Água em risco: Projeto Retiro prevê a extração de titânio e outros minerais ameaçando territórios de vida em São José do Norte (RS)

 Em ato histórico, mobilização nortense faz ecoar o grito “não queremos mineração”. A comunidade exige preservação da agricultura familiar, da pesca artesanal, da qualidade da água e a garantia de seus direitos, como o de consulta livre, prévia e informada – que prevê que comunidades afetadas por megaprojetos sejam consultadas conforme suas regras antes que estes empreendimentos se instalem.

Com alto impacto socioambiental negativo, a primeira fase do projeto de iniciativa da empresa Rio Grande Mineração S.A. (RGM) está em fase de análise para emissão da Licença de Instalação pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). O órgão de licenciamento ambiental estará em reunião com a empresa nesta semana, visitando áreas que constam no projeto. A agenda do Ibama não prevê um momento de diálogo com a comunidade nortense. Moradores de São José do Norte se mobilizam para que o órgão inclua na agenda conversas com a população.

No dia 16 de abril, em mais um ato histórico, a mobilização popular fez ecoar o grito em defesa da região e de sua diversidade de vida, dizendo não à mineração. O ato contou com carreata composta por mais de duas centenas de carros, caminhões e veículos agrícolas, e percorreu cerca de 100 km de extensão, representando toda a área do município que seria impactada pela mineração em todas as suas fases (da localidade de Capão da Areia até a zona urbana). Após a carreata, a chuva ininterrupta não impediu a mobilização de seguir. A pé, em marcha pelas ruas do centro urbano de São José do Norte, manifestantes reivindicaram os seus direitos, denunciando os riscos do projeto para a saúde das pessoas, águas, ar, solo, fauna e flora, para produção de alimentos, pesca e cultura local. 

Moradores de São José do Norte estão mobilizados para barrar projeto Retiro
No dia 16 de abril, moradores de São José do Norte voltaram a sair às ruas para denunciar impactos do projeto | Foto: Carolina Colorio, ATbr

Falas abordaram os impactos da mineração no RS e a devastação que a extração de Ilmenita (óxido de titânio e ferro), Rutilo (óxido de titânio) e Zirconita pode trazer. Também foi pontuada a importância da organização popular para barrar o projeto, assim como a necessidade de o Ibama escutar o posicionamento do povo.  Elisete dos Santos Amorim, integrante do Movimento Mineração Aqui Não, vive no interior de São José do Norte, e como ela mesma diz, é agricultora desde o ventre de sua mãe. Ela relata que a luta do Movimento começou em 2011, com marco em 2014 quando os primeiros documentos para barrar o Projeto Retiro foram encaminhados. “Nosso objetivo maior hoje é sensibilizar o Ibama para que ele não dê esse laudo favorável ao projeto de mineração. O povo tá contra. Estamos na defesa da nossa água, do nosso território, da nossa história, do nosso povo, da nossa cultura”, evidenciando a luta pela preservação do território. De acordo com a agricultora, até hoje a RGM não foi capaz de garantir que a água não vai ser contaminada e nem que o oceano não vai entrar. “Como é que a gente vai querer um projeto desses? Mineração para quem? Para nós não é. Nós não precisamos disso daí, a gente é feliz do jeito que é”, expôs. 

Eduardo Raguse, da Amigas da Terra Brasil e da Coordenação do Comitê de Combate à Megamineração do RS (CCM), pontuou que o que está acontecendo em São José do Norte faz parte de um projeto de expansão minerária no Rio Grande do Sul . Ele rememorou a importância da organização popular para frear megaprojetos, citando um caso que assolou a capital gaúcha e arredores anos atrás: A Mina Guaíba, que se instalada seria a maior mina de carvão do Brasil. “Assim como vocês, fizemos uma grande luta. Tenho certeza que com essa mobilização vocês vão mostrar para o Ibama e para as autoridades locais que São José do Norte não quer mineração”, mencionou. 

Após carreata, ato lotou ruas de São José do Norte, mesmo com chuvas intensas | Foto: Carolina Colorio

O projeto de mineração batizado de Atlântico Sul está dividido em três fases: 1- Projeto Retiro, 2- Projeto Estreito-Capão do Meio e 3- Projeto Bujuru. Os nomes de cada fase correspondem a uma das comunidades diretamente atingidas. Hoje, devido a uma autorização do Ibama, o projeto Atlântico Sul está sendo licenciado de forma “fatiada” por fase, o que mascara as populações diretamente atingidas e a avaliação ambiental dos impactos cumulativos. Em sua primeira fase, em licenciamento,  pretende explorar cerca de 600 mil toneladas de minerais pesados como Ilmenita, Rutilo e Zirconita. O impacto desta fase é numa área de aproximadamente 30 quilômetros de extensão e 1,6 quilômetros de largura, localizada entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico.

O ato evidenciou a força do Movimento Mineração Aqui NÃO, composto pelas famílias moradoras das zonas rurais e urbana do município, trabalhadores da agricultura, da pesca e de diferentes setores da economia local. Assim como do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São José do Norte, da Cooperativa dos Agricultores Familiares (Cooafan), do Quilombo Vila Nova, das Colônias de pescadores, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, Grupo de Agroecologia Econorte, Centro Comunitário da Várzea e de várias Associações de moradores, agricultores e pescadores. E tem apoio do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Comitê de Combate à Megamineração do RS (CCM),  Amigas da Terra Brasil, Instituto Preservar, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), grupos de pesquisa de universidades e entidades da sociedade civil gaúcha. A força da população pode ser evidenciada pelo fato de todas/os vereadoras/es e o executivo municipal se posicionarem atualmente contra a mineração.

Mineração aqui não! População em defesa da vida e da cultura local | Foto: Carolina Colorio, ATBr

“Viemos mostrar nosso repúdio a esse projeto nefasto que quer explorar minerais em São José do Norte para atender interesses externos e interesses da indústria bélica, da indústria aeroespacial e de setores da economia que não dialogam com a vida do povo de São José do Norte. Precisamos fortalecer muito a agricultura familiar, a pesca artesanal, o modo de vida tradicional. Precisamos garantir a soberania popular e garantir o direito e a voz”, contou o atualmente vereador do São José do Norte Luiz Gautério, que se mobiliza com o Movimento Mineração Aqui Não e estava presente no ato.

