Amigas da Terra Brasil se soma à luta contra captura corporativa do Planejamento Urbano de Porto Alegre

Em 2 de abril, com apoio dos parceiros e das parceiras, a Amigas da Terra Brasil (ATBr) tomou posse no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) em Porto Alegre (RS), reafirmando seu compromisso por justiça ambiental e pela defesa do ambiente e das pessoas nas cidades.

A ATBr foi eleita em 27 de fevereiro para compor o CMDUA (também chamado de Conselho do Plano Diretor), mas sabe que essa gestão não será fácil. As instituições empresariais e imobiliárias da cidade estão fortemente articuladas para mudar leis e regramentos, isto para permitir construções e adensamentos populacionais com o objetivo de lucrarem com a especulação imobiliária. O cenário é de destruição das áreas verdes que ainda resistem na Capital em razão da construção de prédios caros que, em muitos casos, ficam vazios, enquanto centenas de pessoas seguem vivendo nas ruas e morando em condições precárias em ocupações.

A eleição da Amigas da Terra Brasil para a gestão 2024/2025 do CMDUA contou com o apoio de um coletivo de organizações e entidades sociais. Estamos entre as nove entidades não governamentais que integrarão o conselho responsável por definir as novas regras urbanísticas da capital gaúcha, especialmente a revisão do Plano Diretor, que está em andamento. Ao todo, concorreram 75 organizações para as vagas das entidades da sociedade civil. A Amigas da Terra Brasil ocupará uma das vagas das entidades Ambientais e Instituições Científicas, junto com a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes-RS), reeleita para o conselho.

A união dessas entidades foi, inclusive, o que garantiu a realização da eleição. Aproveitando-se da pandemia, o governo do prefeito Sebastião Melo havia prorrogado por cinco vezes a continuidade do conselho, sem fazer novas eleições. Uma ação judicial movida por cidadãos proibiu que o velho conselho se perpetuasse e impediu que a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre pelo CMDUA fosse votada ou deliberada sem que as novas conselheiras e conselheiros fossem empossados.

Fernando Campos, da ATBR e o suplente Arq. João Rovatti professor titular aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS durante posse do CMDUA

De acordo com Fernando Campos Costa, conselheiro pela Amigas da Terra Brasil para o CMDUA, Porto Alegre é uma cidade de luta e disputa. Embora, historicamente, tenhamos conquistado o direito de participação, legislações e de regras democratizantes, tais conquistas sempre se deram de forma limitada, pois não chegaram a romper com privilégios à burguesia.

“Porto Alegre vive um sufoco, um afogamento. Estamos há muito tempo sem respirar, sem criar, sem criatividade. Hoje, a cidade vive a mediocridade do capital neoliberal que desterritorializa e homogeneíza o mundo inteiro com suas mesmices culturais que excluem as diferenças construídas pelas realidades específicas de cada lugar. A nossa cidade precisa acordar, dar um basta, reagir, lutar contra as corporações que lucram e exploram a cidade e seus moradores”, comenta Fernando.

Posse do CMDUA na Câmara de Vereadores de POA

O setor imobiliário vem comandando a prefeitura de Porto Alegre. Com o velho CMDUA não era diferente. As propostas de alteração ou destruição do nosso Plano Diretor explicitaram o processo de captura corporativa. A eleição do novo CMDUA representou um retrocesso, pois a comissão eleitoral composta somente pela prefeitura e não por entidades, como sempre ocorreu, permitiu a participação de um grande número de entidades que não fariam parte se as regras fossem seguidas – de entidades de classe e afins do urbanismo. 

A busca de um conselho que realmente seja um alento para os que desejam uma Porto Alegre inclusiva e que alie a defesa do meio ambiente com as formas de vida, de moradia digna e de subsistência econômica da população e dos trabalhadores e das trabalhadoras fica mais distante, pois o CMDUA está capturado por quem visa o lucro, por quem comercializa a nossa vida na cidade. 

Eleição para conselheiros CMDUA

“Existe a expectativa de mudança, de vencer a extrema direita e a lógica do mercado na nossa cidade. O CMDUA, hoje, é onde a especulação imobiliária se alojou por meio do setor da construção civil, internacional, nacional e local. Hoje, eles entram com uma carne de pescoço e saem com um filé. A Amigas da Terra vem para somar com diversas iniciativas, organizadas ou não, que se indignam com a lógica corporativa imposta em Porto Alegre. O CMDUA é uma ferramenta de incidência no planejamento urbano e fonte de informações, garantindo visibilidade para a promoção de direitos para os territórios urbanos e rurais da cidade de porto alegre”, avalia Fernando.

Jussara Kalil Pires, socióloga e vice-presidenta da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental do Rio Grande do Sul (ABES RS) e Letícia Paranhos, presidenta da ATBr


Amigas da Terra Brasil

Movimentos populares enfrentam setor imobiliário em disputa pelo Conselho do Plano Diretor

Empreiteiras investem na escolha de representantes na discussão que pode mudar as regras para ocupação do meio ambiente de Porto Alegre; entenda.

Coluna de ANDRÉ GUERRA, conselheiro da Amigas da Terra Brasil e ex-vice- presidente da organização.  Texto publicado em 17 de janeiro de 2024, no “Humanista: jornalismo e direitos humanos”

Até o dia 6 de fevereiro ocorre a eleição para escolha dos representantes das regiões de gestão do planejamento no CMDUA (Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental) de Porto Alegre. Movimentos sociais e comunitários se preparam há meses para enfrentar representantes do setor imobiliário. E no primeiro dia do pleito o resultado surpreendeu. O advogado e militante Felisberto Seabra Luisi foi eleito representante da RGP (Região de Gestão do Planejamento) 1, Centro, com 59,6% dos votos, derrotando a chapa encabeçada pelo empresário e corretor de imóveis Kleber Olivan Ribeiro Borges de Oliveira Sobrinho.

Além da margem de diferença, também chamou a atenção a quantidade de votantes na região central. Na última eleição, em 2018, foram 316 votantes. Seis anos depois, esse número foi ampliado em 5 vezes, atingindo mais de 1,5 mil. Foi a maior votação da história desde que o Conselho foi criado, em 1939. O Humanista acompanha o processo de revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) desde o ano passado, e foi agora atrás de informações para entender essa etapa do processo.

Saiba mais

As eleições para o CMDUA ocorrem bianualmente. Entretanto, em 2020 e 2022, a Prefeitura conseguiu prorrogar os mandatos dos conselheiros eleitos em 2018 por conta da pandemia. Nesse período, diversos projetos de interesse das construtoras foram aprovados, como concessões de parques públicos como Marinha do Brasil e Harmonia, além de modificações na Orla do Guaíba e no Lami em decorrência da revisão e flexibilização do plano diretor da cidade.

As alterações impactaram também o Centro, o 4° Distrito e a histórica área de conflito e violências contra os Guaranis Mbya na Ponta do Arado, na zona sul da cidade. Por meio de uma ação civil pública movida pelo movimento Atua Poa, foi obtida uma decisão judicial em que a Prefeitura foi obrigada a interromper a prorrogação dos mandatos e realizar eleições para escolhas dos conselheiros do biênio 2024-2025.

“Departamento” do setor imobiliário

Para o conselheiro Felisberto Seabra Luisi, eleito na votação histórica para representar a Região de Planejamento Centro, a vitória foi resultado de diversos fatores, mas principalmente pela defesa de uma outra forma de pensar a cidade.

“A nossa vitória se deu por vários motivos. Mas fundamental é a nossa defesa da cidade para as pessoas. Uma visão diferenciada do que nós vemos hoje na cidade. Não uma cidade para negócios, mas uma cidade onde as pessoas se sintam pertencentes à ela. E o que nós notamos nesses últimos anos é que as pessoas não se identificam com determinadas regiões da cidade”, avaliou Felisberto.

Na mesma linha, um dos delegados eleitos, Fernando Campos Costa, da organização do movimento ambiental Amigas da Terra Brasil, afirmou que essa eleição foi muito importante porque mostrou a indignação da população com a política de complacência e parceria com as construtoras adotada pela Prefeitura.

“Nessa eleição caíram todas as máscaras. Todo mundo já sabia da relação de intimidade que o setor imobiliário tinha com a Prefeitura, mas com essa eleição as coisas ficaram explícitas. Ficou explícito que o setor imobiliário não é técnico, neutro e imparcial. Ele não é apenas um setor do mercado. O setor imobiliário é agente político. Atua politicamente de forma direta”.

O Conselho, que era pra ser um espaço da população pensar e discutir a cidade que queremos estava se tornando um departamento do setor imobiliário. E eles vieram para disputar e garantir a continuidade deles nesse espaço que ocupavam desde 2018 – Fernando Campos Costa, delegado eleito pela RGP1.

O que reforça a percepção de Fernando é o perfil do candidato derrotado. Kleber Olivan Ribeiro Borges de Oliveira Sobrinho é sócio-administrador da Kxs Imoveis Negocios Imobiliarios LTDA, da Recons Retrofit Construcoes LTDA e é administrador da Cais Fratelli Construcao e Incorporacao Spe LTDA, todas empresas do setor imobiliário.

O inédito e expressivo número de participantes não foi alcançado apenas pela vitoriosa mobilização popular, uma vez que o setor imobiliário também se organizou para conquistar esse espaço estratégico de poder. No dia foi possível ver que as empresas do ramo imobiliário chegaram a garantir o transporte de seus funcionários até a Câmara para votarem — muitos chegaram inclusive com crachás das principais construtoras da cidade. O número de pessoas foi tão grande que a votação se estendeu para além da meia-noite, formando uma fila que chegou a durar mais de 6 horas.

