Queridos companheiros e companheiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Em nome de todos nós, Amigas da Terra Brasil, é com imensa alegria e gratidão que nos dirigimos a vocês para felicitá-los pelos 40 anos de luta e resistência do MST. Desde a sua fundação, em 1984, vocês têm sido uma inspiração para todos nós, demonstrando que a esperança e a determinação podem mover montanhas, ou melhor, transformar terras improdutivas em espaços de vida, esperança e justiça.
Ao longo dessas quatro décadas, vocês têm sido incansáveis na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, na luta pela reforma agrária, na busca por uma distribuição mais justa e equitativa da terra e na construção de um modelo agrícola mais sustentável e inclusivo. Suas ocupações, marchas, acampamentos e projetos de assentamento não apenas demonstram uma resistência inabalável, mas também apontam para um futuro onde a dignidade e os direitos de todos os trabalhadores rurais são respeitados e garantidos.
O MST não é apenas um movimento social, mas sim uma escola de vida, onde se aprende a importância da solidariedade, da cooperação e da organização popular. Vocês têm sido um farol de esperança em tempos sombrios, mostrando que um mundo melhor é possível quando nos unimos em prol de uma causa maior.
Neste aniversário de 40 anos, queremos expressar nossa profunda admiração e apreço por tudo o que vocês têm realizado. Que este seja apenas o começo de uma jornada ainda mais longa e frutífera, rumo a um Brasil e a um mundo mais justo, igualitário e sustentável.
Parabéns, MST, pelos 40 anos de luta e resistência! Estamos ao seu lado hoje, amanhã e sempre.
Meio a invasão da fronteira agrícola e a mercantilização da vida, que dilacera o bioma Pampa e traz uma série de violações de direitos, povos e territórios resistem. Organizado por produtores agroecológicos e assentados do Movimento Sem Terra (MST RS) atingidos pela pulverização aérea de agrotóxicos, com a solidariedade de parceiros urbanos, encontro em Nova Santa Rita (RS) pauta estratégias e alianças da luta por agroecologia, direitos humanos e soberania alimentar
O domingo do dia 17 de dezembro foi marcado por confraternização entre famílias gaúchas atingidas pela deriva de agrotóxicos de Nova Santa Rita, Eldorado do Sul e Tapes, e apoiadores. Com o intuito de revisitar o histórico de luta das pessoas atingidas pelo crime de deriva (pulverização aérea de agrotóxicos), a atividade contou com roda de conversa, relatos diversos e levantamento tanto de violações de direitos como das vitórias dos atingidos. Também foram debatidos os caminhos traçados pela resistência ao modelo do agronegócio (de coexistência impossível) além de estratégias e táticas contra a pulverização de veneno, que incide violentamente no cotidiano de indígenas, quilombolas, comunidades periféricas, pessoas assentadas, pequenas produtoras de alimentos e se estende para além do rural, afetando todos ecossistemas e quem vive no meio urbano. Seja no corpo, na água, no ar ou nos alimentos contaminados por agrotóxicos, venenos, pesticidas, fungicidas e defensivos. Nomes tantos que descrevem verdadeiras armas químicas. Nomes que impactam, mas que importam menos do que o seu efeito na realidade: matam uma morte lenta, silenciosa e perversa, que conta com a impunidade corporativa e com a captura do estado, que é conivente com este modelo de aniquilação.
Para além das articulações da luta, o momento foi importante por ser uma confraternização das famílias que sofrem tantas violências por parte do agronegócio. Um modelo que avança nas vidas carregando uma forma de ação criminosa, que gera impactos para além do envenenamento. “O agronegócio faz todo o contrário do que a reforma agrária faz, e não deixa acontecer o trabalho na terra. Tira e expulsa as pessoas do campo”, salientou Graciela de Almeida, assentada do MST RS, que produz sem agrotóxicos e de forma agroecológica¹. A assentada contou que por anos as famílias da região vêm sendo afetadas por verdadeiras chuvas de veneno, utilizado pelo agronegócio. Destacou, ainda, a importância de parceiros urbanos e de organizações socioambientais, que também tornam possível que o trabalho de quem vive o rural, assim como as suas lutas, sejam exemplo em outros lugares.
“Precisamos continuar nessa luta. Resistir para existir, como o povo da Palestina. Não posso deixar de dizer que viva o povo da Palestina”, comentou em solidariedade, trazendo a conexão das lutas para além de fronteiras impostas pelo capital. Graciela defendeu que é preciso disputar espaços e incidir na esfera internacional, como foi realizado em novembro de 2022, quando uma delegação brasileira e a Frente Contra o Acordo Mercosul União Europeia levaram denúncias a cinco países do continente Europeu. “Fomos para denunciar precisamente a questão dos agrotóxicos no Brasil e como isso impacta nas comunidades, barrando um desenvolvimento realmente sustentável”, explicou.
Na ocasião, a delegação brasileira, composta por representantes da Amigos da Terra Brasil, da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e do MST realizou uma Jornada pela Europa. Além de denúncias, foram feitas reivindicações em debates que ocorreram com parlamentares, jornalistas, acadêmicos e organizações da sociedade civil. O foco foi apresentar os impactos do Acordo Mercosul – União Europeia sob os povos indígenas, comunidades camponesas e produtoras agroecológicas, ecossistemas e populações atingidas pela mineração e pelos agrotóxicos no Brasil. Colonial e violento, o acordo comercial daria lastro ao avanço do agronegócio, ampliando a liberação de agrotóxicos (proibidos em seus países de origem) na América Latina. Aprofundaria, ainda, a relação de dependência econômica do sul global em relação ao norte, intensificando a superexploração da natureza, dos povos e dos territórios na periferia do sistema, onde estamos situados.
¹ A produção de alimentos de forma agroecológica vai além de um método de produção de alimentos, e se conecta ao todo. É muito mais do que produzir sem veneno, embora englobe este quesito. É uma forma de produção alimentar, mas é uma forma de ser e agir no mundo, que constrói outros horizontes de mundos, com base em valores éticos centrados na vida, e não na lógica de lucro, dos negócios, do mercado ou da mercantilização de tudo. É uma luta permanente, e uma construção permanente que está enraizada na luta pela terra, na consciência e luta de classes, na luta contra o patriarcado, anticolonialista, anti-imperialista, anticapitalista e contra qualquer forma de exploração e dominação. Saiba mais aqui
A luta por alimentos, pessoas e ambientes saudáveis pulsa da semeadura à colheita nos assentamentos do MST, que resistem ao envenenamento da vida
A região de Santa Rita é reconhecida pelos assentamentos da reforma agrária que produzem alimentos sem veneno, onde se concentram algumas das áreas de maior produção de arroz agroecológico da América Latina. Também é marcada por um conflito que compromete as formas de vida e de produção econômica de inúmeras famílias da agricultura agroecológica – a pulverização aérea de agrotóxicos em fazendas das proximidades.
O veneno, aliado ao monocultivo e a uma forma única de compreender a relação com a terra – a da mercantilização, contamina solos, águas, ar, gentes, e bichos, e causa impactos irreversíveis na saúde ecossistêmica. Quem trabalha na terra de uma forma justa e harmônica, garantindo alimentos saudáveis de verdade, que abastecem diversas cidades, acaba sofrendo na pele os efeitos das pulverizações. Queimaduras, feridas, alergias, enjoos, mal súbito, câncer, depressão e sufocamento são alguns dos sintomas da exposição aos agrotóxicos. Sintomas, também, de um sistema nefasto que entende que mais importante que alimentar o país, é produzir commodities para o capital estrangeiro. O lucro do agronegócio significa contaminação. É o empobrecimento das famílias, o empobrecimento geral.
Fernando Campos, da Amigas da Terra Brasil, expôs: “Para nós é muito importante essa virada de ano com uma perspectiva de alguma forma positiva. O que acontece aqui acontece, de alguma forma, em vários lugares. A grande diferença é a gente reunir forças para conseguir enfrentar esse grande setor que é o agronegócio, que tem por trás de si empresas, corporações que estão no mundo inteiro tomando territórios. Expulsando pessoas do campo e levando para a cidade, empobrecendo o nosso povo. Seja com as doenças, seja com a ação permanente de uso dos agrotóxicos como arma química na expansão do território, impossibilitando quem está na sua volta e que tem outra relação com a agricultura (sem veneno, sem transgênico) de sobreviver. A decisão do uso destas tecnologias de morte não param na cerca, elas vão para o mundo”.