No dia 16 de abril, moradores de São José do Norte voltaram a sair às ruas para denunciar impactos do projeto |Foto: Carolina Colorio, ATBr

Água para vida! Mineração para morte!

Um dos principais aspectos levantados pelos moradores de São José do Norte na luta contra a mineração é a possibilidade de contaminação da água. Essa preocupação é de extrema importância, visto que o município é totalmente abastecido por água subterrânea e não possui outra alternativa para o consumo humano e para a dessedentação animal. No Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e nos estudos complementares apresentados pela empresa não fica comprovado que a água subterrânea do município terá a sua qualidade para o consumo mantida. Em quase todas as falas durante o ato esse aspecto foi levantado.

A insegurança com relação a qualidade e disponibilidade da água vem sendo apresentada pela população ao longo dessa última década de luta contra a mineração. E, durante todo esse tempo, não conseguem ter uma resposta satisfatória por parte do órgão ambiental licenciador e do empreendedor. A água é uma questão de vida para a população de São José do Norte, e a perda da sua qualidade pode significar a impossibilidade da continuidade em seu território. Fato que é indiferente ao empreendedor, mas que deveria ser ponto central na tomada de decisão do órgão ambiental licenciador.

Marcela de Avellar Mascarello e outros (2022), em pesquisa realizada, atestam que no “EIA apresentado pela empresa não traz a garantia de que não haverá prejuízo a esse recurso, tampouco houve qualquer interesse e esforço da empresa em cumprir parte do Termo de Referência para a sua elaboração, em que lhe imputava “caracterizar os principais usos na área de influência direta do projeto, suas demandas atuais e futuras em termos quantitativos e qualitativos”. Há, portanto, uma lacuna de informação que expõe a população nortense a riscos de escassez e de diminuição da qualidade do recurso hídrico. Então, perante a incerteza acerca da disponibilidade deste recurso em quantidade e qualidade adequadas ao consumo da população nortense, durante e após a exploração dos recursos minerários, deve-se usar o princípio da precaução e negar a instalação do empreendimento”.

Encontro no Quilombo Vila Nova, antes do ato | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Flávio Xavier Machado, coordenador e vice-presidente da Associação da Comunidade Quilombola Vila Nova, também agricultor, contou que ao longo dos anos, na propriedade em que vive com Vanuza, foram produzindo mais variedades, vencendo desafios e que, hoje, vão para além da subsistência, levando alimentos para outras famílias.  “A gente tá conseguindo produzir alimento com qualidade e respeitando a natureza, respeitando o meio ambiente. E essa é a nossa grande preocupação. A gente tá nessa luta para que a gente consiga continuar sobrevivendo dessa forma. Que os grandes empreendimentos que chegam aí não nos impactem tão forte. Hoje, olhando esse projeto da RGM, se ele não for alterado de algumas formas ele vai nos deixar sem condições de ter água de consumo humano e animal e por um bom período… A partir do momento que eles passarem pelo território, a gente não vai tá conseguindo produzir alimento”, afirmou.

Produção de alimentos do Quilombo Vila Nova, que será impactada em caso de implementação do Projeto Retiro | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Fato que vem sendo entoado desde 2014 pelos moradores de São José do Norte e desprezado até o presente momento pelo órgão ambiental licenciador, que se espera que nesse momento utilize o princípio da precaução e salvaguarde a vida da população nortense ao invés do lucro da empresa.

Territórios de vida e resistência ou uma zona de sacrifício? Os próximos atingidos

A mineração opera historicamente impondo a mudança de paisagem, impactos na produção de alimentos, violação de uma série de direitos, abusos e a constante ameaça às formas de ser e existir dos povos. Caso o Ibama dê a licença para o Projeto Retiro, o que conhecemos como São José do Norte se transformará em outra paisagem. E a gravidade vai além dessa alteração.

Com o projeto vem a contaminação de águas, lençol freático, solo e alimentos. Também são feridos os modos de viver de comunidades tradicionais que coabitam os territórios, conectadas pela vida pesqueira aos fluxos das águas entre o Oceano Pacífico e a Lagoa dos Patos. Ou vinculadas à terra, cultivando sementes que passam de geração em geração e que contam uma história ancestral.  Que crescem, no cuidado e trabalho árduo do dia a dia como alimentos saudáveis e sem veneno, que chegam à mesa de diversas famílias.

Vanuza da Silveira Machado é agricultora familiar e quilombola, integrante da Associação e Comunidade Quilombola Vila Nova, localizada em Capão do Meio, terceiro distrito de São José do Norte. Território que será diretamente atingido pela segunda fase do Projeto Atlântico Sul, mas que sofrerá alguns impactos negativos em caso da emissão da licença de instalação da Fase Retiro. “Nós aqui do Quilombo Vila Nova somos todos pequenos agricultores familiares. A gente vive da roça, plantamos um pouco de tudo. Aqui na nossa residência a gente planta arroz, feijão, milho, batata, cebola, tem uma pecuária também. A gente vende esse arroz para merenda escolar. Outros quilombolas também. No mais todo mundo vive da pecuária e da pesca”, contextualizou, explicando a importância da mobilização coletiva para frear a mineração no local, que atinge seu modo de vida, a produção de alimentos e afeta também culturas alimentares da região e o acesso à terra, outro direito que deveria ser assegurado.

Encontro entre Amigas da Terra Brasil, Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e Quilombo Vila Nova, que resiste ao Projeto Retiro | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Uma das preocupações dessa e outras comunidades que participaram do ato é de que o licenciamento ambiental das próximas fases se torne apenas um rito meramente protocolar. Sem que sejam escutados, fato que já ocorre no Licenciamento da Fase 1 visto os impactos negativos que serão imputados à comunidade.

Mobilizada na luta contra a mineração, pelo acesso à terra, assim como pelo reconhecimento e titulação de quilombos, Vanuza abordou a importância da população estar cada vez mais unida na luta, sem se desmobilizar. Em suas falas, mais de uma vez resgatou que os quilombolas têm raízes em São José do Norte, e que é preciso lutar com as raízes que se leva consigo. “Nós, quilombolas, queremos ficar aqui. Queremos o nosso lugar. Aqui estão as nossas raízes. Então a gente tá mobilizado, todos quilombolas juntos, para lutar contra a mineração. A gente não quer que essa empresa se instale, a gente tá lutando muito para isso, junto com os pescadores e toda a comunidade do Capão do Meio, todo interior de São José do Norte. Vamos dizer não à mineração. A gente não quer sair daqui. Se a gente sair daqui, o que é que a gente vai fazer? Para onde nós vamos?”, indagou.

