Retomadas: uma forma de re-existir nos territórios tradicionais

 

Os povos indígenas no Brasil vivem cercados por interesses sobre seus territórios. Não apenas no passado “colonial” foram alvo de expropriação, hoje os contínuos interesses capitalistas como o agronegócio, a mineração, a extração de madeira e os grandes empreendimentos reproduzem as formas de acumulação por dependência, fazendo das terras indígenas alvo constante de desterritorialização e reproduzindo um padrão de poder colonial.

Tal situação se agrava diante da não efetivação da promessa constitucional de demarcar os territórios indígenas num prazo de cinco anos a contar da promulgação em 1988. Como se a morosidade não fosse o bastante para causar insegurança às comunidades indígenas, criou-se ainda a tese do marco temporal, na qual se reinterpreta a Constituição para afirmar que os indígenas só teriam direito às suas terras se estivessem nelas na data da promulgação, em 5 de outubro de 1988. Ainda que tal tese tenha sido derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF), ao compreender que a Constituição não estabelece tal limitação, a força do agronegócio no Congresso Nacional apresenta a Lei n.º 14701/2023, para regulamentar o art. 231 sobre as terras indígenas.

Diante desse cenário de precariedade da efetivação dos direitos às suas terras, povos indígenas de todo o Brasil organizam as chamadas retomadas. Partindo do entendimento do intenso processo de expropriação de seus territórios, da violência empreendida para retirar indígenas de suas terras e do acesso aos seus modos de produção e reprodução da vida, organizam-se e retornam às terras originárias, construindo o processo das retomadas.

Retomar é retornar aquilo que um dia foi seu, tomar para si a posse da terra, que lhe foi usurpada. Para o cacique Babau Tupinambá: “Retomar é um ritual de recuperar não só a terra: é tomar na mão a vida que foi tirada”. Segundo o professor Tonico Benites, liderança Guarani e Kaiowá, as retomadas são uma reação à violência sofrida, tendo como objetivo frear o processo sistemático de expulsão e dispersão (denominado em guarani de sarambi). Por meio das retomadas, os povos indígenas estão se reconectando às suas terras, ancestralidade, e com isso reproduzindo os seus modos de vida. Por isso, em muitas áreas retomadas, crianças indígenas estão podendo reproduzir seus ritos de passagem e aprender a se relacionar com a terra.

Tanto os Tupinambás na Bahia, como os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, ou mesmo os Mbya Guarani no Rio Grande do Sul, afirmam que as retomadas são momentos de muita espiritualidade, marcadas por rituais, pelo encontro com seus encantados. O cacique André Benites, da retomada Tekoa Ka’aguy Porã, que resiste há 7 anos em Maquiné, no litoral norte do Rio Grande do Sul, em área estadual da extinta FEPAGRO (Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária), afirma que estar na terra não é só “retomar o território, é retomar a vida, retomar tudo”. Inclusive, uma das atividades recentes na retomada foi a realização da feira da biodiversidade, espaço de troca de sementes e de estabelecimento de conexões com as redes de agroecologia e de economia solidária, integradas na Teia dos Povos. Outro exemplo é a Retomada Tekoha Nhe’engatu, área Mbya Guarani retomada este ano na cidade de Viamão (RS), depois de anos de acampamento na beira da estrada, olhando para suas terras originárias.

As retomadas são efetivamente uma prática política insurgente de acesso ao território. Um ato de resistência a todas as formas de exploração e dominação colonial que se colocam sobre os corpos-território dos povos indígenas no Brasil. Cada território indígena, retomada, é uma terra a menos no mercado de capital. Não à toa, a contraofensiva conservadora tem sido tão dura. Fazendeiros se reúnem em sindicatos rurais, agregam caminhonetes e armas e vão realizar despejos, como a movimentação Invasão Zero. E mesmo no Poder Judiciário, explodem casos envolvendo conflitos na discussão dos direitos originários a suas terras e à propriedade de fazendeiros.

Retomar a terra que lhes foi tirada, devolvendo a terra aos povos que cuidaram dela ao longo de séculos de sua existência. Retomar como ato político de resistir às formas de produzir a vida distintas da lógica do capital. Retomar e cultivar sementes, ancestralidades. Retomar um sonho de uma Constituição que queria efetivar direitos sociais. Retomar é ter esperança de vida, de corpos-vivos e de cultura viva. Apreender os tantos significados de retomar, e o que eles nos inspiram a pensar em como apoiar tais iniciativas, sobretudo aqueles que nutrem no coração um sonho de uma outra integração latino-americana, com escuta, solidariedade, valorização dos saberes e da unidade na diversidade dos povos da Terra.