Tendo isso tudo em vista, os presentes no encontro debateram quais foram os desafios e conquistas de 2023, se posicionando contra o modelo de produção do agronegócio e traçando um horizonte de construção para a soberania alimentar. Foram discutidos aspectos como ferramentas de luta, ferramentas legais, com marcos como a assessoria jurídica aos afetados, além da lei que restringe as pulverizações aéreas na região metropolitana, mais especificamente na zona de amortecimento do Parque do Delta do Jacuí.
Fernando ressaltou que para avançar na luta contra o veneno é preciso de ferramentas e se instrumentalizar, até mesmo para que seja possível reunir provas e realizar denúncias de forma concisa. A recente garantia de estações climatológicas em cidades que sofrem com a deriva de agrotóxicos foi um dos passos fundamentais nessa direção. “Conseguimos, a partir das conversas e diálogo, garantir para famílias de Nova Santa Rita, do assentamento Santa Rita de Cássia, assim como de Tapes e Eldorado, cada um ter uma estação climatológica para poderem eles mesmos terem seus dados das medições de vento, velocidade, temperatura. Aqui em Santa Rita há uma no parque mesmo, iniciativa muito importante da prefeitura. Mas é importante que as famílias tenham as suas próprias informações, os seus dados, para bater com os dados do Estado”, analisou.
A instalação das estações citadas está prevista para janeiro de 2024, junto a um conjunto de iniciativas e ações para fortalecer a luta das famílias afetadas pela deriva. Entre elas, formas para monitorar e documentar violações de direitos. “A gente sabe que ter uma vida, que viver do lado do agronegócio não é possível produzindo agroecologia. A gente precisa de fato mudar essa realidade. Por isso, também, que a ideia da poligonal, de uma área livre de agrotóxicos aqui na região, importa muito”, frisou Fernando.
Emerson José Giacomelli, militante do MST, assentado do Assentamento Capela e Secretário de Agricultura de Nova Santa Rita, destacou a Lei da Deriva e a importância de ferramentas de luta construídas coletivamente. Mencionou, também, as políticas públicas do município voltadas para a agroecologia, para produtores de melão, pequenos produtores e quanto ao meio ambiente e educação, afirmando que uma diversidade de programas chegam nas propriedades. Citou, ainda, convênio com laboratório de São Paulo, responsável pela análise de amostras para detectar agrotóxicos, que já vem sendo utilizado e será posto à disposição dos assentados. “Começaremos o ano na Secretaria da Agricultura com orçamento de mais de 11 milhões. Poucos municípios têm investimento e prioridade tão fortes para a agricultura familiar como Santa Rita. Mas não podemos nos acomodar, mesmo com novos projetos e parcerias”, destacou, se comprometendo a buscar parceria com o Governo Federal para ampliar o atendimento aos atingidos.
Álvaro Dellatorre, da Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), definiu a confraternização e o momento trazendo o conceito de agroecologia. “Achávamos que a técnica pela técnica resolvia as questões, mas chegamos no conceito de agroecologia. O que acontece aqui nessa roda de conversa é exatamente essa dimensão, porque percebemos que atrás da técnica há sociologia, antropologia, outras dimensões da vida que explicam a agroecologia, que permitem que entidades e pessoas que não estão produzindo somem nesse processo. Isso é o que vemos aqui”.
A agroecologia, presente no trabalho do MST e de atingidos pela pulverização de agrotóxicos de Nova Santa Rita, é um exemplo de realização do direito humano à alimentação. Este direito deve tratar da alimentação saudável considerando quantidades adequadas, qualidade dos alimentos, serem livres de substâncias tóxicas e adversas, serem ambientalmente sustentáveis, acessíveis e disponíveis para todos. A Promotora de Justiça aposentada do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP RS) e especialista em Direito Humano à Alimentação Adequada, Miriam Balestro, incidiu na conversa destacando que o direito humano à alimentação adequada tem que ser cada vez mais mobilizado e utilizado como instrumento de luta.
“O que ocorre hoje no Congresso Nacional é que o agronegócio, por suas curvas, está atacando o direito humano à alimentação adequada previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Eles querem trocar a palavra por segurança alimentar. Segurança alimentar não é o direito, é a política. É como dizermos que direito a remédio de hospital é direito à saúde, não é. A construção internacional fala de direito à alimentação”, denunciou. De acordo com Miriam, o Brasil tem a melhor legislação do mundo quanto a direito à alimentação, o problema é que ela é pouco utilizada.
O agro é morte, o agro é emergência climática
Para além do agronegócio e da violência do uso de agrotóxicos, assentadas e produtoras rurais enfrentam ainda questões da emergência climática. Esta, intensificada justamente pela sanha de poder de corporações e empresas, especialmente do setor minerário e do agronegócio, este segundo que impõe o avanço da fronteira agrícola. A consequência é o desmatamento e perda de biomas, para além do extermínio de povos tradicionais e uma série de violações de direitos. No Brasil, sexto maior emissor de dióxido de carbono (CO2), gás poluente que mais tem impacto no aquecimento global, o principal fator de emissão está conectado ao desmatamento, que provém da alteração de uso de solo liderada pelo agronegócio.
“A questão ambiental é uma questão de direito humano. O que acontece com o problema da deriva, das enchentes, catástrofes ambientais, é problema de direito humano. Estamos vivendo um novo momento histórico. Não existe pensar um mundo diferente se a gente não incorporar a dimensão ambiental no que faz. E o componente carbonero é um componente fundamental da nossa estratégia, a luta só começou”, contextualizou Dellatorre.
Marina Dermmam, presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), relatou como este vem trabalhando dentro da temática: “O CNDH começou atividades hoje cedo nos assentamentos para verificar como a emergência climática têm atravessado a realização dos direitos humanos de vocês. A maioria aqui foi vítima, também, das últimas enchentes. Perderam novamente suas produções. Não bastasse o agronegócio e o veneno, agora vem as questões climáticas. Junto com o Conselho viemos com equipe de relatores aqui para monitorar as violações e conhecer a realidade”.
Embora a ofensiva do capital e do agronegócio sigam ameaçando a vida, é na organização da luta coletiva que se faz caminho para garantir uma alimentação que considere a potência da sociobiodiversidade, saudável para os povos e para os ecossistemas
“O agronegócio é um setor tóxico, que vive do empobrecimento das pessoas. É muito triste ver pessoas que lutaram pela terra, que buscam os seus direitos, que estão em luta para garantir um ambiente saudável, sendo atacadas permanentemente pelo agronegócio”, expôs Fernando Campos. Apesar de abordar a realidade brutal no campo, Fernando destacou que ao mesmo tempo há muita esperança, e que encontros como este emanam força pois reforçam que não há como defender o indefensável, ou naturalizar o envenenamento massivo. Como retratou: “Estamos do lado certo da história. Não é mais admissível o uso do agrotóxico. O agronegócio é um setor criminoso, formado por pessoas sem escrúpulos, sem ética, que realmente fazem de tudo pelo lucro. A gente lida com questões éticas, ambientais, de cuidado. Eles não”
Além das iniciativas previstas para 2024, que dão chão para que a luta travada pelos atingidos pela deriva seja mais justa, a sociedade vem se organizando. O próprio PL do Veneno vem sendo acusado. “Todo mundo que tem consciência do mal dos agrotóxicos deve se unir, somar e fazer a sua parte para que a gente possa derrotar esse projeto de morte, que tem matado no meio urbano e no meio rural. Com uma situação muito crítica de contaminação real de químicos”, mencionou Fernando.
Apesar das dificuldades e do tamanho do inimigo, encoberto em dinheiro marcado à sangue, há uma boa perspectiva de avanços das lutas dos povos. Há um vasto somatório de esforços, de organizações que estão juntas pelo fim da contaminação, para enfrentar o terror. Meio a políticas de morte emergem potências de vida, que vêm dos esforços coletivos, do trabalho árduo no campo e do suor cotidiano de quem produz para alimentar gentes, para correrem livres os rios e os ventos, para crescerem as matas em toda sua diversidade. E neste cuidado com a terra, com os biomas, uns com os outros, que a luta dos assentados contra os agrotóxicos se apresenta também como uma luta pela possibilidade de mundos socialmente justos e ecologicamente equilibrados.