A socióloga e dirigente nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Iara Reis, denunciou as falsas promessas das empresas minerárias, tanto quanto à geração de trabalho e desenvolvimento local, quanto à garantia de moradia para quem é desalojado quando o projeto se instala. “Os que querem ir embora, que garantias têm? Lá na nossa região (Pará) a gente tem experiência de comunidades que foram expropriadas, remanejadas de forma cruel para outro território, outro assentamento. E depois tiveram que ser remanejadas de novo. A pessoa já tá ali desde novinha, cresceu e envelheceu ali, e daí foi mandada para outro lugar. Chegando lá não teve garantia que ia ficar”, contou, apontando a insegurança que a mineração traz neste aspecto.

A comunidade quilombola teve seu direito a consulta prévia, livre e informada violada nos processos de licenciamento ambiental dos Complexos de Geração Eólica Bojuru e Ventos do Atlântico, conforme pareceres técnicos e denúncia realizada ao Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Ainda, apesar de não estarem na área de lavra da Fase 1 do Projeto Atlântico Sul, vão sofrer alguns dos impactos negativos e vão ser diretamente atingidos durante a Fase 2. Sem consulta livre, prévia e informada a comunidades tradicionais que podem ser impactadas por seu avanço, os projetos ferem a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Reside aí um dos grandes motivos para que o Ibama considere a população local antes de emitir licença de instalação para a RGM.

Foto: Divulgação

“A gente já preserva. Tá preservando naturalmente esse nosso território.  E esses empreendimentos vão alterar e muito, tanto a RGM quanto a eólica. E aí eles não tão respeitando a 169 da OIT, que garante esses direitos de os povos tradicionais serem ouvidos, poderem ser consultados. A gente não foi consultado em nenhum momento, isso é uma das questões mais graves. Mesmo tendo a lei do nosso lado, e aí que a gente vê que a coisa é muito complexa, eles não obedecem. Só por estarmos aqui por muito tempo e termos o título da Fundação Palmares a gente deveria ser consultado e isso também não aconteceu. Então a gente tá reivindicando e questionando esses processos todos, que de uma certa forma não tá sendo feito da maneira correta”, evidenciou Flávio.

Flávio ressaltou a importância da titulação dos quilombos na garantia de direitos e reparação histórica do povo negro brasileiro, que segue sendo afrontado por diversas formas de violência, sobretudo com o avanço de projetos que não consideram os territórios e agem com uma lógica que reproduz o colonialismo. Pontuou como esses megaprojetos interferem na vida cotidiana, e que a titulação, assim como o  reconhecimento da história negra é fundamental para barrar a violência desses megaprojetos na sociedade. “Somos descendentes de escravos aqui, e aí a partir disso a gente começa a buscar um pouco da história, das pessoas que passaram bem antes de nós, nossos avós, bisavós… E gente começa a ter esses relatos das pessoas mais velhas, que o nosso bisavô foi descendente de escravo aqui na região, e isso que nos deu a titulação pela Fundação Palmares, essa comprovação. E agora a gente tá buscando que o Estado reconheça isso. Essa é a nossa luta, para poder garantir que esses grandes empreendimentos não interfiram no nosso modo de vida, que é isso que a gente quer fazer, é isso que a gente faz há muito tempo”, sintetizou.

Evidenciando o racismo estrutural, mencionou ainda a injustiça da questão da distribuição de terras em solo brasileiro: “Outros povos chegam no Brasil e têm direito à titulação de terra e nós nunca tivemos isso. Os números por si só já mostram. No Rio Grande do Sul a gente tem quatro comunidades tituladas. Parece que são 160 comunidades quilombolas no RS e só tem quatro tituladas. Isso mostra que o Estado tá ausente. E isso implica em bastante consequência para nós”.

Quilombolas em defesa da vida e contra a mineração | Foto: Carolina Colorio, ATBr

Relacionando a necessidade da titulação de terras ao movimento contra a mineração em São José do Norte, Flávio expôs que o objetivo de ter começado essa luta na comunidade quilombola é para que possam ter direito a viver neste território onde seus antepassados viveram, por mais de cem anos. “Esse empreendimento vai afetar muito a nossa sobrevivência, o nosso modo de viver na verdade. Até hoje a gente não tem nenhum estudo e nenhuma informação técnica que garanta que esse impacto não seja tão forte como o empreendimento vem colocando. E para a gente poder se defender desse processo minerário que tá vindo se instalar em São José do Norte, a gente precisa ter a titulação da nossa área.”

O território quilombola Vila Nova vem sendo cercado por megaempreendimentos sem que os seus direitos sejam respeitados. Representando, dessa forma, mais um processo de espoliação do povo quilombola, reforçando o processo de racismo estrutural no processo de licenciamento ambiental, conforme denunciado por suas lideranças.

Impactos Socioambientais do avanço da mineração não são considerados em estudos apresentados pela empresa

Foto: Divulgação

Entre os impactos negativos do projeto de mineração em São José do Norte,  Caio dos Santos, Pesquisador do Observatório dos Conflitos do Extremo Sul do Brasil destaca os seguinte: possibilidade na piora da qualidade da água subterrânea que serve para o consumo humano e dessedentação animal; aumento do tráfego de veículos pesados e leves, aumento da poeira nas estradas e da exposição a metais pesados, aumento na pressão sobre os serviços públicos como saúde e educação, impacto nas atividades tradicionais de agricultura e pesca artesanal, risco a espécies endêmicas da fauna e flora, impactos na avifauna migratória, falta de consulta prévia, livre e informada às populações tradicionais, aumento do custo de vida, sobrecarga no na rede de abastecimento elétrico que já é deficitária.

