Queima de monocultivo ameaça comunidade Kilombola Morada da Paz, em Triunfo (RS)

Além dos impactos que assolam a comunidade, a mata nativa, águas, ventos e que atravessam o sonho das crianças com o ruído dos maquinários, o monocultivo que faz divisa com o território kilombola traz poluição, violência e o risco de incêndio

Na última quinta-feira (27), crianças, jovens e anciãs da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) tiveram o dia atravessado por fumaça, clima de tensão e hostilidade. No início da manhã, a comunidade despertou em alerta com as queimadas dos monocultivos de acácia negra que fazem divisa com o território, localizado às margens da BR 386, à altura do município de Triunfo (RS).

As atuais queimadas tiveram início na terça-feira (25) e foram intensificadas na quinta-feira, momento em que foram denunciadas às autoridades competentes. A comunidade kilombola segue no aguardo de respostas e também de amparo das instituições para salvaguarda de seu território, assim como de seu direito de ser e existir.

“Estamos em perigo! Estão acontecendo muitas queimadas ao lado, rente ao nosso território. Os incêndios vêm da limpa que estão fazendo no campo de monocultura de acácias, que fica no terreno que faz fronteira ao nosso. Eles queimam os restos depois de tirar todas as árvores. Isso já aconteceu alguns anos atrás. A Morada da Paz já sofreu com incêndio por causa desse mesmo movimento”, relata jovem do território. Além da apreensão com a situação, que ameaça suas vidas e território, as famílias são marcadas pelo trauma de reviver um incêndio, como o que ocorreu em 2004 devido a essa mesma prática no terreno ao lado.

Com metros de altura e muitos focos, queimada polui o ambiente com fumaça e assusta a comunidade, que teme risco de outro incêndio em seu território – Foto: Arquivo CoMPaz

A comunidade informou que a queimada está muito próxima das casas das famílias, assim como das plantações de alimento e da mata nativa. Na CoMPaz, os lares, a produção agroecológica de alimentos, a proteção do bioma Pampa e da Mata Atlântica coexistem e formam a comunidade junto às famílias, que praticam uma relação de cuidado, coabitar, ancestralidade e respeito a todos seres do território. O fogo no monocultivo do terreno vizinho, com foco em vários pontos e labaredas de metros de altura, facilmente pode se alastrar e coloca toda essa multidiversidade viva e teia de relações cooperativas em ameaça. A queimada criminosa tem sido registrada e fere as formas de vida e o direito territorial da Comunidade Kilombola Morada da Paz, reconhecida pela Fundação Palmares.

Plantio agroecológico agroflorestal biodiverso fortalece a soberania alimentar na Comunidade Morada da Paz – Fotos: Acervo Institucional CoMPaz
Famílias praticam uma relação de cuidado, coabitar, ancestralidade e respeito a todos seres do território – Fotos: Acervo Institucional CoMPaz

De acordo com a CoMPaz, começaram a derrubar as árvores do monocultivo no final do ano passado, atividade que durou meses. “Agora derrubaram todas e fazem queimada com os restos. Juntam em pilhas imensas e começam a tacar fogo. Dá para ouvir o barulho do fogo de dentro de nossas casas. Sentimos um clima de tensão no nosso ar, que já está poluído, dá para sentir. Sentimos o impacto nele. E é uma faísca desse fogo que pega na nossa mata nativa e podemos viver um incêndio outra vez”, expuseram.

Densa, fumaça de queimada ilegal adentra território de comunidade kilombola e coloca famílias em estado de alerta – Foto: Arquivo CoMPaz

Conforme relato da comunidade kilombola, ao sentirem o cheiro e a mudança no ar com a fumaça de queimada, foram ao terreno ao lado averiguar o que estava ocorrendo e coletar informações. Segundo a CoMPaz, o clima da interação foi hostil e não houve respostas imediatas às dúvidas apresentadas pelo Kilombo. Foi informado que haveria explicação posterior sobre o ocorrido, mas até agora não houve pronunciamento neste sentido. Na sequência, a comunidade registrou ouvir também o som de tratores que chegavam no monocultivo, fato que amplificou o estado de alerta.

