em pontos isolados do interior a serem averiguados e cidades da região metropolitana alagadas. Muitos animais domésticos e para subsistência estão mortos. O número de refugiados climáticos divulgado hoje foi de mais de 230 mil pessoas, 66,7 mil em abrigos e 163,7 mil desalojados (pessoas que estão nas casas de familiares ou amigos). Exército, Bombeiros, Defesa Civil, polícias militares e civis do RS e de vários outros estados do país, voluntários individuais e militantes de organizações e movimentos sociais, estão há uma semana resgatando vidas por helicóptero, barcos, jetskis e por terra, abrindo estradas mato a dentro. Os prejuízos materiais são bilionários. A reconstrução das cidades, das economias e das vidas levará muito tempo.
Estradas que chegam na capital estão fechadas. O aeroporto está desativado pelo menos até 30 de maio. Mais de 70% da população de 2 milhões de habitantes de Porto Alegre está sem luz e sem água, com dificuldade de comunicação e de abastecimento de itens básicos de sobrevivência. A água potável tem sido um dilema cotidiano para toda a população, e está em falta nas prateleiras de muitos supermercados. Regiões e municípios do interior gaúcho seguem isoladas, sem poder receber ajuda. Muitas famílias não têm notícias uns dos outros.
As regiões atingidas pelas cheias do ano passado, especialmente os vales dos rios Jacuí, Taquari e Pardo e a Serra Gaúcha, sofreram um novo impacto, de maiores proporções. Cidades que nem haviam se reconstruído, entre elas Muçum, Roca Sales, Arroio do Meio, Lajeado, Santa Tereza e Estrela, acabaram sendo destruídas totalmente ou parcialmente, mais uma vez. Municípios do litoral Norte, como Maquiné, e nos vales dos rios Paranhana, Caí e Sinos, que foram o foco das inundações em junho do 2023, voltaram a ter prejuízos, especialmente as cidades da região metropolitana, a 5ª mais populosa do Brasil, abrigando cerca de 4,3 milhões de habitantes. Santa Maria e a Região Central também sofreram fortes impactos.
Porto Alegre, vivencia a pior inundação de sua história. Até então, figurava nos registros e nas lembranças dos moradores mais velhos a enchente de 1941, quando o Rio Guaíba atingiu 4,77m e alagou parte do centro e da orla do rio pela cidade. Desta vez, o rio Guaíba, que recebe as águas das regiões norte e centro do Estado, chegou a 5,30m, retomando o que já foi seu leito e avançando em vários pontos da cidade. Porto Alegre segue sitiada. Até mesmo a sede da Amigas da Terra Brasil foi atingida pelas águas após o desligamento de bombas pelo risco de eletrificação, o que fez o rio avançar sobre os bairros da Cidade Baixa e da Azenha, onde está localizada.
Nesta primeira semana, todos os esforços conjuntos seguem no sentido de salvar vidas. Presenciamos uma rede de solidariedade poucas vezes vista, envolvendo todo o país nos resgates, nas doações de alimentos, roupas, materiais de higiene e de limpeza e dinheiro para ajudar os desabrigados e desalojados, instalação de abrigos, fornecimento de marmitas de comida. A Amigas da Terra Brasil esteve junto em solidariedade ativa, colaborando na cozinha comunitária do Morro da Cruz com a Marcha Mundial das Mulheres e Periferia Feminista, e na Cozinha Solidária do MTST da Azenha (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), que se uniu a outros movimentos como o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), fornecendo até 1.800 marmitas de comida por dia para as pessoas afetadas em Porto Alegre e região metropolitana. Nesse momento de luto pelas vidas perdidas, em meio à dor e ao sofrimento, oferecemos nossos corações e braços para ajudar quem necessita do básico para se manter vivo.
