A comunidade não foi consultada previamente sobre ampliação da BR-386, a menos de 500m do território.
A Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) realiza ato da “Parada da Légua” neste sábado (20/01), em defesa da autodeterminação dos povos e seu direito radical de ser e existir, internacionalmente garantidos pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A convenção determina a exigência da consulta prévia, livre, informada e de boa-fé a povos Originários, Tradicionais e Quilombolas, sempre que um projeto, público ou privado, afete os modos de ser e viver em seus territórios. A comunidade Kilombola está localizada no distrito de Vendinha – entre Montenegro e Triunfo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e está sendo diretamente afetada pelo empreendimento de ampliação da BR-386, a menos de 500 metros do seu território. O ato está agendado para às 18h.
Com o lema “Por uma Solidariedade Real e Radical em Território de Mãe Preta CoMPaz: povos tradicionais marcham em unidade pelo direito de ser e existir”, a comunidade articula uma manifestação pacífica, alertando vizinhança e autoridades. Além do Território de Mãe Preta, lideranças indígenas, quilombolas, ocupações, associações de imigrantes e refugiados e o Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, devem se somar ao ato em apoio ao direito de ser e existir de todos os povos. O ato prevê uma marcha poética-cultural, política-espiritual, que contará também com a distribuição de materiais informativos a motoristas no local.
Conforme a Comunidade, a ampliação no trecho 405-415km afeta diretamente o território, envolvendo, entre outros danos, a supressão de 300m2 da vegetação local e a aproximação perigosa de uma rodovia com alto fluxo de veículos pesados perto de suas porteiras, colocando em risco todas as vidas que compõem o território. Após Ação Civil Pública (Nº 5063160-33.2022.4.047100/RS) ajuizada pela comunidade no final de 2022, em consonância com a recomendação aprovada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a Justiça Federal no Rio Grande do Sul concedeu, em janeiro do ano passado, uma liminar histórica, suspendendo o andamento da obra no trecho até que fosse realizada a Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé à comunidade, respeitando a já mencionada Convenção nº 169 da OIT. Mesmo após inúmeros recursos dos réus do processo – as empresas concessionárias e o Estado brasileiro, a partir dos órgãos Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) – a Comunidade saiu vitoriosa sustentando a decisão liminar. Contudo, esta foi derrubada ao final de 2023, quando a juíza designada para avaliar o mérito do processo decidiu extinguir a ação. O argumento utilizado foi o de que, ainda que tenha legitimidade em reivindicar esse direito, a comunidade estaria se adiantando em seu pedido, já que o cronograma da concessionária teria previsto para 2034 a execução das obras no trecho 358-444 KM, entre os municípios de Tabaí e Canoas, o que tiraria seu caráter de urgência. A Comunidade está aguardando o pronunciamento do juízo com relação à apelação que apresentou a essa sentença. O argumento disputa a noção de urgência, ao afirmar que o tempo para ingressar em juízo é aquele em que as ameaças e danos são sentidos em território kilombola e em que seus mais velhos ainda são capazes de lutar.
A Comunidade, além de não ter sido consultada no momento da concepção do projeto, nem devidamente considerada para fins do relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA), não teve acesso até o presente momento ao inteiro teor do projeto de ampliação e a seu cronograma atualizado, o que, por si só, vem afetando a paz e a tranquilidade dos mais velhos e mais novos do território.
As obras de ampliação da BR-386 foram iniciadas em 2010 pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). Desde a época, os impactos do empreendimento também têm afetado outros territórios tradicionais, quilombolas e indígenas. O empreendimento faz parte do programa de Concessão Federal no Rio Grande do Sul e é regulado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). “Em 2021 a nossa Comunidade também enfrentou as ameaças da instalação de um aterro industrial classe I para descarte de resíduos perigosos de alta toxicidade, patogenicidade, inflamabilidade, advindos da atividade industrial a 8 Km aos fundos do Território. A CoMPaZ detectou essa ameaça, acionou grupos de interesse – entre eles a União Protetora do Ambiente Natural (UPAN), o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Caí (CBH Caí) e a Amigas da Terra Brasil (ATBR) – e iniciou a mobilização popular que culminou em uma audiência pública híbrida. Essa audiência, que teve ponto focal presencial na Comunidade do Pesqueiro/Montenegro, contou com participação virtual massiva da CoMPaZ e de seus aliados, demonstrando força e articulação capazes de barrar o projeto, ainda que temporariamente, junto ao poder público.
Essas não são as únicas ameaças territoriais detectadas pela Comunidade. Estamos cercados pelo monocultivo com forte uso de agrotóxicos de acácia e eucalipto e num raio de 12 km em relação ao Polo Petroquímico de Triunfo. Tudo isso impacta as águas, o ar, a terra e todos os Seres Sencientes que zelam e protegem o nosso Território. Diante de tantos ataques aos territórios de vida, da intensificação das guerras no mundo, da emergência climática que atinge os povos nas cidades, no campo, nas florestas e nas águas, a Solidariedade Real e Radical é o que nos une e nos fortalece para Parar e Avançar, que nos permite esperançar”, afirma Baogan Bàbá Kínní, do Conselho de Ìyás de Bàbás da Nação Muzunguê.
Diante das ameaças impostas pela obra da rodovia, a comunidade tornou público, em 2022, seu Protocolo autônomo e comunitário de consulta prévia, livre, informada e de boa-fé: O Dossiê Kilombo – Proteger, Defender e Vigiar, que contém também o Estatuto Comunitário Igbesi Alaafia e a cartografia da ComumUnidade do Território Kilombola Morada da Paz. O Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS afirmou que se trata do primeiro Protocolo desse tipo realizado por uma comunidade quilombola no estado, e pode servir, portanto, como inspiração para lutas semelhantes vivenciadas por outras comunidades tradicionais.
A Comunidade Kilombola Morada da Paz foi certificada pela Fundação Cultural Palmares como quilombo em 2016 (Portaria n° 104/2016, de 20/05/2016). Também conhecida como Território de Mãe Preta, a comunidade se define como kilombola, espiritual e ecológica e se constitui predominantemente por mulheres negras, com o intuito de resistir, preservar e aplicar sobretudo os saberes da Nação Muzunguê, de matriz espiritual afrobudígena.
Segundo o Censo Demográfico 2022 (IBGE), o Rio Grande do Sul tem 17.496 habitantes que se declaram quilombolas. Dados do Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul apontam que o estado possui ao menos 146 comunidades quilombolas.
“Por uma Solidariedade Real e Radical em Território de Mãe Preta CoMPaz: povos tradicionais marcham em unidade pelo direito de ser e existir. Nós existimos e estamos aqui. ‘Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes.’”
Link do Dossiê Kilombo: Proteger, Defender e Vigiar:
http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/acervo/compaz/dossiekilombo/index.html
Mais informações:
Contato
compaz.consultaprevia@gmail.com