PL do Genocídio: Apib convoca mobilizações para que Lula vete na íntegra o PL do Marco Temporal

Entenda os motivos pelos quais Lula precisa vetar totalmente o PL 2903. Movimento indígena alerta que além do Marco Temporal, proposta pretende legalizar crimes e por isso é considerado o PL do Genocídio indígena.

A ameaça do Marco Temporal voltou a estar vigente, agora com formato de projeto de lei (PL 2903). A tese do agronegócio, que viola direitos dos povos indígenas e dos territórios, precisa urgentemente ser barrada. Por isso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma série de organizações, movimentos sociais e coletivos convidam a todes, todas e todos para somarem na  Convocatória #VetaTudoLulaPL2903

É evidente que quem votou a seu favor legisla com as mãos cheias de sangue indígena.  Considerado o PL do Genocídio, o PL 2903, aprovado pelo Senado no dia 27 de setembro de 2023, faz com que o Marco Temporal se transforme em lei. O resultado, na prática, é o ataque a inúmeras formas de  vida dos povos indígenas. Com a legalização de diversos crimes, o PL abre  as terras para exploração, para empreendimentos que geram o extermínio, como a mineração, e representa o pensamento mais retrógrado e colonial do século XXI.   

O retrocesso é imenso, afetando direitos humanos, dos povos e das comunidades, além de impactar negativamente todos os biomas, territórios e a biodiversidade brasileira. Além disso, o  PL 2903, votado por um senado racista e colonial, intensifica ainda mais a emergência climática, colocando todas as formas de vida na terra em risco. 

No momento, o  PL 2903 é analisado pelo presidente Lula, que tem 15 dias úteis para sancionar ou vetar (total ou parcialmente) o projeto. É preciso pressionar o governo federal, a partir das bases, para que a lei seja barrada em sua totalidade. A nossa mobilização é fundamental. 

PL 2903 é inconstitucional

O Marco Temporal é uma tese política patrocinada pelo Agronegócio. Os ruralistas pretendem mudar o rumo da história dos povos indígenas e agravar a crise climática. O STF julgou e decidiu por maioria de 9×2 anular o Marco Temporal.  O resultado do julgamento selou uma importante vitória na luta por direitos dos povos indígenas, travada nas ruas, nos territórios, nas redes e no judiciário durante dois anos. Mas o Senado tenciona uma afronta ao Supremo para atender aos interesses do agronegócio.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ressalta que as atitudes do Senado e da Câmara dos deputados são resultados da ligação direta de políticos brasileiros à invasão de terras indígenas, como mostra o dossiê “Os invasores” do site jornalístico “De olho nos ruralistas”. De acordo com o estudo, representantes do Congresso Nacional e do Executivo, possuem cerca de 96 mil hectares de terras sobrepostas às terras indígenas. Além disso, muitos deles foram financiados por fazendeiros invasores de Terras Indígenas, que doaram R$ 3,6 milhões para campanha eleitoral de ruralistas. Esse grupo de invasores bancou 29 campanhas políticas em 2022, totalizando R$ 5.313.843,44. Desse total, R$ 1.163.385,00 foi destinado ao candidato derrotado, Jair Bolsonaro (PL).

Além disso, após a derrubada do marco temporal no STF, o senador Dr.Hiran (PP-RR) protocolou, no dia 21 de setembro, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que pede a instituição do marco temporal. Nomeada como PEC 048/2023, a emenda quer alterar a Constituição Federal de 1988 que prevê o direito originário dos povos indígenas sobre terras tradicionalmente ocupadas.

O projeto de lei do genocídio foi apresentado pelo deputado Homero Pereira do PR de Mato Grosso, no dia 20 de março de 2007. A proposta inicialmente recebeu o número de PL 490/2007. A Câmara dos Deputados aprovou o PL 490, no dia 30 de maio de 2023. A proposta seguiu para o Senado e recebeu novo número: PL 2903.