O respeito ao outro, ao meio ambiente e modos de produção que não gerem crises estruturais são soluções para as crises
As tempestades, os ciclones, os desmoronamentos, as enchentes, as secas estão por todos os lados no Brasil. As crises desencadeadas por esses eventos mostram o completo colapso das relações de produção, como consequência delas as relações sociais, e nossa interação com a natureza, no sistema capitalista. O desequilíbrio entre as chuvas e as secas é resultado das mudanças climáticas, que como podemos ver no Brasil já não são eventuais, começam a se tornar contínuas.
Em julho deste ano, a cidade de Maquiné, dentre outras da região no estado do Rio Grande do Sul, sofreu com as fortes chuvas, deixando populações desabrigadas, isoladas, com problemas de acesso à energia e alimentos. No mês passado, novamente o estado enfrentou a mesma problemática. A tempestade deixou, pelo menos, 51 mortos; causou enchentes, destruição de casas e quebra de pontes. Os efeitos atingiram o estado de Santa Catarina. Segundo os meteorologistas, a intensidade desses eventos aumenta porque as águas dos oceanos estão mais quentes.
Na região Norte do país, o evento extremo oposto, as secas. As cidades amazônicas registram as maiores temperaturas. Oito estados enfrentam a mais severa seca dos últimos 40 anos. O voluptuoso Rio Amazonas está baixando, em média, 13 a 14 centímetros por dia. Os estados decretaram emergência ambiental pela escassez da água. Os animais morrem. As populações ribeirinhas perdem o rio, seu meio de transporte, e ficam isoladas. Os fatores para tais alterações são atribuídos ao El Niño, mas também às intensas modificações no meio ambiente do bioma, sobretudo o desmatamento.
Nos últimos anos, várias cidades brasileiras sofreram os impactos dos desastres climáticos. Apesar disso, os estados não modificaram suas escolhas econômicas. As opções políticas pelos subsídios ao agronegócio, à mineração, aos grandes empreendimentos e a políticas desiguais de ordenação territorial afetam diretamente na produção das catástrofes climáticas, assim como nas sequelas deixadas por elas. As políticas climáticas reduzem-se ao conservacionismo ambiental, da criação de áreas de proteção, e às metas de redução de carbono, insuficientes para dar respostas à crise socioambiental.
O clima não é um assunto apenas físico, é profundamente social, histórico e cultural. Enquanto as soluções à crise climática forem pensadas sem envolver mudanças estruturais, notadamente a de sistema, seguiremos produzindo desencontros. A questão é que as altas classes não enfrentam os males do clima da mesma forma. Sua condição econômica lhes permite viver em zonas privilegiadas ou ter recursos para atendimento emergencial. Por isso, é no Sul Global, assim como na periferia, que as repercussões climáticas produzem maiores danos. Nessa história, comunidades e sujeitos, que pouco ou nada contribuem para as mudanças climáticas, são os que mais pagam sua conta.
Os estados, além das opções equivocadas de política econômica, não investem na estruturação da atenção da Defesa Civil, da assistência social emergencial e nem na provisão de apoio adequado às vítimas dos desastres naturais. Mesmo que os fatos estejam se repetindo ano a ano, mês a mês, governantes não conseguiram estruturar políticas públicas. Muitos dos recursos destinados às calamidades não são adequadamente empregados no atendimento às vítimas e na adoção de medidas de prevenção de desastres.
Isso porque o Estado assume uma percepção de que a vulnerabilidade social é um problema do indivíduo. Assim, pessoas que vivem em casas precárias, em barrancos, morros, próximas de rios, são responsáveis individualmente por desenvolver capacidades para lidar com essas situações. Isso ocorre da mesma forma nas situações trágicas. Os Estados não consideram que a situação econômica, de moradia, é resultado do acesso desigual, dos problemas de distribuição de renda, próprios da economia capitalista. O desfecho é que as vítimas estão completamente desamparadas pelo Estado.
Contra essa lógica, movimentos populares e organizações da sociedade civil, em sua luta anticapitalista, exercem valores solidários de apoio às vítimas, demonstrando uma prática de ser distinta. No Vale do Taquari, a região mais atingida com as enchentes de setembro no Rio Grande do Sul, criou-se a Campanha “Sementes da Solidariedade”.
Composta pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Consea/RS (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), CPT (Comissão Pastoral da Terra), MAB (Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens), Cáritas, Sindicato de Trabalhadores Rurais e Instituto Cultural Padre Josimo, visitou a região atingida levantando informações sobre as perdas, fornecendo apoio emergencial, inclusive da entrega de sementes para plantarem lavouras perdidas. Também foi construída uma cozinha solidária para apoiar na alimentação das famílias.
A experiência da militância do MAB, com o cenário de calamidade que se instaura aos rompimentos da barragem, contribuiu no apoio para as vítimas poderem se organizar em grupos, reivindicar indenizações, articularem-se para acessar moradias. Experiência apreendida na luta popular, que se constitui como um saber partilhado entre o povo. “Além da entrega das quentinhas, nós do MAB, fomos fazendo contato com pessoas, lideranças e referências, e percebemos que tinham demandas de casas, acesso a informações e direitos”, comenta Alexania Rossato, do MAB/RS. “Mais que levar comida, é preciso levar organização para as famílias”, “de serem sujeitos do processo histórico”, descreveu Alexania. Segundo a militante do MAB, a solidariedade “é parte do princípio do movimento, na situação delicada, gravíssima, que as pessoas passaram”.
Na esteira do acúmulo da experiência histórica da luta popular, a Cozinha Solidária do MTST serviu de referência para a construção da solidariedade no Vale do Taquari. Caio Belloli de Almeida, militante do MTST que esteve na região, destacou ser “muito importante a participação do MTST na Cozinha Solidária, nesta iniciativa, porque como movimento social que proveu a alimentação para as pessoas assistidas, a Prefeitura apenas entregava, não ajudava a construir. Inclusive, em alguns momentos, a Prefeitura ameaçou interromper o processo, foi muito importante o MTST estar lá para conseguir incidir na política”.
Lucas Gertz, do Levante Popular da Juventude, participou deste processo da cozinha. Para ele, os aprendizados da solidariedade da pandemia na produção de alimentos ajudaram a construir a experiência histórica para organizar as cozinhas emergenciais. Lucas caracteriza que vivemos “um processo de aquecimento, de ebulição global, o que torna muito mais importante e urgente as nossas organizações e a sociedade se voltarem ao debate ambiental”. Todo o processo vivenciado nas enchentes está relacionado à forma como estabelecemos as relações de produção, o fenômeno da privatização e a falta de prioridade para a vida na Terra, destaca Lucas.
De forma semelhante, o MST montou uma cozinha solidária no município de Encantado, também no Vale do Taquari, fornecendo marmitas diárias aos desabrigados. A cozinha, organizada com apoio do Levante Popular da Juventude, distribuiu marmitas produzidas com produtos da reforma agrária, orgânicos, vindos de cooperativas do movimento. Marildo Mulinari, militante do MST, conta que a cozinha foi instalada logo no dia seguinte à tragédia. A vivência tem sido rica com a comunidade: “O pessoal vem nos agradecer, dizer que se não fosse nós, não teriam o que comer porque foi a casa, foi tudo embora, as pessoas não tinham mais as coisas”.
Segundo Marildo, mais de 500 militantes estiveram envolvidos em toda a produção das marmitas, uma força tarefa mobilizada para o apoio às pessoas afetadas. Salete Carollo, uma das militantes do MST que foi à região em solidariedade, nos descreveu que foi uma experiência muito forte “para a gente que vem da agricultura, e principalmente, olhando para essa dimensão. É de como o ser humano se move, é pelo amor, pela terra, pela ternura; e se move com o coração para ajudar aqueles que mais precisam”. A fala de Salete é tocante do espírito, dos valores da militância que movem a ajuda humanitária, que são o valor da vida em sua integralidade. A comida que os assentados produzem, da terra que conquistaram, foi o que alimentou os atingidos. As mesmas mãos que trabalharam na produção do alimento trabalharam para o transformar em comida, para servir ao outro. É essa lógica de orientação do trabalho vivo, a da produção de mais vida, a que o mundo deveria estar orientado.
