A Amigas da Terra Brasil esteve, em novembro, em Nova Orleans, nos Estados Unidos (EUA), participando da assembleia geral bianual da Federação Amigos da Terra Internacional (FoEi). Compareceram nossa conselheira Lucia Ortiz, que é membra do Comitê Executivo da FoEi, e a presidenta Letícia Paranhos, também coordenadora internacional do programa Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo (JERN) da federação.
Na assembleia, organizações ambientalistas de base de todo o mundo que integram a Federação Amigos da Terra debateram o plano quinquenal da organização, estabelecido de forma democrática para o período 2021-2026, e avaliaram sua caminhada em direção ao cumprimento dos seus 3 objetivos principais: organizar e mobilizar para construir o poder popular e a soberania dos povos; contribuir no desmantelamento de todas as formas de exploração e de opressão e o poder corporativo das empresas transnacionais; assegurar mudanças urgentes necessárias para abordar as crises sistêmicas desde uma perspectiva de justiça (ambiental, social, de gênero e econômica).
Dentre tantos compromissos firmados pela assembleia, está o de seguir em solidariedade com a Palestina. Nós do Brasil, saímos comprometidas, entendendo ainda mais a importância latino-americana nessa solidariedade, pois os companheiros da Palestina contam com a gente. Temos capacidade de fortalecer a Campanha BDS, que é um movimento não violento da sociedade civil palestina que pede Boicote, Desinvestimento e Sanções às empresas transacionais vinculadas ao Estado de Israel e seu projeto colonial, imperialista e genocida do povo palestino. Esse sistema que oprime os trabalhadores e os povos da periferia dos países do Sul é o mesmo que permite o apartheid e a destruição do ambiente e das possibilidades de sustentação da vida na região; que possibilita os ataques e a violência de Israel contra os palestinos, com grandes empresas que atuam em nossos países exportando armas de guerra, tecnologias de vigilância, técnicas de privatização e controle de águas e as bases ideológicas para a manutenção de um estado de guerra, com apoio das grandes potências do Norte global. Queremos e lutaremos pela liberdade do povo e da terra palestina!
As organizações do nosso continente também fortaleceram a articulação regional, a ATALC (Amigos da Terra América Latina e Caribe). Realizamos uma bonita homenagem à Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) no Brasil e integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), falecida neste ano. A atuação feminista da Nalu foi determinante a todas as organizações e movimentos sociais latino-americamos. Reforçamos o compromisso de seguir a marcha de Nalu, desmantelando o patriarcado e todas as formas de opressão!
Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas, que assegurem que o mundo volte a viver dentro dos limites planetários.
A biodiversidade está em crise em todo o planeta. O número de espécies, e de indivíduos dentro das próprias espécies, diminuiu de forma retumbante nas últimas décadas, e a comunidade científica adverte que nos próximos anos podemos perder um milhão a mais de espécies. Para quem está seguindo o tema de perto é mais evidente que essa crise da biodiversidade é, na verdade, uma faceta a mais da crise sistêmica, causada pelo modelo econômico atual e pelo mantra do crescimento infinito.
O Convênio sobre a Diversidade Biológica (CBD nas siglas em inglês) iniciou um processo para estabelecer um novo Marco Mundial da Biodiversidade durante a Conferência das Partes das Nações Unidas no ano de 2018, um encontro em que muitas das nações participantes se comprometeram a respaldar um marco para a “mudança transformadora” elaborado pela comunidade científica. Aí então, se abrigava a esperança de que essa decisão fosse uma oportunidade real para mudar o modelo econômico e proteger a biodiversidade. Frente a essa premissa, escrevi para um bom número de amigas, amigos e ativistas ecologistas de todo o mundo para lhes dizer: “você tem que participar desse processo, vai ser transformador”. Enquanto o Convênio sobre a Diversidade Biológica fingia escutar as necessidades da sociedade civil e dos povos indígenas na primeira ronda de consultas, quando veio a luz o primeiro rascunho, tomei um duro golpe: as medidas que poderiam transformar verdadeiramente o sistema econômico que minava a biodiversidade – tais como normas/políticas rígidas e coordenadas para minimizar o dano ambiental – não tinham nenhuma possibilidade de êxito.
O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses danos a longo prazo
Por sua vez, nos demos conta rapidamente de que a participação das grandes empresas nas discussões estava obstruindo qualquer avanço, tal como acaba de demonstrar um novo estudo da Amigos da Terra Internacional. Inclusive empresas criminosas como BP, responsável pelo derramamento de petroleiro de Deepwater Horizon em 2010, ou a Vale, que envenenou centenas de quilômetros de rios com rejeitos tóxicos de suas minas diante do rompimento de duas represas de rejeitos no Brasil. Grandes contaminantes como estas empresas criam coalizões que se apresentam como ‘verdes“ ou “sustentáveis”. Porém, nas salas de negociação, com as portas fechadas, advogam por medidas voluntárias e de maquiagem verde que simulam uma regulação verdadeira. Está evidente que entendem que qualquer medida eficaz frente a perda de biodiversidade os prejudica e constitui um obstáculo para suas ganâncias.