No impacto desta tragédia, rememoramos aquilo que defendemos há tempo, que também são pautas históricas de tantos territórios de vida em luta. Aquilo que os povos indígenas do Brasil vem alertando constantemente, e que marcou presença no Acampamento Terra Livre (ATL) mais uma vez neste ano: precisamos enfrentar a crise climática. Essa é uma emergência. E esse enfrentamento não virá com novas tecnologias de mercado, tampouco com a caridade de donos de transnacionais e suas campanhas de marketing sobre sustentabilidade, que maquiam práticas que são a continuidade de um projeto colonial, racista, machista, lgbtqifóbico, destruidor da natureza e da coletividade. A emergência climática é uma realidade imposta sobre as desigualdades estruturais e sistêmicas: as injustiças ambientais recaem sobre os menos responsáveis historicamente pelo problema, que são os mais desamparados para lidar com as consequências. Esta emergência, tão real, é o contexto na qual vivemos. E por mais dura que possa ser, ainda há muita vida para lutarmos por. Aí que habita o sentido de estarmos aqui. É possível puxar o freio de mão de lógicas nefastas que avançam sobre a terra, reduzir drasticamente os impactos e aumentar a capacidade de reconstrução em situações como a que vivenciamos no momento. Isso passa pela política.
A começar por puxar o freio do agronegócio, especialmente quando no Brasil a alteração do uso do solo é o principal fator emissor de dióxido de carbono na atmosfera, gás que mais tem impacto no aquecimento global. E quando no RS políticas do governo do estado incentivam a prática e a liberação de agrotóxicos, muitos não permitidos em seus países de origem, o que gera uma série de violências e conflitos no campo, além de dificultar e até mesmo desincentivar a agricultura familiar e a agroecologia, que trazem respostas reais às crises deste século. Além disso, o agronegócio nos mantém em uma relação econômica e social de dependência dos países do norte-global, centro do capitalismo, o que gera ainda mais desigualdade e devastação da natureza, tornando bairros, cidades inteiras, zonas de sacrifício. Quando a boiada avança, precisamos reafirmar a que ela veio e que é na luta por soberania popular e pelos territórios preservados que está a resposta para outros caminhos, socialmente justos, ecologicamente equilibrados.
A ofensiva da mineração no estado gaúcho é outro fator que nos traz até o cenário que vivemos. A maior parte do carvão disponível no país está concentrada no estado gaúcho, cerca de 90%, e sua extração é uma ameaça frente à crise climática, podendo potencializá-la. O projeto Mina Guaíba, por exemplo, previa a operação da maior mina de extração de carvão a céu aberto do Brasil, entre as cidades de Eldorado do Sul e Charqueadas (RS), a 16 km da capital Porto Alegre. O projeto, que atingiria território indígena dos Mbya Guarani, não tendo realizado a consulta às comunidades para obtenção da licença prévia, estaria hoje debaixo d’água, gerando drenagem ácida e contaminando as águas doces que temos. Felizmente, a mobilização popular e as denúncias das falhas e omissões dos estudos da empresa COPELMI, acarretaram em seu arquivamento. A mina Guaíba também afetaria assentamentos da reforma agrária, o Parque Estadual Delta do Jacuí e municípios do entorno atingidos em cheio pelas cheias, além do bioma Pampa, que armazena uma das maiores reservas de água potável do mundo, o Aquífero Guarani.
Defendemos que uma das grandes soluções para evitar catástrofes sob emergência climática são os povos nos territórios. Essa solução está na demarcação de terras indígenas, na titulação de comunidades quilombolas. Está na reforma agrária, na reestruturação fundiária nas cidades e na luta por moradia, contra a propriedade privada – é premissa a cessão de imóveis para que as gentes tenham onde habitar, especialmente quando há um número desproporcional destes desocupados, sem uso social, e muita gente sem ter onde morar, situação que se agrava com refugiados climáticos. A expropriação de terras e de propriedades que servem a lógica da especulação imobiliária é imperativo. A resposta também reside no investimento público permanente a partir de políticas construídas junto aos territórios, com participação popular. Com o direito garantido aos povos e comunidades tradicionais de serem e existirem, preservando os seus modos de vida que, comprovadamente, são os que menos causam impactos socioambientais no planeta. Virá com o fim das políticas de austeridade, com a reversão do processo de aprofundamento neoliberal, que na prática privatiza os bens comuns como água e energia para que o poder corporativo e grandes empresários ampliem suas margens de lucro.