Para Fernando Campos Costa, outra razão para a derrota do setor imobiliário, representado pela chapa de Kléber Oliveira, foi a constatação da população de que prédios de alto padrão continuam sendo levantados na cidade, mas a Prefeitura muitas vezes não assegura às comunidades periféricas condições mínimas, o que fica evidente nas longas e constantes interrupções de abastecimento de água ou os efeitos desastrosos das chuvas recentes que atingiram a capital.

Para o conselheiro, a estratégia do setor imobiliário é de cooptação do Conselho: “Tendo na mão a possibilidade de mudar o plano diretor, o setor imobiliário só tem a ganhar. Eles compram um terreno como ‘carne de pescoço’, ninguém quer comprar porque existem muitas restrições impostas pelo plano diretor, aí depois da aquisição eles mudam o plano, excluem todas as restrições, e aquilo que não valia nada agora vira ‘carne de filé’”, aponta.

Quem pode votar

Podem votar todos os maiores de 16 anos que tenham Cadastro de Pessoa Física (CPF) e residência no município de Porto Alegre. É necessário apresentar documento com foto e comprovante de endereço. É possível optar por exercer o direito ao voto na Região de Planejamento do seu local de trabalho. Neste caso, é necessário apresentar, além do comprovante de residência, uma declaração de domicílio.

Próximas votações

Região de Gestão do Planejamento 4
Data: 18/01/2024
Local: Centro Social Marista de Porto Alegre | Cesmar – Estr. Antônio Severino, 1493 – Rubem Berta, Porto Alegre – RS, 91250-330

Região de Gestão do Planejamento 5
Data: 23/01/2024
Local: Postão da Cruzeiro – Av. Moab Caldas, 400 – Santa Tereza, Porto Alegre – RS, 90880-310

Região de Gestão do Planejamento 6
Data: 25/01/2024
Local: Centro da Comunidade Parque Madepinho | CECOPAM -R. Arroio Grande, 50 – Cavalhada, Porto Alegre – RS, 91740-180

Região de Gestão do Planejamento 7
Data: 30/01/2024
Local:  Centro de Promoção da Criança e do Adolescente | C.P.C.A  – Estr. João de Oliveira Remião, 4444 – Lomba do Pinheiro, Porto Alegre – RS, 91550-060

Região de Gestão do Planejamento 8
Data: 06/02/2024
Local: Centro de Promoção da Infância e Juventude | C.P.I.J  – R. Mississipi, 130 – Restinga, Porto Alegre – RS, 91790-430 Bairros: Restinga, Ponta Grossa, Belém Novo, Lageado, Lami, Chapéu do Sol, Extrema, Boa Vista do Sul, Pitinga, São Caetano, Lomba do Pinheiro e Hípica.

O que é o CMDUA

Fundado em 1939 com o objetivo de ser um órgão consultivo com participação restrita e elitizada, o Conselho recebeu novas competências a partir dos anos 2000, tais como examinar projetos de grandes empreendimentos propostos pelo Poder Público ou iniciativa privada. 

O Conselho é composto por 28 membros titulares. Além do secretário do Planejamento do município que preside o órgão, o Conselho é composto por 9 conselheiros representantes do Poder Público (municipal, estadual e federal); 9 representantes de entidades não governamentais e 9 representantes da comunidade (um de cada Região de Gestão do Planejamento). 

O município é dividido em 8 Regiões de Gestão do Planejamento (RGPs), sendo eleita para cada uma delas uma chapa composta por um conselheiro e dois suplentes. Cada região compreende um conjunto determinado de bairros:

Região de Gestão do Planejamento 1: Marcílio Dias, Floresta, Centro Histórico, Auxiliadora, Moinhos de Vento, Independência, Bom Fim, Rio Branco, Mont’ Serrat, Bela Vista, Farroupilha, Santana, Petrópolis, Santa Cecília, Jardim Botânico, Praia de Belas, Cidade Baixa, Menino Deus, Azenha.

Região de Gestão do Planejamento 2: Farrapos, Humaitá, Navegantes, São Geraldo, Anchieta, São João, Santa Maria Goretti,  Higienópolis, Boa Vista, Passo D’Areia, Jardim São Pedro, Jardim Floresta, Cristo Redentor, Jardim  Lindóia, São Sebastião, Vila Ipiranga, Jardim Itú, Jardim Europa, Sarandi e Arquipélago.

Região de Gestão do Planejamento 3: Sarandi, Rubem Berta, Passo das Pedras, Santa Rosa de Lima, Parque Santa Fé, Costa e Silva, Jardim Leopoldina, Jardim Itú, Jardim Sabará e Morro Santana.

Região de Gestão do Planejamento 4: Três Figueiras, Chácara das Pedras, Vila Jardim, Bom Jesus, Jardim do Salso, Jardim  Carvalho, Mário Quintana, Jardim Sabará e Morro Santana.

Região de Gestão do Planejamento 5: Cristal, Santa Tereza, Medianeira, Glória, Cascata, Belém Velho, Nonoai, Cavalhada,  Teresópolis, Vila Assunção, Cel. Aparício Borges e Tristeza.

Região de Gestão do Planejamento 6: Camaquã, Cavalhada, Nonoai, Teresópolis, Vila Nova, Vila Assunção, Tristeza, Vila Conceição, Pedra Redonda, Ipanema, Espírito Santo, Guarujá, Serraria, Hípica, Campo Novo, Jardim  Isabel, Aberta dos Morros, Belém Velho e Sétimo Céu.

Região de Gestão do Planejamento 7: Santo Antônio, Partenon, Cel. Aparício Borges, Vila João Pessoa, Vila São José, Lomba do  Pinheiro, Agronomia, Morro Santana, Mário Quintana, Medianeira, Azenha e Pitinga.

Região de Gestão do Planejamento 8: Restinga, Ponta Grossa, Belém Novo, Lageado, Lami, Chapéu do Sol, Extrema, Boa Vista do Sul, Pitinga, São Caetano, Lomba do Pinheiro e Hípica.

 

Nota Pública sobre os processos de impugnação nas eleições para o CMDUA

O IAB RS expressa preocupação em relação à ausência de registro dos pedidos de impugnação apresentados pelo instituto no âmbito do processo eleitoral das entidades de classe ligadas ao planejamento urbano no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental.

Conforme o cronograma estabelecido no edital 006/2023, utilizando os critérios estipulados no item 2.11 do referido edital , foi emitido um documento elencando 23 entidades que não demonstram caráter de atividades relacionadas ao planejamento urbano. Isso ocorreu após análise apropriada e indicação da regularidade dessas entidades para participação nas eleições do CMDUA.

Como entidade representativa de arquitetura e urbanismo, com décadas de atuação em temas de urbanismo e planejamento urbano na sociedade civil e em diversas instâncias institucionais, o IAB RS manifesta preocupação com a condução do processo eleitoral em relação à observância das regras estabelecidas no edital vigente e suas implicações na participação não especializada das entidades sem afinidade com o planejamento urbano em contrariedade a lei de vigência que rege o CMDUA.

Todas as entidades mencionadas em nosso pedido de impugnação dirigido em tempo hábil a comissão eleitoral, via e-mail, pois o sistema encontrava-se fora do ar, estranhamente conforme última lista publicada mantêm o status de “Chamamento” ou “Aprovadas”. São nada menos que 23 entidades que estão sendo questionadas e o prosseguimento do certame, sem saneamento destas questões, evidencia o não cumprimento do edital que rege o processo eleitoral. Embora tenhamos questionado a Comissão cumpre referir que até o presente momento sequer obtivemos retorno da Comissão eleitoral a respeito.

Além das preocupações já mencionadas, destaca-se a inquietação em relação à falta de transparência e ausência de fundamentação que vem permeando o pleito, bem como a falta de isonomia e imparcialidade ao longo de todo este processo de eleição e nas diferentes etapas previstas no edital, adverte-se, desde já, que não é apropriado realizar retificações posteriores nos resultados, visto que abre margem para ajustes nas inscrições interferindo no resultado.

Confira a nota aqui

NOTA SOBRE A LISTA DE ERRATA DE ENTIDADES IMPUGNADAS PARA O CMDUA

Na última sexta-feira, 12 de janeiro de 2024, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade disponibilizou novo documento contendo uma correção e a inclusão das entidades mencionadas pelo IAB RS para impugnação.

Com o compromisso de manter esclarecidos os fatos e dar transparência aos acontecimentos, a referida lista foi disponibilizada no site da Secretaria, sem prévio contato com as entidades inscritas no processo e sem o retorno direto ao pedido de esclarecimentos anteriormente solicitado pelo IAB, referente a ausência de registro de impugnação. A tomada de conhecimento acerca dessa lista ocorreu somente na segunda-feira, dia 15 de janeiro. A existência da errata só veio a lume quando as entidades inscritas para o processo eleitoral do CMDUA tomaram conhecimento sobre o novo calendário eleitoral, cuja data de votação, foi alterada de 08 de fevereiro para 29 de fevereiro. No e-mail enviado, não constava, contudo, a informação referente à lista de correção.

Diante desse cenário, reforçamos a preocupação relacionada à condução do processo, uma vez que a justificativa para falta de esclarecimentos anteriores cingiu-se na alegação de o pedido enviado pelo IAB ter sido direcionado para caixa spam do endereço eletrônico indicado pela SMAMUS.