Na manhã do dia 27, a CoMPaz realizou denúncia na polícia ambiental de Montenegro (RS), que pela tarde da mesma data foi até o terreno onde acontecem as queimadas, confirmando a existência de crime ambiental. Como órgãos competentes em nível estadual foram acionadas a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) – Divisão de Fiscalização Ambiental, a Defensoria Pública e o Ministério Público Estadual (MPE), para que tomem providências a fim de proteger a integridade física e emocional das famílias da comunidade. Assim como para assegurar que o território ancestral da Morada da Paz seja salvaguardado dos crimes e perigos que têm pairado sobre ele e a sua biodiversidade há dias.

Além do contato, a comunidade realizou envio de ofício para a Fepam, MPE, Defensoria Pública e para a prefeitura de Triunfo. Destes, até o presente momento, apenas a Fepam respondeu, sinalizando que a comunidade deveria contatar a Secretaria de Meio Ambiente de Triunfo. “Nada foi encaminhado, tampouco conclusivo ou de apoio. As outras instituições ainda não se manifestaram”, expôs a CoMPaz na sexta-feira (28). A comunidade relatou que foi feita reunião de encaminhamento com a Defensoria Pública, que confirmou repassar o ofício para a defensora, mas ainda não houve resposta à comunidade quanto ao tema.

Comunidade Kilombola Morada da Paz durante o Okan Ilu 2025 | Foto: Carolina C.
Posicionamento oficial da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) sobre o caso:

Ao ser acionada pela imprensa, a Defensoria Pública do Estado do RS expressou que: “esteve reunida recentemente com os moradores e acompanha de perto a situação. Como as primeiras medidas foram adotadas pela própria comunidade, a instituição não precisou intervir de imediato, mas mantém o diálogo e segue avaliando o cenário”. O contato também foi feito com o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), que até o começo da tarde do dia 02 de abril, não deu retorno.

Viemos através deste, como Comunidade Kilombola reconhecida pela Fundação Palmares, denunciar a queimada intensa de galhos de acácia negra nos terrenos vizinhos à Comunidade Kilombola Morada da Paz, na BR 386 Km 410, Distrito de Vendinha, município de Triunfo, fronteira com Montenegro. A queimada vem acontecendo desde o dia 25.03.2025, muito próximo às nossas casas, plantações e à nossa mata nativa. Temos monitorado seu alcance diariamente e feito o registro dos avanços com fotos e vídeos.

Na manhã de 27.03.2025 acionamos a polícia ambiental que confirmou a existência de crime ambiental mas não nos deu certeza de que poderá deslocar-se até nosso Território. Acionamos, na mesma manhã, a Fepam e o MPE como órgãos competentes em nível estadual para que tomassem providências a fim de proteger a integridade física e emocional das famílias da nossa Comunidade e para que seja salvaguardado o Território ancestral da Morada da Paz dos crimes e perigos que tem pairado sobre ele e sua biodiversidade há vários dias.

Lembramos que, de acordo com o art. 38 da Lei Nº 12.651, de 25 de maio de 2012 é proibido o uso de fogo na vegetação, sendo autorizado em casos excepcionais:

Art. 38. É proibido o uso de fogo na vegetação, exceto nas seguintes situações:
I – em locais ou regiões cujas peculiaridades justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente
 (Sisnama), para cada imóvel rural ou de forma regionalizada, que estabelecerá os critérios de monitoramento e controle;
II – emprego da queima controlada em Unidades de Conservação, em conformidade com o respectivo plano de manejo e mediante prévia aprovação do órgão gestor da Unidade de Conservação, visando ao manejo conservacionista da vegetação nativa, cujas características ecológicas estejam associadas evolutivamente à ocorrência do fogo;
III – atividades de pesquisa científica vinculada a projeto de pesquisa devidamente aprovado pelos órgãos competentes e realizada por instituição de pesquisa reconhecida, mediante prévia aprovação do órgão ambiental competente do Sisnama.
§ 1º Na situação prevista no inciso I, o órgão estadual ambiental competente do Sisnama exigirá que os estudos demandados para o licenciamento da atividade rural contenham planejamento específico sobre o emprego do fogo e o controle dos incêndios.
§ 2º Excetuam-se da proibição constante no caput as práticas de prevenção e combate aos incêndios e as de agricultura de subsistência exercidas pelas populações tradicionais e indígenas.
§ 3º Na apuração da responsabilidade pelo uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares, a autoridade competente para fiscalização e autuação deverá comprovar o nexo de causalidade entre a ação do proprietário ou qualquer preposto e o dano efetivamente causado.
§ 4º É necessário o estabelecimento de nexo causal na verificação das responsabilidades por infração pelo uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares.