É nessas privatizações que vemos que quando o imperativo é o lucro (e não o interesse público do serviço prestado à população), esta é deixada à mercê da própria sorte, podendo passar até uma semana sem luz, como ocorreu em Porto Alegre em janeiro deste ano. Desta vez, 70% de sua população está sem energia e sem água. E aqui, salientamos as privatizações da CEEE e da Corsan, o desmonte das funções estatais de planejamento e o sucateamento do DMAE, a nível de gestão municipal, como processos que nos trouxeram até o colapso vivenciado. No caso de cidades como Porto Alegre, havia um sistema de defesa contra enchentes que falhou por falta de manutenção, mantido por várias gestões e detonado a partir da gestão do ex-prefeito da capital, Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e pelo atual prefeito, Sebastião Melo (MDB).
As constantes tragédias que assolam o Rio Grande do Sul mostram que municípios não estão preparados para enfrentar os eventos extremos do clima. Prefeitos ainda demoraram para alertar a população sobre os impactos das fortes chuvas previstas pelos institutos de meteorologia e pela Defesa Civil. Parte dos sistemas de contenção de água, diques e barragens de água extravasaram, obrigando a população a ser evacuada. A maior parte dos alagamentos ocorreram em locais que já sofrem historicamente com problemas de drenagem que não são resolvidos. A grande maioria das pessoas afetadas são empobrecidas e trabalhadoras, que moram nas áreas de várzeas, beiras dos rios e córregos, ou em encostas de morros, desvalidas de políticas concretas quanto a direitos básicos, como acesso a água, habitação popular para que efetivem a saída das áreas consideradas de risco para uma vida mais digna.
Mesmo sendo a 4ª e a pior tragédia climática de grandes proporções que o Rio Grande do Sul enfrenta em menos de dois anos, ainda há governos municipais e parlamentares negacionistas, que ignoram os efeitos das mudanças climáticas. Também há regiões afetadas que não se recuperaram de outras enchentes, como é o caso do Vale do Taquari, que além de uma série de violações de direitos humanos, contam com inúmeros relatos de moradores sobre verbas advindas do Governo Federal terem sido repassadas, sem a implementação por parte das prefeituras.
Pesquisas científicas evidenciam que o desmatamento, inclusive na Amazônia, impacta diretamente na elevação das temperaturas e, por consequência, no aumento da incidência das chuvas e eventos extremos no Brasil e no planeta. No RS, a devastação do bioma Pampa e da Mata Atlântica para dar espaço ao agronegócio e sua sede voraz por terra também desemboca nas fortes enchentes que vivenciamos, assim como nos prolongados períodos de estiagem.
O governo do RS e a prefeitura de Porto Alegre, embora digam estar preocupados com a emergência climática, não o demonstram em ações concretas. E suas práticas vão na direção de uma intensificação das catástrofes. O orçamento estadual proposto para este ano pelo governador Eduardo Leite (PSDB) previa apenas R$ 115 milhões para enfrentar os eventos climáticos em 2024 em todo o RS, incluindo investimentos na Defesa Civil estadual. Tanto a gestão de Leite quanto a de Melo têm atuado no desmonte e na “flexibilização” da legislação ambiental. Isto para beneficiar setores imobiliários de alta classe, as grandes empresas, o agronegócio e atividades econômicas destrutivas, como a mineração. O que provoca mais desmatamento, devastação de biomas naturais, contaminação de recursos de água e ocupação de áreas livres e às margens de rios, como a do próprio Guaíba. Em março deste ano, a Assembleia gaúcha aprovou projeto de autoria do deputado Delegado Zucco (Republicanos), que altera o Código Estadual de Meio Ambiente e flexibiliza regras em Áreas de Preservação Permanente (APP), liberando a construção de barragens e açudes nestas.
No caso de Porto Alegre, a prefeitura lança alertas de evacuação sem orientar como será feita. Às pressas, improvisa abrigos em áreas de risco de alagamento, fazendo com que refugiados climáticos que perderam as casas tenham que migrar outra vez sem segurança alguma de futuro. Não há, sequer, política considerando os trabalhadores e sua locomoção pela cidade via transporte público, o que poderia ser garantido com passe livre e salvar vidas. Extremamente elitista, a recomendação do prefeito e Melo é que a população, ou parte dela a quem se dirige, pegue Uber, ou vá para suas casas de praia.