No mesmo dia em que o STF finalizou o julgamento do Marco Temporal, 27 de setembro, o Senado aprovou o projeto de forma atropelada. A votação foi marcada por mentiras da bancada do Agronegócio e pelo descumprimento da promessa do presidente do Senado Rodrigo Pacheco de não pautar o projeto antes da conclusão do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), sabendo que se tratava da mesma tese.

 Por que Lula precisa vetar TODO o projeto?

Além do Marco Temporal, o PL 2903 pretende legalizar crimes cometidos contra os povos indígenas e por isso é considerado o PL do Genocídio. Entre as violações e violências que ele reproduz e intensifica, estão pontos como:

1) o PL 2903 quer definir critérios racistas de quem é ou não indígena;

2) quer autorizar a construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras em Terras Indígenas, sem consulta prévia, livre e informada, conforme prevê a OIT 169;

3) o PL quer permitir a plantação de soja, criação de gado, promoção de garimpo e mineração em Terras Indígenas;

4) propõe que qualquer pessoa questione os processos de demarcação dos territórios, inclusive os já demarcados;

5) busca reconhecer a legitimidade da posse de terra de invasores de Terras Indígenas;

6) quer flexibilizar a política de não-contato com povos indígenas em isolamento voluntário; 

7) quer mudar conceitos constitucionais da política indigenista como: a tradicionalidade da ocupação, o direito originário e o usufruto exclusivo dos povos indígenas aos seus territórios.

No Congresso Nacional, quando um projeto de lei é aprovado tanto pela Câmara dos Deputados, quanto pelo Senado, a proposta segue para a análise do presidente, que vai ter 15 dias para dar uma posição. Nesse processo, o presidente pode vetar, total ou parcialmente a proposta, e também pode aprovar o projeto sem modificar nada da proposta avaliada pelo Congresso.

Quando acontece do presidente aprovar sem vetar nenhuma parte do projeto, o projeto é sancionado e na sequência a proposta deixa de ser projeto e passa a ser Lei. Quando o presidente propõe vetos no projeto, sejam eles totais ou parciais, os pontos vetados voltam para o Congresso. Em uma sessão conjunta entre Câmara e Senado, parlamentares vão decidir se acatam os vetos ou não.

Caso os vetos sejam mantidos, a lei será aprovada retirando as partes apontadas no veto. Caso os vetos sejam derrubados, os trechos antes vetados serão desconsiderados e a lei será aprovada sem as considerações de mudanças do presidente. Ou seja, mesmo com o veto total do presidente, o Congresso Nacional pode aprovar a lei mesmo assim.

Crédito: APIB

🏹 Como participar das mobilizações

Apoie o movimento indígena e some nas lutas em seu território.  Pressione o presidente Lula pelo #VetaTudoLulaPL2903. Marque Lula nas redes sociais, mobilize ações nas aldeias, cidades e redes .Produza sua arte e poste no seu perfil usando as tags #DesignAtivista #VetaTudoLulaPL2903

A luta segue pela demarcação das terras indígenas, por reparação histórica, pela manutenção da biodiversidade e em defesa da vida

#VetaTudoLulaPL2903 #EmergênciaIndígena #EmergênciaClimática  #MarcoTemporalNÃO #DemarcaçãoJá

Fonte: VETA TUDO: Apib cobra compromisso de Lula para barrar PL do Marco Temporal”, publicada no site da Apib em 03 de outubro de 2023  

Confira a nossa série de vídeos “Perspectivas Indígenas: os Guarani e a luta por direitos no RS” e saiba mais sobre as lutas indígenas: 

Confira também o artigo com posicionamento da Amigas da Terra Brasil quanto ao Marco Temporal

 

 

Rodas de conversa da AFP: enfrentamento à fome, à violência e construção de soberania alimentar

A Aliança Feminismo Popular constrói, junto às mulheres, espaços de diálogos pelo fim da violência contra a mulher, do racismo estrutural, da falta de moradia e da fome. No mês de novembro, as companheiras relembraram a luta contra o racismo com o Dia da Consciência Negra (20) e o Dia de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres (25), ressaltando que a luta é diária.
 
