Os povos indígenas no Brasil vivem cercados por interesses sobre seus territórios. Não apenas no passado “colonial” foram alvo de expropriação, hoje os contínuos interesses capitalistas como o agronegócio, a mineração, a extração de madeira e os grandes empreendimentos reproduzem as formas de acumulação por dependência, fazendo das terras indígenas alvo constante de desterritorialização e reproduzindo um padrão de poder colonial.
Tal situação se agrava diante da não efetivação da promessa constitucional de demarcar os territórios indígenas num prazo de cinco anos a contar da promulgação em 1988. Como se a morosidade não fosse o bastante para causar insegurança às comunidades indígenas, criou-se ainda a tese do marco temporal, na qual se reinterpreta a Constituição para afirmar que os indígenas só teriam direito às suas terras se estivessem nelas na data da promulgação, em 5 de outubro de 1988. Ainda que tal tese tenha sido derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF), ao compreender que a Constituição não estabelece tal limitação, a força do agronegócio no Congresso Nacional apresenta a Lei n.º 14701/2023, para regulamentar o art. 231 sobre as terras indígenas.
Diante desse cenário de precariedade da efetivação dos direitos às suas terras, povos indígenas de todo o Brasil organizam as chamadas retomadas. Partindo do entendimento do intenso processo de expropriação de seus territórios, da violência empreendida para retirar indígenas de suas terras e do acesso aos seus modos de produção e reprodução da vida, organizam-se e retornam às terras originárias, construindo o processo das retomadas.
Retomar é retornar aquilo que um dia foi seu, tomar para si a posse da terra, que lhe foi usurpada. Para o cacique Babau Tupinambá: “Retomar é um ritual de recuperar não só a terra: é tomar na mão a vida que foi tirada”. Segundo o professor Tonico Benites, liderança Guarani e Kaiowá, as retomadas são uma reação à violência sofrida, tendo como objetivo frear o processo sistemático de expulsão e dispersão (denominado em guarani de sarambi). Por meio das retomadas, os povos indígenas estão se reconectando às suas terras, ancestralidade, e com isso reproduzindo os seus modos de vida. Por isso, em muitas áreas retomadas, crianças indígenas estão podendo reproduzir seus ritos de passagem e aprender a se relacionar com a terra.
Tanto os Tupinambás na Bahia, como os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, ou mesmo os Mbya Guarani no Rio Grande do Sul, afirmam que as retomadas são momentos de muita espiritualidade, marcadas por rituais, pelo encontro com seus encantados. O cacique André Benites, da retomada Tekoa Ka’aguy Porã, que resiste há 7 anos em Maquiné, no litoral norte do Rio Grande do Sul, em área estadual da extinta FEPAGRO (Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária), afirma que estar na terra não é só “retomar o território, é retomar a vida, retomar tudo”. Inclusive, uma das atividades recentes na retomada foi a realização da feira da biodiversidade, espaço de troca de sementes e de estabelecimento de conexões com as redes de agroecologia e de economia solidária, integradas na Teia dos Povos. Outro exemplo é a Retomada Tekoha Nhe’engatu, área Mbya Guarani retomada este ano na cidade de Viamão (RS), depois de anos de acampamento na beira da estrada, olhando para suas terras originárias.
As retomadas são efetivamente uma prática política insurgente de acesso ao território. Um ato de resistência a todas as formas de exploração e dominação colonial que se colocam sobre os corpos-território dos povos indígenas no Brasil. Cada território indígena, retomada, é uma terra a menos no mercado de capital. Não à toa, a contraofensiva conservadora tem sido tão dura. Fazendeiros se reúnem em sindicatos rurais, agregam caminhonetes e armas e vão realizar despejos, como a movimentação Invasão Zero. E mesmo no Poder Judiciário, explodem casos envolvendo conflitos na discussão dos direitos originários a suas terras e à propriedade de fazendeiros.
Retomar a terra que lhes foi tirada, devolvendo a terra aos povos que cuidaram dela ao longo de séculos de sua existência. Retomar como ato político de resistir às formas de produzir a vida distintas da lógica do capital. Retomar e cultivar sementes, ancestralidades. Retomar um sonho de uma Constituição que queria efetivar direitos sociais. Retomar é ter esperança de vida, de corpos-vivos e de cultura viva. Apreender os tantos significados de retomar, e o que eles nos inspiram a pensar em como apoiar tais iniciativas, sobretudo aqueles que nutrem no coração um sonho de uma outra integração latino-americana, com escuta, solidariedade, valorização dos saberes e da unidade na diversidade dos povos da Terra.
* Coluna publicada no site da ATBR em 1º de março de 2024 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2024/03/01/retomadas-uma-forma-de-re-existir-nos-territorios-tradicionais