NOTA SOBRE O PROCESSO ELEITORAL NA RGP1 PARA O CMDUA
Nesta última terça-feira, 9 de janeiro, foi realizada a eleição para conselheiros e delegados da Região de Planejamento 1 de Porto Alegre, região que compreende o centro histórico e mais 18 bairros da cidade. A marca do primeiro dia de eleição foi a falta de estrutura, organização insuficiente e o despreparo da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS) para corresponder a presença de eleitores e a concentração de bairros desta região.O processo transcorreu com horas de fila, boa parte em corredores estreitos e sem ventilação. O tempo de votação se demostrou exíguo para a dimensão da participação, com eleitores passando até 5h na fila para conseguir votar. Informações desencontradas e falta de suporte para a condução de eleitores prioritários. Poucas estações para o cadastramento dos eleitores e 5 urnas, em uma única sala, para atender um total de 1578 eleitores.Foi uma participação histórica em um contexto de disputa. A clara presença de pessoas conduzidas em micro-ônibus vinculadas a empresas da construção civil, denota que o jogo de interesses na capital e, sobretudo na região central da cidade, é muito forte. A chapa eleita, com 59% dos votos, é representada por Felisberto Seabra Luisi, como conselheiro titular, e Manuela Dalla Rosa e Paulo Guarnieri, como conselheira e conselheiro suplentes. Cidadãos há muito tempo comprometidos com as pautas urbanas e sociais da cidade.

As eleições do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA) são um momento de profunda importância para o planejamento urbano de Porto Alegre e ocorrem em meio à revisão do Plano Diretor. Ainda restam 7 processos eleitorais, a ocorrer nas demais regiões de planejamento da cidade. É de extrema importância que se garanta a realização de forma adequada de um processo participativo em um momento ímpar como esse, que deve ser conduzido de forma respeitosa para com a população e organizado, com a estrutura necessária para tal.

O IAB RS convida da todas e todos se informarem sobre o processo eleitoral e comparecerem na votação da região onde são residentes.

Confira a nota aqui 

É tempo de eleições para o Conselho Municipal do Plano Diretor! Precisamos nos mobilizar para enfrentar a crise do clima e garantir direitos. Vem com a tua coragem e gana de transformação lutar por uma cidade para as pessoas, não para empreiteiras. Saiba mais aqui

Audiência pública debateu projeto de lei da prefeitura que regulamenta e ameaça autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Maioria dos agricultores expõe que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras, ameaçando a construção coletiva dos espaços, a autogestão dos feirantes e a produção ecológica de alimentos

A última terça-feira (14) foi marcada pela Audiência Pública virtual sobre o Projeto de Lei 037/2023, que ocorreu na Câmara de Vereadores de Porto Alegre (RS). O PL, proposto pela prefeitura, não está de acordo com o Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre (CFEPOA) e fere a cultura, autogestão, identidade e o acúmulo histórico das feiras, construído com esforços para garantir uma alimentação saudável para as pessoas e para os territórios. 

Na ocasião estiveram presentes presencialmente cerca de 90 pessoas, além de 160 pessoas por videoconferência. A presença física no espaço se deu via articulação de entidades ambientalistas, organizações da sociedade civil, parlamentares, movimentos sociais, produtores ecológicos/agricultores e parceiros urbanos. Isto devido a audiência ter sido marcada apenas de forma online pelas autoridades públicas – formato que inviabiliza a participação de agricultores e agricultoras do interior do estado, que ainda enfrentam dificuldades de acesso à internet. 

Mesmo com solicitação à presidência da Câmara para audiência híbrida, que permite a participação presencial da sociedade, as entidades não tiveram de pronto o retorno. Fato que também demonstra os reais interesses por trás do PL e a forma com que o debate vem sendo conduzido.  Mesmo assim, as articulações em defesa da autogestão e da autonomia das feiras ecológicas estiveram fisicamente presentes, ocupando o espaço.

A Audiência reuniu agricultores agroecológicos de diversos municípios, frequentadores das feiras, representantes de entidades e vereadores. Foi presidida pela vereadora Lourdes Sprenger (MDB), que fez a abertura dos trabalhos e passou a palavra ao secretário de Governança Local e Coordenação Política, Cássio Trogildo, que apresentou detalhes do projeto. Foram ouvidas cinco pessoas contrárias e cinco favoráveis ao PL 037/23. 

Em maioria, as pessoas presentes se posicionaram evidenciando que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras. O Conselho de Feiras Ecológicas é uma entidade que representa os produtores ecologistas do Rio Grande do Sul, o qual é constituído por produtores, consumidores, entidades da sociedade civil e órgãos públicos, como o Ministério da Agricultura, Associação Agroecológica do RS, entre outros.

Capital gaúcha tem as feiras ecológicas mais antigas do país – Foto: Elson Schroeder

Embora o Executivo afirme que o projeto foi construído com participação popular, grande parte dos participantes da Audiência criticaram o PL 037/23, sublinhando que ele é imposto sem diálogo com quem torna as feiras possíveis há décadas. Contrária ao PL, a agricultora familiar Franciele Bellé, cuja a família está na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) há 29 anos, evidenciou: “As feiras foram criadas pelos movimentos sociais, pela necessidade que a população de Porto Alegre tinha de consumir alimentos saudáveis”. Para ela, as feiras da Capital são referência pela relação produtor consumidor e o referido projeto vai contra isto, no intuito de instituir “uma norma de cima para baixo”.

Os participantes contra o PL da prefeitura estavam mobilizados reivindicando mais tempo para discussão e ao menos um novo encontro, em outra audiência pública de formato presencial, que ainda não teve data definida. 

Durante o encontro, foram salientados aspectos como a relevância da participação popular como parte da construção da agroecologia. Ponto que desembocou na reivindicação de mais espaço para participação de produtores que integram as feiras ecológicas na construção do PL. No sentido de levar em consideração os acúmulos, história e lutas por uma cultura que dissemine uma alimentação saudável para pessoas, meio ambiente e planeta.

 A pesquisadora em sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e conselheira do Conselho de Segurança Alimentar do RS, Potira Price, comentou que o poder público sempre teve uma participação muito tímida no fomento das feiras ecológicas. “As feiras são uma conquista social”, sintetizou. 

As feiras ecológicas resistem em meio às pressões do setor imobiliário, tanto na zona rural (com o avanço dos condomínios fechados, com a perda de área de plantio e a contaminação das águas), como no urbano, que privatiza os espaços públicos e avança sobre a cidade na lógica da especulação imobiliária e de transformar Porto Alegre em uma cidade “ctrl C+ ctrl V” de outras cidades, retirando a construção cultural e histórica das ruas e da memória do povo porto-alegrense. 

O desafio vai além de resistir a uma hegemonia marcada pela mercantilização da vida, pela redução dos espaços coletivos à ideia de compra e venda, pela fragmentação das coletividades e espaços dos comuns. Também é sobre pautar outras possibilidades e caminhos, o que as feiras ecológicas de Porto Alegre vem ensinando há décadas, sem se descaracterizar.  

Feiras ecológicas promovem debate sobre PL 037/23 e contam com abaixo assinado em defesa da autogestão das feiras. Crédito: Comunicação da FAE

Quanto ao PL 037/23, que em breve pode ser votado na Câmara Municipal, a base do governo tem maioria, podendo aprovar o projeto. Porém, entre feirantes e parceiros urbanos, é mínimo o setor que está de acordo com a proposta da prefeitura. O argumento contra o PL, advindo da maioria de feirantes/produtores, é de que o autocontrole, organização e consensos das feiras ecológicas sejam debatidos como vem sendo feitos desde o início: com autonomia, participação popular e na coletividade de quem constrói, de fato, os espaços. Hoje, da instalação de luz elétrica e das lonas para cada tenda, até toda a organização da feira, são afazeres realizados por feirantes. As pessoas produtoras que fazem tudo, a prefeitura só tem que ceder a rua. 

Parceiros urbanos se aliam aos feirantes, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que para além da luta por moradia constrói o sonho da soberania alimentar e do fim da fome no Brasil. Em 2021, na pandemia de Covid-19 e auge da fome, o movimento implementou um projeto nacional para garantir a alimentação de quem precisa: as Cozinhas Solidárias. Hoje, a Cozinha Solidária da Azenha, de Porto Alegre (RS), garante por dia em torno de 350 a 400 marmitas para a população, fazendo o que o Estado não faz.  

Unindo a produção de alimentos ecológicos com a distribuição de quentinhas, o MTST e a FAE se encontram na luta. E quanto ao PL 037/23, Eduardo Osório, da coordenação estadual do MTST, expôs: “O que está em jogo é uma disputa de modelo, uma disputa pela cidade. E a FAE, as feiras, sintetizam um sonho de uma outra sociedade, que aqui na cidade junta os urbanos e a turma do rural para garantir saúde, alimentação digna, dignidade do nosso povo. Nós do MTST estamos nessa disputa da cidade, pelo direito à cidade. Vivendo as expulsões do dia a dia nas ocupações, a negação do acesso aos serviços, com despejos administrativos e forçados, com a criação da periferia da periferia. E sempre contamos com a solidariedade e o apoio dos trabalhadores e trabalhadoras do rural, visionários, que há mais de trinta anos apostaram num modelo de agroecologia, sem uso de venenos, com uma outra relação com a natureza. E vem se provando que esse é um modelo de saúde, de futuro”.

Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), defendeu que as feiras não podem ter interferência da prefeitura. Apontou, ainda, o erro do PL em confundir os conceitos de orgânico e ecológico. “Temos que falar o que é ecologia, sobre a relação da vida com todas espécies e meios. E nesse sentido, já achamos que a lei tem que ser regulada. Precisamos de uma lei para as feiras, mas não essa da prefeitura”, mencionou. 

Finalizando a Audiência, foram debatidas as tentativas da prefeitura, fechada com empresários, de mercantilizar e privatizar os espaços coletivos. Além disso, o governo atua para dividir feirantes, incentivando a ideia da mercadoria como valor central, quando na agroecologia o valor está na vida e na diversidade das relações –  vai muito além do simples ato de comprar e vender. Foi pontuada também a necessidade de atenção a esses processos de fragmentação das lutas e coletividades, botando em prática uma ecologia da ação que paute outros horizontes de mundos. 