Cedenir de Oliveira, coordenador do MST, também esteve na Cozinha Solidária de Encantado e nos contou que todos que participaram da solidariedade ficaram impactados com a tragédia. “Nós do MST entendemos que poderíamos contribuir na confecção de alimentos, com o aprendizado ao longo de nossos 40 anos de existência, de produzir alimentos em condições adversas, nas estradas, nas marchas, então nós já adquirimos uma expertise”. Cedenir ressalta que o MST recebeu muita solidariedade até se consolidar nos assentamentos, produzir, ter cooperativas. Hoje, conquistou sua dignidade e encontra-se em condições de retribuir. Nas palavras do militante do MST, a solidariedade é um “valor importante para desenvolver não só na tragédia, mas no dia a dia, para romper a cultura do ódio e ignorância para construir uma sociedade mais justa e igualitária”.
A solidariedade militante aos efeitos trágicos das enchentes semeia os valores da sociedade que estamos construindo, centrada na vida humana e na natureza como maiores riquezas do universo. O respeito ao outro, a reciprocidade, o cuidado como política, a construção de outras relações com o meio ambiente, o fim do modo de produção que dá origem estrutural a essas crises são os caminhos para uma real transformação da sociedade, e o horizonte de solução da nossa crise.
No dia 17 de maio de 2023, instalou-se, na Câmara dos Deputados no Brasil, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sem objetivo determinado para perseguir e criminalizar o MST. A proposta vem de Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente do Governo Bolsonaro, hoje deputado, que conjuntamente com o Tenente Coronel Zucco, estão conduzindo os trabalhos da CPI. Ricardo Salles, que usou a expressão “passar a boiada” enquanto o Brasil vivia, lutava, resistia e morria com a pandemia, responde por investigações pelo suporte à extração ilegal de madeira na Amazônia brasileira, favorecimento ao desmatamento e à grilagem de terras, opondo-se historicamente às lutas travadas pelo MST em prol da Reforma Agrária e da produção de alimentos saudáveis no país.
O único propósito da CPI é criminalizar a luta histórica do MST. Um dos maiores movimentos sociais do mundo, que há 40 anos luta contra as desigualdades sociais no Brasil, especialmente no campo. Ao longo de sua história, o MST esteve à frente das denúncias contra o avanço ilegal dos latifúndios sobre terras públicas, o uso indiscriminado de agrotóxicos e os danos ambientais provocados pelo modelo do agronegócio, e ao trabalho escravo. Ações como esta, da CPI, relembrando a brutalidade da violência que se instala contra camponeses e camponesas, cujo 14 de abril, Massacre de Eldorado dos Carajás, é uma data para recordar.
Os acampamentos e assentamentos do MST são responsáveis pela produção dos alimentos saudáveis que chegam a casas de centenas de brasileiros e brasileiras. Recordamos que são nesses territórios que se realiza a maior produção de arroz orgânico da América Latina. Durante a pandemia, o MST distribuiu inúmeras “marmitas da terra” em solidariedade às famílias da cidade que passavam fome, no total foram mais de 7 mil toneladas de alimentos da reforma agrária doados. A luta do movimento é pela efetivação do direito à Reforma Agrária, ao cumprimento da função social da propriedade e à preservação do meio ambiente.
Entendemos que os crimes que deveriam ser investigados pelo Congresso Brasileiro envolvem os escândalos de trabalho escravo, a atuação predatória de empresas transnacionais nos casos de desastres de mineração, a violência no campo, a criminalização de defensores e defensoras de direitos humanos, a grilagem de terras, o desmatamento ilegal, não a um movimento social e à luta popular.
Estamos unidos ao MST cuja única ação ao longo dos 40 anos é lutar pelos seus direitos e por condições de vida digna ao povo brasileiro. Não nos calaremos em mais uma tentativa de criminalização ao movimento. Denunciamos a má-fé dos envolvidos na proposição da CPI.
A biodiversidade, ou diversidade biológica, tem a ver com a variedade de espécies, sejam plantas, microrganismos ou animais que habitam a Terra. Desse modo, no núcleo central da noção de biodiversidade está a vida em suas mais variadas formas. Se partimos da centralidade da vida, certamente iremos reconhecer que no sistema capitalista, cujo eixo condutor é a obtenção de mais lucro, não há possibilidade de compatibilizar com um projeto político pela proteção da vida e pela preservação da biodiversidade.
Desde os anos 70, os escândalos da contaminação ambiental e da emergência do tema das mudanças climáticas têm impulsionado a construção de uma agenda internacional de proteção à biodiversidade. Nesse sentido, o dia 22 de maio é reconhecido como Dia Internacional da Biodiversidade, com a intenção de alertar para a importância da proteção da mesma. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 25% da biodiversidade do planeta, hoje, encontra-se ameaçada de extinção. Dentro de uma ideia de usar a natureza como biblioteca de saberes e formas que o ambiente se relaciona e constrói soluções, a observação é fundamental. E mais: ter ambiente natural para observar é ter de onde buscar essas soluções, assim como andar e observar a vida se resolvendo.
A partir do Relatório de Brundtland (1987) se desenvolveu a noção de desenvolvimento sustentável, criando um terreno argumentativo para justificar a continuidade do modelo de desenvolvimento econômico sob a narrativa da possibilidade de harmonização com o meio ambiente. De igual modo, as agendas que se seguiram – Agenda 2030 e os acordos firmados nas Conferências das Partes – refletem a linha conciliatória. Inclusive, durante a ECO-92 se desenvolveu a Convenção sobre a Diversidade Biológica (1993), com o fim de promover a proteção da diversidade biológica por meio do uso sustentável da biodiversidade, com a repartição justa e equitativa de benefícios. No entanto, até que ponto essas narrativas sobre o meio ambiente refletem uma real proteção da biodiversidade?
As políticas ambientais tratam a preservação da biodiversidade no que chamamos de “conservadorismo ambiental”, no qual a Natureza é algo distante do sujeito, circunscrito a um espaço delimitado (à floresta, à reserva ou à unidade de conservação), reiterando um paradigma colonialista. Tal visão não integra as relações sociais urbanas, como a de produção alimentar, como parte da totalidade da biodiversidade, ignorando, muitas vezes, o papel que povos e comunidades têm na construção de relações de proteção, em uma visão mais completa da vida natural. Com isso, não queremos afirmar a não importância de criar espaços de proteção integral da biodiversidade, pelo contrário, inclusive denunciamos os riscos à biodiversidade da privatização e aluguel dos parques. O que se quer chamar a atenção é que a criação de espaços de proteção não coloca em xeque o modelo de produção que destrói a biodiversidade, apenas serve como uma política de compensação.
Se olharmos para o campo da produção de sementes, as formas de produção e distribuição, o ingresso de novas tecnologias ligadas à modificação genética tem destruído a diversidade de cultivos. Isso afeta diretamente a saúde humana, na falta de nutrientes. De outro lado, a produção do agronegócio demanda intensa utilização do solo, água, desterritorialização de comunidades, promovendo um desequilíbrio nas condições de reprodução das formas de vida.
Diante disso, organizações ambientalistas, como a Amigos da Terra Brasil, têm convidado a repensar as propostas de preservação da biodiversidade, entendendo o campo e a cidade como parte do mesmo sistema e que, somente juntas e juntos, podemos construir a Soberania Alimentar, difundindo a crítica aos mecanismos de falsas soluções e promovendo direitos conquistados pelos povos.
Nesse sentido, em Porto Alegre (RS), no dia 22 de maio, festeja-se desde 2007 o Dia da Biodiversidade, com a Festa da Biodiversidade (foto acima da atividade em 2012). Um encontro no qual buscamos mostrar a nossa diversidade na capital gaúcha e Região Metropolitana. Em 2023, estamos na nona edição do encontro, que festeja a biodiversidade de nossos corpos e territórios. Desde a última alteração do Plano diretor de Porto Alegre, em que se extinguiu a zona rural, viemos lutando pelo entendimento da importância desta área da cidade, evidenciando o quanto ela é estratégica para a soberania alimentar. Quando ampliamos esta realidade para a região metropolitana, essa capacidade se expande e se complexifica de tal modo a pensar a origem do que bebemos, comemos e respiramos.