Lembramos que muitos produtores da região utilizam-se das queimadas com a justificativa de estarem fazendo o controle do cascudo-serrador, quando, em realidade, o fazem para queimar a vegetação e ” facilitar” o trabalho do replantio.

Ainda assim, no caso de manejo sanitário, é necessário laudo profissional habilitado e autorização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em nosso caso, da Cidade de Triunfo.

Aos órgãos competentes cabe verificar se existe tal licença; em havendo, acessá-la e averiguar se está tecnicamente fundamentada em laudo, bem como quais os condicionantes dessa licença. Lembramos que mesmo com a licença os condicionantes devem considerar a comunidade limítrofe, que, nesse caso, é uma comunidade Kilombola reconhecida, com seus modos de ser e viver anunciados em seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-Fé.

Por tudo isso, reivindicamos socorro, respeito e proteção dos órgãos competentes.

Atenciosamente, Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz).

Texto originalmente publicado em Jornal Brasil de Fato, em:  https://www.brasildefato.com.br/2025/03/31/queima-de-monocultivo-ameaca-comunidade-kilombola-morada-da-paz-em-triunfo-rs/ 

 

“Eucalipto não é floresta”: Em jornada de luta mulheres sem terra denunciam expansão do monocultivo no RS

Na quinta-feira (13/03), Mulheres Sem Terra realizaram ato em frente a fábrica de produção de celulose da CMPC, em Guaíba (RS). A Amigas da Terra Brasil e o Levante Popular da Juventude somaram ao momento, protagonizado por mulheres e pessoas LGBTQIAP+. Entoando que “Eucalipto não é floresta” e que “os mesmos que destroem a natureza são aqueles que destroem a vida das mulheres”, presentes denunciavam  o avanço dos monocultivos no bioma Pampa, a responsabilidade das grandes empresas por crimes ambientais e a necessidade da luta por dignidade, terra, território e em defesa de direitos e da natureza.

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

Com falas, cartazes e cantos, expuseram que o agronegócio e os megaprojetos causam o envenenamento da natureza e das pessoas, e que os créditos de carbono dos monocultivos (como o de eucalipto, caso da CMPC) são sujos – uma falsa solução para a crise climática. Outra denúncia foi quanto ao anúncio da CMPC sobre nova fábrica em Barra do Ribeiro, ainda maior que a de Guaíba, ressaltando os impactos socioambientais de atividades do ramo. O momento também foi de solidariedade às pessoas trabalhadoras e moradoras do entorno, que no dia 23 de fevereiro deste ano foram afetadas por vazamento de dióxido de cloro da fábrica.

Neste encontro entre MST, juventudes e mulheres organizadas, a expansão dos monocultivos de árvores (desertos verdes) da CMPC foi abordado como crime ambiental e projeto de morte do capital.  Durante a ação em frente à fábrica de celulose da CMPC, mulheres e aliades entoavam: “Eucalipto não é floresta, CMPC devolve o pampa já. As mulheres da reforma agrária querem terra para trabalhar”.

Quem não pode com as mulheres, não atice o formigueiro

“Estamos aqui para denunciar essa empresa criminosa que acaba com a vida das mulheres. Nós, mulheres sem terra, mulheres da cidade, mulheres acampadas, seguiremos denunciando o capital e a destruição que o agronegócio provoca nos nossos corpos e nos nossos territórios. Nós lutamos pela vida, pela biodiversidade e pela defesa da produção de alimentos saudáveis. Nós ainda estamos aqui, e faremos a luta contra todas as formas de violência”.  Fala coletiva durante ato em frente à CMPC. 

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

Na data, foram realizadas ações em diversos pontos do Rio Grande do Sul para denunciar o avanço da silvicultura, em especial do eucalipto, e o risco que traz para a vegetação nativa e vida da população, sobretudo para o Bioma Pampa, ameaçado de extinção.  A ação também ocorreu em  Porto Alegre, Pelotas, Santana do Livramento e Tupanciretã, com marchas, intervenções culturais, debates, entrega e plantio de mudas. Sob o lema “Agronegócio é violência e crime ambiental, a luta das mulheres é contra o capital!”, a ação faz parte da mobilização do Movimento Sem Terra (MST) para marcar o 8 de março, por meio da Jornada Nacional de Lutas de 2025. Entre 11 e 14 de março, o MST realizou encontros, formações, plantios, marchas e protestos por todo o Brasil para denunciar as violências do agronegócio, das corporações e dos monocultivos – que expropriam corpos e territórios, envenenam povos e terras, mercantilizam alimentos e a natureza, secam rios, aprofundam desigualdades e agravam a crise ambiental.