A Aliança também denuncia o absoluto descaso do governo federal frente às desigualdades e a falta de políticas públicas, pois a violência ocorre em todos os lugares e atinge mulheres de todas as idades, raças e classes sociais. E a sua raiz está no sistema capitalista, patriarcal e racista, que exerce controle, apropriação e exploração do corpo, da vida e da sexualidade.
 
Esse debate é permanente na agenda da Aliança Feminismo Popular, que salienta que a violência não é um fenômeno isolado e individual de um homem contra uma mulher. Mas sim um instrumento de controle e de disciplina do corpo, da vida e do trabalho das mulheres.
 

No mês de novembro, para avivar a luta e memorar o Dia Latino-americano e Caribenho de Luta Contra a Violência às Mulheres, a Aliança Feminismo Popular preparou o vídeo abaixo.

A coordenadora da Amigos da Terra Brasil, Letícia Paranhos, lê um trecho do manifesto publicado pela AFP para marcar a data:

Clique aqui e confira o manifesto preparado pela Aliança Feminismo Popular na íntegra

Em dezembro deste ano, dando continuidade às pautas de novembro, que são cotidianas na vida de todas nós, a AFP realizou atividades com mulheres em Porto Alegre (RS). Marcadas por dois encontros e muita construção coletiva.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

No dia 15 aconteceu uma roda de conversa com as mulheres da Cozinha Solidária da Azenha, projeto do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) que desde o início da pandemia de Covid-19 assegurou, em Porto Alegre, de 200 a 250 almoços diários para a população em vulnerabilidade. A Cozinha Solidária da Azenha se soma a outras 31 Cozinhas Solidárias do MTST espalhadas pelo Brasil, e ao longo do ano, com carinho e afeto, distribuiu mais de 1,5 milhões de refeições gratuitamente.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

Conheça mais sobre a Cozinha Solidária da Azenha aqui

Cerca de 15 mulheres que tocam o cotidiano da cozinha e são responsáveis pela organização e limpeza do espaço, pelo preparo das refeições e atendimento à população que circula por ali estiveram presentes, além das representantes da AFP. Conversaram sobre a dura condição das mulheres nesta sociedade capitalista e patriarcal e as violências que sofrem.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

No encontro, assistiram ao vídeo da Campanha Sem Culpa, Nem Desculpa, lançada pela Sempreviva Organização Feminista (SOF) e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), em 2017. Ambas são organizações feministas que abordam de forma geral como a violência afeta a vida das mulheres, assim como as formas e formatos de violência que incidem em nossos cotidianos.

Abaixo você confere o vídeo Sem Culpa, Nem Desculpa:

A AFP também fez a entrega de kits de higiene para as companheiras da Cozinha Solidária. Todas ficaram comprometidas em buscar um outro momento para avançar na auto-organização das mulheres.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

Dando sequência, o dia 18 de dezembro contou com mais uma roda de conversa, dessa vez com as mulheres envolvidas no projeto da horta comunitária do Morro da Cruz. A horta está completando dois anos de existência, e começou na pandemia devido à necessidade de fazer enfrentamento às situações de fome e insegurança alimentar.

Roda de conversa na Horta Comunitária do Morro da Cruz

Para além da resistência, e como anúncio de novas possibilidades para a alimentação, a Aliança pauta ainda a construção da soberania alimentar. Tendo isso em vista, desde 2020, teve início a construção de uma horta em espaço público da comunidade, que antes era utilizado como estacionamento de carros.