Durante anos temos visto como os estados participantes e os altos funcionários da ONU recebem de braços abertos essas coalizões empresariais e suas propostas. Isso faz com que os resultados deste convênio- chave sobre a biodiversidade – e as políticas que vão reger a próxima década – estejam repletos de propostas de lavagem verde. Os conceitos de “Natureza positiva” e “soluções baseadas na natureza” são algumas dessas medidas, que colocam em perigo as verdadeiras soluções da crise urgente da biodiversidade.
O conceito de “Natureza positiva” ou “positivo para a natureza” pode soar bem, mas sua definição é muito confusa. O termo natureza pode ser uma referência a políticas que nada tem a ver com a biodiversidade e “positivo” é, inclusive, mais ambíguo
Ainda que possa parecer que implique em algo bom, na realidade gera um resultado duvidoso, se seguem destruindo ecossistemas e os processos de restauração são questionáveis. O plano das grandes empresas é seguir devastando a biodiversidade a curto prazo, com a promessa de que compensarão esses planos a longo prazo. O que esperam aqueles que propõem o conceito de “Natureza positiva” é que no ano de 2030, o resultado possa ser ligeiramente positivo. Porém, quando dimensiono a perda de biodiversidade que vi ao longo da minha vida, fica evidente que não podemos permitir mais perdas.
Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade.
Tanto o conceito de “natureza positiva” quanto o de “soluções baseadas na natureza”, o SBN, se baseiam em compensar, sejam as emissões atuais de CO2 ou os ecossistemas que querem destruir, o que supõe que um tipo de ecossistema possa ser compensado com outros, sem levar em conta a sua capacidade de absorção de CO2, a complexidade de organismos que existe em cada ecossistema, o caráter único de cada espécie ou o território sagrado para os povos indígenas. Tal compensação é uma “solução” para as empresas que querem manter seus benefícios e seguir minando a biodiversidade com a desculpa de que sua destruição é sustentável porque se compensará em outro lugar. O conceito não só é totalmente errôneo, como não é realista. Na realidade, compensar dessa forma requer grandes extensões de terras para capturar carbono, que excedem a superfície de terras disponíveis a nível mundial.
Permitir a compensação de emissões dá para as empresas um passe livre para seguir arrasando o meio ambiente apesar da emergência climática e da perda exacerbada de biodiversidade. Muitos dos projetos baseados na natureza não são mais que plantações de monocultivos de árvores, que não aportam nenhuma biodiversidade. Reservar terras para compensar emissões de carbono também compete com a demanda de terras de cultivo do agronegócio.
Porém, alguns poucos projetos pontuais de soluções baseadas na natureza que incluem práticas agroecológicas e a participação de Povos Indígenas e comunidades locais são apresentados em folhetos atrativos, em todas as cores, e afirmam falsamente que as soluções baseadas na natureza representam uma mudança de significado para o clima e a biodiversidade.
Ao mesmo tempo, ambos conceitos empresariais representam uma grande carga para os Povos Indígenas e para as comunidades locais. Muitos projetos de compensação acontecem em suas terras e frequentemente os expulsam de seus territórios. As empresas tendem a afirmar que o uso da terra feito pelas comunidades nativas prejudica a biodiversidade, ainda que seja demonstrado o contrário. Cerca de 80% do remanescente de biodiversidade terrestre se preservou graças aos povos indígenas e comunidades locais, apesar das violações de seus direitos e o assassinato de defensores e defensoras ambientais.
Embora a destruição de ecossistemas faça parte de uma crise mundial que temos que resolver, não é apenas uma questão técnica, como também de justiça. Necessitamos um Marco Mundial da Biodiversidade com políticas ambientais rigorosas que garanta que o mundo volte a viver dentro de limites planetários. As empresas têm que ser submetidas a uma regulamentação rigorosa, ao invés de ser permitido que criem as suas próprias medidas para evitarem as responsabilidades. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso proteção aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais, que são os verdadeiros guardiões que protegem a biodiversidade.
*Artigo de opinião de Nele Marien, Coordenadora do Programa Bosques e Biodiversidade da Amigos da Terra Internacional. Publicado originalmente no site El Salto, no dia 14 de dezembro, em: www.elsaltodiario.com/opinion/cumbre-de-biodiversidad-cop15