Pela 1ª vez, vivenciamos refugiados climáticos em massa vagando em meio a água nas cidades do Rio Grande do Sul, vagando sem rumo por ruas e rodovias com os poucos pertences e animais que puderam carregar, esperando dias em cima de telhados por resgate, ficando amontoadas por dias em abrigos porque perderam suas casas, ou sem poder sair de suas casas para se abastecer de água e alimentos e com medo de saques e violências que aumentam diante do caos. O que gostaríamos de evitar para a próxima geração, vivenciamos hoje, aqui e agora.
A solidariedade é premissa. Uma solidariedade de classe. Não a S.A, das corporações no seu lavado de responsabilidade social corporativa. Quem mais está sofrendo nesse momento são as pessoas que estão à margem do sistema, que não conseguem garantir uma dignidade de vida no dia a dia. Que hoje, mais do que nunca, estão mais precarizadas, sofrendo com um processo de empobrecimento, negação de direitos e impossibilidade de sustentação da vida. Se essas famílias já eram consideradas empobrecidas, elas vão ficar mais empobrecidas. Elas vão perder pessoas da família que garantem o cotidiano, em geral sobrecarregando mais ainda as mulheres, a população preta e periférica no trabalho não remunerado de cuidados. A capacidade dessas famílias de se sustentar, de se organizar, vai ser reduzida. Primeiro por perderem pessoas, depois por perderem moradias, por perder trabalho, condições de vida e pelos traumas, que são certos. Todo mundo que passa por uma situação dessas se depara com um trauma imenso, isso é inevitável.
Diante dos desmontes do estado nos diversos níveis e da destruição dos serviços e da capacidade de gestão e planejamento no interesse público, emerge a força da unidade. Da diversidade de modos de fazer e se organizar dos movimentos populares do campo e da cidade, conectando os territórios de vida, muitas vezes aqueles também ameaçados e sacrificados pelo sistema que dá origem à emergência climática. Essa solidariedade de classe, real e radical, seguirá em marcha. Reconstruindo e mobilizando o poder popular para retomar o lugar do povo trabalhador na política, enfrentar o clima (que já mudou), e mudar o sistema.
Levantamento feito por organizações indígenas e indigenistas busca cobrar o poder público e apoiar campanha de arrecadação de doações para comunidades afetadas
Os impactos das chuvas e das cheias inéditas no estado do Rio Grande do Sul chegam de forma avassaladora em comunidades indígenas da região. Um levantamento colaborativo indica que mais de 80 comunidades e territórios indígenas foram diretamente afetados, alguns com extrema gravidade.
O mapeamento, que segue em atualização, é realizado de forma conjunta pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Sul, Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Fundação Luterana de Diaconia, Conselho de Missão entre Povos Indígenas e Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (FLD/Comin/Capa), além do Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Rio Grande do Sul (Cepi/RS).
O mapeamento, que segue em atualização, é realizado de forma conjunta:
Comunidades dos povos Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, espalhadas em 49 municípios gaúchos, são as mais impactadas da região. Dentre as comunidades que se encontram em estado de emergência mais grave, todas elas do povo Guarani Mbya, estão Lami e da Ponta do Arado, situadas no município de Porto Alegre, com 18 famílias atingidas; Yva’ã Porã, em Canela, com 16 famílias afetadas; Flor do Campo e Passo Grande Ponte, em Barra do Ribeiro, com 25 famílias impactadas, e as 19 famílias da aldeia Araçaty localizadas no município de Capivari do Sul.
Nessas comunidades, as famílias precisaram deixar suas casas para se deslocar para áreas mais elevadas, dado o risco de alagamento e deslizamento de terra. Na aldeia Pekuruty, localizada às margens da BR-290, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) destruiu as casas e edificações da comunidade, sem qualquer consulta ou justificativa.
As famílias precisaram deixar suas casas para se deslocar para áreas mais elevadas
Segundo Roberto Liegbott, missionário do Cimi Regional Sul, “essa comunidade foi removida para que o DNIT pudesse consertar uma tubulação que passa ali e eles acabaram destruindo toda a comunidade indígena. Eles arrancaram as casas dos indígenas sem que os Guarani sequer soubessem ou tivessem sido comunicados. Os indígenas no momento encontram-se em um abrigo, mas quando retornarem, a comunidade já não existirá mais, porque o DNIT destruiu tudo”, informou o missionário.