Sabemos que nossa água está contaminada com agrotóxicos. Nossa comida também, e apresenta índices assustadores. E o nosso ar, ainda que não tenhamos medidores, certamente está contaminado por agrotóxicos pulverizados no entorno da cidade e pela combustão dos transportes ou das chaminés das empresas. Certos de que essa contaminação precisa ser medida e informada, precisamos de uma proteção para garantir um ambiente saudável no nosso território.
Essa luta vem sendo construída pelas agricultoras e pelos agricultores dos assentamentos da reforma agrária, que, de forma corajosa, mais uma vez, enfrentam o agronegócio e a trama de impunidade que cerca esse setor. Dentre os instrumentos utilizados está a denúncia da deriva criminosa de agrotóxicos, na qual o agronegócio pulveriza o veneno para além de suas terras, contaminando a produção camponesa; fazendo uso do agroquímico em sua função de criação, como arma da guerra. O propósito da deriva criminosa é eliminar a esperança presente na produção de alimentos saudáveis que não fazem uso de agrotóxicos, destruindo com a possibilidade de se construir outras formas de produção autônomas às grandes corporações e tornar impossível a soberania alimentar. Sem pessoas no campo, o conhecimento, as terras, as sementes serão deles, das corporações, e para lutar contra a fome vamos depender das mesmas corporações.
O Campo e a Cidade
Os movimentos sociais e as organizações pautam que o repensar a nossa relação com a biodiversidade é também um refletir sobre as relações entre o campo e a cidade. Na vida urbana, desconsideramos a presença da biodiversidade no nosso dia a dia, como nos alimentos que consumimos. Entender de onde vem a nossa água ou os alimentos em nossa mesa, ou a qualidade do ar que respiramos, e saber que práticas e formas de produção da indústria da alimentação estão destruindo o planeta e evitando que outras formas coexistem, para começar a consumir alimentos locais, de produção camponesa, que causam menor impacto ao ambiente.
Um exemplo concreto dessa relação é dado pela parceria do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) com os movimentos do campo, nas cozinhas solidárias. Durante a pandemia de covid-19 agravou-se a crise alimentar brasileira, quase 33 milhões de pessoas passaram fome. Diante disso, o MTST organizou até hoje 40 cozinhas solidárias nas grandes cidades brasileiras, distribuindo almoço grátis para trabalhadoras e trabalhadores que passavam fome.
Os alimentos utilizados na produção das marmitas são provenientes, em parte, da produção camponesa de base agroecológica – agroecologia é difundida como uma tecnologia social de produção de alimentos realizada pelos camponeses, na qual a relação estabelecida com a terra é de reciprocidade, por isso não se usam agrotóxicos, as sementes são compartilhadas e se preservam as nascentes de água. Assim, além de comerem, os trabalhadores comem produtos de qualidade nutricional, contribuindo para formas de produção alimentar que estão em harmonia com a biodiversidade.
A iniciativa obteve tanto êxito que foi apresentado o projeto de lei nº. 491/223, o PL das Cozinhas Solidárias, em trâmite na Câmara dos Deputados. Dentre os objetivos do PL, estão: a construção de práticas alimentares promotoras de saúde, ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis e o fomento à agricultura familiar.
Denunciar os mecanismo de falsas soluções
Nos últimos anos, no debate internacional, o tema da biodiversidade encontra-se secundarizado, aparecendo nos impactos de mudanças climáticas. Majoritariamente, colocam-se como foco central de investimentos as políticas da economia verde, nas quais se transfere a preservação a entes privados e se cria uma série de narrativas, como os créditos de carbono, a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente, como respostas à destruição da biodiversidade.
Todavia, essas políticas estão gerando efeitos ainda mais perversos à biodiversidade. A proposta do “carbono zero” reúne compromissos assumidos para anular as emissões de gases do efeito estufa, assim, em vez de reduzir as emissões e promover mudanças na produção, as grandes empresas passam a financiar áreas de preservação do seu interesse, para compensar. Dentro das “soluções baseadas na natureza”, pode-se incluir plantações de monocultivos de árvores, como eucalipto; os cultivos com organismos geneticamente modificados; as áreas de parques e de unidades de conservação que estão sendo privatizadas. Essas iniciativas têm ganhado a adesão de grandes empresas, que passam a pressionar as terras e os direitos de camponeses.
As empresas transnacionais também aderiram a uma narrativa sustentável constituindo políticas de responsabilidade social corporativa no tema, dentre elas a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente. Em todos esses discursos, as empresas não mudam suas práticas de produção, apenas incorporam medidas de compensação que mascaram os efeitos de suas atividades. Desse modo, a mineração tem usado da extração de metais importantes para transição energética, como lítio e níquel, para se colocar como atividade sustentável, desconsiderando que isso implica numa expansão da fronteira extrativa, destruindo territórios.
Já a agricultura climaticamente inteligente envolve a conciliação entre segurança alimentar, produção de alimentos e mudanças climáticas. No entanto, o que as organizações apontam é que o mecanismo consiste unicamente nas negociações do mercado de carbono. Inclusive, no Brasil, o agronegócio, em razão da expansão da fronteira agrícola, tem sido um dos principais responsáveis pela destruição dos biomas nacionais, do Pampa à Amazônia.
As falsas soluções que hegemonizaram os debates nos mecanismos multilaterais são controladas pelas empresas transnacionais, que buscam reconfigurar suas narrativas ideológicas para seguir justificando as práticas expropriatórias da biodiversidade. Por isso, movimentos ao redor do mundo têm erguido bandeiras de luta em torno da palavra soberania, assumindo uma crítica ao sistema produtivo como causador dos danos socioambientais e exigindo o controle popular sobre outras formas de constituição de relações com a Natureza.
Direitos por efetivar: um horizonte para lutar
A afirmação e a efetivação de direitos aos povos são um caminho para um diálogo da constituição de outras relações com a biodiversidade, entende-se como parte desta totalidade. Assim, a Declaração de Direitos Camponeses (2018), uma construção popular – com destaque à Via Campesina Internacional, estabelece claramente a relação dos camponeses com a preservação da biodiversidade, assegurando o acesso à terra, território, ao compartilhamento da sabedoria tradicional na troca de sementes, do cuidado com a terra e água.
Na mesma esteira, os direitos estabelecidos na Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhecem o papel que povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais têm na preservação da sociobiodiversidade. E que, portanto, são sujeitos que devem ser consultados sobre projetos que afetem suas terras e territórios. Igualmente, sobre o direito à participação e informação no Acordo de Escazú, ainda não ratificado pelo Brasil, que garante tais direitos para a promoção da justiça ambiental.
Que possamos reconhecer o chamado das organizações e movimentos para assumir que a preservação da biodiversidade envolve um projeto político de mudança do atual sistema de produção, no qual a vida da humanidade é parte integrante do todo da vida do planeta. Que possamos dar um basta na separação entre sujeitos e natureza, romper com as políticas de compensação e construir um novo paradigma que não produza exclusões de nenhum tipo.
Confira, abaixo, algumas fotos da 9ª Festa da Biodiversidade, que aconteceu nessa 2ª feira (22/05/2023), no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre (RS). Crédito das fotos: ATBr
Nos quatro últimos anos, chegamos a 33 milhões de brasileiros e brasileiras passando fome. Esses números revelam uma situação mais grave do que a encontrada pelo presidente Lula em 2001. E apontam para a urgência de estruturação de políticas públicas que tenham na soberania alimentar seu centro. Um país que não é capaz de produzir alimentos saudáveis e acessíveis à sua população não consegue avançar para qualquer projeto de nação digna.
A principal bandeira de ação de Lula sempre foi o combate à fome. Já em sua posse, o governo lançou a retomada do Programa Bolsa Família e o retorno do Ministério do Desenvolvimento Social. Em fevereiro, Lula reinaugurou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), fechado em 2019 por Bolsonaro. O Conselho é um importante espaço de participação popular na construção do direito à alimentação adequada. Dentre suas atividades, destacam-se o controle de estoques de alimentos; programas de cisternas para agricultura familiar, com articulação entre campo e cidade; rotulagem de alimentos; monitoramento de ações e políticas públicas. Vale recordar que o direito à alimentação faz parte dos direitos sociais previstos no art. 6 da Constituição.