Confira o vídeo de cobertura do ato e relatos das mulheres organizadas:
INSERIR AQUI

“Nós, mulheres do movimento, nos sentimos nesse compromisso com a sociedade brasileira e principalmente com o nosso bioma Pampa. Queremos alertar que um avanço desses do agronegócio e ainda hoje liberado por lei sem um zoneamento ambiental, ele pode ser uma catástrofe, ainda mais no Rio Grande do Sul que sofre drasticamente com as mudanças climáticas”, diz Lara Rodrigues, dirigente nacional do MST no RS. Lara também destacou que o avanço da soja, e a substituição por eucalipto, além de trazer impactos ambientais, tem impactos no modo de vida da população, das mulheres e na paisagem do bioma Pampa. O principal alvo da mobilização é a empresa CMPC, que está dominando a silvicultura no estado. “Ela tem um milhão de hectares plantados de eucalipto e a previsão de avanço de quatro milhões, principalmente no bioma Pampa. Estamos denunciando que essa empresa e esse avanço da silvicultura no Rio Grande do Sul não vão passar limpo”, afirmou Lara. O Bioma Pampa equivale a cerca de 64% do território do RS, mas mais de 30% de áreas nativas foram perdidas entre 1995 e 2023. A denúncia do MST é de que o principal motivo para a devastação é a silvicultura, por meio da produção industrial de árvores exóticas como eucalipto, pinus e acácia.

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

Durante o ato frente à CMPC, Letícia Paranhos, presidenta da Amigas da Terra Brasil, falou sobre a impunidade corporativa, a relação da CMPC com a ditadura chilena e a importância da mobilização popular e das mulheres em defesa da terra: “Essa empresa vazou cloro, afetou mais uma vez a vida das pessoas e das mulheres. Todas essas casas foram cobertas, não houve alerta, não houve cuidado, não vai haver fiscalização e muito provavelmente vai seguir impune. A CMPC é criminosa desde sempre, no Chile estava junto com a ditadura e aqui segue violando os nossos direitos”. Ao contextualizar sobre a nova fábrica da empresa, questionou se a mulherada deixaria barato. A resposta, em uníssono, foi que não, que quem mexe com as mulheres se coloca para correr. “A ampliação da fábrica só serve para o lucro deles. Para a gente fica o custo das nossas vidas, da nossa saúde, da nossa terra”, expôs Letícia.

 

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

Após o ato, uma moradora da comunidade que presenciou a ação abordou manifestantes. Em relato, solicitando não ser identificada, contou que quando houve vazamento de dióxido de cloro na empresa ela, que mora perto, foi acometida com mal estar, enjoo e vômito. A moradora comentou que tentou contatar a CMPC algumas vezes e acabou indo ao hospital, onde atestaram contaminação. Também comunicou que ao sair de casa viu fumaça por todo entorno, e após o contato começou a passar mal, o que reforça relato de outros moradores e até mesmo materiais em vídeo que comprovam que a fumaça saiu dos muros da CMPC, situação que a empresa contrapõe,  alegando que sensores localizados em seus muros não identificavam a presença de dióxido de cloro na ocasião.  “Eles afirmaram que sensores não identificaram dióxido de cloro, que a pluma de dispersão ficou dentro da empresa. Informaram num relatório oficial que foi para a Fepam que não extrapolou os limites da empresa, sendo que tem vídeos, tem muitos depoimentos que indicam que não foi o caso”, expôs o engenheiro ambiental Eduardo Raguse, da Amigas da Terra Brasil.

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

A atividade em Guaíba teve continuidade no Assentamento 19 de Setembro. Contou com mística, partilha de refeições, acolhida e debate sobre a importância do cuidado e acolhimento na luta.  “Faremos uma linda formação com irmã num momento de acolhimento, que pra nós também é luta. Estarmos saudáveis também é uma ferramenta de fortalecimento e de enfrentamento contra o capital, porque nós precisamos estar vivas, precisamos estar fortes para lutar pelo que vem pela frente”, expôs Lara. De acordo com seu relato, a presença física em Guaíba se conectava com a presença de mulheres em luta por todo Brasil: “Estamos sincronizadas em todo estado. Vamos somar aqui no RS mais de mil mulheres, e nacionalmente estamos com várias companheiras em luta, no Espirito Santo dentro da área da Suzano, que companheiras ocuparam, na Paraíba, Mato Grosso,  Sudeste, muitas mulheres estão mobilizadas. É um grande dia, ficará marcado por esse nosso retorno do enfrentamento contra o capital, que sempre fizemos, mas é dada a largada que nosso 8M seguirá na denuncia e no autocuidado”.