A inundação persiste na região metropolitana de Porto Alegre. A situação ainda é preocupante nos municípios de Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Guaíba, Eldorado do Sul e Cachoeirinha, além dos bairros de Porto Alegre, especialmente nas zonas Norte e Sul.
O levantamento realizado pelas organizações indígenas e indigenistas ainda está em estágio preliminar e possui o objetivo de auxiliar, nesta fase emergencial, a realização de uma campanha de doação para as comunidades afetadas. “Há um conjunto de entidades e instituições organizadas para ajudar essas famílias não só nesse primeiro momento, mas também depois, na reconstrução de suas casas e aldeias”, explicou Roberto.
As organizações pedem apoio e doação de alimentos, material de higiene e limpeza, lonas, telhas, colchões e cobertores para as comunidades. As doações podem ser feitas na Paróquia Menino Jesus de Praga, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O Cimi Regional Sul, a ArpinSul e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também disponibilizaram uma conta bancária para receber doações financeiras.
Além de apoiar a campanha de doação em curso, o mapeamento das áreas impactadas também busca subsidiar informações para cobrar, tanto do governo federal como do governo estadual, providências e amparo às comunidades indígenas do Rio Grande do Sul.
“Há também a necessidade que haja a regularização e a demarcação dos territórios, de preferência que se assegure lugares adequados, não degradados, para que essas famílias possam viver tendo um horizonte de segurança e não de vulnerabilização como ocorre hoje”, considera Roberto Liebgott.
Estamos acompanhando as informações acerca das comunidades indígenas, quilombolas e de pesca artesanal que, como toda a população, enfrentam os impactos decorrentes deste último evento climático que bateu recordes no Rio Grande do Sul.
Ontem terminamos um mapeamento das comunidades indígenas que estão sendo mais impactadas pelas águas e identificando os casos mais graves, para posteriormente pensarmos em ações conjuntas de apoio e solidariedade, e subsidiar a tomada de ações pelo Poder Público.
De todas as comunidades indígenas, destacamos três casos Guarani emergenciais:
Comunidade Yjerê da Ponta do Arado, em Porto Alegre (bairro Belém Novo), onde o cacique Timóteo preferiu se manter na área após abandonarem suas casas às margens do Guaíba e se deslocarem para um terreno mais elevado.
Comunidade Pekuruty, em Eldorado do Sul, e Comunidade Pindó Poty, em Porto Alegre (bairro Lami), as quais precisaram deixar suas áreas com apoio da Defesa Civil. No entanto, após a saída das famílias Guarani da comunidade Pekuruty, o DNIT destruiu suas edificações às margens da BR-290, sem qualquer consulta ou justificativa.
As águas ainda seguem subindo na região de Porto Alegre. Nos municípios de Canoas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Guaíba e Eldorado do Sul, Cachoeirinha, além dos bairros de Porto Alegre, especialmente nas zonas Norte e Sul, a situação ainda é desesperadora.
Precisamos que as águas baixem para a gente poder atuar no sentido de assegurar habitação, alimentação e todo o apoio na reconstrução das comunidades indígenas.
Além das comunidades já citadas, realizamos um mapeamento preliminar para identificar as comunidades indígenas mais impactadas em decorrência deste evento climático extremo. O mapeamento foi realizado em conjunto pela Comissão Guarani Yvyrupa, Cimi-Sul, FLD/ Comin/Capa e CEPI, a partir do contato com a a diversas lideranças/representantes indígenas e acessando as informações da Funai e Sesai.
Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS):
Até o momento, constam as seguintes comunidades indígenas em situação de emergência:
Água Santa: Kaingang Acampamento Faxinal e TI Carreteiro.
Barra do Ribeiro: Mbyá-Guarani Passo Grande Ponte, Flor do Campo, Yvy Poty, Ka’aguy Porã, Guapo’y e Coxilha da Cruz, Tapé Porã.
Cruzeiro do Sul: Kaingang Acampamento TãnhMág (RS-453).
Eldorado do Sul: Mbya Guarani Pekuruty.
Engenho Velho: Kaingang TI Serrinha.
Erebango: Kaingang TI Ventarra, Guarani de Mato Preto.