Embora sejam fundamentais as medidas emergenciais do combate à fome e o estabelecimento de programas de renda básica, enquanto a soberania alimentar não for tratada como pauta estruturante da política agrária brasileira, seguiremos recaindo em ciclos de retorno ao mapa da fome. A soberania alimentar envolve um olhar mais sistêmico ao modelo de produção no campo, que prioriza a produção da agricultura familiar de base ecológica. No Brasil, os alimentos que são disponibilizados em nossa mesa provêm da agricultura familiar que, no entanto, recebe menos incentivos e ocupa menores proporções de terras. As monoculturas do agronegócio não produzem a diversidade de alimentos nutricionais de que precisamos.
Nesse caminho, o governo Lula dá passos lentos. Sufocado pelo orçamento apertado, tenta encontrar caminhos para a retomada de políticas públicas em apoio à produção camponesa. Durante o Governo Bolsonaro, a reforma agrária foi paralisada, e sofreu duros golpes. Um deles foi a edição da normativa que autoriza a titulação individual dos lotes aos assentados da reforma agrária. Antes, o assentado possuía o direito de uso, sendo as terras de propriedade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que implicava que o Estado mantinha sua responsabilidade com a função social da terra, tendo o dever de assegurar políticas públicas. Agora, estimula-se a mercantilização das terras, tornando possível que áreas destinadas à Reforma Agrária sejam incorporadas ao mercado e se destinem à especulação financeira ou ao agronegócio.
Outro efeito é a explosão de acampados que esperam acesso à terra. Segundo o Movimento Sem Terra (MST), são por volta de 100 mil pessoas que aguardam, em mais de 360 projetos de assentamentos congelados. Muito embora o orçamento de R$ 2,4 milhões seja irrisório para a compra de terras, outros mecanismos precisam ser explorados como a regularização e destinação das terras públicas, o cumprimento real da função social da propriedade e o questionamento da produtividade da monocultura, seja na geração de trabalho como de alimento. Todo esse desafio recairá no presidente do INCRA, nomeado apenas em março.
No último mês, o governo anunciou a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O PAA realiza a compra direta de alimentos da agricultura familiar, e em sua nova modalidade, incluirá comunidades indígenas e quilombolas. No anúncio realizado no dia 23 de março, o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Edegar Preto, comunicou: “Vamos comprar, a preço de mercado, os alimentos dos agricultores familiares de todo o Brasil e ajudar a colocá-los na mesa dos brasileiros, garantindo renda a quem produz e uma alimentação de qualidade aos consumidores”. Outra prioridade no programa é a compra de alimentos das mulheres: está prevista a cota de que ao menos 50% das compras sejam das produtoras. Também foi reinstalado o Comitê de Assessoramento do programa, assegurando a participação popular na gestão da política.
Outro passo importante foi o retorno da titulação dos territórios quilombolas. Em março, o governo assinou a titulação de três territórios: Brejo dos Crioulos (MG), com 630 famílias; Serra da Guia (SE), com 198 famílias; e Lagoa dos Campinhos (SE), com 108 famílias. Já tendo titulado tanto quanto o Governo Bolsonaro em quatro anos. A medida faz parte do Programa Aquilombar Brasil, lançado pelo Ministério da Igualdade Racial. O governo ainda comunicou a destinação de 513 milhões de reais para demarcação de territórios indígenas.
Barra do Turvo/SP: intercâmbio de comunidades quilombolas e mulheres da agroecologia / Vanessa Silva/Amigas da Terra Brasil
O acesso à terra e ao território são condições primeiras para que indígenas, quilombolas, agricultura familiar e camponesa possam produzir alimentos saudáveis para o Brasil, garantindo também preservação e justiça ambiental. Mas as necessidades não se limitam a isso, é preciso fortalecer as redes de troca e comercialização de sementes, reconhecer os saberes e as práticas diversas dos povos do Brasil, incluir grupos informais de produção e cultura agroecológica ancestral que, ainda mais durante a pandemia, realizaram e encurtaram circuitos solidários entre campo e cidade no combate à fome e à violência. Com soluções que também respondem à crise climática, mas principalmente à garantia de renda e autonomia para as mulheres, redes como a Rede de Agroecologia de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (RAMA), em São Paulo, em articulação com movimentos sociais e organizações da sociedade civil, como a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e com grupos de consumos na cidade de São Paulo, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira realizaram, em março, um intercâmbio com coletivos de mulheres do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, promovendo uma integração por meio do diálogo campo e cidade, construído na prática pela organização.
Para Lúcia Ortiz, das Amigas da Terra Brasil, “a potência dos saberes e fazeres das mulheres, solidárias no cuidado umas com as outras e generosas no trabalho em mutirão, fortalecem seus conhecimentos ancestrais e sua luta por direitos, fazendo chegar à cidade não apenas alimentos saudáveis, mas também valores de dignidade e de organização popular”.
Frutos das trocas de sementes e saberes quilombolas sobre a sociobiodiversidade e o feminismo popular / Clarissa Silveira, Sítio Libélula/Grupo Sal da Terra, em Rolante (RS)
A soberania alimentar e as políticas públicas envolvem, ainda, os desafios e atravessamentos da biotecnologia. Recentemente, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO) liberou a produção de trigo transgênico no país. O trigo liberado envolve a modificação genética em 62 genes de DNA, uma quantidade muito superior à soja de 4-5 mil, sendo que uma das modificações é realizada para resistir ao agrotóxico glufosinato de amônio, o qual pode causar danos ao sistema nervoso. Sem a devida segurança ambiental e à saúde humana, o trigo transgênico poderá chegar à mesa dos brasileiros rapidamente. Na Europa, a espécie não foi autorizada diante da falta de comprovação. Segundo Naiara Bittencourt, coordenadora do Programa Iguaçu na organização Terra de Direitos, “o processo de liberação da farinha e, agora, do cultivo de trigo transgênico no Brasil apresenta inúmeros vícios e ilegalidades que implicam a sua nulidade. Propagandeado como resistente à seca, o trigo também é modificado para resistir ao glufosinato de amônio, agrotóxico mais perigoso que o glifosato e é considerado potencial cancerígeno pela OMS [Organização Mundial da Saúde]”.
No mês do Abril Vermelho, recordamos os 27 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará; saudamos a memória de todos os filhos e de todas as filhas desta nação que lutam pelo acesso à terra e permanência no território; que plantam e semeiam a comida de nossas mesas; esses trabalhadores e essas trabalhadoras que sonham que um dia haja um governo que governe para eles e elas. Esperamos ansiosos e ansiosas pelos dias de ousadia, quando a erradicação da fome, a reforma agrária, a biodiversidade, a igualdade racial, a dignidade dos povos deste país sejam o centro, e que no projeto político de nação seja priorizada a soberania alimentar, porque é por meio dela e com ela que ergueremos a soberania popular.
Edição: Thalita Pires
Divulgamos, abaixo, depoimento de Nilce Pontes, da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos ) sobre a importância de políticas de compras públicas, entre elas o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), para a agricultura camponesa e quilombola e os riscos que correm com o Acordo UE-Mercosul (União Europeia):
✊🏽💧 Hoje, 22 de Março, é o #diamundialdaagua . É a água que torna a vida possível; é o que nos garante higiene, saúde, alimento. Durante a pandemia, vimos e sentimos a importância de poder lavar as mãos, de tomar água de qualidade, de consumir alimento saudável, e o impacto disso na imunidade e na saúde das pessoas.
Atualmente, nem todos os brasileiros e as brasileiras, e muito menos em âmbito mundial, têm o acesso à água garantido. A Amigos da Terra Brasil e parceiros vêm realizando estudos nos territórios e têm constatado que essa água é assegurada de forma precária. Em boa parte das cidades já se detecta o problema na captação, onde a água chega contaminada, seja por agrotóxicos, devido à mineração e à siderurgia, entre tantos outros vários fatores e irregularidades.
A água é um dos direitos fundamentais, o direito à vida, como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portanto, o acesso à água potável deve ser garantido a todos os assentamentos humanos, mas não é a realidade de muitas ocupações irregulares, aldeias indígenas não demarcadas, quilombos não titulados, nas periferias, especialmente das grandes cidades.