* Coluna publicada no site da ATBR em 1º de março de 2024 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2024/03/01/retomadas-uma-forma-de-re-existir-nos-territorios-tradicionais

PL do Genocídio: Apib convoca mobilizações para que Lula vete na íntegra o PL do Marco Temporal

Entenda os motivos pelos quais Lula precisa vetar totalmente o PL 2903. Movimento indígena alerta que além do Marco Temporal, proposta pretende legalizar crimes e por isso é considerado o PL do Genocídio indígena.

A ameaça do Marco Temporal voltou a estar vigente, agora com formato de projeto de lei (PL 2903). A tese do agronegócio, que viola direitos dos povos indígenas e dos territórios, precisa urgentemente ser barrada. Por isso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma série de organizações, movimentos sociais e coletivos convidam a todes, todas e todos para somarem na  Convocatória #VetaTudoLulaPL2903

É evidente que quem votou a seu favor legisla com as mãos cheias de sangue indígena.  Considerado o PL do Genocídio, o PL 2903, aprovado pelo Senado no dia 27 de setembro de 2023, faz com que o Marco Temporal se transforme em lei. O resultado, na prática, é o ataque a inúmeras formas de  vida dos povos indígenas. Com a legalização de diversos crimes, o PL abre  as terras para exploração, para empreendimentos que geram o extermínio, como a mineração, e representa o pensamento mais retrógrado e colonial do século XXI.   

O retrocesso é imenso, afetando direitos humanos, dos povos e das comunidades, além de impactar negativamente todos os biomas, territórios e a biodiversidade brasileira. Além disso, o  PL 2903, votado por um senado racista e colonial, intensifica ainda mais a emergência climática, colocando todas as formas de vida na terra em risco. 

No momento, o  PL 2903 é analisado pelo presidente Lula, que tem 15 dias úteis para sancionar ou vetar (total ou parcialmente) o projeto. É preciso pressionar o governo federal, a partir das bases, para que a lei seja barrada em sua totalidade. A nossa mobilização é fundamental. 

PL 2903 é inconstitucional

O Marco Temporal é uma tese política patrocinada pelo Agronegócio. Os ruralistas pretendem mudar o rumo da história dos povos indígenas e agravar a crise climática. O STF julgou e decidiu por maioria de 9×2 anular o Marco Temporal.  O resultado do julgamento selou uma importante vitória na luta por direitos dos povos indígenas, travada nas ruas, nos territórios, nas redes e no judiciário durante dois anos. Mas o Senado tenciona uma afronta ao Supremo para atender aos interesses do agronegócio.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ressalta que as atitudes do Senado e da Câmara dos deputados são resultados da ligação direta de políticos brasileiros à invasão de terras indígenas, como mostra o dossiê “Os invasores” do site jornalístico “De olho nos ruralistas”. De acordo com o estudo, representantes do Congresso Nacional e do Executivo, possuem cerca de 96 mil hectares de terras sobrepostas às terras indígenas. Além disso, muitos deles foram financiados por fazendeiros invasores de Terras Indígenas, que doaram R$ 3,6 milhões para campanha eleitoral de ruralistas. Esse grupo de invasores bancou 29 campanhas políticas em 2022, totalizando R$ 5.313.843,44. Desse total, R$ 1.163.385,00 foi destinado ao candidato derrotado, Jair Bolsonaro (PL).

Além disso, após a derrubada do marco temporal no STF, o senador Dr.Hiran (PP-RR) protocolou, no dia 21 de setembro, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que pede a instituição do marco temporal. Nomeada como PEC 048/2023, a emenda quer alterar a Constituição Federal de 1988 que prevê o direito originário dos povos indígenas sobre terras tradicionalmente ocupadas.

O projeto de lei do genocídio foi apresentado pelo deputado Homero Pereira do PR de Mato Grosso, no dia 20 de março de 2007. A proposta inicialmente recebeu o número de PL 490/2007. A Câmara dos Deputados aprovou o PL 490, no dia 30 de maio de 2023. A proposta seguiu para o Senado e recebeu novo número: PL 2903.