Estrela Velha: Ka’aguy Poty.
Estrela: Kaingang Jamã Tý.
Farroupilha: Kaingang Pãnónh Mág.
Faxinalzinho: Kaingang TI Kandóia.
Iraí: Kaingang Goj Veso e Aeroporto.
Lajeado: Kaingang , Foxá.
Maquiné: Mbya Guarani Ka’aguy Porã, Yvy Ty e Guyra Nhendu.
Mato Castelhado: Kaingang Tijuco Preto.
Osório: Mbya Guarani Tekoa Sol Nascente.
Passo Fundo: Kaingang Goj Yur, Fág Nor.
Porto Alegre: Charrua Polidoro, Mbyá-Guarani Ponta do Arado e Pindó Poty, Mbya Anhatengua, Kaingang Gãh Ré (Morro Santana), Tupe Pan (Morro do Osso).
Riozinho: Ita Poty.
Rodeio Bonito e Liberato Salzano: TI Rio da Várzea (emergência na Linha Demétrio).
Salto do Jacuí: Kaingang Horto Florestal, Aeroporto e Júlio Borges, Mbyá-Guarani Tekoá Porã.
Santa Maria: Mbya Guarani Guaviraty Porã e Kaingang Kētƴjyg Tēgtū (Três Soitas).
Santo Ângelo: Mbya Guarani Yakã Ju.
São Francisco de Paula: Xokleng Konglui.
São Leopoldo: Kaingang Por Fi Gá.
São Gabriel: Mbya Guarani Jekupe Amba.
São Miguel das Missões: Mbyá-Guarani Koenju.
Tabaí: Kaingang PoMag.
Terra de Areia: Mbya Guarani Yy Rupa.
Torres: Mbya Guarani Nhu Porã.
Palmares do Sul: Mbya Guarani da Granja Vargas.
Viamão: Mbya Guarani Nhe’engatu (Fepagro), Pindó Mirim, Mbya Guarani Jatai’ty TI Cantagalo e Takua Hovy.
Vicente Dutra: Kaingang TI Rio dos Índios.
As Organizações encaminham essa relação, que não é definitiva, pois ainda há informações necessárias a serem acrescentadas, mas através da qual se pede ao Poder Público atenção no sentido de garantir assistência adequada neste tempo de tantas adversidades.
Pede-se também apoio às organizações e entidades da sociedade no sentido de auxiliarem, através de apoios e ações solidárias às comunidades que necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.
Vídeo da Aldeia Tekoa Ñhu Poty, em Passo Grande (RS):
Assinam esse documento a Comissão Guarani Yvyrupa, o Cepi, Cimi Sul e FLD/Comin/Capa.
Apoios e ações solidárias às aldeias indígenas:
Aldeias necessitaram de alimentação, material de higiene e limpeza além de lonas, telhas, colchões e cobertores.
👉🏽 Ponto de coleta de doações para as comunidades indígenas:
📍Paróquia Menino Jesus de Praga, Rua Dr. Pitrez, 61, bairro Aberta dos Morros, Porto Alegre/RS
O respeito ao outro, ao meio ambiente e modos de produção que não gerem crises estruturais são soluções para as crises
As tempestades, os ciclones, os desmoronamentos, as enchentes, as secas estão por todos os lados no Brasil. As crises desencadeadas por esses eventos mostram o completo colapso das relações de produção, como consequência delas as relações sociais, e nossa interação com a natureza, no sistema capitalista. O desequilíbrio entre as chuvas e as secas é resultado das mudanças climáticas, que como podemos ver no Brasil já não são eventuais, começam a se tornar contínuas.
Em julho deste ano, a cidade de Maquiné, dentre outras da região no estado do Rio Grande do Sul, sofreu com as fortes chuvas, deixando populações desabrigadas, isoladas, com problemas de acesso à energia e alimentos. No mês passado, novamente o estado enfrentou a mesma problemática. A tempestade deixou, pelo menos, 51 mortos; causou enchentes, destruição de casas e quebra de pontes. Os efeitos atingiram o estado de Santa Catarina. Segundo os meteorologistas, a intensidade desses eventos aumenta porque as águas dos oceanos estão mais quentes.