Leia também a matéria “Agricultores ecológicos criticam esvaziamento da autogestão em projeto de regulamentação do governo Melo”

O PL 037/2023 fere de morte as feiras ecológicas de Porto Alegre

Saiba o que é o PL 037/23 e quais são os pontos abordados em sua construção

Ato em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre, que ocorreu no dia 28 de outubro de 2023. Crédito: MTST RS

Ferindo as feiras ecológicas, e até mesmo os princípios da ecologia, que se propõe a construções democráticas, diversas e plurais, o PL 037/2023 não contempla demandas importantes dos coletivos que compõem as feiras

Uma das principais críticas ao projeto de lei da prefeitura é o esvaziamento do protagonismo do Conselho de Feiras, que tem em si um acúmulo de décadas de organização coletiva e gestão. Da forma que as feiras funcionam hoje, tudo é debatido entre entidades e pessoas produtoras. Conforme a proposta do PL 037/23, as feiras ecológicas acontecerão em logradouros públicos municipais definidos pelo Executivo. E a ocupação das vagas disponíveis nas feiras ecológicas existentes, assim como nas futuras, serão preenchidas mediante edital de seleção publicado pela administração municipal. 

A proposta da prefeitura retira a autonomia da gestão de sete Feiras Ecológicas: Feira de Agricultores Ecologistas (FAE) José Bonifácio, quadra 1, Feira Ecológica do Bom Fim, José Bonifácio quadra 2, Tristeza, Três Figueiras, Auxiliadora, Rômulo Telles e Park Lindóia. Houveram várias tentativas de diálogo com a Secretaria de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV). Os participantes do Conselho das Feiras se reuniram com o prefeito Sebastião Melo e saíram com a promessa de avaliação e de participação para os próximos passos do PL. Só que a proposta acabou indo para o legislativo sem considerar o que havia sido acordado. O PL do Executivo foi protocolado em 19 de outubro, na Câmara Municipal de Porto Alegre (RS). 

O Projeto de Lei 037/23 está tramitando na Câmara de Vereadores e prevê que a SMGOV regule as Feiras Ecológicas realizadas nos espaços públicos do município. O que pode acarretar, ainda, em feiras menos ecológicas e mais voltadas para o mercado convencional de hortigranjeiros. 

Com esse PL, a atual administração do município pretende alterar vários pontos do funcionamento desses espaços, privilegiando produtores e fornecedores de Porto Alegre. Fator que implica na quebra da diversidade de alimentos da feira, tendo em vista que os produtores aqui da região não tem uma produção diversificada. 

“A gente quer muito que a prefeitura abra espaço. Mais uma vez a gente pede diálogo.  São 34 anos de construção de um trabalho que é reconhecido hoje nacionalmente, mundialmente, por ser berço de um movimento ecológico, um movimento de luta em defesa da agricultura sustentável e da agricultura saudável. Nós somos um pilar dessa força. Que permita que a nossa identidade seja preservada e essa gestão seja compartilhada de fato”, assinalou Ezequiel Cardoso Martins, agricultor do litoral norte gaúcho, da Banca das Raízes, que faz parte da FAE.

O PL segue para análise da Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul (CEFOR). A relatoria ficará a cargo da vereadora Biga Pereira (PCdoB).

Confira o relato do agricultor Ezequiel, em defesa da autogestão das feiras. A entrevista foi realizada durante o ato do dia 28 de outubro, que ocorreu na FAE

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Assine o abaixo-assinado em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Leia também a nota da Amigas da Terra Brasil sobre o PL 037/2023. Que defende a sociobiodiversidade e a autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

 

Fluxos cosmológicos na cidade: a (des)invisibilização indígena

Artigo  de Carmem Lúcia Thomas Guardiola¹ e Roberta Deroma² aborda as retomadas Mbya Guarani na Ponta do Arado (Porto Alegre-RS). No extremo sul da cidade de Porto Alegre, no bairro Belém Novo, um movimento cosmológico em busca de territorialidade acontece em terras de propriedade privada. Indígenas da etnia Mbya Guarani retomam território na Ponta do Arado até então destinado a construção de um empreendimento imobiliário. O movimento de Retomada de territorialidade perpassa a cidade e seus habitantes em relações de conflitos e afetos, no qual interesses econômicos e de bem viver vão construindo histórias. Confira: 

Porto Alegre tem seus bairros centrais repletos de concreto, prédios uns ao lado dos outros e muitos carros soltando fumaça cinza percorrendo ruas asfaltadas de sentimentos expostos nos ritmos urbanos. Os bairros mais afastados do centro na zona sul mesclam o concreto ao verde em uma mistura de asfalto e de terra, de pessoas e de não humanos, de áreas urbanas e de áreas rurais.

Entre todas estas ambiências — bairros, cores, chãos, pessoas, ruídos –, encontramos os Mbya. Estes indígenas têm seu território de vivências não demarcado por linhas fronteiriças divisórias, mas em uma vasta área ao sul da América do Sul. Eles caminham e vivenciam estes espaços, mas é nas matas ou próximo a elas que se constituem como indígenas Mbya.

É em busca destes territórios, perpassados por concreto, que os Mbya caminham rumo ao seu fortalecimento: três lideranças se deslocaram por terra e por água até chegarem a ponta do Arado Velho. De barco seguiram e aportam no dia 15 de junho de 2018 na Ponta do Arado onde Alexandre, Timóteo e Basílio com suas famílias encontraram todos os elementos de vivência para potencialização de seus corpos.

Neste mesmo espaço geográfico existe outra história.

A Ponta do Arado é uma área de preservação de 223 hectares e faz parte de um todo de 426 hectares da Fazenda do Arado Velho que está localizada às margens do Guaíba no bairro Belém Novo, extremo sul da cidade de Porto alegre. Uma área territorial estranha aos moldes do indígena por ser privada e com donos. Nessa história, os proprietários, representados pela Arado Empreendimentos Ltda., idealizam um projeto de urbanização que prevê a construção de condomínios de alto padrão e centros comerciais.

Conflitos emergem diante de diferentes visões de mundo relacionadas às questões ambientais, estéticas e econômicas. Sentimentos desabrocham, constroem e transformam a história do bairro atravessada pelas disputas sociais e políticas em torno de uma terra singular que é significada através da longa vivência de seus moradores.

Após denúncias e pressões do movimento socioambiental composto por estudantes, ambientalistas e moradores do bairro Belém Novo, o projeto de urbanização está suspenso por questões legais no momento desta publicação. Tais conflitos com os empreendedores se intensificaram frente a uma nova presença antes invisibilizada: a presença indígena Mbya Guarani.

Enquanto os idealizadores do empreendimento imobiliário demandam na justiça a concretização de seus planos, criam conflitos ideológicos e morais entre os moradores e causam indisposições e constrangimentos para os Mbya que permanecem fortes e determinados em estado de Retomada das terras e do seu modo de ser.

Neste estado de Retomada, os indígenas recebem apoio de um movimento em alguns momentos de tensão. Os Mbya foram expulsos das matas da Ponta do Arado e encurralados nas areias da praia sem acesso à água potável, impedidos de transitar nas matas da região para buscarem materiais à construção de casas e de plantar suas sementes milenares passadas de Guarani à Guarani. Quando são constrangidos pelos não-indígenas, o movimento lhes oferece alimentos, filtros de água, roupas, materiais para erguerem seus abrigos, um barco para se locomoverem e visitarem seus familiares ou mesmo recebê-los em visita. Recebem também o apoio afetivo do Juruá (não-indígenas) ao irem em busca de redes de apoio em eventos na cidade.

A cidade perpassa o mundo Mbya. Não mais somente os campos, os rios, os lagos, os arroios e os outros indígenas, como também os espaços urbanos.

Em meio a acusações — como de destruidores do meio ambiente –, as famílias Guarani na Ponta do Arado estão em um espaço ínfimo ao lado de sítios arqueológicos com vestígios de seus ancestrais. Estes, que eram canoeiros, circulavam pelo Guaíba e pela Lagoa dos Patos de ponta em ponta, e a ponta do Arado Velho era somente mais um espaço de vida sem propriedades privadas. Hoje o local se configura enquanto periférico tanto a respeito de sua localização quanto de sua inserção nos espaços de diálogo sobre a cidade de Porto Alegre. Seu próprio status de zona rural se encontra fragilizado, tornando-se alvo de alterações e projetos de leis que denotam parcialidade ao se empenharem em propiciar a construção do empreendimento e ao desconsiderar a malha de conflitos e questões emergentes.

A região segue acompanhada do risco de estar fadada a um único modo de se conceber a cidade sob o discurso de progresso e de crescimento. Modo este que desconhece presenças indígenas no território urbano e que reforça estereótipos em torno da pessoa indígena ao negar este espaço a elas.

O estado de Retomada de terras dentro da sua compreensão enquanto resiliência pode ser entendido como um modo de se retomar uma cosmovisão aniquilada e ressignificar lugares, questionando acerca das funções dos espaços urbanos e o quanto correspondem às necessidades daqueles que, de vários modos, fazem parte deles. Terra e ancestralidade se somam em forma de Retomada, indagações e perspectivas.

Esta distinta forma de interrogar, interpretar e sentir o mundo nos traz respostas para a questão: como em tanto tempo de suas existências, constrangidos a se contentar com cada vez menos matas, suas crianças ainda brincam nas areias das praias da cidade?

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[1] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT/PPGAS/UFRGS), guardiolars2@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/4343383842143051

[2] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), integra o Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/PPGAS/UFRGS), deromaroberta@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/3096737094617446

Referências:

LADEIRA, Maria Inês. O caminhar sob a luz: o território Mbya à beira do oceano. São Paulo: UNESP, 1992.

PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: UNESP/ISA, Rio de Janeiro: NUTI, 2007.