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra - 13/03/25

Com palavras de ordem que evocavam a construção da reforma agrária popular, mulheres em luta semeavam a resistência. Além de ações orquestradas e postas em prática em todo território nacional, a atuação da mulherada em luta também se deu a partir de seus territórios locais, com incidências em espaços institucionais. No Rio Grande do Sul, uma das estratégias foi a entrega de Notícia de Fato ao Ministério Público Federal.

Notícia de Fato: Denúncia sobre a desregulamentação das normas ambientais relacionadas à silvicultura e seus impactos socioambientais no RS

“Entregaremos uma Notícia de Fato,  junto a movimentos ambientalistas. Teremos uma reunião com a Procuradoria Geral da União (PGU) e estamos pedindo a inconstitucionalidade da lei 14.876/2024, que libera a silvicultura (que é plantio de eucalipto, de pinus, dessas árvores exóticas), sem o licenciamento ambiental, que é mais ou menos: pode plantar eucalipto no bioma Pampa que isso é terra de ninguém. Entregaremos essa carta, simultaneamente nossas companheiras de outras três regiões estarão fazendo essas ações nos Ministérios Públicos e Procuradorias Regionais”, explicou Lara. Outro ponto abordado é a flexibilização a nível estadual, marcada pela Resolução do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) do RS, em 2023, quanto à aprovação de novo Zoneamento Ambiental para Atividade da Silvicultura (ZAS). Pontos que representam um retrocesso na proteção ambiental e ameaça aos direitos humanos, em especial, ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Entrega Notícia de Fato MPF

Na Procuradoria Geral da República do Ministério Público Federal em Porto Alegre (RS), estiveram presentes para entrega do documento o Movimento Sem Terra (MST),  a Amigas da Terra Brasil (ATBr), o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá) e a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Também assinam o documento o Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, Fundação Luterana de Diaconia e Instituto Preservar.  “Estamos aqui para ver algum caminho por qual a gente tá lutando, e tentar pelas vias jurídicas algum apoio para a nossa luta. Luta que é feita no dia a dia nos territórios, que não é só a defesa das pessoas, dos nossos corpos, é a defesa do bioma Pampa que somos parte. Nossos territórios de assentamento estão dentro do bioma. A monocultura é uma denuncia que o Movimento Sem Terra faz há um bom tempo, e nesse último período vimos esse agravamento. A gente já vive muito a presença do avanço da soja nos territórios, mas a silvicultura nos assusta muito também, pela destruição que ela faz e também por essa mudança nessa essência que nós somos, na nossa vida, na biodiversidade dos territórios que a gente tá”, falou Lara durante a entrega da Notícia de Fato.

Entrega Notícia de Fato MPF  (8)

Letícia complementou: “Para nós é muito complicada essa flexibilização, para quem tá no território é ainda mais chocante porque é uma mudança radical da paisagem. Tu chegar no assentamento e ver 7 mil hectares de eucalipto plantado, tu perder o sol, tu ter uma seca devastadora como nunca teve antes, tu ver as crianças com sintomas porque o veneno chegou…Foi feito enfrentamento e depois se viveu na pele os impactos de um milhão de hectares no estado. Agora a proposta é passar para quatro milhões, e a gente sabe que o investimento está sendo muito pesado do setor da celulose aqui no estado, a gente percebe o marketing que está sendo feito para colocar uma outra narrativa para a CMPC, que está patrocinando o Gaúchão, com um projeto que chama Defensores da Natureza, fazendo jogos de futebol e com um poder muito grande da mídia. A gente sabe que mexe no imaginário político da população, até porque se colocam como a solução, com os canudos de papel, ou com financiamento que eles conseguem colocar, só que a contaminação, as violações que acontecem, isso não vem à tona. Vemos de um milhão passar para quatro milhões de hectares, então vão ser quatro vezes maiores as violações que vão ser sofridas. Temos que frear, é muito importante colocar alguma restrição porque depois que a violação acontece ela vai seguir impune”.