No mesmo dia em que o STF finalizou o julgamento do Marco Temporal, 27 de setembro, o Senado aprovou o projeto de forma atropelada. A votação foi marcada por mentiras da bancada do Agronegócio e pelo descumprimento da promessa do presidente do Senado Rodrigo Pacheco de não pautar o projeto antes da conclusão do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), sabendo que se tratava da mesma tese.

 Por que Lula precisa vetar TODO o projeto?

Além do Marco Temporal, o PL 2903 pretende legalizar crimes cometidos contra os povos indígenas e por isso é considerado o PL do Genocídio. Entre as violações e violências que ele reproduz e intensifica, estão pontos como:

1) o PL 2903 quer definir critérios racistas de quem é ou não indígena;

2) quer autorizar a construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras em Terras Indígenas, sem consulta prévia, livre e informada, conforme prevê a OIT 169;

3) o PL quer permitir a plantação de soja, criação de gado, promoção de garimpo e mineração em Terras Indígenas;

4) propõe que qualquer pessoa questione os processos de demarcação dos territórios, inclusive os já demarcados;

5) busca reconhecer a legitimidade da posse de terra de invasores de Terras Indígenas;

6) quer flexibilizar a política de não-contato com povos indígenas em isolamento voluntário; 

7) quer mudar conceitos constitucionais da política indigenista como: a tradicionalidade da ocupação, o direito originário e o usufruto exclusivo dos povos indígenas aos seus territórios.

No Congresso Nacional, quando um projeto de lei é aprovado tanto pela Câmara dos Deputados, quanto pelo Senado, a proposta segue para a análise do presidente, que vai ter 15 dias para dar uma posição. Nesse processo, o presidente pode vetar, total ou parcialmente a proposta, e também pode aprovar o projeto sem modificar nada da proposta avaliada pelo Congresso.

Quando acontece do presidente aprovar sem vetar nenhuma parte do projeto, o projeto é sancionado e na sequência a proposta deixa de ser projeto e passa a ser Lei. Quando o presidente propõe vetos no projeto, sejam eles totais ou parciais, os pontos vetados voltam para o Congresso. Em uma sessão conjunta entre Câmara e Senado, parlamentares vão decidir se acatam os vetos ou não.

Caso os vetos sejam mantidos, a lei será aprovada retirando as partes apontadas no veto. Caso os vetos sejam derrubados, os trechos antes vetados serão desconsiderados e a lei será aprovada sem as considerações de mudanças do presidente. Ou seja, mesmo com o veto total do presidente, o Congresso Nacional pode aprovar a lei mesmo assim.

Crédito: APIB

🏹 Como participar das mobilizações

Apoie o movimento indígena e some nas lutas em seu território.  Pressione o presidente Lula pelo #VetaTudoLulaPL2903. Marque Lula nas redes sociais, mobilize ações nas aldeias, cidades e redes .Produza sua arte e poste no seu perfil usando as tags #DesignAtivista #VetaTudoLulaPL2903

A luta segue pela demarcação das terras indígenas, por reparação histórica, pela manutenção da biodiversidade e em defesa da vida

#VetaTudoLulaPL2903 #EmergênciaIndígena #EmergênciaClimática  #MarcoTemporalNÃO #DemarcaçãoJá

Fonte: VETA TUDO: Apib cobra compromisso de Lula para barrar PL do Marco Temporal”, publicada no site da Apib em 03 de outubro de 2023  

Confira a nossa série de vídeos “Perspectivas Indígenas: os Guarani e a luta por direitos no RS” e saiba mais sobre as lutas indígenas: 

Confira também o artigo com posicionamento da Amigas da Terra Brasil quanto ao Marco Temporal

 

 

Maracá das mulheres indígenas abençoa a derrubada do marco temporal

De 11 a 13 setembro, por volta de 6 mil mulheres indígenas marcharam em Brasília pelo fim da violência contra elas e pela demarcação de seus territórios. Na 3ª edição da Marcha das Mulheres Indígenas, denominada “Mulheres biomas em defesa da biodiversidade e pelas raízes ancestrais”, elas marcaram presença com seus cocares, maracás, diversidades, cores, formas de ser, exigindo a justiça e igualdade.