Luiz Gautério, que tem formação em Gestão Ambiental , afirmou que o estudo de Impacto Ambiental apresentado pela RGM apresenta várias falhas.  “Diversas delas foram apontadas pelo Ministério Público como inconsistências do licenciamento ambiental. Temos uma fragilidade muito alta da nossa água subterrânea, a água de uso, para as pessoas beberem no campo, para os animais beberem, para a manutenção dessa condição dinâmica do ecossistema que dialoga com o oceano, como o berçário, os corpos d’água que são pequenos estuários de vida marinha, com as aves migratórias que passam por aqui. Mas principalmente, nós temos pessoas que dependem exclusivamente da água subterrânea para viver. Por isso que nós precisamos denunciar que o projeto de licenciamento ambiental da empresa RGM está colocando em risco todo esse modo de vida do campo, porque as pessoas podem ficar de uma hora para outra, num período curto de tempo, com a água contaminada. E pelo simples fato da mistura da estratigrafia do solo. E tem outros aspectos que não foram considerados, entre eles mudanças climáticas, que não está presente no estudo de impacto ambiental”, explicou.

Além disso, como aponta a Ação Civil Pública (ACP n. 5007290-39.2018.4.04.7101) ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), as comunidades de pescadores/as artesanais dentro da área de lavra não constam no Estudo de Impacto Ambiental e tiveram seu direito a consulta prévia, livre e informada violado, assim como os/as cebolicultores/as do município. Viviane Machado, do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), salientou no ato que: “É não para a mineração. É não para as eólicas. É não para qualquer processo que exclua as comunidades tradicionais de São José do Norte”.  Em parecer técnico, elaborado no ano de 2017, pesquisadores atestam que  “o órgão ambiental se exime de sua responsabilidade sobre o licenciamento ambiental, ignorando bases legais relevantes como a OIT 169, que versa sobre a necessidade de manifestação das populações tradicionais sobre projetos de desenvolvimento em seus territórios, dentre outros”. O que tornaria nula a Licença Prévia emitida pelo órgão ambiental, conforme pedido realizado pelo MPF na ACP e sustentado pelo movimento contra a mineração.

Uma luta coletiva

Nos últimos anos, crimes socioambientais de proporções catastróficas, ligados à expansão minerária, assolam o país. Recentemente, o caso da Braskem, em Maceió (AL), evidencia o descaso das empresas e para quem a mineração serve. O rompimento das barragens em Brumadinho e Mariana (MG), crimes ambientais pela qual a Vale, BHP Billiton e Samarco respondem judicialmente, também são feridas abertas em um povo que ainda não encontrou corpos de familiares, e que segue lutando para ter os seus direitos assegurados.

A mineração tem em sua genealogia a violência, a contaminação e a exploração da classe trabalhadora e da natureza. Diversos são os casos na América Latina em que cidades passaram por um ciclo de aparente riqueza, temporária, concentrada nas mãos de poucos e geradora de miséria para a maioria. Essas cidades, que em alguns casos se transformaram em grandes minas, vivenciaram um rastro de destruição, que ocasionou em perdas irrecuperáveis.

Enquanto a mineração se entranha em comunidades levando a devastação e a morte, das entranhas destes territórios a mobilização popular segue gritando por suas águas e pela vida. Em São José do Norte não é diferente. A resistência ao projeto parte de uma coletividade de gentes, que organizada por meio do Movimento Mineração Aqui Não, representa a voz da maior parte da população urbana e rural do município.  Famílias que, sobretudo, vivem das águas e do solo da região, do cultivo e da pesca artesanal. Manter estas formas de vida preservadas, assim como as condições que as sustentam, tem valor para todo conjunto da população, para além das fronteiras em que pode ser instalado o Projeto. Por isto, garantir a produção de alimentos, a qualidade das águas, a saúde, e os territórios tradicionais deve ser uma luta de todas, todes e todos.

A luta contra o Projeto Retiro em São José do Norte representa não apenas a defesa de um território específico, mas também a resistência contra um modelo de desenvolvimento predatório, que coloca em risco a vida e os meios de subsistência de comunidades locais, e que afeta o conjunto da classe trabalhadora brasileira que é saqueada pelo atual modelo mineral do país. A mobilização popular é o recurso dos povos para a proteção dos bens comuns e dos direitos das gerações presentes e futuras.

 Leia também em: 
Sul 21
Brasil de Fato

A água sempre encontra um caminho: A caminhada da CoMPaz pelo respeito ao seu Direito de Ser e Existir

“É que nós sabemos: tem portas que só se abrem pelo lado de dentro. Então fomos cavar as brechas, cavar os caminhos arduamente percorridos por pessoas como nós. E nós somos água, senhoras e senhores. E a água sempre encontra um caminho”, referiu-se Yashodhan Abya Yala, Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz.  Sua menção foi realizada ao contar a história viva da luta desta comunidade para ser ouvida e consultada durante o processo de ampliação de uma rodovia. Obra que ameaça o território, os corpos de matas, rios, animais e de gentes, assim como impõe uma lógica perversa que busca minar os modos de vida dessa diversidade que pulsa, tomando o seu direito de ser e existir. Frente a um processo colonizatório marcado por violência, existe outra possibilidade de estar no mundo, com a potência de nascentes que vão de encontro ao mar. Contada dos tempos de lá atrás que são também esse instante, ela narra a realidade da resistência dessa comunidade negra em permanecer em seu território, com seus costumes e práticas. De seguir existindo na sua terra fincada no município de Triunfo, às margens da BR 386. Uma importante estrada para escoamento da soja no Rio Grande do Sul que está sendo ampliada, rodeada ainda pela monocultura do eucalipto – duas atividades do agronegócio gaúcho.