Expansão dos desertos verdes em um Pampa em extinção

Após almoço coletivo, no Assentamento, ocorreu a formação “Expansão dos desertos verdes em um Pampa em extinção”, apresentada pela Amigas da Terra Brasil. Nela, foi abordada a impunidade corporativa e a forma de operar de grandes empresas poluidoras, violadoras de direitos humanos e dos territórios. A lógica da CMPC, suas estratégias e ferramentas de cooptação via muita propaganda verde foram expostas, assim como dados sobre o impacto de suas atividades.

Formação Expansão dos Desertos Verdes num Pampa em extinção

A CMPC, do chileno Grupo Matte, anunciou recentemente um investimento bilionário na construção de uma nova fábrica de celulose, no município de Barra do Ribeiro, hipocritamente chamado de “Projeto Natureza”. A empresa investe muito em propaganda buscando construir uma imagem de sustentável, patrocina até mesmo o Campeonato Gaúcho e chegou ao cúmulo de criar um time fictício chamado “Defensores da Natureza”. Seu novo projeto, assim como a fábrica existente, irá despejar seus efluentes industriais no já tão poluído Guaíba, e impactar ainda mais o bioma Pampa com a expansão de seus monocultivos de eucaliptos transgênicos, gerando créditos de carbono sujos com mais desertos verdes num Pampa em extinção.

Em apresentação, dados científicos exibiam os impactos socioambientais do avanço dos monocultivos e de desertos verdes no Pampa, dando dimensão ao tamanho da ameaça e como uma nova fábrica de celulose pode causar ainda mais danos aos gaúchos, assim como à natureza. O (falso) discurso de socialmente responsável e ambientalmente sustentável da CMPC foi desmontado, e ponto a ponto de sua propaganda verde esteve em discussão.  Além disto, a  formação deu um mergulho no contexto histórico da celulose no Brasil e sua relação com a ditadura e opressões foram pauta.  A planta de produção de celulose de Guaíba (RS), emblemática em termos de impactos socioambientais, foi inaugurada pela norueguesa Borregaard em 1972, como um dos resultados da política desenvolvimentista da ditadura militar brasileira que convidava os investidores do mundo à “poluírem aqui”. Após diversas trocas acionárias ao longo dos anos, hoje a fábrica e os monocultivos de eucalipto são de propriedade da chilena CMPC, pertencente à família Matte, conhecida por ter sido uma das principais apoiadoras da ditadura de Pinochet. A empresa foi acusada, ainda, de crime de lesa-humanidade, no massacre de 19 de Laja, no Chile, com graves acusações que a apontam como protagonista do “Massacre de Laja”.

Confira a cobertura fotográfica aqui

Vazamento de cloro líquido em fábrica de celulose em Guaíba (RS) coloca população em alerta

No último domingo (23), por volta das 11h, houve um grave vazamento de cloro líquido na fábrica de celulose da empresa CMPC, em Guaíba (RS).

Moradores do entorno da fábrica relatam que viveram momentos de pânico devido ao forte odor e nuvem branca e densa que atingiu suas casas, causando sensação de sufocamento, forte ardência e queimação nos olhos e nariz, náusea, salivação e dor de cabeça. Ao tentar contato com o canal de atendimento da empresa, moradores não tiveram retorno ágil, tendo que recorrer ao 192 para buscar informações médicas de emergência.

Há relatos de que o vazamento atingiu também trabalhadores, levando alguns ao desmaio. Parte da empresa foi evacuada e a operação paralisada. Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e Corpo de Bombeiros foram  acionados.

A empresa se limitou a informar à mídia de que houve um vazamento (sem especificar de que substância) e de que a situação estaria sob controle, sem dar quaisquer orientações para as comunidades do entorno, sobre o tipo de vazamento, sua gravidade, extensão ou como agir nesta situação. No passado, já ocorreram outros episódios de vazamento de cloro, incêndios e inclusive a implosão de uma das caldeiras de força. O nível de risco para as comunidades do entorno da empresa é alto, porém não há qualquer tipo de Plano de Ação de Emergência, ou sequer sistema de sirenes e avisos que possam ser acionados em casos como este, para evitar impactos à saúde destas comunidades.

O cloro tem uma taxa de expansão elevada, um litro de cloro líquido vazado gera 457 litros de cloro gasoso na atmosfera. O contato direto da pele com o cloro líquido (altamente corrosivo) pode causar ulcerações e queimaduras graves. Já o gás cloro causa grave irritação ocular e sistema respiratório porque, ao reagir com a umidade do corpo, forma ácidos, a inalação pode causar bronquite crônica, e edema pulmonar e morte por asfixia.