Foram três dias intensos de atividades que mostraram como as mulheres indígenas vêm sendo silenciadas e marginalizadas ao longo da história. A violência contra as áreas de retomada, a falta de atenção à saúde e o avanço do garimpo ilegal foram temas levantados no Tribunal da Ancestralidade.

Em resposta ao diagnóstico, a deputada Célia Xakriabá apresentou o Projeto de Lei (PL) nº 4381/2023, que prevê procedimentos a serem adotados pelas delegacias e policiais no atendimento às mulheres indígenas vítimas de violência. O Ministério das Mulheres também se comprometeu com a acolhida na Casa da Mulher Brasileira nos estados com maiores índices de violência contra as mulheres indígenas, como na cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul. E, ainda, a criação das Casas das Mulheres Indígenas por cada bioma.

Como aponta a ministra Sônia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas, a violência contra as mulheres indígenas envolve a destruição ambiental. Em audiência no Congresso Nacional, na abertura das atividades da marcha, declarou: “Estamos num estado de emergência, e não tem mais como negar essa emergência climática. Não há mais espaço para negacionismo. E nós, povos indígenas, nós, mulheres indígenas, embora sejamos as maiores guardiãs da mãe terra, somos as primeiras e as mais impactadas. Nós somos as primeiras afetadas pelas mudanças climáticas”.

Por isso, na marcha, as mulheres indígenas foram tão enfáticas na necessidade de proteção dos biomas, destacando os problemas do avanço da fronteira agrícola sobre o Cerrado e o garimpo ilegal. Nesse sentido, o encontro retomou a mensagem política “a luta pela mãe terra é a mãe de todas as lutas”.

A participação das mulheres indígenas na política também foi um tema ressaltado no encontro. Na atividade da Bancada do Cocar, as mulheres discutiram sobre a construção de mais candidaturas indígenas, que pudessem construir políticas públicas que refletiam as necessidades das comunidades.

Nas últimas eleições, 17 candidaturas indígenas, e a eleição de Sônia Guajajara e de Célia Xakriabá, animaram os debates. Nos últimos anos, lideranças de mulheres indígenas reivindicam a mensagem política “nunca mais um Brasil sem nós”, demarcando sua luta por acesso ao poder e participação.

A demarcação das terras e a superação do marco temporal

O acesso e permanência das mulheres indígenas em seus territórios originários é o que confere proteção à vida e ao meio ambiente, que assegura suas formas de ser, saber e viver. Assim, a demarcação das Terras Indígenas, tal como promessa constitucional de 1988, precisa ser assegurada. De acordo com dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), existem 736 terras indígenas nos registros, sendo que apenas 477 foram regularizadas, havendo ainda 490 reivindicações dos povos indígenas em análise pelo órgão.

Um dos empecilhos criados pelo agronegócio para impedir a demarcação das Terras Indígenas foi a tese do marco temporal. A tese defende que os indígenas têm direito de ocupar as terras onde estiveram em 5 de outubro de 1988 (marco temporal), data da promulgação.

Tal tese foi suscitada no caso do Povo Xokleng, no qual decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4ª) considerou pedido para retirada dos indígenas da terra, alegando não ocuparem na data da promulgação da Constituição. O Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que o julgamento do caso produziria o efeito de repercussão geral, e dessa forma, impactaria em muitos outros territórios que estão em conflito.

Na 5ª feira, 21 de setembro, o plenário do STF decidiu, por 9 x 2, pela improcedência da tese do marco temporal, representando uma vitória dos povos indígenas. Sabemos que os povos indígenas não saíram de seus territórios por vontade própria, mas vêm sendo alvo de uma violência expropriatória há mais de 523 anos.

O ministro Edson Fachin defendeu em seu voto que o direito dos povos indígenas ao seu território é um direito fundamental assegurado na Constituição, não cabendo a aplicação da tese. Outros oito ministros seguiram o voto de Fachin, o relator. Apenas André Mendonça e Nunes Marques, ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), votaram a favor do marco temporal, alegando a insegurança jurídica aos produtores rurais.

Em meio à vitória obtida com a derrota do marco temporal, resta saber sobre a modulação das indenizações aos produtores rurais. A maioria dos ministros defende a possibilidade de indenizações de boa-fé. Resta saber a conclusão dos votos. Um bom momento para recordar a memória e pensar em uma justiça para com os povos indígenas por anos de exploração, dominação e genocídio.