Em 9 de março, mês conhecido por suas águas, a Comunidade Kilombola Morada da Paz (ComPaz) abriu caminhos na primeira sessão do ano do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH/RS), na Assembleia Legislativa (AL/RS). Som do berrante. A sua chegada em cantos para Ogum, anunciada por vozes que faziam coro ao batucar de tambores, já trazia como horizonte a força de uma história que tem uma demanda e uma proposição. A demanda é pelo comprometimento do Conselho de Direitos Humanos e Cidadania, para que se coloque como órgão atuante em defesa de que as comunidades sejam ouvidas, especialmente em casos de violações de direitos. Como proposição, para além de alianças possíveis e de compromissos firmados para garantir a justiça dos povos, a Comunidade apresentou o seu Protocolo de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé, contido no Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) enfrenta, há pouco mais de dois anos, as ameaças de dois grandes empreendimentos na região: à frente do território, a obra de ampliação da BR 386 e, na parte dos fundos, a proposição de instalação de um aterro industrial às margens do rio Caí. Opressão, exploração e uma série de conflitos são desencadeados pelo avanço desses empreendimentos, que nem sequer realizaram consulta às comunidades afetadas por sua instalação, pautando uma lógica violenta de progresso que pela primazia do lucro se propõe a uma política de morte. Mas a resistência e a ancestralidade são raízes fortes, que fazem o caminho entre solos pavimentados e indicam outras trilhas, com outros valores éticos. Foi na boa fé da articulação coletiva, organização e luta, que recentemente a Comunidade conquistou mais uma vitória por seu direito de Ser e Existir. No início de janeiro, a Justiça Federal no RS concedeu tutela de urgência suspendendo a obra de ampliação da rodovia no trecho que compreende os Km 405 a 415, onde fica a Comunidade Kilombola Morada da Paz. A obra só poderá ser retomada após a realização de novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, em que a comunidade seja consultada previamente conforme dispõe a Convenção 169 da OIT. Os réus, entre eles o governo federal (Ibama e Incra) e as empresas concessionárias (CCR Via Sul e Empresa de Planejamento e Logística / VALEC), ainda podem recorrer da decisão.

A decisão judicial, um importante precedente para as lutas dos povos kilombolas em todo país, se deu em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Comunidade Morada da Paz em dezembro de 2022, e que teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por ação no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em Novembro de 2021. Na ação, a comunidade kilombola requereu liminar que suspendesse a obra de ampliação da BR 386 no determinado trecho. Também pediu a anulação do licenciamento, já que não foi chamada a participar dos termos de referência do estudo e nem foi citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) realizado pela empresa consultora contratada pela concessionária e apresentado ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), apesar de seu território localizar-se a menos de 500 metros da margem da rodovia. 

Saiba mais sobre o processo na matéria: Justiça Federal reconhece o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé de comunidade kilombola no RS

Comunidade Kilombola Morada da Paz, na primeira sessão do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Além de abordar a decisão mencionada, a participação da Comunidade na sessão de abertura do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) também representou um passo importantíssimo nas lutas por território e possibilidade de ser e de existir no mundo. Yashodhan Abya Yala proferiu em sua fala o que a comunidade exigia no momento: “Chegamos ao Conselho Estadual de Direitos Humanos com uma demanda: nós queremos que esse conselho tenha grupo de trabalho, um grupo de trabalho que seja mais que um observatório. Porque um observador, pode ser um traidor. Um grupo de trabalho nessa comissão que seja escutatório, um grupo de trabalho nessa comissão que demande, que dê conforto, que dê encorajamento, que vigie, que proteja, que seja um espaço de resiliência, resistência e potência de força. Um grupo de trabalho que seja feito com senhores e senhoras desta casa, mas também com senhores e senhoras das comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul, com comunidades indígenas do estado do Rio Grande do Sul, com o povo das ocupações do Rio Grande do Sul, com os refugiados e refugiadas do estado do Rio Grande do Sul.”

É preciso ir além do reconhecimento da existência das comunidades e de dar o direito em decreto, é preciso assegurar na prática esse direito e dar as condições para a sua defesa. “Nós estamos aqui hoje para demandar desse Conselho Estadual de Direitos Humanos que ele seja o que ela se propõe na sua missão: resistência, reexistência. Um espaço em que a gente possa ser mais do que corpos contados ao chão. O Conselho não pode servir para contar as nossas mortes, deve servir para impedir a morte moral, a morte espiritual, a morte cultural e a morte histórica e política de povos e pessoas comuns”, expôs Yashodhan.

A demanda levada ao CEDH-RS, reunido na Assembleia Legislativa, é para que o Estado Brasileiro e o Estado do Rio Grande do Sul de fato deem recursos e condições para a existência desse que é um dos bastiões de resistência da sociedade civil e também controle social das políticas no Brasil e no Estado do Rio Grande do Sul. “A gente traz a demanda ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, que faça essa recomendação a todas as entidades do estado, do reconhecimento do Protocolo de Consulta Livre Prévia e Informada elaborada pela comunidade e faça conhecer também a sentença da ação civil pública. E que ela seja vista pela Fepam, pelo Ibama, pelo Ministério Público e pelos demais órgãos competentes como uma oportunidade dada para que possam ser estabelecidos protocolos que façam cumprir o que já é de direito na Constituição, dos povos indígenas, dos povos quilombolas”, mencionou Lúcia Ortiz, presidenta da organização social das pessoas Amigas da Terra, reconhecida nesse tempo e era como Luz das Águas, filha de Mãe Preta. 

Momento de fala de Yashodhan Abya Yala, da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz. Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da comunidade Kilombola Morada da Paz | Foto: Carolina Colorio – ATBr

“Que esse protocolo seja também utilizado, não apenas em processo de licenciamento de grandes empreendimentos, mas de consulta como deve ser, na garantia dos direitos democráticos, consulta aos povos na elaboração das políticas públicas, sejam elas de saúde, sejam elas de educação, porque elas só tem a melhorar com a sabedoria do povo, com a participação popular e com essa articulação que nos fortalece”, salientou Luz das Águas. 

Desta vitória específica, sopram ventos de mobilização e possibilidade para outros cantos do país. A vitória da comunidade levou a um resultado que é um precedente da justiça, que implica órgãos estado, especialmente o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a construir um novo protocolo, um novo procedimento. Algo há muito tempo demandado do poder público. Ao final do encontro, o Conselho se comprometeu estabelecendo um Grupo de Trabalho para elaborar coletivamente sua recomendação e para os órgãos do estado do Rio Grande do Sul, como sugerido pela Comunidade. Passo que representa mais do que uma recomendação sobre um caso específico, mas que tem caráter de uma recomendação para as comunidades e povos tradicionais do estado, em benefício da diversidade de povos, seres, biomas e territórios.