O artigo foi publico originalmente aqui, confira

A urgência de um projeto político para as populações marginalizadas das cidades brasileiras

Durante a pandemia os movimentos populares ocuparam espaços deixados pela negligência do Estado – Isabelle Rieger/Arquivo Amigos da Terra Brasil

Somos 213,3 milhões de brasileiros e de brasileiras vivendo nas cidades; destes, 21,9% se encontram concentrados em 17 municípios, que possuem mais de 1 milhão de habitantes. Segundo esses dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2021, chegamos a 49 municípios com mais de 500 mil habitantes.

A inversão de rural para urbano se deu nos últimos 50 anos sem planejamento, a única regra era a da segregação e exclusão criando muros e a periferização das cidades. Esta expansão aconteceu usando o povo empobrecido como ferramenta do setor imobiliário, que por meio desse crescimento também disseminou o seu território, e usou a máquina do Estado para expandir a infraestrutura como demanda social.

Essas áreas que o setor imobiliário deixava descoberto por sua milícia, eram áreas de preservação, córregos, arroios, banhados e áreas do Estado, assim ampliando a disponibilidade de terras e retirando o natural da cidade, canalizando, aterrando e ocupando uma paisagem, concretado e impermeabilizado, sem vento e nem sol. Até o sol nos tiraram, as próprias estrelas com que a sociedade dialoga há milhares de anos, acabou em 50 anos.

Esta é a dimensão do desafio das cidades brasileiras. Como alimentar, fornecer moradia adequada, luz, água, saneamento básico, educação, transporte, saúde, a essa população? E ainda, como adequar tudo isso para reduzir os danos ambientais, promovendo uma transição agroecológica com justiça ambiental e soberania alimentar?

O urbano 

Nos últimos 4 anos, caminhamos para o desmonte das políticas públicas para as cidades e nos colocamos, ainda mais distantes, da necessária Reforma Urbana. Logo, no dia 1° de janeiro de 2019 foi extinto o Ministério das Cidades, destruindo os 16 anos de construção do planejamento urbano no país.

O Programa Minha Casa Minha Vida foi cancelado em 2021, após ter entregue cerca de 4,5 milhões de casas e apartamentos, num país que vive por volta de 7,9 milhões de déficit habitacional. Em seu lugar, o governo implementou o Programa Casa Verde e Amarela, que suprimiu a FAIXA 1 de acesso ao financiamento, justamente a destinada às famílias de renda mensal inferior a R$ 1.800, o que corresponde a 92% do déficit de moradia. Em setembro deste ano, o governo anunciou o corte de quase 95% do orçamento habitacional previsto para 2023.

Outrossim, a pandemia desvelou uma realidade triste do Brasil: a dos despejos e das remoções. A lógica da propriedade privada e da especulação imobiliária sempre estiveram presentes no país. Ocorre que durante a crise sanitária, a necessidade de um teto para o exercício do isolamento social em condições dignas foi uma prioridade. Assim, movimentos populares e diversas organizações fundaram a Campanha Despejo Zero, que foi responsável pela articulação da ADPF nº.828 (Arguição Descumprimento de Preceito Fundamental), na qual os despejos ficaram suspensos até outubro deste ano.

A decisão proferida pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, em 31 de outubro não manteve a suspensão dos despejos, no entanto recomendou que fossem instaladas comissões de mediação coletiva antes da decisão judicial. Apesar da orientação, juízes já começaram a conceder reintegrações de posse, inclusive de áreas que são terras públicas federais ocupadas, as quais caberia perfeitamente um diálogo exemplar. Segundo a Campanha Despejo Zero, quase 1 milhão de pessoas estão em risco de despejo neste momento no país.

Temas candentes 

Os movimentos de moradia, com destaque ao MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), têm reivindicado a retomada do Ministério das Cidades e da constituição de um debate popular sobre a Reforma Urbana. Em face disso, propõe-se ao novo governo que seja retomado o Projeto Minha Casa Minha Vida Entidades, por meio do qual os movimentos puderam demonstrar ser possível construir moradias, com acessibilidade a hortas, transição energética, casas adequadas para a realidade das famílias e, sobretudo, com uma gestão popular, fora da lógica das grandes construtoras. Assim, a moradia, no Programa, retoma seu lugar como direito necessário à dignidade humana e não na perspectiva de geração de lucros às empresas.

Além dessas, outras propostas são apresentadas. O primeiro eixo envolve combater a mais valia urbana por meio de uma valorização do Estatuto da Cidade e uma radicalização da função social urbana da Constituição. O propósito é de que o Estado use os recursos das zonas mais ricas da cidade para investir em moradia, saneamento público, passe-livre nas zonas que carecem disso, promovendo uma distribuição de riquezas.

Repensar a organização socioespacial da cidade para disponibilizar aos trabalhadores e às trabalhadoras acesso ao transporte, trabalho, saúde e educação nas proximidades de suas casas. A especulação imobiliária, a exclusão das cidades, expulsam as populações de baixa renda do direito à cidade, submetendo-as a viver nas fronteiras distantes sem direitos. É urgente repassar as cidades excludentes e terminar com a segregação social, racial e de classe.

Também garantir o acesso à água e ao saneamento. Nos últimos anos, foram aprovados projetos de privatização do saneamento básico no Brasil, trazendo inúmeras incertezas sobre a concretização do direito à água, além da especulação com tarifas extraordinárias. Muitas ocupações e bairros de periferia ainda não acessam água encanada de qualidade. Sem contar na população em situação de rua, que está completamente privada deste direito. Hoje no Brasil, o direito universal que garante o acesso à água só é permitido a quem tem a posse regularizada, ou seja, ocupações, retomadas e aldeias não demarcadas e quilombos não titulados não têm este direito garantido.

A privatização também caminha para os espaços públicos e coletivos da cidade. Muitas dessas iniciativas são financiadas e desenhadas pelo próprio BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e não estão sendo acompanhadas do adequado processo de participação social. Isso é algo que o novo governo precisará rever. Em Porto Alegre (RS), por exemplo, discute-se a concessão do Parque da Redenção sem a realização de qualquer debate público por parte da prefeitura.

Fernando Campos, integrante da Amigos da Terra Brasil e militante do MTST, destaca que é necessário pensar na importância do retorno dos espaços de participação popular, previstos na Constituição e no Estatuto das Cidades. Para ele, pensar as cidades brasileiras é romper com a lógica do empresariado na gestão dos problemas da cidade e assegurar o caráter deliberativo aos Conselhos Municipais e às Conferências das Cidades, posto que trazem as propostas a partir da realidade dos territórios, sendo capazes de elencar as escalas de prioridades a serem enfrentadas pelo poder público. Assumir um compromisso público e político com a participação popular é tarefa urgente.

Na pandemia, fomos obrigados a repensar nossos valores de cuidados e solidariedade coletivas. Assim nasceu a iniciativa do MTST das cozinhas solidárias, hoje são 31 cozinhas no país, que distribuem refeições diárias, gratuitas, ajudando a combater a fome nas periferias. Pensar no combate à fome, que como anunciou Lula será uma das prioridades do governo, deve ser encarado conjuntamente com outras  políticas públicas como de moradia e de cidade. Bem como estar conectado ao fortalecimento público dessas iniciativas populares, que são promotoras da segurança alimentar e da aliança campo e cidade.

Com propostas concretas e possíveis, marchamos rumo à Reforma Urbana

Diante de um Estado negligente, os movimentos populares organizaram suas forças e resistiram, cumprindo um papel político e pedagógico durante a pandemia que caberia ao poder público. Certamente, esses atores estão plenamente capacitados para opinar e construir soluções às cidades brasileiras porque, ao longo de sua luta histórica, acumularam experiências alternativas, como a Cozinha Solidária, os mutirões de construção e as ocupações urbanas, que educaram e politizaram o povo brasileiro para participar ativamente da construção de sua cidade. O novo governo precisa romper a lógica de que “a cidade é um espaço sem opção” propagada por empresas e assumir a capacidade do povo de se organizar, resistir, ocupar e pensar sobre seus problemas candentes.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2022/12/06/a-urgencia-de-um-projeto-politico-para-as-populacoes-marginalizadas-das-cidades-brasileiras

Quilombo dos Alpes resiste: Manifesto em defesa dos territórios quilombolas de Porto Alegre (RS)

Após tentativa de invasão com homens armados no domingo (28), essa semana está sendo marcada por vigília e mobilização no Quilombo dos Alpes, de Porto Alegre (RS). Mais uma vez a violência atravessa a vida dos quilombolas e o território ancestral de resistência. É necessária a titulação imediata do Quilombo dos Alpes e a garantia da segurança e integridade do quilombo e das pessoas que ali vivem.

Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS), resiste! | Foto: Alass Derivas
Horta no Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS) | Foto: Alass Derivas

No domingo, escoltadas por um carro com homens armados, pessoas tentaram invadir as casas em construção da comunidade, que fazem parte do projeto de moradia do Minha Casa Minha Vida, com a qual o quilombo foi contemplado. As obras, não finalizadas, mostram mais uma vez o descaso do estado com os quilombolas. Na ocasião, os invasores foram dispersados pela Polícia Militar. Mas ameaças seguiram em riste, evidenciando um histórico colonial e genocida que precisa ser interrompido. Desde então, a comunidade dos Alpes recebe o apoio em vigílias e cobra coletivamente medidas para garantir iluminação e segurança das pessoas e do território. A mobilização fez com que a Caixa Econômica Federal anunciasse que liberaria  recurso para a obra de conclusão das casas recomeçarem na segunda-feira. Em resistência, mandinga e coletividade segue a luta do Quilombo dos Alpes, assim como as lutas para aquilombar o Brasil!  