A força da ancestralidade das mulheres indígenas e a presença de diversas lideranças indígenas durante o julgamento no STF colocaram fim a esse processo que se iniciou em agosto de 2021. O marco temporal está definitivamente enterrado na Justiça. Ainda faltará sua derrota no Congresso, onde a bancada ruralista certamente moverá suas forças de discórdia racista.

* Artigo publicado originalmente no site do Jornal Brasil de Fato neste link: https://www.brasildefato.com.br/2023/09/27/maraca-das-mulheres-indigenas-abencoa-a-derrubada-do-marco-temporal



ATUALIZAÇÃO feita em 28 de setembro de 2023, às 10h30min: os ataques da bancada ruralista e da mineração prosseguem. Nessa 4ª feira (27/09), o projeto 2903, PL do Genocídio, passou pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e seguiu, de forma relâmpago, para o plenário do Senado, onde foi aprovado. A pressão, agora, é para que o presidente Lula vete o PL 2903/23!

O STF também encerrou ontem o julgamento da tese, fixando critérios perigosos para os povos indígenas.

A luta continua! E precisa muito de apoio e mobilização de todas as pessoas e organizações comprometidas com os povos indígenas. A ATBrasil está junto!

Vitória! STF invalidou a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas

Vitória! Este 21 de setembro é um dia histórico aos indígenas e não indígenas do Brasil. O STF (Supremo Tribunal Federal) invalidou a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas.

A Corte do STF começou a analisar o tema em 2021, tendo sido suspenso naquele ano e retomado agora em 2023. Esta decisão é muito importante, pois repercutirá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estão sendo discutidos ou que poderiam ser questionados na Justiça.

Marco Temporal é uma tese jurídica que restringia o direito dos povos indígenas apenas às terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Atualmente, existem cerca de 300 processos de demarcação, os quais serão influenciados por essa decisão do STF.

A Amigas da Terra Brasil saúda a todos os povos indígenas do Brasil e às suas organizações que, após muita mobilização e pressão, vencem uma grande batalha nesta guerra que perdura desde 1.500. Afinal, o que está em jogo são os territórios de vida e não do capital.

É preciso seguir em alerta para as novas propostas trazidas durante o julgamento no STF e a outras tentativas judiciais, assim como no parlamento, que tentem flexibilizar o Marco Temporal e atacar os direitos dos povos originários e seus territórios. A luta segue pela demarcação das terras indígenas, por reparação histórica, pela manutenção da biodiversidade e em defesa da vida de todos e de todas nós.

Clique aqui e confira a Coletiva de Imprensa

Leia também nosso artigo contra o Marco Temporal

Vitória dos povos contra a tese do Marco Temporal | Crédito: Cimi

Vídeo: André Benites/ Guarani de Maquiné (RS)

Povos indígenas existem e resistem no Brasil

Em 2018, Jair Bolsonaro (PL) foi eleito com a promessa de não demarcar nenhuma Terra Indígena no Brasil. Passados quatro anos, nenhum território foi demarcado. Mas não apenas; a violência contra os povos indígenas se tornou crescente. Em relatório recente divulgado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) sobre a violência contra os povos indígenas, com dados coletados entre os anos 2019 e 2022, registrou-se 795 assassinatos, 407 conflitos relativos aos direitos territoriais, 1.133 invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio.

“O relatório do Cimi mostra que Bolsonaro criou – em seu governo – um roteiro para o genocídio indígena por meio da desterritorialização, da desconstrução dos direitos, da devastação do ambiente, da destruição das estruturas de fiscalização, da desassistência  generalizada, da desumanização e a busca pela integração dos povos”, sintetiza Roberto Liebgott, coordenador do Cimi no Rio Grande do Sul.

Para o indigenista, “as invasões de terras foram programáticas”; o governo atuou para viabilizar o acesso de garimpeiros, madeireiros e grileiros aos territórios indígenas. As características da violência – relacionadas ao abuso de poder, racismo, intolerância e assassinatos – revelam uma “desumanização dos indígenas”, produzindo uma violência sistemática, explica Roberto. Destaca, ainda, a desassistência em saúde a partir da fragilização da assistência primária, ou seja, ausência de ações preventivas, gerando mortalidade na infância, desnutrição e um ambiente de profunda vulnerabilidade dos indígenas.