E assim vem se fortalecendo a organização das mulheres no espaço, que em dois anos conta com cerca de vinte companheiras com as suas famílias – entre crianças e companheiros, que também se envolvem nos debates e construções. O dia 18 foi um momento de confraternização e encerramento do ano, e contou também com a roda de conversa sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres, tema que perpassa a vida das mulheres e de suas famílias. Ainda nessa perspectiva, este dia também contou com apresentação e diálogo sobre o filme “Sem culpa nem desculpa”.

Horta Comunitária do Morro da Cruz

Tendo em vista que muitas vezes a falta de dinheiro pressupõe priorizar a comida ao invés de absorventes ou produtos de higiene, que ajudam na vida das companheiras, a Aliança distribuiu novamente kits de higiene neste encontro. Uma ação que também foi voltada a um resgate de processos de autocuidado e de autoestima das companheiras. Em conexão com outra pauta fundamental da horta comunitária, que é a alimentação, também foram distribuídos alimentos do Movimento Sem Terra (MST), que em aliança constante e solidariedade com a AFP constrói momentos assim. Feijão, arroz, leite e farinha láctea compuseram o kit alimentar.

Entrega de kits na Horta Comunitária do Morro da Cruz

O momento contou com cerca de 15 mulheres. A maioria segue participando dessa construção de luta desde o início: se auto organizando, se sentindo cada vez mais um grupo, e se percebendo em um espaço de segurança para conversar. E, sobretudo, para pensar a alimentação, no caso da horta, como um fomentador para o debate do feminismo e da vida cotidiana das mulheres na periferia de Porto Alegre.

A violência contra a mulher não é o mundo que queremos. O fortalecimento do feminismo popular segue, assim como a luta contra a exploração, as opressões, o capitalismo, o patriarcado e o racismo. Estamos juntas para transformar o mundo.

Não deixe de acompanhar o blog da Aliança Feminismo Popular, onde é possível conhecer as construções coletivas e de luta das companheiras

 

Certificado pela Fundação Palmares, Quilombo Lemos resiste à especulação imobiliária na orla do Guaíba

Diversas atividades estão programadas para o final de semana, além de uma noite de vigília no domingo. A reintegração de posse pode ocorrer já na segunda-feira (12/11). Região do Morro Santa Teresa é alvo histórico da especulação imobiliária em Porto Alegre. Informações atualizadas na página do Facebook Somos Quilombo Lemos.

O Quilombo Lemos, sétimo quilombo urbano de Porto Alegre, está ameaçado de despejo. Recebeu a visita de oficiais de justiça e do Batalhão de Choque da Brigada Militar na quarta-feira (7/11), acompanhados de escavadeiras. Entraram sem convite, fechados a qualquer diálogo. Água e luz foram cortadas. O plano era despejar as pessoas sem respeitar os trâmites legais: não houve conversa prévia com moradores; não haviam sido intimados a Defensoria Pública nem o Conselho Tutelar – ações necessárias, uma vez que entre as pessoas ameaçadas de serem jogadas às calçadas das avenidas duplicadas e da orla do Guaíba “revitalizada” estão também crianças. Retirem apenas os pertences pessoais, era a ordem do apressado oficial de justiça. Que quem estava em casa – era o meio da manhã de uma quarta-feira, dia útil, e muitos trabalhavam ou estudavam no momento – corresse a juntar o que conseguisse de suas coisas e partisse dali logo, sem rumo certo. Foi dado meia-hora para isso, e azar dos ausentes: voltariam aos escombros, somente; a escavadeira se atiçava ao lado do terreno, sedenta pelo cimento, tijolos e madeiras a serem derrubados das cinco casas onde hoje moram cerca de 60 pessoas. Bem a tempo, porém, avisados por redes sociais e telefonemas, uma defensora pública e um procurador do Ministério Público Federal apareceram: cumpra-se a lei.