Na sessão estiveram também o povo de Alvorada, da Restinga, das comunidades quilombolas de São Lourenço do Sul e de Santa Maria, ocupações urbanas de Porto Alegre como a Ocupação Jiboia, membros do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, do Conselho Indigenistas Missionário (CIMI Sul), presenças de quilombos, terreiras e das lutas antirracistas, por moradia e direito ao território, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), integrante do Igualdade Racial da OAB, o gabinete da deputada federal do Reginete Bispo (PT), Mestre Cica de Oyó e o novo Ouvidor eleito para a Defensoria Pública Estadual, Rodrigo de Medeiros, entre outros.  

A atividade, além de  demandar os próximos passos sólidos para uma luta que se amplia, com valores acolhidos em cuidado, coletividade e na vida, foi um momento de troca sobre realidades perpassadas por amor e guerra. Foi, também, um debate sobre o tempo e seu entendimento. Desde a entrada da Comunidade na Assembleia até sua saída, a linearidade do tempo de kronos, marcado pelo som do passar de ponteiros dos relógios apressados, se dissolveu. O tempo é memória, resgatou em uma de suas falas Yashodhan. E ali o tempo se fez memória. Vivo, coletivo, entrelaçado entre um ontem, agora e amanhã que rompem a linearidade e tem firmamento em uma cosmovisão e prática de mundo que nos evidenciam respostas que sempre estiveram aqui, afinal, somos natureza. Tempo de fluidez firme que percorre o tambor, o berrante e o peito de quem canta e dança enquanto faz luta, enquanto se regam e brotam sementes e sombras de figueiras, essas guardiãs antigas e de tanta sabedoria. 

É preciso assegurar a consulta livre, prévia, informada e de boa fé às comunidades afetadas por empreendimentos que existem numa lógica colonizatoria de lucro acima da vida, de superexploração dos corpos e territórios para a extração de riquezas que se traduz no monopólio de poder de poucos, às custas de muitos num plano que leva ao colapso socioambiental. É preciso combater a genealogia do desastre que alarga as veias da América Latina. Um caminho possível no fazer em comunidade, na construção coletiva de outros valores, na compreensão que um rio que corre é um ser vivo. Nas vivências que têm como base que, como referiu-se Yashodhan, é preciso que o tempo do relógio se curve para o tempo da vida. Foi preciso parar a légua. E é crucial impedir que outras léguas avancem sob o tempo da vida.

A história de luta pelo direito de ser e existir da Comunidade Kilombola Morada da Paz

Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Justamente trazendo o fio de kitembo, a divindade do tempo na cosmopercepção da Comunidade Kilombola Morada da Paz, que Baogan, Bàbá Kínní da Nação Muzunguê, guardião das choupanas e sapopembas de Mãe Preta e de todos povos de Mãe Preta espraiados nos sete cantos do Ayiê, deu abertura às exposições faladas do momento. Kitembo é senhor dos destinos, não das vontades, manifestou. No instante, compartilhou a partir de memórias a história de luta da Comunidade por seu direito de ser e existir.   

“Inicialmente, em dezembro de 2020, começaram a aparecer algumas pistas de que haviam ameaças à nossa comunidade, ao nosso território”, expôs. Baogan contou como ocorreu a construção do processo de resistência, quando a comunidade se negou a fazer o Estudo de Componente Kilombola proposto por uma empresa de consultoria, e que orientados por suas divindades e com ajuda de parceiros tiveram conhecimento de seu direito de realizar o  Protocolo de Consulta Prévia, conforme previsto na Convenção 169 da OIT. E foi o que fizeram, levando a palavra coletiva e a resistência adiante, assim como a possibilidade de manter acesa a vida em toda a sua sociobiodiversidade. 

Um dos filhos do território, Johny (Johny Fernandes Giffoni – Defensor Público do Estado do Pará), sabedor dessa situação após o nosso contato, nos alertou para a diferença entre Estudo de Componente Kilombola e Protocolo de Consulta Prévia, pois a nossa uma empresa de consultoria chegou propondo que fizéssemos um Estudo de Componente Kilombola, mas isso é uma etapa a posteriori. André Filho de Mãe Preta traz o que está acontecendo e apresenta elementos do Projeto de ampliação da BR 386, não se trata de duplicação, já é uma estrada-duplicada. O direito à consulta prévia, livre e informada de boa fé é algo que nos é assegurado, enquanto povo tradicional. E algo que estava sendo de nós retirado. Então propor a nós um Estudo de Componente Kilombola era uma tentativa de cooptar também o nosso direito de sermos consultados prévia, livre, informada e de boa fé”, explicou Baogan, expondo a violação de direito já no ato de vetar o acesso à informação. 

De acordo com Baogan, esse foi o primeiro ato. “Perceber, entender e compreender que estávamos sendo vítimas de um racismo estrutural e de um projeto de destruição. Anciãs e anciãos e os jovens odomodês do nosso território oram de juncó ao pé do jacutá, nossos orixás respondem: dezembro de 2020. Terceiro Momento, nos ensina a nossa Mãe Preta, a nossa yagbá ancestral: mais do que ter fé, é preciso SER FÉ. Sapopembas, raízes de força, de luz, chamado do berrante, tambor, concha, organização como uma árvore. A nossa luta não é como um pé de funcho, mas como uma figueira negra”, ressaltou, abordando então os passos que seguiram dessa consciência e de uma prática engajada em ser fé. 

Em março de 2022, foi publicado o  Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar, com apresentação no México e no Peru. O dossiê também percorreu a Retomada Gah-Ré (RS), o Quilombo de Dandá (BA), a Jornada de Agroecologia (BA), a Ilha de Colares (PA), o Quilombo Vidal Martins (SC) e com uma série de intervenções em Porto Alegre (RS), que ocorreram em jornadas de Janeiro de 2021 à Março de 2023. Atualmente, o reconhecimento público da Legitimidade do Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar é onde a luta se trava, com incidências políticas, sociais, culturais em âmbito local, estadual, federal e latino-americano. Como trouxe Baogan à palavra, citando Mãe Preta: “Em terra firme se fazem grandes construções”.


Publicação Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar.

Nos próximos passos, a Comunidade e os aprendizados coletivos serão partilhados, ressignificados e articulados na Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, com o horizonte de alcançar outros Territórios Kilombolas, Indígenas e Ribeirinhos, assim como Populações Atingidas por empreendimentos que violam direitos humanos e aos territórios. 