No mesmo sentido, Rose Padilha, membra do Cimi-Regional Amazônia Ocidental, salienta que os números dizem por si: “Foram 309 casos de invasões, em 218 terras de 25 estados brasileiros”. No seu estado, o Acre, a missionária ressalta que ocorreram casos emblemáticos em razão da falência da proteção do Estado. Entre eles, o aumento do suicídio entre o povo Madijá, que ocorre desde 2015, resultado da marginalidade a que são submetidos pela desassistência do poder público.

O povo Madijá enfrenta falta de acesso a documentos; também é vítima da extorsão de comerciantes locais, que retêm seus cartões de benefício social, vendem bebidas alcoólicas e alimentos vencidos. Ainda, como povo de recente contato, não falam português, não tiveram acesso à escola, nem a material didático em sua língua, ou seja, sem qualquer política específica.

O relatório do Cimi revelou a presença de um novo agente externo nos territórios indígenas: o crime organizado. Rose comenta como as facções afetam a situação da juventude Huni Kuin. Sem perspectivas de futuro, acabam se envolvendo com facções do crime. Um dos casos diagnosticados no relatório é de um jovem, assassinado com 30 facadas, nas proximidades da cidade de Jordão, no Acre.

Rose relembra, ainda, outro tipo de violência, que passa invisibilizada: a do mercado de créditos de carbono. No Acre, o governo autorizou a constituição do mercado de carbono, que passou a operar primeiro nas Terras Indígenas, afetando formas de uso e continuidade das relações territoriais. As soluções climáticas da economia verde foram se consolidando no estado, violando os direitos territoriais assegurados aos povos indígenas na Constituição como “usufruto exclusivo de suas terras”, destaca Rose.

Recentemente, em meio às atividades dos Diálogos Amazônicos, em Belém do Pará, a 200 km de distância, três lideranças indígenas do Povo Tembé foram baleados na segunda-feira, dia 7 de agosto de 2023. As lideranças se preparavam para uma visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos em Tomé-Açu/PA. Existe um conflito na região entre os indígenas e as monoculturas de palma pertencentes ao grupo BBF (Brasil Bio Fuels), a maior empresa do ramo na América Latina, que mantém operações no entorno com frequente presença de seguranças armados dentro do território indígena. Segue a violência colonial e do capital contra os corpos das gentes, águas e florestas.

:: Diálogos Amazônicos foi uma ‘imagem falsa’, diz mãe de indígena baleado ::

Lideranças Mbya Guarani de aldeias nas cidades de Porto Alegre e de Viamão, no Rio Grande do Sul, falam, no vídeo acima, sobre a necessidade urgente de se demarcar as terras indígenas para a sobrevivência dos seus povos, de sua cultura e para a preservação do meio ambiente

E agora, o que muda no novo governo?

Ao final do relatório, confere-se destaque à iniciativa de constituição de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, como um caminho para identificar e responsabilizar atores que historicamente vêm invadindo, matando e destruindo as formas de viver dos povos indígenas no Brasil. O tema foi pauta do Acampamento Terra Livre (ATL) em abril deste ano. A Comissão foi encaminhada como uma proposta da deputada Célia Xakriabá (PSOL), acolhida pela Presidenta da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana.

O governo federal iniciou sua gestão constituindo uma força-tarefa para exterminar a violência contra o povo Yanomami. Em abril, na ocasião do ATL, Lula liberou R$ 12,3 milhões para a FUNAI apoiar comunidades Yanomami. O presidente assinou, ainda, a demarcação de seis Terras Indígenas, das 13 identificadas pelo Grupo de Trabalho de Transição como prontas para serem demarcadas. Por fim, o retorno do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI).

São grandes as expectativas de avanço na proteção e efetivação dos direitos dos povos indígenas no Brasil com o atual governo. No entanto, como recorda Liebgott, ainda existe um longo caminhar para romper com os ciclos programáticos de violências. O governo precisa reconstruir toda a política indigenista desmantelada, avançar urgentemente nos processos demarcatórios e de desintrusão, explica.

Políticas como a da Instrução Normativa n.º 01/2021 da FUNAI, que autorizou a associação entre indígenas e não indígenas no arrendamento de terras, ainda que revogadas, criaram inúmeros conflitos internos e externos nas comunidades. Remover esses arrendamentos dos territórios, que com a Instrução foram realizados de boa-fé, exigirá um grande esforço do governo.

