Ainda é possível encontrá-los; ação predatória de empresas e governos, porém, ataca diretamente seu modo de vida e subsistência. Resultado transformará – em um futuro não tão distante e não tão distópico – a pesca artesanal em prática esquecida de um outro tempo. É mesmo verdade: o que o capitalismo não engole ele destrói.
Um outro tempo de fato, e sobre isso algumas explicações são possíveis: o barco não vai rápido, desapressado riscando a superfície líquida; e há o horizonte, veja que o homem não soube ainda destrui-lo sobre as águas: e o horizonte permite que se veja de longe o destino a chegar; efetua-se então uma lenta e respeitosa aproximação, onde também aquilo que é destino vê o visitante se acercar, em um balanço que deseducadamente ignora o enjoo causado ao tripulante inexperiente – tum tum tum – tum tum tum martela o motor em seu esforço de empurrar a embarcação água afora. Ora! Afronta absoluta às regras máximas do Tempo Vigente a comandar as engrenagens dos relógios do Agora que grita – Sempre mais rápido! – Sempre mais intenso! – Sempre mais! E ergue-se firme a voz da pescadora – Não no mar e não nos rios, responde – E acalme-se, respire fundo se ainda souber como, não espante você meus peixes com a sua pressa e a sua sujeira.
Flutuando, o tempo se expande, dilata-se o espaço: a relação com o que há na volta e com o que há dentro não é de mero uso, mas de pertencimento: e já não falamos de coisas, de objetos, de um algo qualquer palpável e possível de delimitar por cercas e arames farpados. Que não é terra sabemos, é água; contudo é mais: é território. Pescadora-pescador-peixe-marisco-lula-camarão-profundeza-água-alga-e algo mais que havia já ali antes dos tubos e dutos enferrujados, antes do óleo sugado e derramado, antes das plataformas cuspidoras de chamas, antes dos desajeitados navios estacionados: um ancestral equilíbrio estabelecido desde Tempos Desmemoriados e exatamente por isso não manipulável por quem se alimenta da urgência: não haverá medida de compensação possível quando o desequilíbrio imposto pela avidez do lucro arruinar o futuro da paz. E diz-se isso não só por teimosia, não, e nem é mágica ou profecia clarividente: é apenas que não há maneira de o homem, pequena parte de um universo complexo, rebalancear a multiplicidade das vidas que são bem mais amplas que a sua sozinha. Simplesmente foge às suas capacidades, embora saibamos não ser a humildade um ponto forte seu, e assim repetem-se e repetem-se as promessas vazias de pretensas indenizações pelos estragos causados, como se de alguma forma fosse possível compensar a morte. O homem se vê fora de seu ambiente, supremo, quando na verdade está dentro e é parte – constatação que parece óbvia se aqui estamos em meio a tudo mais o que há: e faz-se parte importante quando é ele – e falamos deste tipo específico de homem – quem espanta o peixe, impossibilita e proíbe a pesca e assim extingue, ou quase extingue porque se resiste, a pescadora e o pescador artesanal. Talvez seja mesmo da essência do maior se alimentar do menor: pois mostre-se a estes homens toda a sua pequeneza.
Ora: o capital não deixa nunca de correr e de usar e de gastar e de desperdiçar para que possa fazer sempre mais e gastar e usar sempre mais e desperdiçar tudo outra vez para então recomeçar seu ciclo doente, e o que produz em sua sede insaciável de ter sede é nada além da morte: talvez a prestações, talvez fantasiada de vida quando apela às paixões rápidas – e ainda assim a morte. Um sistema que não deixa de reproduzir a si jamais, canibal viciado em seu próprio consumo, engole tudo a sua volta para depois vomitar a mesma pasta acinzentada que constrói os horizontes das cidades modernas – não no mar, já disse! – e nem nos rios!, retumba forte a voz das águas: outro tempo e outro espaço se estabelecem ali, sublime resistência. Desafia-se o apocalipse neoliberal lembrando a vida de outra alternativa, dá-se outra chance: há nelas e neles, nas mulheres e nos homens do mar, outra forma de existir. Portanto escute! – antes dos mares terminantemente contaminados e dos rios secos, antes que restem só as pedras e os minérios e os óleos e os gases e a ferrugem e a poeira e as doenças, antes que já não tenha volta: olhe ao redor. Que o sol vai se pondo já, mas logo amanhece. Veja os peixes que ainda saltam e as redes que costuradas à mão ainda os agarram – e nunca em excesso, apenas o suficiente para que ambos sigam o ancestral jogo da fuga e da captura. Veja a vida que insiste em permanecer viva e as pescadoras e os pescadores que não aceitam uma extinção imposta e que lutam ainda – e de forma simples até: pescando em seus barcos desapressados que navegam até um novo horizonte; sentando-se sobre plataformas desconvidadas até que estas percebam a inconveniência de suas presenças sobre e sob as águas; insistindo em contar as histórias que fazem de seus feitos exemplos.
Não há como resistir a quem da água é cúmplice: no fluxo indomável dos ribeirões e dos riachos e das cachoeiras e dos lagos que desembocam nas baías e nos mares, desfazem-se as impurezas corporativas atiradas e despejadas em seus corpos; purifica-se, ainda que leve gerações, e volta sempre à vida: verdadeiro milagre da ressurreição em cada canto que flor e água insistem em brotar. Apesar de todos os ataques dos homens que querem lucros, diretores e governadores e investidores que falam outras línguas e que nunca entenderão a língua da pesca e a língua dos territórios, confusos e perdidos no tempo-espaço de um desenvolvimentismo que anda pra trás; apesar da raiva capitalista que tem sede pelo sangue de quem ousa defender os direitos dos povos: segue em pé a gente acostumada a se equilibrar sobre as tábuas gastas das velhas embarcações, que muito já navegaram, independente do mau tempo, partindo e chegando, atentos sempre aos sinais da maré, velha parceira, seguem firmes – tum tum tum – tum tum tum repete o motor em ritmo constante como a dizer, teimoso – Não vou parar ainda, nós não vamos sumir…