Contrariado, o oficial de justiça se viu obrigado a recuar, junto a seus soldados mascarados e não identificados e sua escavadeira. Saíram com a promessa de voltar, o que pode acontecer já na segunda-feira (12/11). Diversas atividades culturais estão programadas para o final de semana no quilombo, para que se fortaleçam as redes de apoio. Doações são pedidas. Os trâmites jurídicos para reverter a decisão seguem, com a atuação do Ministério Público Federal e do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Nesta quinta-feira (08/11), foi oficializada a certificação da Fundação Palmares ao Quilombo Lemos, dando ainda maior segurança jurídica às famílias – isso, claro, fosse a justiça justa. O Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul recomendou a suspensão de ordem de reintegração de posse.

De quem é a terra?
Mas por que vieram sem aviso estes homens todos, no meio de uma manhã de quarta-feira, invadir a terra da família Lemos? Essa é uma pergunta que nos remete a alguns anos atrás: o pedido de despejo para o Quilombo Lemos parte do Asilo Padre Cacique, instituição franciscana conhecida por cuidar de idosos há anos na avenida de mesmo nome. Curioso que o desejo de jogar famílias à rua, idosos entre eles, parta de uma instituição que se vangloria e se sustenta a partir da solidariedade de outros (mas não só disso, afinal o asilo possui mais de trinta imóveis em seu nome). O terreno hoje em disputa é de posse dos Lemos há mais de meio século: eles ocuparam a área ao lado do asilo e a ele se dedicaram a vida inteira: a matriarca Delzia Lemos serviu ao asilo por 35 anos. Após 46 anos de serviços prestados, Jorge Lemos, o patriarca, faleceu em 2008, logo que chegou em casa do trabalho. Seus últimos esforços em vida foram ainda dedicados à instituição que agora quer tirar o teto de seus descendentes – foi após a morte de Jorge que o Asilo Padre Cacique deu início ao imbróglio judicial para retirar os Lemos de sua terra, em 2009. Antes disso, há cerca de duas décadas, já havia sido feito o usucapião da área, momento no qual os responsáveis pelo asilo convenientemente “esqueceram” da presença das trabalhadoras e trabalhadores que viviam ao lado para lhes servir.  A terra em disputa, portanto, não é (como o asilo diz ser) uma cedência; foi uma área devoluta ocupada pelos mais velhos para que estivessem mais próximos do asilo onde trabalhavam.

A dedicação integral dos Lemos ao asilo não deve ser novidade a ninguém, infelizmente: as famílias negras sempre cuidaram das brancas, de crianças a idosos, ao custo de seu próprio bem-estar e o de suas famílias. Leia bem as entrelinhas da ordem de despejo, o que está dito é: negro aqui, só se for pra trabalhar. Pois recuemos um pouco mais no tempo, é importante lembrar a raiz das querelas de hoje e em determinado momento não havia ali sequer asilo: a própria edificação, hoje tombada, foi erguida por mãos e suor de negros, escravos que habitavam já o local. Diga-me você portanto de quem é a terra: de quem sempre viveu nela, de quem cuidou dela, de quem cresceu nela, de quem plantou e construiu o que nela há ou de quem na terra nunca viu valor, apenas um espaço para seus servos recuperarem as energias para lhe servirem com maior vigor em seguida – e que agora, falecido o zelador-faz-tudo, veem como mais proveitoso a venda do local a gananciosas construtoras que entendem estar ali um ponto ideal para montar seus edifícios e torres e condomínios, privatizando um pouco mais da maior riqueza natural porto-alegrense, o Rio Guaíba?