A demarcação dos territórios, o acesso às políticas públicas, os investimentos em saúde e educação indígena, a proteção social aos que vivem em áreas de retomada e acampamentos serão medidas fundamentais para a redução do quadro de violência. “A política indigenista não deve ser um faz de contas, não pode ser vista como enfeite, adorno ou pintura a ser mostrada no âmbito do governo. Há gente, comunidades, povos que padecem cotidianamente e clamam por seus direitos constitucionais. Por isso, demarcação já, e não ao marco temporal!”, defende Liebgott.

O Congresso Nacional, de maioria conservadora, também vem se constituindo como um obstáculo à ruptura com a violência contra os povos indígenas. Na semana passada, caminhou no Senado o projeto de lei sobre o Marco Temporal (PL n.º 2903/2023), com pareceres favoráveis à tese. Igualmente, segue ainda respirando o PL n.º 191/2020, que autoriza a mineração em Terras Indígenas. E no STF (Supremo Tribunal Federal), em passos lentos, o julgamento do Marco Temporal (RE 1017365).

Os novos ventos que sopram do governo em Brasília são mais favoráveis à causa indígena. Superar as políticas de retrocesso implementadas pelo governo anterior constituirá uma das tarefas prioritárias. Além dela, é preciso avançar na demarcação das terras indígenas, ampliando o orçamento para políticas públicas nelas. E educar o país para um diálogo intercultural. Como podemos ver, o caminho ainda é longo para erradicar os mais de 500 anos de violência contra os povos indígenas no Brasil.

* Coluna publicada no jornal Brasil de Fato originalmente em 

6ª Conferência Estadual dos Direitos Humanos do Rio Grande do Sul

Organizações e movimentos sociais, indígenas, quilombolas e representantes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário participaram da 6ª Conferência Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, nos dias 26 e 27 de maio, em Porto Alegre (RS). O encontro elegeu 202 delegados/as para a conferência nacional.

Foi um momento muito importante, a primeira conferência realizada após a pandemia da COVID. Organizada pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH-RS), o encontro buscou avaliar e direcionar o conjunto das políticas de direitos humanos do estado para o próximo período.

O homenageado desta edição foi um quilombola, o senhor Manoel Francisco, do Quilombo Morro Alto, no Litoral Norte gaúcho. Senhor Manoel Chico completará 103 anos em agosto próximo e resistiu a todas as violações de direitos, desde o período pós-abolição até a promulgação da Constituição Cidadã, e até agora não viu seu território efetivamente regularizado, como prevê a Constituição Federal. Os povos indígenas presentes protestaram contra o PL490 e o marcotemporal, frente ao avanço dessas pautas anti-indígenas no Congresso Nacional pela bancada ruralista e da mineração. Também pediram mais rapidez nas demarcações de terras indígenas no RS.

No eixo Direitos Humanos e Desenvolvimento, participaram as comunidades quilombolas da Morada da Paz e do Morro Alto e organizações do movimento de luta urbana pelo direito à cidade, catadores de material reciclável, LGBTQIA+ e portadores de necessidades especiais. A questão transversal que apareceu no debate foi a garantia do direito à consulta prévia, livre, informada e de boa fé às comunidades indígenas, quilombolas e dos povos tradicionais potencialmente atingidos. Também se discutiu muito os processos de gentrificação da cidade, do cercamento de parques públicos, da destituição e descaracterização desses espaços com novas obras e concessões.

Foram aprovadas, ainda, três moções propostas pela Comunidade Kilombola Morada da Paz: de repúdio ao marco temporal e à retirada, do Ministério dos Povos Indígenas, da possibilidade de demarcação de terras; e uma de apoio para que a Convenção 169 se torne uma política de Estado, diante do risco que se correu de que o Brasil se retirasse do tratado no governo passado.

Julio Alt, presidente do CEDH/RS, avalia que a conferência teve um saldo muito positivo para a organização da sociedade civil em relação às demandas de direitos humanos. “A maioria dos delegados e participantes da conferência destacou a necessidade de recriar, garantir, ampliar, implementar e fortalecer as políticas públicas de proteção e garantia de direitos, que na avaliação geral foi de desmonte nos últimos anos. Nesse sentido, cabe ressaltar que estamos há quase 10 anos tentando implementar o Sistema Estadual de Direitos Humanos, conforme a Lei 14.481/2014, esperamos que o Governo do Estado faça sua parte em garantir a implementação do que consta na lei, pois a sociedade civil vem fazendo a sua, como esta conferência”, disse.