Casas invadidas em ataque ao Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS) | Foto: Alass Derivas
Casa com X, como alvo, marca invasão ao Quilombo dos Alpes que ocorreu no domingo | Foto: Alass Derivas

Nas margens que contornam o Quilombo dos Alpes se erguem prédios frutos de um projeto racista e elitista, que entende a cidade a partir de uma lógica excludente e colonizatória. Para dar espaço à iniciativa privada, os governos colocam em cheque populações, saberes e práticas ancestrais que pautam a vida em meio a políticas de morte. Da vista dos Alpes, torres na Orla do Guaíba, prédios do Barra Shopping e espaços que prevêm serem cedidos a construções que pouco falam sobre a realidade dos povos, e mais uma vez ameaçam territórios negros. Uma Porto Alegre que visa o lucro, a qualquer custo, e avança sobre os morros preservados. 

A vista dos Alpes, que escancara os contrastes de um projeto excludente de cidade | Foto: Alass Derivas

Entidades, Coletivos, Quilombos e Movimentos Sociais se solidarizam com o Quilombo dos Alpes e exigem que as Autoridades e Instituições afins cumpram a sua missão Institucional ao que se refere a Regularização Fundiária e Efetivação da Titulação do Território Quilombola. Reivindicam o respeito e proteção do Quilombo e dos quilombolas como previsto na Constituição Federal de 1988. É dever do Estado a proteção dos quilombos, uma das expressões civilizatórias de matriz africana. Mitigar ou relativizar esse dever é fator para violência contra os Povos e Comunidades Tradicionais. 

A Frente Quilombola RS divulgou o Manifesto em Defesa dos Quilombolas de Porto Alegre (RS) – Quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro. Leia o conteúdo na íntegra: 

O Quilombo dos Alpes é uma comunidade tradicional centenária de Porto Alegre, localizada o bairro Glória/Cascata. Assim como os demais dez territórios quilombolas da cidade, o  quilombo dos Alpes está sob franco ataque de disputas territoriais violentas dadas através de uma relação de forças perversas e desiguais. As lideranças quilombolas têm sido insistentemente acossadas pelo avançar da violência de milícias, grileiros e traficantes que tentam ocupar o território quilombola. A demora do Estado brasileiro em demarcar, proteger e qualificar o bem-viver das comunidades quilombolas contribui para esse cenário de extermínio da população quilombola. Na manhã de domingo, 28 de agosto de 2022, as casas do projeto Habitacional Quilombo dos Alpes – JV foram invadidas por cerca de 20 pessoas. No entanto, o grupo logo foi dispersado pela Brigada Militar. Porém, a tensão entre a comunidade quilombola e os invasores seguem atormentando as lideranças do Quilombo dos Alpes que movimentam, junto com a Frente Quilombola do RS a vigília dos sujeitos e o território quilombola. Em dezembro de 2008, duas das lideranças quilombolas foram assassinadas dentro do território em decorrência de disputas movidas pela especulação imobiliária. O assassino foi condenado a trinta anos de prisão, mas hoje responde em regime de prisão domiciliar. Na ocasião, a atual liderança quilombola também foi baleada, mas  conseguiu sobreviver, e hoje segue na luta por melhorias para a comunidade quilombola. Tendo o medo como companhia as lideranças do Quilombo dos Alpes desafiam o Estado Brasileiro a cumprir a necessária reparação histórica e geógrafica ao explorado povo negro, indegena e quilombola que muita riqueza gerou na construção deste país.

O projeto Habitacional Quilombo dos Alpes – JV representa o acesso a uma política pública, o programa Minha Casa, Minha Vida-Entidade e é destinada a construção de 50 casas para 50 famílias quilombolas já cadastradas, e que acompanham o projeto desde 2016 quando do início de sua organização. A implementação só se efetivou com acesso ao financiamento em março de 2019 quando após exaustivo processo de judicialização o recurso do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), do atual Ministério do Desenvolvimento Regional, administrado pela Caixa Econômica Federal, foi então liberado. O projeto tem o destacado protagonismo da Associação do Quilombo dos Alpes D. Edwirges enquanto Entidade Organizadora a acessar esse tipo de edital majoritariamente acessado por empreiteiras e agentes do capital imobiliário. O ineditismo da organização do projeto por parte da associação quilombola em âmbito urbano é assessorado pelo Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente, do curso de Geografia da UFRGS e atualmente conta com a parceria da Cooperativa de Trabalho Habitação e Consumo Construindo Cidadania COOTRAHAB de São Leopoldo.

Com a pandemia e a paralisia completa das obras, a Associação Quilombola dos Alpes tem feito denúncias ao poder público sobre o abandono e a violência a qual estão submetidos. Desde o início da pandemia a comunidade vem exigindo respeito, reconhecimento, sinalização do território e iluminação pública enquanto medidas diretas de segurança, no entanto a lentidão dos serviços públicos, uma das expressões do racismo institucional que organiza a sociedade brasileira até os dias de hoje reforçam a desigualdades enfrentadas pelos sujeitos quilombolas. O esgotamento das comunidades frente às violências sistemáticas a que estão sujeitas apesar de dificultar, não tem impedido a continuidade da luta quilombola pela liberdade e libertação da monocultura do pensamento capitalista.

Contudo é muito alto o preço pago na luta por liberdade. As vidas quilombolas estão em risco permanente, seja no Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre, no Maranhão e em todo o Brasil. Responsabilizamos estas violências e as múltiplas escalas de negligência/violência de Estado e sua Colonialidade Permanente. O Estado nos acusa de estressar as suas instituições e institutos , sem reconhecer o quanto as instituições nos massacram.Nossa luta e nossos apelos não se resolvem a cada eleição, demandam ações diretas, efetivas e continuadas. Nossa luta não é hashtag, é por liberdade, reconhecimento, segurança, titulação e bem viver. Frente a crise civilizatória que enfrentamos, lutamos por outros projetos de sociedade, mais plurais, diversos e menos desiguais. O Quilombo dos Alpes e os Quilombos de Porto Alegre, assim como os amigos e apoiadores convidamos a compartilhar conosco a prática efetiva do UBUNTU se integrando a vigília no Quilombo dos Alpes que acontece desde o dia 28/08/2022 até 05/09/2022 no território do Quilombo, Estrada dos Alpes, 1300. Toda contribuição financeira ou presencial é bem vinda.

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A Amigos da Terra Brasil rechaça a violência contra o quilombo e os quilombolas, que em suas sabedorias, práticas e ancestralidade preservam cotidianamente os territórios brasileiros e pautam a construção de uma sociedade de bem viver, em que o respeito à diversidade de expressões civilizatórias  é verbo! Que o Estado assuma a sua responsabilidade e a justiça seja feita, com titulação já para Quilombo dos Alpes. Toda solidariedade é necessária. Divulgue a respeito, some nessa luta, se articule com o Quilombo dos Alpes. Toda contribuição financeira ou presencial é mais que bem vinda! Contate a Frente Quilombola do RS e se articule nessa luta. 

Quilombo dos Alpes | Foto: Alass Derivas

Salve a resistência nos Alpes e toda a resistência ancestral!

Seguimos em luta. 

Torres do Inter: especulação imobiliária avança na Orla da cidade de Porto Alegre/RS

Movimentos sociais, quilombolas, grupos de torcedores e torcidas organizadas do Inter, contrários ao projeto que institui duas torres gigantes no terreno do Estádio Beira Rio, realizaram reunião em 28 de dezembro de 2020 para pensar estratégias de resistências. Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

“As pessoas são expulsas do Quilombo Lemos, localizado próximo ao terreno do Beira Rio, na mesma movimentação da expulsão das pessoas da Ilhota para a Restinga nos anos 60, para fins do ‘progresso’. Chega com atropelo uma contrapartida que não contempla nada na situação de quem mora no entorno.” – Liderança do Quilombo Lemos

Previsto para entrar em votação na Câmara dos Vereadores de Porto Alegre, o projeto de lei complementar 004/19, que inclui um artigo na Lei 1.651, sancionada em 1956, institui as duas maiores torres do Rio Grande do Sul no terreno do Estádio Beira-Rio, cedido pelo Governo Brizola para a construção de um espaço de esporte e lazer. Como contrapartida para usar o espaço que hoje é ocupado por quilombos, escolas de samba e população em geral, o megaempreendimento movido pela especulação imobiliária coloca a duplicação da rua José de Alencar, a restauração do Asilo Padre Cacique, a remodelação do posto de saúde Santa Marta, no centro da Capital, e a instalação de um projeto cicloviário. Nada é falado sobre o terreno de escolas de samba tradicionais que integram o Carnaval de Porto Alegre e os quilombos que compõem a região – que provavelmente serão despejados e forçados a viver em regiões mais periféricas; sobre como ficará a situação do pôr do sol e da luminosidade no bairro, do aumento do número de veículos circulando, causando congestionamento; ou sobre os impactos ambientais causados pelos edifícios gigantes.

O projeto pretende autorizar a venda do terreno que hoje é o estacionamento do estádio, em frente à estátua do Fernandão e do Portão 7, ou seja, um terreno que pertence ao complexo do Beira Rio. Movimentos sociais, quilombolas, grupos de torcedores e torcidas organizadas do Inter contrários ao projeto querem evitar que aquele terreno seja vendido para a empreiteira construir prédios de luxo para moradia e escritórios de trabalho. Ou seja, prédios altamente elitizados, quem morará? Quem vai lucrar? Por que não houve debate sincero com a torcida colorada sobre o que fazer com um pedaço do seu patrimônio? Para o povão colorado que vai ver o jogo ao redor do estádio, que tenta entrar, vai diminuir consideravelmente o espaço e a capacidade de pessoas, e sabemos como é preconceituosa, racista, machista a “segurança” da elite. Se o território for vendido, o Inter e a torcida perderão para sempre um local que podem usar – e que está sendo vendido para a iniciativa privada a preço de banana. 