Há aí mais que os olhos podem ver: ora, a região desperta a ganância daqueles que vislumbram uma orla “revitalizada” livre da negritude e da cultura popular. Onde hoje há um quilombo, pretendem os desejosos do despejo, haverá torres, shoppings, cercas. E gente branca, claro, a não ser para trabalhar. Para fins de localização geográfica: o Quilombo Lemos fica na avenida Padre Cacique, número 1.250, exatamente ao lado do asilo. O terreno se estende mais aos fundos, já que na parte da frente foi esmagado pela construção de uma revendedora de carros, construída sob um terreno que o asilo não se importou em entregar e nem aparenta ter interesse agora. Com a remoção, a terra ancestral negra corre o risco de ser perfurada pelas pedras fundamentais de condomínios luxuosos e atropelada pelas rodas das caminhonetes e carros das classes média e alta e branca. Esse é o plano: uma ponta a orla do Guaíba já pertence à Uber; a outra, à Melnick Even. No meio, com uma vista vislumbrante para o principal cartão-postal de Porto Alegre, as águas do Guaíba onde o sol se põe, está o Morro Santa Teresa, que tem aos pés a avenida Padre Cacique e, ali, o Quilombo Lemos. Nada do que acontece é por acaso: a tentativa de entrega dessas áreas à especulação imobiliária é histórica. O terreno da Fase (Fundação de Atendimento Socio-Educativo), vizinho dos Lemos à direita, foi por anos alvo das construtoras – e de um estranho silêncio midiático –, assim como outras famílias que vivem na região. Com os conflitos, a Lei Complementar nº 717/2013 declarou a área do morro como “Área Especial de Interesse Ambiental”, com identificação de Área de Proteção do Ambiente Natural, de Área de Interesse Cultural, bem como Área Especial de Interesse Social (AEIS). Nada está entregue ainda: há resistência, sempre houve, e as famílias do Quilombo Lemos não têm nenhuma intenção em deixar a terra onde cresceram e firmaram suas raízes há 60 anos.

Atividades, vigília, união: os esforços para se manter sob seu território
Após a tentativa de invasão do oficial de justiça e dos soldados e das escavadeiras na quarta-feira, uma vigília se formou no quilombo. Moradores, família, amigas e amigos, organizações parceiras, defensoras e defensores dos direitos humanos, advogadas e advogados, comunicadoras e comunicadores, muitos corpos se juntaram em um, colocando-se no caminho da violência dos invasores. De quarta para quinta-feira (8/11), a noite foi mal dormida: nublada e cheia de dúvidas, era palpável a tensão imposta pelo não-saber sobre o destino que viria com a alvorada. Tente compreender: o quão bem se pode dormir sob a ameaça de um despejo? O dia nasceu ensolarado, entretanto: o amanhã tem sido sempre outro dia, alimentando essa esperança insistente que não desiste do sonho de um futuro melhor. Havia sol, que melhor presságio se poderia ter?

Enquanto a centena de pessoas se reunia no quilombo em vigília, atentas às ameaças do horizonte – e sempre que sirenes soavam e luzes vermelhas e azuis piscavam na rua os corações perdiam uma batida, apreensivos –, a alguns quilômetros dali uma reunião era travada entre lideranças quilombolas, representantes da família Lemos, o comando da polícia e o oficial de justiça, ainda chateado por ver frustrada sua primeira tentativa de jogar as pessoas à rua – porém convicto de sua missão, independente das ilegalidades acusadas e confirmadas em sua ordem de despejo. Dali, resolveu-se que no mínimo até a segunda-feira (12/11) se daria uma certeza às famílias: não ocorrerão ações ao longo do final de semana, a fim de que os ritos antes desrespeitados pelo oficial sejam agora cumpridos, caso o juiz mantenha a opinião favorável ao despejo. Mas se espera que não cheguemos a tanto. Os trâmites judiciais devem ser levados à esfera federal, com a atuação do MPF, do Incra e com a certificação da Fundação Palmares – a ação tramitava na 17ª Vara Cível de Porto Alegre, instância indevida para tratar de questões fundiárias dos povos originários e tradicionais.