A água é um direito ainda a ser conquistado! E nesse sentido, a privatização das empresas públicas de água e saneamento vêm na contramão do acesso à água potável. Este bem essencial deve ser garantido pelo Estado e não ser entregue à iniciativa privada, com a falsa promessa de que vai garantir esse direito para todos e todas. Temos exemplos no Brasil e no mundo de que a privatização não resolveu a questão do acesso, pelo contrário: a partir do poder econômico, as pessoas ficaram excluídas, sem ter água potável para beber, alimentar-se, para viver! Os custos dessa água privatizada aumentaram, e os investimentos feitos pelas empresas privadas não ampliaram, de forma necessária, os sistemas e nem as estruturas.
Neste #diamundialdaagua é que se torna cada vez mais urgente a ação do Estado e governos que garanta o acesso às águas e que responsabilize os agentes que contaminam.
Neste dia de reflexão e de luta, a Amigos da Terra Brasil destaca a voz de agricultores agroecológicos e contra a privatização. Veja os vídeos abaixo:
No dia 27 de fevereiro, cerca de 150 famílias do MST (Movimento Sem Terra) ocuparam três fazendas no extremo Sul da Bahia de propriedade da empresa Suzano Papel e Celulose S/A, considerada a maior empresa de celulose do mundo. A ocupação tinha como objetivo que a empresa cumprisse com o acordo de assentar cerca de 600 famílias firmado em 2011, com a participação do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Mas também denunciar os inúmeros danos causados ao meio ambiente pela plantação de eucalipto na região, especialmente a destruição do solo e uso excessivo de água.
No dia 3 de março, fazendeiros resolveram realizar seu próprio despejo na Fazenda Limoeiro, no Norte baiano, desmanchando barracos e incendiando colchões. As famílias se viram forçadas a desocupar a área, sob as ameaças. No dia 5 de março, sem terra que desocuparam área de fazenda entre os municípios de Santa Luzia e Camacan, no sul da Bahia, foram abordados dentro do ônibus, por volta de 40 pessoas, e ficaram sob ameaça de fazendeiros armados, que os conduziram para a delegacia. No local, foram conduzidos os depoimentos sem a presença dos advogados e advogadas dos militantes. Os fazendeiros não são o governo do Estado e nem a polícia militar para realizar tais atitudes que, portanto, são ilegais e se constituem em milícia privada.
A região do extremo Sul da Bahia vive sob tensão dos latifúndios, com pressão sobre acampamentos sem terra e indígenas. Vários relatos têm ocorrido sob a organização de “caminhonetadas” e despejos forçados. É urgente que sejam investigados tais fatos e que haja um planejamento fundiário de toda a região. Áreas que estão causando danos ambientais e improdutivas devem ser destinadas à Reforma Agrária conforme determina a Constituição ao estabelecer a função social da propriedade.
As plantações de eucalipto controladas por grandes corporações, que se utilizam de transgênicos e agrotóxicos, causam impacto no acesso à água e à efetivação da soberania alimentar. Estão destruindo nossas terras, nossas gentes, e levando nossas riquezas para o exterior com a cumplicidade das elites locais. Por isso, Reforma Agrária já!
A Amigos da Terra Brasil se solidariza com os companheiros e companheiras do MST do extremo Sul da Bahia e se soma às lutas por Reforma Agrária e pela construção da Soberania Alimentar.
Famílias assentadas, organizações e movimentos sociais debatem problemáticas da pulverização de agrotóxicos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre e constroem aliança para garantir a produção de alimentos sem veneno
A advogada e ouvidora da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Marina Dermmam destacou em sua fala o descaso do poder público em relação a fiscalização de crimes vinculados à agrotóxicos, mencionando a relevância do trabalho jurídico realizado para ajudar as famílias atingidas por pulverização aérea de agrotóxicos em Nova Santa Rita. “Os agrotóxicos podem violar uma série de direitos humanos, em especial os direitos que chamamos de DHESCAs (Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais). A gente tem uma série de legislações muito protetivas aqui no Brasil, especialmente que surgiram na década de 80 e 90: o nosso plano nacional de meio ambiente, a política nacional de meio ambiente, leis de crimes ambientais, de fato são muito protetivas, mesmo no que teve em desregulamentação no último momento que vivemos. Mas é um grande desafio quando vamos no sistema de justiça procurar responsabilidade”, mencionou. Marina manifestou ainda a importância dos polígonos de exclusão, locais em que a pulverização de agrotóxicos deve ser proibida.
Acordo Mercosul-União Europeia: acordo comercial sem participação dos afetados intensifica projeto neocolonial de superexploração dos povos e territórios no Sul Global
Para além das lutas cotidianas nas bases dos territórios, abordadas nos encontros do “Povos contra agrotóxicos na República Sojeira”, foi dimensionada como estas se travam dentro da geopolítica global. Na correlação de forças entre centro e periferia do sistema capitalista, países embobrecidos por esta economia hegemônica, como os da América Latina, são grifados pela violenta situação de dependência escancarada no modelo primário agroexportador do agronegócio. Modelo que privilegia o desenvolvimento dos países colonizadores, como os membros da União Europeia, a partir do subdesenvolvimento e superexploração do Sul Global.
Na prática, um acordo que intensifica o racismo ambiental, o ecocídio, a mercantilização da natureza e o genocídio dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, tradicionais, campesinos e das periferias, que são os mais afetados pela emergência climática. Emergência essa causada pelo capitalismo e diretamente fomentada pelo agronegócio, ainda mais tendo em vista que o maior motivo de emissões de gases poluentes da atmosfera no Brasil é a alteração de uso de solos, via desmatamento para a ampliação da fronteira agrícola.
Exemplos que escancaram essa realidade são acordos como a Alca, barrado pelas lutas anos atrás. Caso que a assentada do MST e atingida pela pulverização de agrotóxicos, Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula.
Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula. Foto: Maiara Rauber
Logo, na luta contra a exploração dos corpos, territórios e da natureza na América Latina, este acordo é mais um ponto a ser considerado. Ele se relaciona diretamente com o avanço do agronegócio, que traz o uso de agrotóxicos que poluem águas, solos, afetam a saúde e integram um modelo de produção desigual. Graciela abordou essa situação de dependência econômica prolongada pelo Acordo, assim como o uso de agrotóxicos como armas químicas a qual estão submetidas as comunidades. “O Acordo Mercosul-União Europeia a maioria das pessoas desconhece. Quem conhece um pouco, e um pouco porque nem sequer foi traduzido nas línguas dos países que supostamente estão envolvidos, sabe muito bem que é uma nova exploração dos nossos territórios. É um aprofundamento da exploração do sistema capitalista nos nossos territórios e nos nossos corpos. E isso significa que a fronteira da soja, a república unida da soja como falava a Syngenta, vai querer se expandir muito além. E isso vai acontecer com todas as monoculturas se nós não paramos, não conversamos e dizemos para esse novo governo que não queremos mais exploração nos nossos territórios”, situou Graciela quanto a necessidade de incidência das lutas neste Acordo.
Encontros fortalecem as alianças entre movimentos e organizações que assumem o compromisso no processo de conscientização da sociedade da América Latina
Leonardo Melgarejo, do Movimento Ciência Cidadã, explicou a importância dessa atividade multi-institucional que envolveu ativistas que lutam contra o agrotóxicos na América Latina, e contou com uma comitiva de quatro instituições da Argentina. “Nós discutimos um fato básico, temos doenças que são as mesmas, que afetam as famílias de todos os países da América Latina, que são causadas por agrotóxicos que são os mesmos comercializados com instituições que são as mesmas. Precisamos estabelecer uma forma de defesa conjunta para atuarmos de uma mesma maneira e não isoladamente, para atuarmos conjuntamente contra este problema que se associa aos avanços das lavouras transgênicas, das lavouras geneticamente modificadas tolerantes agrotóxicos que estão inundando os nossos territórios”, declarou.
Foi concluído no final do debate a importância de superar processos de alienação da sociedade de todos os países da América Latina, pois segundo Melgarejo a água que habita, que dá vida aos territórios da América Latina está sendo contaminada de maneira irreversível sendo que essa água faz parte dos organismos, das crianças, idosos, e também nos rios, lagos e aquíferos. “Uma maneira de tirar esse veneno dos espaços é evitando que ele chegue lá. Para isso temos que estabelecer mecanismos de comunicação que ajudem a sociedade a tomar consciência do problema que está em andamento e esses mecanismos exigem que nós pautamos ações em comum em conjunto nos vários espaços ao mesmo tempo”, reforçou o integrante do MCC.