Cabe ressaltar que a fábrica se localiza em zona urbana residencial do município de Guaíba, com residências a poucos metros da unidade industrial que foi quadruplicada em 2015 agravando ainda mais os impactos socioambientais no entorno, tendo sido objeto de processo judicial por crime ambiental e Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Estadual, que obrigou a empresa a realizar investimentos como o aumento do muro de parte do pátio e enclausuramento de equipamentos, bem como a revitalização da Praia da Alegria como forma de compensação ambiental. As melhorias que a empresa realizou por obrigação, e que seu marketing verde batizou de “BioCMPC”, não foram suficientes para conter seus diversos impactos, ainda seguem problemas como forte odor de Compostos Reduzidos de Enxofre (que tem cheiro de ovo podre), ruído e forte trepidação, que em determinados locais ocorrem 24h por dia, causando rachaduras em residências e levando pessoas a transtornos de sono, stress e ansiedade.

A CMPC, do chileno Grupo Matte, anunciou recentemente um investimento bilionário na construção de uma nova fábrica de celulose, no município de Barra do Ribeiro, hipocritamente chamado pela empresa de “Projeto Natureza”. A empresa investe muito em propaganda buscando construir uma imagem de sustentável, patrocina até mesmo o Campeonato Gaúcho e chegou ao cúmulo de criar um time fictício chamado “Defensores da Natureza”.

Seu novo projeto, assim como a fábrica existente, irá despejar seus efluentes industriais no já tão poluído Guaíba, e impactar ainda mais o bioma Pampa com a expansão de seus monocultivos de eucaliptos transgênicos, gerando créditos de carbono sujos com mais desertos verdes num Pampa em extinção.

Conteúdo originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2025/02/24/vazamento-de-cloro-liquido-em-fabrica-de-celulose-em-guaiba-rs-coloca-populacao-em-alerta/  

Confira também o conteúdo em vídeo:

 

O que há por trás do termo natureza positiva na Cúpula de Biodiversidade, COP15?

Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas, que assegurem que o mundo volte a viver dentro dos limites planetários. 

Imagem de David F. Sabadell

A biodiversidade está em crise em todo o planeta. O número de espécies, e de indivíduos dentro das próprias espécies, diminuiu de forma retumbante nas últimas décadas, e a comunidade científica adverte que nos próximos anos podemos perder um milhão a mais de espécies. Para quem está seguindo o tema de perto é mais evidente que essa crise da biodiversidade é, na verdade, uma faceta a mais da crise sistêmica, causada pelo modelo econômico atual e pelo mantra do crescimento infinito. 

O Convênio sobre a Diversidade Biológica (CBD nas siglas em inglês) iniciou um processo para estabelecer um novo Marco Mundial da Biodiversidade durante a Conferência das Partes das Nações Unidas no ano de 2018, um encontro em que muitas das nações participantes se comprometeram a respaldar um marco para a “mudança transformadora” elaborado pela comunidade científica. Aí então, se abrigava a esperança de que essa decisão fosse uma oportunidade real para mudar o modelo econômico e proteger a biodiversidade. Frente a essa premissa, escrevi para um bom número de amigas, amigos e ativistas ecologistas de todo o mundo para lhes dizer: “você tem que participar desse processo, vai ser transformador”. Enquanto o Convênio sobre a Diversidade Biológica fingia escutar as necessidades da sociedade civil e dos povos indígenas na primeira ronda de consultas, quando veio a luz o primeiro rascunho, tomei um duro golpe: as medidas que poderiam transformar verdadeiramente o sistema econômico que minava a biodiversidade – tais como normas/políticas rígidas e coordenadas para minimizar o dano ambiental – não tinham nenhuma possibilidade de êxito. 

O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses danos a longo prazo

Por sua vez, nos demos conta rapidamente de que a participação das grandes empresas nas discussões estava obstruindo qualquer avanço, tal como acaba de demonstrar um novo estudo da Amigos da Terra Internacional. Inclusive empresas criminosas como BP, responsável pelo derramamento de petroleiro de Deepwater Horizon em 2010, ou a Vale, que envenenou centenas de quilômetros de rios com rejeitos tóxicos de suas minas diante do rompimento de duas represas de rejeitos no Brasil. Grandes contaminantes como estas empresas criam coalizões que se apresentam como ‘verdes“ ou “sustentáveis”. Porém, nas salas de negociação, com as portas fechadas,  advogam por medidas voluntárias e de maquiagem verde que simulam uma regulação verdadeira. Está evidente que entendem que qualquer medida eficaz frente a perda de biodiversidade os prejudica e constitui um obstáculo para suas ganâncias.