Não deve haver desmobilização, porém: o discurso da presidência do Asilo Padre Cacique não permite relaxamento. Na figura de seu presidente, Edson Brozoza, a instituição tem se mostrado intransigente, rebaixando-se a ofensas de cunho racista que não poderiam ser aceitas pela sociedade ou pela justiça. Ao tomar conhecimento de que o despejo não poderia ocorrer devido a irregularidades no processo, o senhor Brozoza perguntou, de maneira muito agitada, a quem estava à volta, ‘quantos dias, meses, horas e minutos faltavam para o presidente Bolsonaro assumir’. Estava ‘muito ansioso por isso, pra acabar com esse tipo de palhaçada aqui do lado’, o que ele afirmou se tratar de uma ‘invasão afrodescendente’. Caso se cumpra o reconhecimento da terra como pertencente à família Lemos, fez ainda a promessa de pintar a pele de vermelho e vestir um colar, para alegar que aquela terra é, na verdade, indígena, estendendo seu preconceito, para além de negras e negros, aos povos originários – e mostrando também desprezo pelas leis que garantem os direitos dessas populações. Agressivo, disse também que, se puder, ‘leva uma dezena pro inferno’:vai dar morte e não quer nem saber’. São verdadeiras ameaças feitas às vidas das famílias quilombolas. Em contraste, e perceba a maravilha da simultaneidade: ao mesmo tempo em que Brozoza derramava ódio e racismo em sua sala com ar-condicionado no asilo, Mestre Jaburu pegava seu berimbau no quilombo e convidava todas e todos a cantar: na Igreja bate o sino, na senzala bate o tambor.

A agressividade do presidente do Asilo Padre Cacique e de uma lei que acorda famílias com soldados mascarados e escavadeiras prontas para derrubar suas casas não permite o descanso. A mera palavra do homem branco já se mostrou indigna de confiança muitas vezes. A noite de domingo será mais uma de sono perturbado, e outro amanhecer de dúvidas virá na segunda-feira.

(foto da capa: Joana Berwanger/Sul21. Mais fotos AQUI)

As megaempresas e os interesses que atravessam a reintegração de posse do Quilombo do Lemos

Texto de Douglas Freitas

Potente a matéria da Débora Fogliatto no Sul21 em cima das declarações racistas do Presidente do Asilo Padre Cacique. Absurdo o que fala Edson Brozoza.

Na matéria, ele diz que o dinheiro oriundo do aluguel de 33 imóveis que o Asilo possui não é suficiente para sustentar o local. Nós, como Revista Bastião, temos que prestar contas por acreditar na transparência financeira; por que não exigimos isso de uma instituição como o Asilo Padre Cacique?

Quais são os interesses no terreno em frente à Orla do Guaíba? A área mais perto do Gasômetro foi recém reformada, e agora tem a administração da manutenção feito pela empresa estadunidense Uber. Ali perto está o Anfiteatro Por do Sol, um dos principais espaços públicos pensados, um palco enorme, a céu aberto, na beira do rio, em que a Samsung prepara seu segundo grande festival de música dos últimos meses. Samsung, da Coreia do Sul, uma das empresas que mais vende celular e provavelmente pensa a inteligência artificial.

Nas ruas centrais, na beira do rio, a Heineken, marca de cerveja holandesa, promoverá uma exibição da corridas de carros da Fórmula 1. Pelas ruas do centro da cidade. As ruas estão trancadas, algumas coms entido invertido, vários agentes da EPTC – Empresa Pública de Transporte e Circulação (oficial) mobilizados nestes últimos dias. Trânsito prejudicado. Faz dois dias que ruas calmas estão congestionadas, com motoristas apressados. Seguirão assim nos próximos dias. Onde estão os repórteres que alertam para o transtorno no trânsito que um protesto provoca? Onde estão as pessoas que diz que o mais significativo de uma manifestação é o seu impacto no trânsito? E a Heineken e o Marchezan? O que a Heineken está investindo na Prefeitura de Porto Alegre?