Na região Norte do país, o evento extremo oposto, as secas. As cidades amazônicas registram as maiores temperaturas. Oito estados enfrentam a mais severa seca dos últimos 40 anos. O voluptuoso Rio Amazonas está baixando, em média, 13 a 14 centímetros por dia. Os estados decretaram emergência ambiental pela escassez da água. Os animais morrem. As populações ribeirinhas perdem o rio, seu meio de transporte, e ficam isoladas. Os fatores para tais alterações são atribuídos ao El Niño, mas também às intensas modificações no meio ambiente do bioma, sobretudo o desmatamento.
Nos últimos anos, várias cidades brasileiras sofreram os impactos dos desastres climáticos. Apesar disso, os estados não modificaram suas escolhas econômicas. As opções políticas pelos subsídios ao agronegócio, à mineração, aos grandes empreendimentos e a políticas desiguais de ordenação territorial afetam diretamente na produção das catástrofes climáticas, assim como nas sequelas deixadas por elas. As políticas climáticas reduzem-se ao conservacionismo ambiental, da criação de áreas de proteção, e às metas de redução de carbono, insuficientes para dar respostas à crise socioambiental.
O clima não é um assunto apenas físico, é profundamente social, histórico e cultural. Enquanto as soluções à crise climática forem pensadas sem envolver mudanças estruturais, notadamente a de sistema, seguiremos produzindo desencontros. A questão é que as altas classes não enfrentam os males do clima da mesma forma. Sua condição econômica lhes permite viver em zonas privilegiadas ou ter recursos para atendimento emergencial. Por isso, é no Sul Global, assim como na periferia, que as repercussões climáticas produzem maiores danos. Nessa história, comunidades e sujeitos, que pouco ou nada contribuem para as mudanças climáticas, são os que mais pagam sua conta.
Os estados, além das opções equivocadas de política econômica, não investem na estruturação da atenção da Defesa Civil, da assistência social emergencial e nem na provisão de apoio adequado às vítimas dos desastres naturais. Mesmo que os fatos estejam se repetindo ano a ano, mês a mês, governantes não conseguiram estruturar políticas públicas. Muitos dos recursos destinados às calamidades não são adequadamente empregados no atendimento às vítimas e na adoção de medidas de prevenção de desastres.
Isso porque o Estado assume uma percepção de que a vulnerabilidade social é um problema do indivíduo. Assim, pessoas que vivem em casas precárias, em barrancos, morros, próximas de rios, são responsáveis individualmente por desenvolver capacidades para lidar com essas situações. Isso ocorre da mesma forma nas situações trágicas. Os Estados não consideram que a situação econômica, de moradia, é resultado do acesso desigual, dos problemas de distribuição de renda, próprios da economia capitalista. O desfecho é que as vítimas estão completamente desamparadas pelo Estado.
Contra essa lógica, movimentos populares e organizações da sociedade civil, em sua luta anticapitalista, exercem valores solidários de apoio às vítimas, demonstrando uma prática de ser distinta. No Vale do Taquari, a região mais atingida com as enchentes de setembro no Rio Grande do Sul, criou-se a Campanha “Sementes da Solidariedade”.
Composta pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Consea/RS (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), CPT (Comissão Pastoral da Terra), MAB (Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens), Cáritas, Sindicato de Trabalhadores Rurais e Instituto Cultural Padre Josimo, visitou a região atingida levantando informações sobre as perdas, fornecendo apoio emergencial, inclusive da entrega de sementes para plantarem lavouras perdidas. Também foi construída uma cozinha solidária para apoiar na alimentação das famílias.
A experiência da militância do MAB, com o cenário de calamidade que se instaura aos rompimentos da barragem, contribuiu no apoio para as vítimas poderem se organizar em grupos, reivindicar indenizações, articularem-se para acessar moradias. Experiência apreendida na luta popular, que se constitui como um saber partilhado entre o povo. “Além da entrega das quentinhas, nós do MAB, fomos fazendo contato com pessoas, lideranças e referências, e percebemos que tinham demandas de casas, acesso a informações e direitos”, comenta Alexania Rossato, do MAB/RS. “Mais que levar comida, é preciso levar organização para as famílias”, “de serem sujeitos do processo histórico”, descreveu Alexania. Segundo a militante do MAB, a solidariedade “é parte do princípio do movimento, na situação delicada, gravíssima, que as pessoas passaram”.