Durante anos temos visto como os estados participantes e os altos funcionários da ONU recebem de braços abertos essas coalizões empresariais e suas propostas. Isso faz com que os resultados deste convênio- chave sobre a biodiversidade – e as políticas que vão reger a próxima década – estejam repletos de propostas de lavagem verde. Os conceitos de “Natureza positiva” e “soluções baseadas na natureza” são algumas dessas medidas, que colocam em perigo as verdadeiras soluções da crise urgente da biodiversidade. 

O conceito de “Natureza positiva” ou “positivo para a natureza” pode soar bem, mas sua definição é muito confusa. O termo natureza pode ser uma referência a políticas que nada tem a ver com a biodiversidade e “positivo” é, inclusive, mais ambíguo 

Ainda que possa parecer que implique em algo bom, na realidade gera um resultado duvidoso, se seguem destruindo ecossistemas e os processos de restauração são questionáveis.  O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses planos a longo prazo. O que esperam aqueles que propõem o conceito de “Natureza positiva” é que no ano de 2030, o resultado possa ser ligeiramente positivo. Porém, quando dimensiono a perda de biodiversidade que vi ao longo da minha vida, fica evidente que não podemos permitir mais perdas. 

Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade. 

Tanto o conceito de “natureza positiva” quanto o de “soluções baseadas na natureza”, o SBN, se baseiam em compensar, sejam as emissões atuais de CO2 ou os ecossistemas que querem destruir, o que supõe que um tipo de ecossistema possa ser compensado com outros, sem levar em conta a sua capacidade de absorção de CO2, a complexidade de organismos que existe em cada ecossistema, o caráter único de cada espécie ou o território sagrado para os povos indígenas. Tal compensação é uma “solução” para as empresas que querem manter seus benefícios e seguir minando a biodiversidade com a desculpa de que sua destruição é sustentável porque se compensará em outro lugar. O conceito não só é totalmente errôneo, como não é realista. Na realidade, compensar dessa forma requer grandes extensões de terras para capturar carbono, que excedem a superfície de terras disponíveis a nível mundial. 

Permitir a compensação de emissões dá para as empresas um passe livre para seguir arrasando o meio ambiente apesar da emergência climática e da perda exacerbada de biodiversidade. Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade. Reservar terras para compensar emissões de carbono também compete com a demanda de terras de cultivo do agronegócio.  

Porém, alguns poucos projetos pontuais de soluções baseadas na natureza que incluem práticas agroecológicas e a participação de Povos Indígenas e comunidades locais são apresentados em folhetos atrativos, em todas as cores, e afirmam falsamente que as soluções baseadas na natureza representam uma mudança de significado para o clima e a biodiversidade. 

Ao mesmo tempo, ambos conceitos empresariais representam uma grande carga para os Povos Indígenas e para as comunidades locais. Muitos projetos de compensação acontecem em suas terras e frequentemente os expulsam de seus territórios. As empresas tendem a afirmar que o uso da terra feito pelas comunidades nativas prejudica a biodiversidade, ainda que seja demonstrado o contrário. Cerca de 80% do remanescente de biodiversidade terrestre se preservou graças aos povos indígenas e comunidades locais, apesar das violações de seus direitos e o assassinato de defensores e defensoras ambientais. 

Embora a destruição de ecossistemas faça parte de uma crise mundial que temos que resolver, não é apenas uma questão técnica, como também de justiça. Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas que garanta que o mundo volte a viver dentro de limites planetários. As empresas têm que ser submetidas a uma regulamentação rigorosa, ao invés de ser permitido que criem as suas próprias medidas para evitarem as responsabilidades.  Mas, antes de qualquer coisa, é preciso proteção aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais, que são os verdadeiros guardiões que protegem a biodiversidade. 

*Artigo de opinião de Nele Marien, Coordenadora do Programa Bosques e Biodiversidade da Amigos da Terra Internacional. Publicado originalmente no site El Salto, no dia 14 de dezembro, em: www.elsaltodiario.com/opinion/cumbre-de-biodiversidad-cop15 

 

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