Em uma área há alguns metros do Somos Quilombo Lemos, existe o Pontal do Estaleiro. Área em frente a Fundação Iberê Camargo, na beira do Rio. Ali surgirá um dos três Hub de Saúde. Parceria da Hospital Moinhos de Vento, Grupo Zaffari, Construtora Melnick Evens, em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre. Shopping Borboun e hospital no mesmo espaço. Vai ser mais fácil cuidar dos seus velhos no hospital podendo comer um Big Mac entre uma dormida e um horário da visita. Quantos terrenos o Grupo Zaffari possui na cidade? E, pensando no Hub de Saúde, você acha que você vai poder pagar por esse atendimento? Se cortarem o SUS tu acha que as empresas privadas vão construir hospitais para os pobres ou classe média? Vão construir é para os ricos, como esse Hub de Saúde. A não ser que achem um jeito de lucrar ainda mais com as nossas doenças. Ou usar corpos em situação de vulnerabilidade para seus experimentos, como a empresa Bayer (aglutinada com a maior empresa de agrotóxicos do planeta, a Monsanto), que fechou um convênio com a Prefeitura de Porto Alegre para doar medicamentos ultraconceptivos de longa duração (processo de esterilização?!?) para mulheres que vivem em abrigos de Porto Alegre. Considerando que a maioria das mulheres nesta condição são negras, seria essa ação uma ação de eugênia? De evitar que pessoas negras nasçam? É um absurdo testar fórmulas químicas em qualquer ser vivo, principalmente quando se usa a força o aparato do Estado e a situação de vulnerabilidade das pessoas – que se for a fundo, se vê que também é provocada pelo Estado e pelos seus tentáculos (latifundiários, milícias, empresas multinancionais, racismo estrutural).

O processo de reintegração de posse do Quilombo do Lemos começou em 2008, anos antes antes da Copa de 2014 (o terreno do Quilombo fica quase em frente ao Estádio Beira Rio, estádio que sediou jogos da Copa na cidade). Copa, megaevento produzido pela FIFA que arrasou vilas inteiras de Porto Alegre, jogando comunidades para ocupações vulneráveis ou para vilas mais periféricas, ignorando condições de trabalho, exposição a toda uma nova dinâmica de deslocamento. Fora todo transtorno de uma vida expulsa pelo Estado, sem nenhuma consideração, planejamento ou dignidade.

É nessa cidade, é na influência dessas empresas, é legitimado pelas ideias e exposições públicas do presidente Bolsonaro, com esse contexto, que o Presidente do Asilo diz que os moradores da Família Lemos devem sair. Ele está dizendo que os quilombolas, descendentes de quem construiu aquele Asilo e cuidou da manutenção do lugar por anos, não merecem estarem ali. Pessoas descendentes de pessoas mais velhas, negras, que dedicarm seu tempo, sua vida, para cuidar dos idosos brancos. E hoje o Asilo quer colocar os mais velhos dessa família na rua.

O Asilo Padre Cacique diz que negros não podem estar na Beira do Rio, principal área de interesse especulativo na cidade. Quais os interesses na encosta do Morro Santana? Quantos condomínios cabem no Mato atrás do Quilombo e do Asilo Padre Cacique? O interesse, ao fim e ao cabo, é racista e é territorial. Contra isso que temos que nos opor e fincar pé.

Leiam o que diz o presidente do Asilo para a repórter Débora Fogliatto:

“Segundo ele, funcionários foram ameaçados com facão e houve também ameaças por parte dos moradores de invadir o asilo. Brozoza disse que irá dormir no local e que, se houver invasão por parte da família, “vai dar morte”. “Eles só vão entrar no asilo passando por cima de mim. Uma dezena pelo menos, eu levo pro inferno. Não vão explorar o asilo, tomar conta do patrimônio do asilo”. Embora de início tenha falado que os moradores eram “invasores”, depois contou a história de como a família chegou ao local. “Na marra, no tapetão, ninguém vai ganhar, e esses invasores vão sair daí nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, de qualquer jeito. E se invadirem nosso lar, vai dar morte”, colocou.

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