Um dos exemplos citados por Melgarejo é o documento produzido pelas famílias assentadas de Nova Santa Rita, o qual conta a sua história e as estratégias que vem desenvolvendo para estabelecer essas alianças com as populações urbanas. Para fortalecer o documento estão captando assinaturas de adesão para levar adiante a sociedade do que acontece aqui no Rio Grande do Sul e que por extensão é o que acontece em todo o conjunto da América Latina.
Por fim, Melgarejo encarou o encontro positivamente, ao destacar a relação estabelecida com companheiros de lugares diferentes da América Latina. E novas etapas dessa luta conjunta já estão previstas. Segundo Leonardo, em junho deste ano haverá um momento na Universidade de Rosário, na Argentina, durante o Congresso de Saúde Coletiva e Saúde Ambiental. Outro encontro será realizado em novembro na cidade do Rio de Janeiro, no Congresso Brasileiro de Agroecologia (ABA).
“Nesse meio tempo nós temos um compromisso de apoiar as instituições que trabalham nessa linha e ajudar a proteger esses ativistas que estão envolvidos com essas ações de proteção, pois eles são perseguidos, discriminados e ameaçados. Devemos construir gradativamente esse processo de conscientização da sociedade da América Latina, e tomar medidas em conjunto para superar essa crise”, finalizou Leonardo Melgarejo.
Confira alguns dos registros das atividades na nossa galeria de fotos:
Créditos: Carolina C.
Não foi possível estar presente? Confira a transmissão ao vivo da atividade na Assembleia Legislativa, que conta com apresentação da Carta dos atingidos pela deriva de agrotóxicos e debate internacionalista, da sociedade civil, movimentos e organizações sobre a pauta
Visita às comunidades que serão atingidas pelo projeto da Mina Guaíba – que pretende ser a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil -, comprova os impactos socioambientais do empreendimento. Plano é instalar mina a cerca de 15km do centro de Porto Alegre, à beira do Delta do Jacuí. Narrativa que Copelmi, empresa responsável pelo projeto, tenta construir é a de que as pessoas destas comunidades vivem sem “dignidade humana” e que a empresa melhoraria suas vidas. Ora, fomos até lá fazer o que a Copelmi não fez: ouvi-las.
Sordidamente, a proposta da empresa prevê que as pessoas só seriam retiradas de suas casas e terras após 5 anos de extração do mineral. Ou seja: seriam 5 anos convivendo dia e noite com perfurações, detonações com dinamite, alto fluxo de veículos pesados e ainda a operação das plantas de beneficiamento dos minerais extraídos. Tais atividades trariam impactos como piora da qualidade do ar, ruído e rebaixamento do lençol freático, de onde as comunidades captam sua água para abastecimento. Um dos argumentos que a Copelmi utiliza em seu favor é a geração de empregos. Contudo, a promessa é vazia: serão apenas 331 postos de trabalho criados nestes primeiros anos, durante a fase de implementação; e até 2042, prometem-se outros 823. Deve-se ainda questionar a qualidade dos empregos ofertados; a saúde de trabalhadoras e trabalhadores na extração mineira é extremamente danosa à saúde e uma atividade perigosa: a mineração é a maior responsável por mortes no trabalho ao redor do mundo.
A narrativa que a Copelmi tenta construir é a de que as pessoas destas comunidades vivem sem “dignidade humana” e que a empresa iria melhorar suas vidas. Ora, fomos até estas comunidades fazer o que a Copelmi não fez: ouvi-las. E o que vimos e ouvimos é o oposto do que o engenheiro Cristiano Weber, principal porta-voz da empresa (o nome bonito dado a seu cargo é de gerente de Sustentabilidade Corporativa), declara, com certa arrogância, nos solenes debates em que participa.
É bem verdade que há uma evidente negligência dos poderes públicos municipais, principalmente quanto à qualidade das estradas e ao posto de saúde fechado há mais de dez anos; porém, estes foram os únicos aspectos negativos nas falas de moradoras e moradores. O que vimos foram duas comunidades angustiadas pela incerteza e pela possibilidade de perderem seu “paraíso” (palavra usada por mais de uma das pessoas ouvidas); e indignadas pelas afirmações da empresa, que as trata como indignas, claramente uma mentira. Há muita vontade de lutar pela permanência na área. No dia 11 de junho, haverá uma assembleia popular para tratar do tema; no final do mês, 27 de junho, uma nova audiência pública acontecerá.
O Loteamento Guaíba City é o lar de muitas famílias: algumas já vivem ali há 3 gerações. Há aquelas pessoas que vão somente aos finais de semana pois ainda têm que trabalhar na cidade, mas que pretendem ir para lá definitivamente ao se aposentarem: é seu plano de vida. Outras já conseguiram este feito de “fugir” da cidade. Nos lotes, que são pequenas chácaras, construíram suas casas, perfuraram seus poços, criam galinhas, vacas leiteiras, cavalos, têm pequenas roças e hortas, além de pescarem nos arroios locais (que serão desviados pela mina) e no Rio Jacuí. As crianças vão a pé ou de bicicleta para a escola Osmar Hoff Pacheco, ou de transporte escolar (que, segundo os relatos, funciona bem) para as escolas das cidades do entorno.
Em um abaixo-assinado que percorre o loteamento, uma derrota acachapante da Copelmi: em 82 assinaturas, 77 são contrárias ao projeto – apenas 5 estão ao lado da empresa, que não se cansa de tentar ludibriar a comunidade (no mesmo dia da nossa visita, um micro-ônibus alugado pela Copelmi levou alguns moradores para uma “churrascada”; segundo relatos, já não era a primeira vez que isso acontecia). Cada assinatura representa um lote, correspondendo à quase 250 pessoas; nem todos os lotes assinaram ainda. A maioria das pessoas não cogita sair de lá “nem morto”, até por que lá existe um cemitério que guarda muitos de seus entes queridos.
O Assentamento Apolônio de Carvalho, apesar de ser relativamente novo (foi criado em 2007) e de todas as dificuldades para se implantar um assentamento, está em pleno funcionamento. Abriga 72 famílias, com grande sentimento de pertença ao território conquistado (que antes era um “haras” de um poderoso traficante). O carro-chefe do Apolônio é a produção do arroz orgânico, o terceiro maior produtor do país, que em conjunto aos demais assentamentos do RS forma nada menos que a maior produção de arroz orgânico da América Latina. Mas a produção vai além do arroz: o assentamento produz “de tudo” – e sem veneno: hortaliças, tubérculos, frutas, chás, temperos, leite, queijo, ovos, carne, peixes, sementes, compotas. Quase tudo necessário à subsistência, e o excedente é comercializado em dezenas de feiras ecológicas em Porto Alegre e Região Metropolitana (ainda atende locais específicos, como, por exemplo, uma clínica oncológica – e por que será?). Produzem também conhecimento e tecnologia, que tem muitos nomes: agricultura orgânica de base agroecológica, controle biológico de enfermidades nos cultivos, permacultura, agrofloresta, bioconstrução. Enfim, mostram na prática uma alternativa viável, que constrói vidas simples mas abundantes e em harmonia com o ambiente. Não seria esta a verdadeira sustentabilidade?
Após algumas tentativas da Copelmi de fingir que as comunidades, tanto do Guaíba City quanto do Apolônio, estariam dispostas a deixar o local onde vivem, foi necessário demarcar suas posições de maneira clara: “Somos contra, porque somos a favor da vida”. Além do que já conseguiram alcançar (terra para plantar, casa para morar, luz, água, o sustento garantido pelo lote), todos tem ainda muitos sonhos: aumentar a produtividade do arroz, ter demanda mais garantida (além das feiras e clientes específicos, faz falta o fornecimento antes feito a escolas através do PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], praticamente acabado no contexto atual), que a cidade valorize mais o alimento produzido sem veneno no campo. Ficam a imaginar o quanto de alimentos sem veneno pode ser produzido e posto na mesa de famílias no campo e na cidade ao longo dos 23 anos que a mina pretende operar…