É preciso parar a velocidade da légua’

Como relatado pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), ao menos 650 quilombos sofrem com grandes empreendimentos no Brasil. Quanto à Comunidade Ancestral Morada da Paz – Território de Mãe Preta, Lúcia Ortiz conta que foi necessário barrar o avanço da ampliação da rodovia. 

“A Mãe Preta dizia: ‘Tem que parar a légua, tem que parar a velocidade da légua’. E nós tivemos a missão de fazer uma marcha na BR 386 ao final de 2019. E eu me perguntava: mas como que nós vamos parar essa légua? Somos trinta, quarenta pessoas. Como que nós vamos fazer essa caminhada? E fomos nesse grupo com muita coragem, com muita valentia, e nós tivemos certeza que nós éramos muito mais que trezentos nessa caminhada. E isso foi antes de chegar a empresa de consultoria no território, pedindo licença para fazer um Estudo de Componente Kilombola. E foi só depois que nós ficamos sabendo que a Licença Prévia para a ampliação dessa BR já tinha sido concedida pelo Ibama. E esse mesmo ano começou a pandemia (Covid-19) em março, e também foi esse ano de isolamento e da necessidade da gente retomar o nosso fio de contas e essa força de protegimento, que nós fomos chamados também a compor o colegiado de organizações do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e suas comissões. Então foi em março, sabendo disso tudo, que nós recebemos a Convocatória para a Primeira Reunião da Comissão naquele ano, da comissão chamada assim: “Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Envolvidos em Conflitos Fundiários”. E isso chegou depois da parada da légua, depois das nossas ações, depois de nós tomarmos a consciência da ameaça acontecendo no território, então nós construímos esse caminho com a sabedoria, com a participação dos mais velhos, dos mais novos, de todos os seres dessa comunidade, traduzindo como que a comunidade percebia e sentia no sonho, na vida, no cotidiano, essas ameaças”, explicou.

Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Lúcia também mencionou a relevância da construção coletiva e dos vínculos de afeto entre lutas que convergem, para garantir que a ComumUnidade, assim como tantas outras, possam seguir existindo. Em agradecimento, citou Leandro Scalabrin, do Movimento de Atingidas e Atingidos por Barragens (MAB), que orientou a Comunidade nos ritos do CNDH. Luiz Ojoyandi, filho de Mãe Preta, do OLMA, que assumiu junto a construção dessa relatoria a partir da denúncia encaminhada ao Conselho Nacional de Direitos Humanos. A Sandra Andrade, da Conaq, que foi quem, como coordenadora da comissão nomeada carinhosamente de Terra e Água, elevou até o pleno do Conselho e acolheu e encaminhou a denúncia-relatório para que fosse elaborada uma recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro para que reconhecesse e respeitasse o direito que é dos povos na Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé. Ao Conselheiro Marcelo Chalréo da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, que participou da elaboração da redação da recomendação aprovada por aclamação no Pleno do CNDH. “Uma recomendação que subsidiou então as nossas amazonas de luz também, na representação junto ao Ministério Público, já que continha nessa recomendação que, dentro do contexto de desmonte das políticas públicas, das instituições do estado, e de instituições como a próprio Incra e a Fundação Palmares, que estavam com desvio da função, sendo extintas naquele momento, a responsabilidade era do Ministério Público, de alertar todas as comunidades, em processos de licenciamento de grandes empreendimentos acontecendo na região. Levamos então a representação das Amazonas de Luz ao Ministério Público”, destacou Lúcia. Agradeceu, ainda, a Cláudia Ávila, conselheira e advogada das ATBr e a Fernando Campos, que também estiveram presentes no momento de representação no Ministério Público. E aos presidentes do Conselho Nacional, ao Darci Frigo nosso companheiro da Terra de Direitos e também o Yuri Costa, da Defensoria Pública da União (DPU), que Lúcia destacou terem sido guerreiros muito valentes e importantes na sustentação da existência do Conselho Nacional nos quatro anos do (des)governo Bolsonaro.

Na sessão, Pâmela Marconatto Marques , Coordenadora do Grupo de Trabalho Kombit! Mutirão por Moradia, Território e Dignidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compartilhou sobre como foi a Ação Civil Pública ingressada pela CoMPaz. “É um dos diversos instrumentos utilizados na defesa do território. A Comunidade contou com o empenho de muitas pessoas, organizações e com a articulação com outros povos quilombolas, que enfrentam os mesmos problemas em todo o país, para construir sua própria cartografia comunitária e elaborar o seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé, chamado de Dossiê Kilombo, pontuou. E como Baogan comunicou em sua fala, é preciso recontar a história para não esquecer o que ela é hoje e não o que ela foi: “O Dossiê Kilombo expressa a necessidade de que haja uma pedagogia que oriente o ritual de Consulta Prévia (como fazer, por onde fazer, quem deve fazer)”. 

Apesar da dificuldade e descrença de atores estatais e operadores jurídicos, a comunidade se lançou em movimento. “Como Baba menciona, a BR 386 já é duplicada, então começamos a pensar que o que estava em jogo era uma triplicação, quadruplicação. E tudo que tava em jogo com relação a isso. Porque uma BR precisa ser tão expandida assim? E quem conhece a morada vê que ela é quase um enclave ecossustentável diante de plantação de soja, diante de monoculturas diversas ali naquela região. Então começa a entender que essa ampliação servia justamente a esses cultivos. Ao monocultivo. E a gente sabe tudo que vem junto com ele: Trabalho indecente, gente em más condições, bicho de qualquer jeito. E a gente vai aprendendo que a Comunidade Morada da Paz acabava sendo um lugar que dava conta de tudo isso. Que dava conta, inclusive, de melhorar um território, de melhorar uma terra que tava sendo consumida pela arenização. Quem conhece o território sabe disso também, o quanto essas comunidades fazem para manter viva essa terra. A comunidade Morada da Paz e os povos tradicionais brasileiros, o quanto eles regeneram a vida nesses territórios. Pois bem, vendo tudo isso, nós tínhamos a missão de incidir de maneira a enfrentar o que não nos era possível fazer, que era parar esse megaprojeto”, expôs Pâmela. 