Em reunião realizada em 28 de dezembro pelos movimentos contrários à instalação das torres no terreno do Internacional, foi reiterada a necessidade de não aceitar nenhuma contrapartida que não beneficiasse toda a população do entorno. Para isso, estão sendo reivindicadas a regularização fundiária dos quilombos localizados nos arredores, a realização de um estudo de impactos ambientais e a entrega legal dos terrenos das escolas de samba para estas. Sendo assim, é visível o alinhamento do poder público com a burguesia, já que privilegiam nas compensações do projeto apenas serviços para a classe média, como o alargamento de uma faixa para automóveis. Nada se é falado sobre a construção de moradias populares para de quem será tirada a casa. 

O que se vê na cidade de Porto Alegre é uma constante entrega dos espaços públicos para a iniciativa privada. Como observado neste projeto, é a alteração do regime urbanístico em detrimento do ambiente e da sociedade, garantindo ganhos milionários ao proprietário privilegiado, da indústria da construção civil e da especulação imobiliária.

Situação semelhante ocorreu com a Fazenda do Arado Velho, uma área 4 vezes o tamanho do Parque Farroupilha (Redenção), no bairro Belém Novo, no Extremo Sul de Porto Alegre, em que foram realizadas incessantes mudanças do Plano Diretor da cidade para privilegiar este e outros tantos empreendimentos imobiliários, empreiteiras e construtoras. Essa especulação imobiliária fez o Barra Shopping Sul e o Pontal do Estaleiro, faz o novo projeto do Cais Mauá. Como já é de praxe, o Estado cede o espaço para a iniciativa privada sem ver a cor do dinheiro, tudo passa para as empresas. Estima-se que, por exemplo, no caso do Beira-Rio, o terreno valha R$1 bilhão. Assim, essa privatização não é benéfica nem para a população, nem para o poder público, só para os bolsos de quem detém os direitos de posse dos empreendimentos. 

É necessário, portanto, mobilizar-se contra mais uma entrega do patrimônio porto-alegrense para a iniciativa privada. Não às torres do Inter! Não ao PLC 004/19!

Movimentos contrários à implantação das duas maiores torres do Rio Grande do Sul. Fotos: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

Certificado pela Fundação Palmares, Quilombo Lemos resiste à especulação imobiliária na orla do Guaíba

Diversas atividades estão programadas para o final de semana, além de uma noite de vigília no domingo. A reintegração de posse pode ocorrer já na segunda-feira (12/11). Região do Morro Santa Teresa é alvo histórico da especulação imobiliária em Porto Alegre. Informações atualizadas na página do Facebook Somos Quilombo Lemos.

O Quilombo Lemos, sétimo quilombo urbano de Porto Alegre, está ameaçado de despejo. Recebeu a visita de oficiais de justiça e do Batalhão de Choque da Brigada Militar na quarta-feira (7/11), acompanhados de escavadeiras. Entraram sem convite, fechados a qualquer diálogo. Água e luz foram cortadas. O plano era despejar as pessoas sem respeitar os trâmites legais: não houve conversa prévia com moradores; não haviam sido intimados a Defensoria Pública nem o Conselho Tutelar – ações necessárias, uma vez que entre as pessoas ameaçadas de serem jogadas às calçadas das avenidas duplicadas e da orla do Guaíba “revitalizada” estão também crianças. Retirem apenas os pertences pessoais, era a ordem do apressado oficial de justiça. Que quem estava em casa – era o meio da manhã de uma quarta-feira, dia útil, e muitos trabalhavam ou estudavam no momento – corresse a juntar o que conseguisse de suas coisas e partisse dali logo, sem rumo certo. Foi dado meia-hora para isso, e azar dos ausentes: voltariam aos escombros, somente; a escavadeira se atiçava ao lado do terreno, sedenta pelo cimento, tijolos e madeiras a serem derrubados das cinco casas onde hoje moram cerca de 60 pessoas. Bem a tempo, porém, avisados por redes sociais e telefonemas, uma defensora pública e um procurador do Ministério Público Federal apareceram: cumpra-se a lei.

Contrariado, o oficial de justiça se viu obrigado a recuar, junto a seus soldados mascarados e não identificados e sua escavadeira. Saíram com a promessa de voltar, o que pode acontecer já na segunda-feira (12/11). Diversas atividades culturais estão programadas para o final de semana no quilombo, para que se fortaleçam as redes de apoio. Doações são pedidas. Os trâmites jurídicos para reverter a decisão seguem, com a atuação do Ministério Público Federal e do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Nesta quinta-feira (08/11), foi oficializada a certificação da Fundação Palmares ao Quilombo Lemos, dando ainda maior segurança jurídica às famílias – isso, claro, fosse a justiça justa. O Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul recomendou a suspensão de ordem de reintegração de posse.

De quem é a terra?
Mas por que vieram sem aviso estes homens todos, no meio de uma manhã de quarta-feira, invadir a terra da família Lemos? Essa é uma pergunta que nos remete a alguns anos atrás: o pedido de despejo para o Quilombo Lemos parte do Asilo Padre Cacique, instituição franciscana conhecida por cuidar de idosos há anos na avenida de mesmo nome. Curioso que o desejo de jogar famílias à rua, idosos entre eles, parta de uma instituição que se vangloria e se sustenta a partir da solidariedade de outros (mas não só disso, afinal o asilo possui mais de trinta imóveis em seu nome). O terreno hoje em disputa é de posse dos Lemos há mais de meio século: eles ocuparam a área ao lado do asilo e a ele se dedicaram a vida inteira: a matriarca Delzia Lemos serviu ao asilo por 35 anos. Após 46 anos de serviços prestados, Jorge Lemos, o patriarca, faleceu em 2008, logo que chegou em casa do trabalho. Seus últimos esforços em vida foram ainda dedicados à instituição que agora quer tirar o teto de seus descendentes – foi após a morte de Jorge que o Asilo Padre Cacique deu início ao imbróglio judicial para retirar os Lemos de sua terra, em 2009. Antes disso, há cerca de duas décadas, já havia sido feito o usucapião da área, momento no qual os responsáveis pelo asilo convenientemente “esqueceram” da presença das trabalhadoras e trabalhadores que viviam ao lado para lhes servir.  A terra em disputa, portanto, não é (como o asilo diz ser) uma cedência; foi uma área devoluta ocupada pelos mais velhos para que estivessem mais próximos do asilo onde trabalhavam.

A dedicação integral dos Lemos ao asilo não deve ser novidade a ninguém, infelizmente: as famílias negras sempre cuidaram das brancas, de crianças a idosos, ao custo de seu próprio bem-estar e o de suas famílias. Leia bem as entrelinhas da ordem de despejo, o que está dito é: negro aqui, só se for pra trabalhar. Pois recuemos um pouco mais no tempo, é importante lembrar a raiz das querelas de hoje e em determinado momento não havia ali sequer asilo: a própria edificação, hoje tombada, foi erguida por mãos e suor de negros, escravos que habitavam já o local. Diga-me você portanto de quem é a terra: de quem sempre viveu nela, de quem cuidou dela, de quem cresceu nela, de quem plantou e construiu o que nela há ou de quem na terra nunca viu valor, apenas um espaço para seus servos recuperarem as energias para lhe servirem com maior vigor em seguida – e que agora, falecido o zelador-faz-tudo, veem como mais proveitoso a venda do local a gananciosas construtoras que entendem estar ali um ponto ideal para montar seus edifícios e torres e condomínios, privatizando um pouco mais da maior riqueza natural porto-alegrense, o Rio Guaíba?

Há aí mais que os olhos podem ver: ora, a região desperta a ganância daqueles que vislumbram uma orla “revitalizada” livre da negritude e da cultura popular. Onde hoje há um quilombo, pretendem os desejosos do despejo, haverá torres, shoppings, cercas. E gente branca, claro, a não ser para trabalhar. Para fins de localização geográfica: o Quilombo Lemos fica na avenida Padre Cacique, número 1.250, exatamente ao lado do asilo. O terreno se estende mais aos fundos, já que na parte da frente foi esmagado pela construção de uma revendedora de carros, construída sob um terreno que o asilo não se importou em entregar e nem aparenta ter interesse agora. Com a remoção, a terra ancestral negra corre o risco de ser perfurada pelas pedras fundamentais de condomínios luxuosos e atropelada pelas rodas das caminhonetes e carros das classes média e alta e branca. Esse é o plano: uma ponta a orla do Guaíba já pertence à Uber; a outra, à Melnick Even. No meio, com uma vista vislumbrante para o principal cartão-postal de Porto Alegre, as águas do Guaíba onde o sol se põe, está o Morro Santa Teresa, que tem aos pés a avenida Padre Cacique e, ali, o Quilombo Lemos. Nada do que acontece é por acaso: a tentativa de entrega dessas áreas à especulação imobiliária é histórica. O terreno da Fase (Fundação de Atendimento Socio-Educativo), vizinho dos Lemos à direita, foi por anos alvo das construtoras – e de um estranho silêncio midiático –, assim como outras famílias que vivem na região. Com os conflitos, a Lei Complementar nº 717/2013 declarou a área do morro como “Área Especial de Interesse Ambiental”, com identificação de Área de Proteção do Ambiente Natural, de Área de Interesse Cultural, bem como Área Especial de Interesse Social (AEIS). Nada está entregue ainda: há resistência, sempre houve, e as famílias do Quilombo Lemos não têm nenhuma intenção em deixar a terra onde cresceram e firmaram suas raízes há 60 anos.