🔗 Confira mais na matéria do jornal Brasil de Fato/RS: https://bit.ly/3qoFlvh

 

📷 Gilnei da Silva, Jonathan Hirano e Jonatan Brum/ ATBr

 

Vitória das retomadas Mbya Guarani de Canela e de Cachoeirinha no Rio Grande do Sul

🏹 Recentemente, os povos indígenas tiveram duas importantes vitórias no Rio Grande do Sul (RS) que reforçam sua árdua luta para permanecer nos territórios.

Na 3ª feira (9/05), a 3ª Turma do TRF4 (Tribunal Regional Federal), em Porto Alegre (RS), suspendeu a reintegração de posse da terra onde estão as comunidades Mbya Guarani Tekoa’s Kuryty e Yvyá Porã, na cidade de Canela, na Serra Gaúcha. A desocupação imediata pelos indígenas havia sido determinada pela Justiça Federal de Caxias do Sul, em ação movida pela CEEE, estatal de energia elétrica privatizada pelo governador Eduardo Leite.

Os Mbya Guarani marcaram presença durante a sessão no TRF (foto acima), junto com suas assessorias, organizações e apoiadores, como a Comissão Guarani Yvyrupa, CAPG, de seus aliados – o CTI, Cimi Sul, Aepin, Cepi – e outros apoiadores dos movimentos e coletivos sociais. Os Guarani celebraram, rezaram, cantaram e sorriram diante desta importante vitória!

Vale destacar que na decisão, o relator, desembargador Rogério Favreto, afirmou haver muitos elementos da ocupação tradicional dos Mbya na área, cabendo à FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas)  a criação do GT de identificação da terra. No entender dos desembargadores, é preciso ainda aguardar pelo resultado da apreciação do Recurso Extraordinário de Repercussão Geral, 1.017.365, a ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em que se discute a tese do marco temporal e os direitos originários dos povos sobre as terras que ocupam.

O colegiado também citou a necessidade de seguir, nas discussões jurídicas sobre os povos indígenas e seus direitos territoriais, as determinações contidas em tratados internacionais, referindo a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Dada a ênfase que a empresa detentora da CEEE deu aos riscos à saúde e à vida dos indígenas na área retomada, pois há uma hidroelétrica e a rede de transmissão, um dos desembargadores destacou que é dever da empresa criar ou encontrar mecanismos de prevenção e proteção aos indígenas, quando houver, na área em questão, algum risco.

Em síntese, o julgamento referenda a necessidade de permanência dos indígenas na terra, garantindo-lhes a posse; aponta que há elementos significativos acerca da ocupação originária Mbya Guarani naquela região, portanto, um direito que prevalece; e há de se aguardar pelo julgamento no STF, acerca da tese do marco temporal e do indigenato.

O TRF4 já tinha tomado decisão semelhante na semana passada, mantendo suspensa a reintegração de posse do terreno onde fica o “Mato do Júlio”, na cidade de Cachoeirinha, região metropolitana. A decisão garante que a comunidade indígena Mbya Guarani siga no local enquanto tramita a ação movida pela empresa Habitasul, proprietária do imóvel.

A área é reivindicada pelos indígenas, que estão com processo administrativo em aberto junto à FUNAI. Há estudo antropológico que afirma ser o local imprescindível para sustento, reprodução física e cultural da etnia, cuja permanência lá data de décadas.

Atualmente, a Retomada Mbya Guarani em Cachoeirinha faz campanha pedindo doações para montar uma escola. Veja como ajudar em http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/04/05/campanha-de-doacao-as-escolas-das-retomadas-mbya-guarani-em-porto-alegre-e-em-cachoeirinha-rs/

Leia mais sobre a decisão em relação à Retomada de Cachoeirinha (RS): https://www.brasildefato.com.br/2023/05/08/justica-confirma-permanencia-de-comunidade-mbya-guarani-no-mato-do-julio-no-rio-grande-do-sul#.ZFm1Cyk2TyA.whatsapp

*Texto de Roberto Liebgott (CIMI Sul) sobre o julgamento da Retomada de canela em 9/05. Sobre a suspensão da reintegração de posse do Mato do Julio e da Retomada de Cachoeirinha, as informações são do  TRF4

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