Na esteira do acúmulo da experiência histórica da luta popular, a Cozinha Solidária do MTST serviu de referência para a construção da solidariedade no Vale do Taquari. Caio Belloli de Almeida, militante do MTST que esteve na região, destacou ser “muito importante a participação do MTST na Cozinha Solidária, nesta iniciativa, porque como movimento social que proveu a alimentação para as pessoas assistidas, a Prefeitura apenas entregava, não ajudava a construir. Inclusive, em alguns momentos, a Prefeitura ameaçou interromper o processo, foi muito importante o MTST estar lá para conseguir incidir na política”.
Lucas Gertz, do Levante Popular da Juventude, participou deste processo da cozinha. Para ele, os aprendizados da solidariedade da pandemia na produção de alimentos ajudaram a construir a experiência histórica para organizar as cozinhas emergenciais. Lucas caracteriza que vivemos “um processo de aquecimento, de ebulição global, o que torna muito mais importante e urgente as nossas organizações e a sociedade se voltarem ao debate ambiental”. Todo o processo vivenciado nas enchentes está relacionado à forma como estabelecemos as relações de produção, o fenômeno da privatização e a falta de prioridade para a vida na Terra, destaca Lucas.
De forma semelhante, o MST montou uma cozinha solidária no município de Encantado, também no Vale do Taquari, fornecendo marmitas diárias aos desabrigados. A cozinha, organizada com apoio do Levante Popular da Juventude, distribuiu marmitas produzidas com produtos da reforma agrária, orgânicos, vindos de cooperativas do movimento. Marildo Mulinari, militante do MST, conta que a cozinha foi instalada logo no dia seguinte à tragédia. A vivência tem sido rica com a comunidade: “O pessoal vem nos agradecer, dizer que se não fosse nós, não teriam o que comer porque foi a casa, foi tudo embora, as pessoas não tinham mais as coisas”.
Segundo Marildo, mais de 500 militantes estiveram envolvidos em toda a produção das marmitas, uma força tarefa mobilizada para o apoio às pessoas afetadas. Salete Carollo, uma das militantes do MST que foi à região em solidariedade, nos descreveu que foi uma experiência muito forte “para a gente que vem da agricultura, e principalmente, olhando para essa dimensão. É de como o ser humano se move, é pelo amor, pela terra, pela ternura; e se move com o coração para ajudar aqueles que mais precisam”. A fala de Salete é tocante do espírito, dos valores da militância que movem a ajuda humanitária, que são o valor da vida em sua integralidade. A comida que os assentados produzem, da terra que conquistaram, foi o que alimentou os atingidos. As mesmas mãos que trabalharam na produção do alimento trabalharam para o transformar em comida, para servir ao outro. É essa lógica de orientação do trabalho vivo, a da produção de mais vida, a que o mundo deveria estar orientado.
Cedenir de Oliveira, coordenador do MST, também esteve na Cozinha Solidária de Encantado e nos contou que todos que participaram da solidariedade ficaram impactados com a tragédia. “Nós do MST entendemos que poderíamos contribuir na confecção de alimentos, com o aprendizado ao longo de nossos 40 anos de existência, de produzir alimentos em condições adversas, nas estradas, nas marchas, então nós já adquirimos uma expertise”. Cedenir ressalta que o MST recebeu muita solidariedade até se consolidar nos assentamentos, produzir, ter cooperativas. Hoje, conquistou sua dignidade e encontra-se em condições de retribuir. Nas palavras do militante do MST, a solidariedade é um “valor importante para desenvolver não só na tragédia, mas no dia a dia, para romper a cultura do ódio e ignorância para construir uma sociedade mais justa e igualitária”.
A solidariedade militante aos efeitos trágicos das enchentes semeia os valores da sociedade que estamos construindo, centrada na vida humana e na natureza como maiores riquezas do universo. O respeito ao outro, a reciprocidade, o cuidado como política, a construção de outras relações com o meio ambiente, o fim do modo de produção que dá origem estrutural a essas crises são os caminhos para uma real transformação da sociedade, e o horizonte de solução da nossa crise.