A empreitada foi uma Ação Civil Pública, conectada à noção de que a comunidade já vinha sendo impactada pelo simples fato de não ter sido ouvida sobre o megaprojeto. “Justamente porque a consulta não tinha sido prévia, livre e de boa fé informada do que aconteceria ali, a comunidade não dormia mais de noite. Os jovens e as crianças tinham pesadelos, achavam que a qualquer minuto podia bater à sua porta aquela ampliação. Se houvesse acontecido a consulta prévia, talvez isso não tivesse acontecido assim. A comunidade esperaria, ela saberia que trechos seriam impactados, ela conseguiria olhar para esse megaprojeto e pensar: não, eu sei, vai acontecer ali, depois vai acontecer aqui, mas no nosso trecho não, ou depois”, trouxe Pâmela. Ela contou que o encaminhamento foi o pedido para que a 9ª vara respondesse em face liminar, urgentemente, a demanda do kilombo: parar a légua. 

No atual momento, a Ação teve uma grande vitória e está em fase de embargos. Realizar a consulta prévia é responsabilidade do Estado, que sabe que tem que aplicar a Convenção 169 e que podem haver os protocolos das comunidades. No intuito propositivo de apresentar ferramentas, conectar pontos e garantir a vida, que a CoMPaz está enraizando essa pedagogia da consulta. O que está em jogo é como as comunidades devem ser consultadas, quem deve consultar e como isso deve ser feito, respostas que podem ser encontradas no Dossiê e em tantos outros que podem surgir, a partir das comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e tradicionais, para que sua existência seja não apenas reconhecida, mas possível em toda sua magnitude.  

Ao elucidar que a morte pelo acesso a informação também é real, Yashodhan também contou como foi o processo de resistência à ampliação da BR, destacando tentativas de silenciar a comunidade e o que está em jogo com a efetivação da obra. “Quando nós chegamos a denunciar todo o processo que está acontecendo conosco e com outros parentes e irmãos quilombolas e indígenas, foi-nos dito: Mas vocês estão fazendo uma tempestade num copo de água, o processo de ampliação da BR vai ser só para 2030. Eu vou repetir o que eu disse: em 2030 talvez nós estejamos mortos, precisamos garantir aqui no presente a continuidade da nossa história com o direito de ser e existir do jeito que nós somos. Nós precisamos garantir, aqui, no tempo presente, a luta e as estratégias de sobrevivência”. Salientou ainda que o ponto não é parar o progresso, mas impedir que o entendimento de progresso tenha como massa de sustentação a cultura, a fé, os sonhos e a possibilidade de continuar existindo das comunidades kilombolas. 

A CoMPaz vai fazendo seus caminhos que contrapõe a violenta história hegemônica do Brasil, contada como se desenvolvimento fosse saque, domínio, escravidão e disparos de tantas violências contra os corpos negros, do campo à cidade, das águas às florestas. Ela expõe as feridas causadas por um entendimento dos kilombos a partir da dororidade, num imaginário racista que não reconhece as potências, sabedorias, pedagogias e a capacidade de organização coletiva e manutenção da vida dos territórios negros. E vai além, propondo saberes, práticas e ferramentas de luta, construindo alianças possíveis que florescem afeto e fé. “O que esperam de um kilombo? Criança ranhenta, com o pé no chão, cachorro e mendigando? Não. Nós somos mais do que isso. E se isso existe nas nossas comunidades, é produto de um estado estruturalmente pautado, basilado, na escravização, na morte, no peso da dor. Então nós somos mais do que isso, nós somos a antítese de uma história que teima por ter ouvidos para ouvir, porque voz nós sempre tivemos”, mencionou Yashodhan. 

É no comprometimento, na construção do coabitar e de outros mundos possíveis, que segue a marcha para frear as léguas que soterram a vida. Que a vida segue, como ensina a água, abrindo brechas para correr ao mar. A luta avança, fazendo do chão que se pisa terra fértil para que o sonho de uma liberdade coletiva seja o amanhã possível. Como compartilhou Yashodhan: “É preciso que a gente continue e é preciso, como mulher preta, kilombola, como mulher da zona rural e como gaúcha que sou, que esse estado seja reconhecido e auto reconhecido não só como um estado hegemonicamente branco, simpático do fascismo, simpático do trabalho escravo. Porque o silêncio, senhoras e senhores, e essa frase não é minha, mas o silêncio daqueles que podem e devem fazer alguma coisa é a morte do futuro. É a morte do sonho. Não temos medo do nosso corpo tombado no chão. Não queremos que isso aconteça. Mas nós vamos lutar até o último minuto para que a morte moral não saia encostada em nós quando nos levantarmos dessa cadeira. Nós estamos aqui agora. Que o dia de hoje se transforme numa história que não deve ser esquecida”. 

“Vida longa e próspera: nós continuamos e não estamos só”

📽️ Confira a cobertura em vídeos da participação da CoMPaz no CEDH/RS:

Em janeiro deste ano, a Justiça Federal reconheceu o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé da Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz), em Triunfo (RS). Anteriormente, a consulta, prevista na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), havia sido violada.  Processo narrado acima por Ìyalasè Yashodhan Abya Yala, a Sangoma (Guardiã da Memória e Guiança Espiritual) da CoMPaz na série de entrevistas do podcast “Prelúdio de uma pandemia”. Realizado em parceria com a Rádio Mundo Real, da Amigos da Terra Internacional, o podcast percorreu o contexto brasileiro, da Costa Rica, de El Salvador e do Haiti para denunciar e analisar as violações dos direitos dos povos e seus direitos humanos, antes, durante e depois da pandemia de Covid-19. Confira o podcast aqui  

Como consequência da sessão do CEDHRS do dia 9 de março na AL-RS se formou um grupo de trabalho – GT sobre a Convenção 169 da OIT e sua aplicação no Estado do RS. Esse GT já se reuniu virtualmente e nessa 5a feira dia 18 de maio se reúne presencialmente a partir das 9hs no Território Yagbá Ancestral de Mãe Preta – CoMPaz em Triunfo/RS. O encontro também forma parte das Conferencias Livres prévias à VI Conferencia Estadual de Direitos Humanos (a ser realizada nos dias 26 e 27 de maio de 2023, no Auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).

 

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Indicações de leituras:

Racismo Ambiental. Artigo de Alan Alves Brito (NEAB/UFRGS) e Ìyamoro Omo Ayo Otunja, (Ìyiakekerê da Nação Muzunguê – CoMPaz) Janeiro 2021.

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