Atividades, vigília, união: os esforços para se manter sob seu território
Após a tentativa de invasão do oficial de justiça e dos soldados e das escavadeiras na quarta-feira, uma vigília se formou no quilombo. Moradores, família, amigas e amigos, organizações parceiras, defensoras e defensores dos direitos humanos, advogadas e advogados, comunicadoras e comunicadores, muitos corpos se juntaram em um, colocando-se no caminho da violência dos invasores. De quarta para quinta-feira (8/11), a noite foi mal dormida: nublada e cheia de dúvidas, era palpável a tensão imposta pelo não-saber sobre o destino que viria com a alvorada. Tente compreender: o quão bem se pode dormir sob a ameaça de um despejo? O dia nasceu ensolarado, entretanto: o amanhã tem sido sempre outro dia, alimentando essa esperança insistente que não desiste do sonho de um futuro melhor. Havia sol, que melhor presságio se poderia ter?

Enquanto a centena de pessoas se reunia no quilombo em vigília, atentas às ameaças do horizonte – e sempre que sirenes soavam e luzes vermelhas e azuis piscavam na rua os corações perdiam uma batida, apreensivos –, a alguns quilômetros dali uma reunião era travada entre lideranças quilombolas, representantes da família Lemos, o comando da polícia e o oficial de justiça, ainda chateado por ver frustrada sua primeira tentativa de jogar as pessoas à rua – porém convicto de sua missão, independente das ilegalidades acusadas e confirmadas em sua ordem de despejo. Dali, resolveu-se que no mínimo até a segunda-feira (12/11) se daria uma certeza às famílias: não ocorrerão ações ao longo do final de semana, a fim de que os ritos antes desrespeitados pelo oficial sejam agora cumpridos, caso o juiz mantenha a opinião favorável ao despejo. Mas se espera que não cheguemos a tanto. Os trâmites judiciais devem ser levados à esfera federal, com a atuação do MPF, do Incra e com a certificação da Fundação Palmares – a ação tramitava na 17ª Vara Cível de Porto Alegre, instância indevida para tratar de questões fundiárias dos povos originários e tradicionais.

Não deve haver desmobilização, porém: o discurso da presidência do Asilo Padre Cacique não permite relaxamento. Na figura de seu presidente, Edson Brozoza, a instituição tem se mostrado intransigente, rebaixando-se a ofensas de cunho racista que não poderiam ser aceitas pela sociedade ou pela justiça. Ao tomar conhecimento de que o despejo não poderia ocorrer devido a irregularidades no processo, o senhor Brozoza perguntou, de maneira muito agitada, a quem estava à volta, ‘quantos dias, meses, horas e minutos faltavam para o presidente Bolsonaro assumir’. Estava ‘muito ansioso por isso, pra acabar com esse tipo de palhaçada aqui do lado’, o que ele afirmou se tratar de uma ‘invasão afrodescendente’. Caso se cumpra o reconhecimento da terra como pertencente à família Lemos, fez ainda a promessa de pintar a pele de vermelho e vestir um colar, para alegar que aquela terra é, na verdade, indígena, estendendo seu preconceito, para além de negras e negros, aos povos originários – e mostrando também desprezo pelas leis que garantem os direitos dessas populações. Agressivo, disse também que, se puder, ‘leva uma dezena pro inferno’:vai dar morte e não quer nem saber’. São verdadeiras ameaças feitas às vidas das famílias quilombolas. Em contraste, e perceba a maravilha da simultaneidade: ao mesmo tempo em que Brozoza derramava ódio e racismo em sua sala com ar-condicionado no asilo, Mestre Jaburu pegava seu berimbau no quilombo e convidava todas e todos a cantar: na Igreja bate o sino, na senzala bate o tambor.

A agressividade do presidente do Asilo Padre Cacique e de uma lei que acorda famílias com soldados mascarados e escavadeiras prontas para derrubar suas casas não permite o descanso. A mera palavra do homem branco já se mostrou indigna de confiança muitas vezes. A noite de domingo será mais uma de sono perturbado, e outro amanhecer de dúvidas virá na segunda-feira.

(foto da capa: Joana Berwanger/Sul21. Mais fotos AQUI)

As megaempresas e os interesses que atravessam a reintegração de posse do Quilombo do Lemos

Texto de Douglas Freitas

Potente a matéria da Débora Fogliatto no Sul21 em cima das declarações racistas do Presidente do Asilo Padre Cacique. Absurdo o que fala Edson Brozoza.

Na matéria, ele diz que o dinheiro oriundo do aluguel de 33 imóveis que o Asilo possui não é suficiente para sustentar o local. Nós, como Revista Bastião, temos que prestar contas por acreditar na transparência financeira; por que não exigimos isso de uma instituição como o Asilo Padre Cacique?

Quais são os interesses no terreno em frente à Orla do Guaíba? A área mais perto do Gasômetro foi recém reformada, e agora tem a administração da manutenção feito pela empresa estadunidense Uber. Ali perto está o Anfiteatro Por do Sol, um dos principais espaços públicos pensados, um palco enorme, a céu aberto, na beira do rio, em que a Samsung prepara seu segundo grande festival de música dos últimos meses. Samsung, da Coreia do Sul, uma das empresas que mais vende celular e provavelmente pensa a inteligência artificial.

Nas ruas centrais, na beira do rio, a Heineken, marca de cerveja holandesa, promoverá uma exibição da corridas de carros da Fórmula 1. Pelas ruas do centro da cidade. As ruas estão trancadas, algumas coms entido invertido, vários agentes da EPTC – Empresa Pública de Transporte e Circulação (oficial) mobilizados nestes últimos dias. Trânsito prejudicado. Faz dois dias que ruas calmas estão congestionadas, com motoristas apressados. Seguirão assim nos próximos dias. Onde estão os repórteres que alertam para o transtorno no trânsito que um protesto provoca? Onde estão as pessoas que diz que o mais significativo de uma manifestação é o seu impacto no trânsito? E a Heineken e o Marchezan? O que a Heineken está investindo na Prefeitura de Porto Alegre?

Em uma área há alguns metros do Somos Quilombo Lemos, existe o Pontal do Estaleiro. Área em frente a Fundação Iberê Camargo, na beira do Rio. Ali surgirá um dos três Hub de Saúde. Parceria da Hospital Moinhos de Vento, Grupo Zaffari, Construtora Melnick Evens, em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre. Shopping Borboun e hospital no mesmo espaço. Vai ser mais fácil cuidar dos seus velhos no hospital podendo comer um Big Mac entre uma dormida e um horário da visita. Quantos terrenos o Grupo Zaffari possui na cidade? E, pensando no Hub de Saúde, você acha que você vai poder pagar por esse atendimento? Se cortarem o SUS tu acha que as empresas privadas vão construir hospitais para os pobres ou classe média? Vão construir é para os ricos, como esse Hub de Saúde. A não ser que achem um jeito de lucrar ainda mais com as nossas doenças. Ou usar corpos em situação de vulnerabilidade para seus experimentos, como a empresa Bayer (aglutinada com a maior empresa de agrotóxicos do planeta, a Monsanto), que fechou um convênio com a Prefeitura de Porto Alegre para doar medicamentos ultraconceptivos de longa duração (processo de esterilização?!?) para mulheres que vivem em abrigos de Porto Alegre. Considerando que a maioria das mulheres nesta condição são negras, seria essa ação uma ação de eugênia? De evitar que pessoas negras nasçam? É um absurdo testar fórmulas químicas em qualquer ser vivo, principalmente quando se usa a força o aparato do Estado e a situação de vulnerabilidade das pessoas – que se for a fundo, se vê que também é provocada pelo Estado e pelos seus tentáculos (latifundiários, milícias, empresas multinancionais, racismo estrutural).

O processo de reintegração de posse do Quilombo do Lemos começou em 2008, anos antes antes da Copa de 2014 (o terreno do Quilombo fica quase em frente ao Estádio Beira Rio, estádio que sediou jogos da Copa na cidade). Copa, megaevento produzido pela FIFA que arrasou vilas inteiras de Porto Alegre, jogando comunidades para ocupações vulneráveis ou para vilas mais periféricas, ignorando condições de trabalho, exposição a toda uma nova dinâmica de deslocamento. Fora todo transtorno de uma vida expulsa pelo Estado, sem nenhuma consideração, planejamento ou dignidade.

É nessa cidade, é na influência dessas empresas, é legitimado pelas ideias e exposições públicas do presidente Bolsonaro, com esse contexto, que o Presidente do Asilo diz que os moradores da Família Lemos devem sair. Ele está dizendo que os quilombolas, descendentes de quem construiu aquele Asilo e cuidou da manutenção do lugar por anos, não merecem estarem ali. Pessoas descendentes de pessoas mais velhas, negras, que dedicarm seu tempo, sua vida, para cuidar dos idosos brancos. E hoje o Asilo quer colocar os mais velhos dessa família na rua.

O Asilo Padre Cacique diz que negros não podem estar na Beira do Rio, principal área de interesse especulativo na cidade. Quais os interesses na encosta do Morro Santana? Quantos condomínios cabem no Mato atrás do Quilombo e do Asilo Padre Cacique? O interesse, ao fim e ao cabo, é racista e é territorial. Contra isso que temos que nos opor e fincar pé.

Leiam o que diz o presidente do Asilo para a repórter Débora Fogliatto:

“Segundo ele, funcionários foram ameaçados com facão e houve também ameaças por parte dos moradores de invadir o asilo. Brozoza disse que irá dormir no local e que, se houver invasão por parte da família, “vai dar morte”. “Eles só vão entrar no asilo passando por cima de mim. Uma dezena pelo menos, eu levo pro inferno. Não vão explorar o asilo, tomar conta do patrimônio do asilo”. Embora de início tenha falado que os moradores eram “invasores”, depois contou a história de como a família chegou ao local. “Na marra, no tapetão, ninguém vai ganhar, e esses invasores vão sair daí nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, de qualquer jeito. E se invadirem nosso lar, vai dar morte”, colocou.

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